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O DISCURSO PUNITIVISTA EM TRÊS JORNAIS CEARENSES
O DISCURSO PUNITIVISTA EM TRÊS JORNAIS CEARENSES
Muiraquitã, vol. 11, no. 1, pp. 191-202, 2023
Universidade Federal do Acre

Received: 11 April 2023
Accepted: 12 July 2023
Resumo: O artigo analisa o estabelecimento dos discursos punitivistas na sociedade e aponta alguns expedientes linguístico-discursivos pelos quais esses discursos são legitimados ou encarecidos na esfera midiática. Para tanto, tece considerações sobre a noção de punitivismo, a partir de pesquisa bibliográfica interdisciplinar. Em seguida, detém-se sobre o impacto dos meios de comunicação na propagação e amplificação de tais discursos e em sua influência sobre a opinião pública. Com base nas noções propostas por Charaudeau (2013) sobre o discurso nos meios de comunicação, o artigo analisa peças noticiosas veiculadas pelos jornais cearenses Diário do Nordeste, O Povo e Tribuna do Ceará, entre 2016 e 2020, com o objetivo de reconhecer os meios linguístico-discursivos por meio dos quais o discurso punitivista é encarecido no tratamento da informação sobre a criminalidade. O artigo demonstra que o discurso punitivista, estabelecido a partir da constante veiculação de notícias sobre a criminalidade violenta, sustenta-se em um discurso do medo e aponta para soluções de força, como o endurecimento de penas e as práticas de justiçamento. Por fim, o artigo conclui que o discurso punitivista ancora-se também em discursos auxiliares, que buscam transmitir uma imagem positiva dos agentes de segurança pública, tornando-a imune às críticas por eventuais abusos.
Palavras-chave: Discurso punitivista, Opinião pública, Meios de comunicação.
Abstract: The paper analyzes the establishment of punitivist discourses in society and list some linguistic and discursive strategies by which these discourses get legitimacy in media sphere. It brings remarks on the notion of punitivism, based in interdisciplinary bibliographical research. Then, the article focuses on the impact of media in spreading out and amplification of these discourses on public opinion. Based on theoretical proposals by Charaudeau (2013) on media discourse, the article analyzes news in three newspapers from Ceará from 2016 to 2020, in order to recognize linguistic and discursive strategies that praise punitivist discourses in treatment of crime news. The article demonstrates that punitivist discourse is raised by constant information of violent crime news, so that it supports itself in a fear discourse and points out to extreme solutions as hardest regimes of punishment and vigilantism. The article concludes that punitivist discourse is also supported by auxiliary discourses that aim to disseminate a positive image of security agents, in order to prevent critical on eventual abuses.
Keywords: Punitivist discourse, Public opinion, Media.
INTRODUÇÃO
O punitivismo pode ser definido, em uma primeira aproximação, como uma linha de pensamento que vê no crime um mal da sociedade a ser combatido de forma implacável, sem maiores considerações acerca das causas dos crimes ou de formas não repressivas de combatê-los. Segundo essa concepção, o crime e os criminosos devem não apenas ser punidos conforme a legislação vigente, mas precisam ser extirpados do convívio social, com sofrimento por vezes maior do que o que podem ter infligido a suas vítimas. Assim é que se delineiam discursos favoráveis a endurecimento de penas e se estabelece uma tolerância, em certos meios, a práticas como as execuções sumárias, os linchamentos públicos, a defesa da prisão com trabalho forçado, dentre outras. A esse modo de legitimar ou encarecer discursivamente tais relações entre crime e punição podemos denominar discurso punitivista.
No mesmo contexto social, avultam posicionamentos contrários à ação de defensores dos Direitos Humanos, os quais são vistos como “defensores de bandidos”, configurando-se um discurso detrator da noção de Direitos Humanos (WACQUANT, 2001), o qual contribui para o fortalecimento do discurso punitivista.
Na promoção e legitimação dessa mentalidade, os jornais e outros veículos midiáticos cumprem importante papel, na medida em que não apenas noticiam os crimes, mas os apresentam de modo a direcionar a análise do leitor ou espectador, legitimando certos discursos e estigmatizando outros. Nas palavras de Zaffaroni, “São os meios de comunicação de massa que desencadeiam as campanhas de ‘lei e ordem’ quando o poder das agências encontra-se ameaçado” e, dessa forma, participam ativamente na construção de uma realidade social (ZAFFARONI, 1991, p. 128).
Nesse sentido, o presente artigo pretende discutir duas questões fundamentais. Inicialmente, analisa como os jornais contribuem para instaurar perante a sociedade, em nossos dias, uma imagem de que a criminalidade está fora de controle e de que somente as soluções de força, como o punitivismo, podem ser respostas eficazes ante tal estado de coisas. E, em segundo lugar, investiga como é criada uma imagem tal das forças de segurança pública, notadamente a polícia militar, que pretende torná-la imune a críticas contra eventuais ilegalidades e abusos por elas cometidos.
Para tanto, inicialmente apresentamos alguns apontamentos que possam contribuir para a compreensão de como a mentalidade punitivista vem se estabelecendo na sociedade brasileira. Em seguida, analisamos um corpus constituído especificamente para este trabalho, com matérias publicadas nas versões on-line dos jornais cearenses Diário do Nordeste, O Povo e Tribuna do Ceará, entre 2016 e 2020, verificando de que modo os fatos são apresentados de molde a promover e consolidar a referida mentalidade punitivista. Nas citações, constará o nome do jornal em caixa alta, seguido da data de publicação on-line do material na página do veículo na internet. Esses jornais são os de maior circulação e alcance no estado do Ceará, tanto em suas versões impressas quanto na quantidade de seguidores em redes sociais.
ESTUDOS DO DISCURSO
O discurso punitivista tem sido objeto de estudo de diferentes áreas no meio acadêmico e nas ciências aplicadas, notadamente o Direito, a Segurança Pública e as Ciências Sociais, como a Sociologia e a Antropologia. Nesses trabalhos, comumente, toma-se o discurso punitivista como um dado da realidade, para, a partir do pressuposto de sua existência, investigar, por exemplo, a influência desse discurso do senso comum nas decisões criminais do Poder Judiciário (KOBIELSKI, 2019). Em análises desse tipo, entende-se haver um controle punitivo que “engloba o legislativo, o público, a polícia, os juízes e funcionários públicos e a execução penal” (KOBIELSKI, 2019, p. 33). Analisa-se, pois, a influência do discurso populista nas práticas penais em geral. Cabe, nesse sentido, investigar mais detidamente de que modo esse discurso se estabelece e se legitima na sociedade.
As origens desse discurso podem ser rastreadas e examinadas sob diversos pontos de vista: histórico, antropológico, sociológico, filosófico, psicológico, dentre outros. Como, em regra, temos aí uma realidade social em relação complexa com uma prática discursiva, é oportuno analisar a questão sob um ponto de vista discursivo. Santos (2016) defende que o estudo dos discursos punitivistas populistas deve interessar ao profissional atuante na criminologia, que poderá, a partir dessa perspectiva crítica, “promover a desconstrução desses discursos, fomentando um diálogo com os demais atores sociais” (SANTOS, 2016, p. 21).
Ainda no meio acadêmico jurídico, podemos citar o trabalho de Silva (2016), em que se discute a promoção de discursos punitivistas na mídia como proposta única para a solução de conflitos, redução da criminalidade e restabelecimento da sensação de segurança às pessoas. Nesse estudo, o autor discute o papel da mídia no Estado democrático de Direito e faz um levantamento de alguns “truques”, como denomina o autor, levados a cabo pela mídia para promover a linha de pensamento punitivista. Sem apresentar exemplos, o autor discute processos como a seleção dos fatos que se tornarão notícias e a distribuição dos assuntos em um noticiário, bem como o papel da ideologia na definição da linha editorial do veículo midiático.
Nesse sentido, identificamos os meios de comunicação como uma instância que, ao fazer um discurso reverberar pela sociedade, pode contribuir para o fortalecimento de determinada visão de mundo. Em outras palavras, a mídia pode influenciar a opinião pública. A principal questão aqui analisada, portanto, é a seguinte: de que modo a mídia reforça nas pessoas concepções punitivistas de senso comum? Investigar essa questão é importante porque, como assevera Kobielski, “O sistema de justiça criminal atua para punir o que o senso comum categoriza como ‘bandido’” (KOBIELSKI, 2019, p. 33). E como se constrói e se reforça, como se propaga, na mentalidade coletiva, essa concepção sobre o que é um bandido e sobre o tratamento que lhe é devido?
Assim, tendo em vista que os trabalhos existentes em torno da questão detêm-se, em geral, nos aspectos gerais do funcionamento da mídia e nas implicações sociológicas e jurídicas da atuação midiática, propomo-nos realizar uma abordagem da questão sob enfoque linguístico-discursivo. Este artigo, portanto, analisa alguns elementos linguísticos que são convocados a colaborar para o estabelecimento desses discursos nos meios de comunicação, propondo uma tipificação desses expedientes, conforme atuem para promover diretamente o discurso da punição ou cumpram papel auxiliar no estabelecimento de ambiências sociodiscursivas favoráveis ao punitivismo.
Para essa análise, parecem-nos particularmente adequadas as formulações teóricas de Charaudeau sobre as mídias e seu impacto na opinião pública. Interessa, nesse caso, compreender os mecanismos simbólicos pelos quais “os indivíduos regulam as trocas sociais, constroem as representações dos valores que subjazem a suas práticas, criando e manipulando signos e, por conseguinte, produzindo sentido” (CHARAUDEAU, 2013, p. 16).
Inicialmente, consideremos, com esse autor, que “As mídias não transmitem o que ocorre na realidade social. Na verdade, elas impõem o que constroem do espaço público” (CHARAUDEAU, 2013, p. 19). Para comprovar essa afirmação, o autor explicita algumas táticas pelas quais as mídias constroem “uma imagem fragmentada do espaço público, uma visão adequada aos objetivos das mídias, mas bem afastada de um reflexo fiel” (CHARAUDEAU, 2013, p. 20). Por meio dessas estratégias, diversos aspectos da realidade são simplificados, amplificados, estereotipados, de modo a favorecer uma visão particular sobre os fatos noticiados. A análise desses fenômenos não é fácil, uma vez que, segundo o autor, “o mundo das mídias tem a pretensão de se definir contra o poder e contra a manipulação” (CHARAUDEAU, 2013, p. 17). É importante, pois, que o analista tenha sempre em mente que a mídia em si não exerce poder e não impõe sentidos ou padrões de conduta. O que a mídia faz, muitas vezes sem total consciência e intencionalidade por parte de seus operadores, é transitar por uma zona de afetividades e valores de acordo com um processo em que essas afetividades precisam ser tocadas, para que a mídia atinja sua audiência, aproximação que não se faz sem algum grau de manipulação desses sentimentos.
No modelo teórico desenvolvido por Charaudeau, a comunicação se estabelece como uma troca entre duas instâncias, a produtora e a receptora, de tal modo que o sentido “depende da relação de intencionalidade que se instaura entre essas duas instâncias” (CHARAUDEAU, 2013, p. 23-24). Cabe considerar que essa troca se dá a partir de um produto, que vem a ser o texto propriamente dito, a notícia de jornal, o boletim de notícias no rádio, o noticiário de TV. Esse produto, por sua vez, tem uma série de constrangimentos e possibilidades formais. Assim, o estabelecimento de sentidos também é função da organização particular do texto como materialidade.
Considerando essa relação entre produtor e receptor, Charaudeau assevera que a instância de produção deve levar em conta os valores da instância receptora, de modo a apresentar as informações de acordo com as expectativas dessa instância. Tais valores são de ordem ético-social e também afetivo-social (CHARAUDEAU, 2013, p. 79-80). Nas palavras do autor, “a instância midiática constrói hipóteses sobre o que é mais apropriado para tocar a afetividade do sujeito alvo” (CHARAUDEAU, 2013, p. 81). Por meio da manipulação dessas duas ordens de valores, os intelectivos e os afetivos, constrói-se a opinião pública. A informação é encenada/dramatizada, de modo a mobilizar o universo de crenças instituído no meio ao qual se dirige a informação.
ESTABELECIMENTO DE DISCURSOS POSITIVISTAS
De modo geral, o discurso punitivista circula em torno das práticas penais, como proposta de enfrentamento à criminalidade. Silva (2016) chama a atenção para certa campanha dos meios de comunicação em prol do direito penal como a instância primeira a que se deve recorrer na aspiração por pacificação social. Tem-se, assim, uma cultura punitivista em que não soa estranho discutir leis penais emergenciais, porque o entendimento todo é de que o crime existe e se espraia essencialmente pela ausência de punição imediata e severa.
Cabe esclarecer, porém, que a mentalidade a partir da qual esse discurso se estrutura tem raízes em práticas sociais mais amplas. De acordo com Carvalho e Chamberlen, as emoções e a lógica punitivas existem em áreas como a saúde, o ensino, o abrigamento e os cuidados pessoais (CARVALHO; CHAMBERLEN, 2016). O clamor por endurecimento e tolerância zero ante as condutas consideradas inapropriadas, portanto, constitui elemento cultural que se dissemina pelo cotidiano das pessoas como um todo. Há uma organicidade nesse pensamento, de tal modo que a pronta resposta ao mundo do crime é decorrência de uma visão de mundo mais ampla.
Para compreender como o discurso punitivista se estabelece na sociedade brasileira, no âmbito penal e criminal, devemos fazer referência ao discurso do medo, aquele que busca instilar nas pessoas o temor permanente ante os crimes violentos. Vive-se, assim, a expectativa de que, a qualquer momento, qualquer pessoa pode não apenas ser assaltada, por exemplo, mas brutalizada, assassinada de forma cruel, por criminosos desumanos que debocham do valor da vida humana. Diversas são as ações midiáticas que têm esse efeito ante o leitor.
Batista (2016), por exemplo, analisa como diversas instâncias sociais, dentre as quais a imprensa, lidam com a questão do medo no Rio de Janeiro do século XIX. Segundo a autora,
As notícias vão fazendo a crônica da microfísica do poder e dos interstícios do medo branco: tiroteios nos morros, negros armados, magotes de africanos pelas esquinas etc… Aparecem várias ideias-força presentes até hoje nos discursos do medo; o descaso com a morte de africanos e a indignação com a morte de brancos, as estratégias seletivas de policiamento, o apelo às tropas nos quartéis, as queixas contra a impunidade, apelos por mais rigor e mais dureza no combate aos perigos da cidade. (BATISTA, 2016, p. 123)
É nesse contexto que, como afirma Vera Malaguti Batista, recorrendo ao pensamento de Nilo Batista, instaura-se um discurso punitivista com ares de legalidade: “o próprio discurso do direito penal desenvolve-se como locução legítima, produzindo sentidos que viabilizam a expansão do sistema penal em si e na direção das mentalidades e da vida privada” (BATISTA, 2016, p. 120). Em certos casos, postula-se uma incompatibilidade entre o direito e a sociologia. Não se buscam explicações para os crimes, que poderiam ser dadas mediante análises das estruturas sociais, mas apenas a punição, a responsabilização penal de indivíduos, conforme as injunções do direito. Dessa forma, ganha corpo na vida social uma mentalidade favorável ao uso sempre crescente da força para lidar com situações de criminalidade. Tal mentalidade é resumida por Santos, que fala em “discurso punitivista populista”, do seguinte modo:
Essas opiniões formam um conjunto de propostas simplistas, legitimadoras de políticas questionáveis — para dizer o mínimo —, tais como o aumento desproporcional das penas cominadas a certos crimes, a expansão da população carcerária e a tolerância zero com relação às condutas repudiadas socialmente. Trata-se de uma espécie de pensamento mágico, segundo o qual a violência e a criminalidade resultariam de causas isoladas, facilmente identificadas pela população. (SANTOS, 2016, p. 21, grifo no original)
Em casos mais extremos, dispensa-se até mesmo o direito constituído, o aparato judiciário como regulador legítimo da punição. O discurso do medo causa nas pessoas uma sensação de impotência. Abre-se o espaço para que se veja a polícia como instância ao mesmo tempo julgadora e executora de penalidades, dado que os agentes legalmente constituídos para tal fim aparentemente falharam em sua incumbência. Toleram-se, assim, os justiceiros e as soluções privadas para a mazela social da insegurança (WACQUANT, 2001). Se já se havia operado uma cisão entre a sociologia e o direito, procede-se a outra ruptura, mais radical, entre o jurídico e o penitenciário. Desfaz-se, assim, a separação entre uma instância responsável pelo julgamento e outra responsável pela execução da pena, basilar nas sociedades democráticas modernas (BUDÓ, 2006). Ante esse estado de coisas, tem-se a polícia como entidade movida por uma espécie de teoria implícita: “o importante é sempre reprimir, produzir espetáculos de terror e truculência pelas ruas, infundindo o medo no coração das massas populares” (BATISTA, 2016, p.121).
Nos jornais cearenses analisados, o discurso do medo é promovido mediante notícias como “Panfleto assinado por facções criminosas ‘proíbe’ jogar lixo nas ruas de Fortaleza” (TRIBUNA DO CEARÁ, 28 de julho de 2017); “Policial morre em tentativa de assalto no Bairro Ellery em Fortaleza” (TRIBUNA DO CEARÁ, 3 de maio de 2017), notícia compartilhada em página do jornal em rede social com o seguinte adendo: “Esse é o 8º policial morto no Ceará neste ano”; “Funcionário da Cagece é assaltado por deficiente visual e homem sem perna” (TRIBUNA DO CEARÁ, 21 de fevereiro de 2017), também compartilhada em rede social do próprio jornal, com a legenda “Nada os impede”; “Assaltantes mandam alunos deitarem no chão e fazem arrastão em autoescola” (TRIBUNA DO CEARÁ, 23 de fevereiro de 2017); “Cansado de tantos assaltos, dono de padaria deixa de receber pagamento de contas bancárias” (TRIBUNA DO CEARÁ, 13 de fevereiro de 2017).
No caso de “Panfleto assinado por facções criminosas ‘proíbe’ jogar lixo nas ruas de Fortaleza”, fica evidente a tensão entre a autoridade reivindicada pela criminalidade e aquela que é prerrogativa do Estado (GALDEANO, 2017; SILVA; ALENCAR, 2018). Ao pôr em evidência a “coexistência e disputa entre os regimes normativos de crime e de governo” (SILVA; ALENCAR, 2018, p. 683), abre-se espaço para o recrudescimento de discursos que, descrentes da capacidade do Estado para fazer valer suas prerrogativas, apostam em soluções de força, como os justiçamentos, seja perpetrados por agentes do Estado, como policiais (valendo-se de espancamentos e grupos de extermínio), seja por civis, através de linchamentos, por exemplo. Mobilizam-se, dessa forma, os “imaginários sociodiscursivos que alimentam e tornam possível o funcionamento da máquina midiática” (CHARAUDEAU, 2013, p. 28). Esse imaginário, existente na sociedade, não teria apelo junto à massa de leitores se não espelhasse valores partilhados por essas pessoas. O que a mídia faz, nesse caso, é selecionar, dentre os muitos valores que circulam na sociedade em torno dessa problemática, aqueles passíveis de gerar comoção. É por isso que o que chamamos aqui discurso punitivista é denominado, por alguns autores, discurso populista punitivista.
Nesse tipo de notícia, o foco não é o fato em si, mas a sensação de que a criminalidade grassa sem que haja qualquer força dissuasora. Alimenta-se a percepção de que os criminosos estão cada vez mais audaciosos. Delineia-se, aos olhos do cidadão, um revoltante cenário de terror em que pessoas são violentadas até por deficientes físicos, em que os próprios policiais são sistematicamente assassinados, um atrás do outro. Essa ideia de recorrência sem freios das práticas de crimes contra a vida e contra o patrimônio é visível também, por exemplo, em “Creche é assaltada pela 6ª vez somente este ano; bandidos levaram até as panelas” (TRIBUNA DO CEARÁ, 21 de novembro de 2019). Estão aí, lexicalmente codificados, as propriedades básicas da criminalidade que vêm sustentar esse discurso: a recorrência (“6ª vez”), a ousadia e o deboche (“até as panelas”, em que a escolha da palavra “até” não é gratuita) e a torpeza (“creche”).
Vemos, assim, que uma estratégia básica para a promoção do discurso punitivista é a instauração de um discurso do medo, o que se opera, em essência, mediante o noticiamento constante de crimes violentos, de molde a subentender-se um clamor por algum tipo de providência imediata. Aplicando a essas cenas enunciativas a noção de “arranjos violentos” de Silva e Alencar (2018), pode-se compreender que o discurso do medo e o discurso punitivista buscam trazer os arranjos violentos do mundo do crime para o mundo público, ou seja, propõem que a reação legítima da sociedade ante certos arranjos violentos são outros de mesma natureza, com polaridade invertida.
AS DUAS PRINCIPAIS LINHAS DE AÇÃO DO DISCURSO PUNITIVISTA
São duas as linhas de ação do punitivismo: a primeira busca ainda no seio do Estado abrigo para seu clamor, de sorte que “os aumentos de penas de tipos já existentes são justificados perante a sociedade, gerando uma verdadeira necessidade de repressão penal para acalmar o alarde público”. Trata-se de conferir um estofo legalista às soluções de força. Contribuem para a promoção dessa linha de pensamento-ação notícias como “Senado aprova PL que obriga presos a pagarem pelas próprias despesas na prisão” (O POVO, 06/06/2018). Nesse caso, cumpre notar a aparente neutralidade do veículo noticioso ao tratar de proposta cercada por controvérsia não só no meio social mais amplo como no meio jurídico. Ao escamotear a polêmica, o veículo noticioso pode induzir na opinião pública uma ambiência pouco crítica à medida.
Nessa mesma linha, despontam intervenções jornalísticas como “87% dos curtidores de Tribuna do Ceará no Facebook são a favor da redução da maioridade penal” (TRIBUNA DO CEARÁ, 28 de setembro de 2017), notícia que apresenta os resultados de uma enquete realizada pelo próprio jornal. Nesse caso, a própria realização da sondagem junto à opinião pública indica uma tendência, na formulação da questão, à evidenciação de um posicionamento diante da questão.
Outra linha de ação desconsidera claramente esse marco civilizatório, sendo leniente, na melhor das hipóteses, ante ações como execuções sumárias, linchamentos públicos e abusos diversos por parte das forças policiais. Essa segunda linha de pensamento-ação promove espetáculos em que o objetivo é mostrar o suplício a que os criminosos são ou devem ser submetidos. Ela se materializa por meio de notícias como “Ladrão fica preso em janela ao tentar entrar em igreja de Tianguá” (TRIBUNA DO CEARÁ, 4 de maio de 2018). A notícia é ilustrada com fotos que mostram o acusado com a cabeça presa nas grades da janela, tanto do lado de dentro como do lado de fora, em evidente sofrimento físico e constrangimento. Nessa mesma linha de promoção da mentalidade punitivista, temos manchetes como “Prefeito é amarrado por mentir para a população na Bolívia” (DIÁRIO DO NORDESTE, 01 de março de 2018). Também aqui a notícia é ilustrada com fotografia, sob a qual aparece a seguinte legenda: “Javier Delgado já havia sido amarrado pela população outras duas vezes em apenas dois anos de mandato”. Já uma notícia como “Suspeito de assalto sobe em telhado e clama pela presença da polícia para evitar linchamento” (TRIBUNA DO CEARÁ, 8 de fevereiro de 2017) parece apresentar o linchamento como fato natural, que a polícia vem impedir apenas por desencargo protocolar.
Já notícias como “Jovem que ficou conhecida por ‘fumar dinheiro’ passa em concurso para delegada no Pará” (O POVO, 28/02/2018) induzem à crença de que se debocha da lei no país. Esse tipo de notícia parece clamar tanto por um enrijecimento do sistema jurídico como para soluções outras, já que o direito penal não tem mostrado suficiente poder de dissuasão junto a potenciais infratores. Uma consequência extrema desse imaginário discursivo é a sensação de que a lei, em vez de punir os criminosos, protege-os, confere-lhes regalias, em violenta afronta à sociedade.
Tal ponto de vista é sutilmente promovido, ainda, por meio de notícias como “Governo pagará indenização de R$ 100 mil para família de preso morto por choque em cadeia” (TRIBUNA DO CEARÁ, 22 de novembro de 2016), “Onda de mortes em presídios do Ceará pode custar (bem) caro ao bolso do contribuinte” (TRIBUNA DO CEARÁ, 17 de fevereiro de 2017), “Família de detento morto em unidade prisional deve receber mais de R$ 90 mil de indenização” (TRIBUNA DO CEARÁ, 6 de maio de 2017) e “Filho de detento morto por choque em cadeia recebe indenização de R$ 50 mil” (TRIBUNA DO CEARÁ, 2 de setembro de 2017). Ao evidenciar já nas manchetes os valores das indenizações, promove-se nas pessoas um sentimento de que grandes somas de dinheiro público são usadas em benefício de famílias de criminosos, como se se tratasse de uma espécie de recompensa ao crime.
Não apenas nas notícias, mas também em colunas assinadas, tal mentalidade é promovida: “STF decide que presos em cadeias lotadas merecem indenização: se essa moda pega…” (TRIBUNA DO CEARÁ, 17 de fevereiro de 2017). Na coluna, o articulista aparentemente louva a decisão do STF, ao dizer que ela constitui “um empurrãozinho para que o Executivo faça o que tem que fazer: organizar as penitenciárias”. No entanto, conclui assim o artigo:
Particularmente, acho que a decisão do STF deveria ser ampliada. Pacientes em situação degradante? Indenização. Alunos em escolas precárias? Indenização! O cidadão paga IPVA e as estradas são esburacadas? Indenização! E mais: cidadãos humilhados com os atrasos na Justiça deveriam também ser indenizados. Vítimas de criminosos que deveriam estar presos, mas que estão nas ruas por decisões judiciais merecem indenização, claro!
Se a moda pegasse, aí sim faltaria dinheiro para tanta reparação. (TRIBUNA DO CEARÁ, 17 de fevereiro de 2017)
No fim das contas, fica evidente a impressão de que, na visão do articulista, ao passo que o cidadão é desassistido pelo Estado em tudo, instâncias do próprio Estado parecem preocupar-se apenas com os direitos dos presidiários. O texto contribui, dessa forma, para reforçar a ideia de que o Estado age a serviço dos criminosos. Intervenções discursivas dessa natureza, pelo que induzem no imaginário popular, contribuem para “identificar a defesa dos direitos do homem com a tolerância à bandidagem” (WACQUANT, 2001, p. 10). A ideia é suprimir a condição mesma de existência de qualquer discurso garantista, é negar o que Silva e Nogueira de Alencar denominam “regime metapragmático dos direitos humanos” (SILVA; ALENCAR, 2018, p. 692).
Essa negação, conforme apontado por estudos como o já citado de Silva e Alencar (2018), ocorre também pela sugestão de que o envolvimento com o mundo do crime poderia constituir, de algum modo, justificativa para a violência. Na cobertura de uma chacina ocorrida em Fortaleza, em 2018, temos, por exemplo, notícias como a seguinte: “3 dos 4 integrantes da TUF mortos em chacina não tinham antecedentes criminais” (TRIBUNA DO CEARÁ, 12 de março de 2018). Traçar uma correlação entre as vítimas de uma chacina e eventuais antecedentes criminais “é um modo de hierarquizar vidas e de, implicitamente, justificar que essas vidas” [de pessoas que têm antecedentes criminais] “valem menos e portanto não merecem ser vividas” (SILVA; ALENCAR, 2018, p. 692-693). Os mesmos pressupostos e, portanto, o mesmo posicionamento implícito ante a noção de direitos humanos podem ser vistos em uma manchete como “Adolescente é morto na frente da namorada em Fortaleza” (TRIBUNA DO CEARÁ, 2 de maio de 2017), sob a qual se lê: “Ele era usuário de droga e já tinha recebido muitos conselhos, mas não quis ouvir e se deu mal”.
DISCURSOS AUXILIARES DO PUNITIVISMO
Como estratégias discursivas auxiliares, desponta, por exemplo, o discurso da ingratidão da sociedade, pelo qual as críticas são vistas como inaceitavelmente injustas, dado que os policiais dão suas vidas e arriscam sua segurança, sem a garantia de obter o devido reconhecimento, sujeitos às críticas mais virulentas. Nesse sentido, é comum que o jornalismo repercuta vozes afinadas com essa mentalidade. Assim, ante um episódio de violência policial, podemos ter notícias como a seguinte: “Secretário da Segurança defende capitão envolvido em caso de agressão na Beira Mar” (O POVO, 03/05/2017). Sob a manchete, lê-se: “O titular da pasta falou em ‘ingratidão’ e ‘incapacidade de perdão dos outros’ e aconselhou o oficial envolvido na polêmica, em pronunciamento no Facebook”. Com relação ao mesmo episódio, outra notícia diz: “Secretário de Segurança diz que policial que agrediu advogada é ‘guerreiro’ da corporação” (TRIBUNA DO CEARÁ, 4 de maio de 2017). O abuso da força, assim, não pode ser denunciado, pois apontar o excesso e o arbítrio é descredenciar uma instituição da qual não se pode abrir mão, esquecendo, segundo os articuladores desse discurso, os serviços que a instituição policial vem prestando.
Com relação a outro caso de violência policial, lemos o seguinte título: “‘Pelo menos 28 dos 44 PMs são inocentes’, garante irmão de suspeito de participar de chacina (TRIBUNA DO CEARÁ, 12 de novembro de 2016). No compartilhamento da entrevista em rede social do jornal, lê-se a seguinte introdução: “Em entrevista ao Tribuna do Ceará, o irmão de um Policial Militar contou o sofrimento, as angústias e, principalmente, o outro lado da dor deste caso que repercute até hoje”. Ao referir-se ao “outro lado da dor”, o próprio jornal dá espaço para o discurso da tolerância e da complacência para com os policiais, ainda que possivelmente responsáveis por crimes e abusos.
Paralelamente, nas pessoas e instituições que têm simpatia pela instituição policial do jeito que ela é, percebe-se um empenho cada vez maior em construir para a polícia a imagem de amiga da sociedade. Isso é conseguido por meio da veiculação de notícias como “Policial faz sucesso na internet após fotos suas cortando os cabelos de moradores do morro” (O POVO, 14/10/2016), “Policiais do Ronda oferecem aulas de violão em áreas de risco de Fortaleza” (TRIBUNA DO CEARÁ, 24 de novembro de 2016), “Crianças recebem aulas de música dadas por policiais militares em Fortaleza” (TRIBUNA DO CEARÁ, 4 de junho de 2017) e “Policiais distribuem ovos de Páscoa para crianças carentes no Ceará” (TRIBUNA DO CEARÁ, 15 de abril de 2017). A imagem de heroísmo é reforçada em notícias como “Policiais que resgataram crianças sequestradas são homenageados pelo governador” (TRIBUNA DO CEARÁ, 8 de outubro de 2016), “Policiais militares socorrem criança que ficou entre a vida e a morte”, (TRIBUNA DO CEARÁ, 26 de fevereiro de 2018), apresentada sob a rubrica “Ato heroico”. Busca-se um contraponto para a imagem de truculência e violência desmedida da polícia por meio de notícias como “Guarda municipal interrompe trânsito para gatinha atravessar a rua com o filhote” (TRIBUNA DO CEARÁ, 16 de junho de 2017), “Policial se deita no chão para consolar garoto de 4 anos” (O POVO, 10/10/2016) e “Policial segura guarda-chuva por 1 hora para abrigar ciclista ferido” (TRIBUNA DO CEARÁ, 7 de fevereiro de 2020), por exemplo.
Parece bem claro que se trata da tentativa de se criar uma imagem positiva para a instituição, como um contraponto aos discursos que condenam o abuso de autoridade e a violência policial. Busca-se, assim, criar uma imagem positiva para toda a classe, indistintamente, para que os desmandos, abusos e arbitrariedades que ali ocorrem, se divulgados, sejam tomados como ocorrências pontuais e destoantes do quadro geral.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ancorado, em essência, no discurso do medo, o punitivismo busca legitimar práticas repressivas e autoritárias, minimizando a validade de concepções garantistas e humanistas, estigmatizando-as, depreciando-as, por meio da seleção de itens lexicais e de operadores discursivos nos textos midiáticos. Para tanto, o discurso punitivista ora clama por maior tipificação dos crimes puníveis e por endurecimento de penas, ora despreza a própria institucionalidade do sistema penal, ao propor soluções à margem de qualquer vivência democrática, como as execuções sumárias, os linchamentos públicos, a truculência policial, os espancamentos.
Para legitimar tais práticas, estabelecem-se discursos como os seguintes:
1. o detrator da ideia de direitos humanos, segundo o qual resguardar garantias humanas fundamentais é apenas “defender a bandidagem”;
2. o da ingratidão da sociedade, pelo qual se acusa a sociedade de não reconhecer os serviços prestados pela instituição policial;
3. o da polícia amiga da sociedade, entendendo-se, por “amiga”, nada além de caridosa e prestativa, em circunstâncias pontuais e não sistemáticas.
Tais discursos, que não necessariamente formam um sistema de crenças coerente, são mobilizados ad hoc, para fazer frente a críticas à atuação arbitrária de agentes do Estado. Conhecer o funcionamento de tais discursos e os expedientes de que se valem, nesse sentido, é condição necessária para a superação dessas práticas antidemocráticas ainda tão vívidas entre nós.
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