Dossiê
DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA: O PROCESSO DE ALTERIDADE ENTRE CIENTISTAS E PÚBLICO-INTERLOCUTOR
DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA: O PROCESSO DE ALTERIDADE ENTRE CIENTISTAS E PÚBLICO-INTERLOCUTOR
Muiraquitã, vol. 11, núm. 2, pp. 24-40, 2023
Universidade Federal do Acre

Recepción: 16 Junio 2023
Aprobación: 17 Octubre 2023
Resumo: A partir da perspectiva teórico-metodológica do Círculo de Bakhtin, para o qual o discurso seria o entrelaçamento de vozes intrinsecamente dialógicas e permeadas por valorações que conduzem os pontos de vista sociais, culturais e históricos, o objetivo deste artigo é investigar a relação de alteridade constituída entre cientistas e público-interlocutor. O corpus está composto por artigos científicos sobre divulgação científica, publicados por professores-pesquisadores de universidades brasileiras, entre 2016 e 2018. Como critérios de seleção, determinou-se que os autores estivessem vinculados a programas de pós-graduação, pertencentes às grandes áreas de conhecimento da CAPES. Observou-se que a divulgação científica é concebida por meio do outro, seja o cientista, seja o público-interlocutor. Nesse processo alteritário, a divulgação científica é refratada tanto na interação contínua das esferas científica e acadêmica quanto no compartilhamento das descobertas com o público.
Palavras-chave: Divulgação científica, Universidade, Círculo de Bakhtin, Alteridade.
Abstract: From the theoretical-methodological contribution of Bakhtin Circle, for which discourse is the intertwining of dialogical voices permeated by axiological value, which conducts social, cultural and historical points of view, the objective of the this paper is to investigate the otherness constituted with scientists and the public. The analysis is constituted by papers about scientific divulgation published by professors-researchers from Brazilian universities between 2016 and 2018. As selection criteria, it was determined that the authors should be part of postgraduate programs belonging to CAPES’ major areas of knowledge. It is concluded that scientific divulgation is conceived through the other, whether it is the scientist or the interlocutor public. In this process of otherness, scientific divulgation is refracted both in the uninterrupted interaction of the scientific and academic spheres and in sharing scientific discoveries with the public.
Keywords: Scientific divulgation, University, Bakhtin Circle, Otherness.
INTRODUÇÃO
A divulgação científica é um tema amplamente explorado por diversas áreas do conhecimento. Na Linguística, há algumas décadas, pesquisadores se debruçam sobre esse objeto de estudo com o propósito de analisar, investigar e explorar como a divulgação científica se organiza e qual a forma mais adequada de informar sobre as descobertas científicas ao público.
Apesar de todas as investigações linguísticas sobre a divulgação científica, que geralmente se concentram no estudo dos gêneros discursivos e principalmente em textos publicados na mídia, há outras questões a serem consideradas e para as quais a Linguística pode contribuir. Este artigo tem como objetivo explorar o discurso de cientistas relacionados à divulgação científica, um tema ainda relativamente pouco desenvolvido pelas teorias linguísticas. Definir o que é divulgação científica, o que ela representa para a sociedade, como escrever/falar sobre ciência, o papel do cientista e/ou do divulgador etc. são questões a serem exploradas e para as quais os pesquisadores ainda buscam respostas.
No universo das abordagens teóricas, os modelos de divulgação científica – déficit, contextual, expertise leiga e participação pública – ocupam um lugar de destaque por serem perspectivas que caracterizam a relação do público com a ciência. Dentre esses modelos, o modelo do déficit – termo cunhado por Wynne (1988 apud Michael, 1996) – é objeto de um vasto número de trabalhos científicos na área de divulgação científica. Atribuímos a esse aspecto o fato de ser um modelo cercado de polêmicas e críticas, mas amplamente aplicado na ciência. Essa visão estigmatiza o público como ignorante – leigo –, enquanto os cientistas seriam os detentores do conhecimento científico (Giering, 2016). Trata-se de uma abordagem ingênua, pois a ciência não consiste em fornecer certezas absolutas, pelo contrário, está sempre em processo de questionamento (Cuevas, 2008).
A escolha de realizar a presente investigação com base nos estudos do Círculo de Bakhtin justifica-se pela abordagem dialógica atribuída à linguagem. Para o Círculo, ou para a análise/teoria dialógica do discurso, como propõe Brait (2004), a linguagem não é vista como um código ou sistema. Um enunciado, mesmo que seja constituído por uma única palavra, representa um horizonte de significados que extrapolam o sistema linguístico e estão condicionados às experiências sociais e culturais das pessoas. Nossas perspectivas relacionadas aos discursos são compartilhadas com outros indivíduos de nossa classe social. Tais valores axiológicos estão ligados à comunidade e são reconhecidos como dogmas (Volóchinov, 2019), conduzindo nossos pontos de vista, que se cruzam por meio de relações dialógicas. O elemento dialógico da linguagem se estabelece na relação entre o eu e o(s) outro(s). Portanto, as relações dialógicas não se esgotam nos textos, mas são absorvidas pelo campo da vida.
Ao assumir que os enunciados estão repletos de enunciados de outros e que as valorações são compartilhadas coletivamente com os indivíduos de nossa classe social, a divulgação científica se beneficia de um corpus de análise que abarque a pluralidade de vozes na ciência. Se os discursos estão conectados dialogicamente, a divulgação científica, tanto sob a ótica da Linguística quanto de outras áreas do conhecimento, está em constante interação e tensão. Por isso, as perspectivas dos professores-pesquisadores em relação à divulgação científica precisam ser estudadas a partir das múltiplas teias de sentido que se estabelecem no tensionamento dos discursos.
Este artigo é parte da pesquisa de doutorado intitulada A divulgação científica como arena discursiva nas universidades brasileiras: (des)encontro de vozes nos dizeres de professores-pesquisadores (Fetter, 2022), na qual investigamos as concepções de divulgação científica, com o intuito de contribuir para o aprimoramento da divulgação da ciência no Brasil. Considerando os diversos caminhos de análise tomados na tese de doutorado mencionada, decidimos apresentar, neste artigo, nossos achados no que tange à alteridade da divulgação científica. Sendo assim, temos como objetivo investigar as relações de alteridade constituídas entre os cientistas e o público.
Para tal, subdividimos o artigo em quatro seções, além desta introdução. Na seção que segue, abordaremos os fundamentos teóricos do Círculo de Bakhtin, concentrando-nos nas noções de dialogismo e alteridade. Na terceira seção, apresentaremos as escolhas metodológicas para seleção do corpus e para a análise. Na quarta seção, discorreremos sobre os resultados encontrados e, por fim, na quinta seção, as considerações finais.
DIALOGISMO E ALTERIDADE: OLHAR BAKHTINIANO SOBRE A LINGUAGEM
A diversidade de vozes, as suas orientações sociais, as relações de tensão, os sentidos construídos, todos esses elementos que perpassam o discurso compõem o conjunto de obras do Círculo de Bakhtin. Desses recursos metalinguísticos – não restritos ao código linguístico –, os membros do Círculo trabalharam com o conceito de dialogismo. Essenciais para a constituição da linguagem, as relações dialógicas estabelecem interação entre os discursos que dialogam em uma cadeia contínua, marcados pelos discursos alheios, pelas vozes sociais de outros. Ao perceberem que a linguagem não se resumia a uma mera estrutura frasal, Bakhtin, Volóchinov e Medviédev trouxeram contribuições significativas para os estudos da linguagem que superaram outras perspectivas e teorias linguísticas em voga na época.
Sobre essa questão, em Gêneros do discurso, Bakhtin (2016) ressalta que qualquer objeto do discurso já corresponde a uma relação com outros discursos. O falante nunca será o primeiro a proferir a palavra, como ilustra Bakhtin (2016, p. 61), ao afirmar que “o falante não é um Adão bíblico”. Sendo assim, o objeto do discurso manterá relações de sentidos com outros discursos e manifestará a pluralidade de vozes. O pensamento – discurso interior – já é propriamente um discurso, porque “encontra a palavra povoada” (Bakhtin, 2018b, p. 232) e, portanto, tampouco será a última palavra do falante: ela estará sempre orientada para outros e advinda de outros.
Bakhtin (2017a), em sua obra Para uma Filosofia do Ato Responsável (PFA) – escrita entre os anos de 1920 e 1924 –, discute o que viria a ser o fundamento de sua visão dialógica sobre a linguagem: a ética (Bell; Gardiner, 1998), a filosofia moral (Ponzio, 2008), a filosofia primeira (Sobral, 2019). É, nessa obra, que se engendra a relação com o outro – a alteridade. Tal perspectiva está encadeada ao ato responsável, existir-evento, cujo princípio está na unicidade, irrepetibilidade e imiscibilidade dos sujeitos. A “unicidade do ser – o reconhecimento do ato responsavelmente realizado – e sua singularidade (a afirmação/a consciência do ato realizado de modo responsável) atestam o não-álibi na existência” (Cavalheiro, 2009, p. 93-94). O ato responsável é ocupar esse lugar único, do qual não posso me abster nem estar em outro lugar:
É apenas o não-álibi no existir que transforma a possibilidade vazia em ato responsável real (através da referência emotivo-volitiva a mim como aquele que é ativo). É o fato vivo de um ato primordial ao ato responsável, e a criá-lo, juntamente com seu peso real e sua obrigatoriedade; ele é o fundamento da vida como ato, porque ser realmente na vida significa agir, é ser não indiferente ao todo na sua singularidade (Bakhtin, 2017a, p. 99).
Os indivíduos são responsáveis – não tem álibi no existir – e são responsivos – situados e direcionados ao outro. Não podemos evitar o outro, nosso envolvimento com ele, visto que a nossa responsabilidade se articula com o outro e dela não podemos nos abdicar (Ponzio, 2008). No entanto, os sujeitos não se fundem, não se tornam um, mas vivenciam o que Cavalcante Filho (2017) chama de “movimento dialético-dialógico”. No processo de interação com outros indivíduos, nossas percepções e pontos de vista se complementam, vemos nos outros o que estes não podem ver e vice-versa.
Conforme Ponzio (2008, p. 36), na linguagem, em nossa relação com o outro, a palavra é ação (responsável) e participativa, é “[...] viva e ‘responsivamente-significativa’”. Quando nos relacionamos com a palavra, reconhecemos a sua entonação, pois não estamos diante de um objeto vazio, sem sentido, abstrato, mas frente a toda experiência viva e dinâmica que a palavra absorveu e está “[...] por-fazer-se” (Bakhtin, 2017a, p. 86). Portanto, a escolha de nossas palavras deriva do vínculo emotivo-volitivo com o conteúdo da experiência, como exploraremos na próxima seção ao tratarmos da axiologia.
Para Bakhtin, há dois centros de valor – do eu e do outro –, diferentes e opostos. É na correlação entre esses centros que se organiza o todo arquitetônico, ou seja, nossos atos no mundo constituído de elementos axiológicos compreendidos em um dado espaço-temporal (Ponzio, 2008). Desse modo, os estudos do Círculo de Bakhtin se voltam para a questão da abertura, da inconclusibilidade do discurso. Se a arquitetônica é esse todo que apenas se completa com o outro, e a palavra está sempre por se completar, podemos compreender que a linguagem não se constitui como um processo apenas do eu-para-mim, mas do eu-para-outro e do outro-para-mim. É a presença desse outro, em um determinado espaço temporal, histórico, cultural, social e, portanto, valorativo, que integram e instituem os gêneros discursivos.
Nossa contemplação das obras do Círculo de Bakhtin circunda em torno da alteridade – o elo que temos com o outro –, que, por ser constitutiva da linguagem, é de extrema relevância para a teoria dialógica do discurso e para nossa pesquisa, em função de defendermos que o discurso dos professores-pesquisadores refrata a defesa e a importância da relação de alteridade entre a ciência e a sociedade. Para discorrer a esse respeito, nos fundamentamos no pensamento bakhtiniano, para o qual o indivíduo nunca está sozinho, totalmente isolado do mundo que o envolve. Nas palavras de Volóchinov (2019, p. 121), “o ‘eu’ pode se realizar na palavra apenas apoiando-se no ‘nós’” (Volóchinov, 2019, p. 121).
O nosso lugar em relação ao outro é um movimento exotópico que ocorre quando nos colocamos em contato com o olhar do outro. Esses movimentos de interpretação constituem a empatia, a exotopia e o excedente de visão, que apontam para a importância de contatar o outro, “o sentido do outro” (Bakhtin, 2017b, p. 19), afastando-nos daquilo que queremos interpretar. O excedente de visão permite que vejamos o outro a partir de nossa perspectiva. Por meio desse excedente proporcionado pelo outro, conseguimos nos ver, conseguimos olhar para o objeto de maneira diferente (exotopia). Nessa relação com o outro, surgem “novos aspectos, novas profundezas do sentido” (Bakhtin, 2017b, p. 19), que nos colocam em um encontro dialógico, permitindo que compreendamos melhor a nossa cultura e a cultura do outro:
Eu devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-me no lugar dele e, depois de ter retornado ao meu lugar, contemplar o horizonte dele com o excedente de visão que desse lugar se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente concludente a partir desse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha vontade e do meu sentimento (Bakhtin, 2011, p. 23).
Cavalheiro (2009, p. 84-85, grifo da autora), a respeito do excedente de visão, discutido na obra de Bakhtin O autor e a personagem na atividade estética, explica que a relação entre o autor e a personagem da obra literária ocorre por movimentos exotópicos, “[o] acabamento da personagem vem de fora, é o outro – o autor-criador que a completa”. Na contemplação estética, conforme a autora, os movimentos empáticos são essenciais, “[p] orém, esses momentos de empatia (identificação) e de objetivação (retorno) interpenetram-se mutuamente, não saio de mim mesmo e depois regresso, ou seja, não deixo de ocupar meu lugar único” (Cavalheiro, 2009, p. 86). Assim, quando a autora apresenta a noção de Bakhtin sobre o sujeito, que não pode ser considerada sem a sua relação com o outro, associamos o seu entendimento à motivação de nossa pesquisa de que o percurso de estudos das concepções de divulgação científica deve se estabelecer por intermédio de nosso contato com as demais áreas do conhecimento científico, pois “a alteridade – condição do que é outro, do que é distinto – decorre do princípio de que é no e pelo reconhecimento do outro que os indivíduos se constituem como sujeitos” (Cavalheiro, 2009, p. 99).
Apoiadas nessa citação de Cavalheiro (2009), entendemos que, quando o pensamento bakhtiniano toca a essência alteritária do discurso, não está interessado no outro como um sujeito a ser respeitado ou tolerado, mas na impossibilidade de sermos indiferentes, pois “[...] o diálogo não é uma proposta, uma concessão, um convite do eu, mas uma necessidade, uma imposição, em um mundo que já pertence a outros” (Ponzio, 2008, p. 23). Nesse sentido, observamos a relevância de considerar os discursos dos outros, especialmente por estarmos situadas nas ciências humanas. Como afirma Bakhtin (2017b, p. 67), os textos ganham vida quando entram em contato com outros textos. Porém, não se trata apenas de um contato entre textos. Bakhtin (2017b, p. 67) nos lembra que há também o contato entre os indivíduos. Assim, nas ciências humanas, o objeto – os discursos, os falantes – não são “coisas”. O pesquisador e o objeto estão em interação: “[...] o conhecimento que se tem dele [do objeto] só pode ser dialógico” (Bakhtin, 2017b, p. 66).
ESCOLHAS METODOLÓGICAS PARA DEFINIÇÃO DO CORPUS
Com esse cenário em mente, estruturamos dois corpora: um de referência (composto por 56 artigos) e um de estudo (composto por 34 artigos). Essa subdivisão se baseia nos preceitos de Rastier (2019), para o qual os corpora não são um simples agrupamento de textos, mas são estruturados a partir de critérios pré-estabelecidos.
O corpus de referência foi organizado por 56 artigos digitais, publicados em periódicos científicos entre os anos de 2016 e 2018 e vinculados às grandes áreas do conhecimento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Contudo, foram coletados artigos de apenas 7 (sete) grandes áreas, a citar: Ciências Exatas e da Terra; Ciências Biológicas; Engenharias; Ciências da Saúde; Ciências Sociais Aplicadas; Ciências Humanas; e Multidisciplinar. A grande área Linguística, Letras e Artes foi descartada da seleção, pois nosso objetivo era investigar as concepções de divulgação científica de professores-pesquisadores vinculados a outras áreas, especialmente tendo em vista que o excedente de visão se dá no contato com o outro, quando nos distanciamos de nosso lugar – de linguistas – e nos aproximamos do outro – pesquisadores das demais áreas. Já em relação à grande área Ciências Agrárias, não foram encontrados artigos vinculados.
Para a coleta, utilizamos a ferramenta de busca Google Acadêmico (Google Scholar, em inglês) mediante a busca pelo termo divulgação científica. Como forma de explicitar o processo de constituição desse corpus, apresentamos as etapas a seguir:
a. coleta dos artigos no Google Acadêmico;
b. verificação das palavras-chave dos artigos científicos (divulgação científica e divulgação da ciência);
c. conferência e organização do ano de publicação dos artigos científicos;
d. consulta, no Currículo Lattes, do vínculo dos professores-pesquisadores a pro-grama de pós-graduação stricto sensu e ano de vínculo;
e. delimitação da autoria para artigos com dois ou mais autores;
f. consulta, na Plataforma Sucupira, da grande área de conhecimento à qual se vinculam os professores-pesquisadores;
g. criação das etiquetas dos artigos (ano de publicação e letra em ordem alfabética).
Em virtude da delimitação do corpus e de nosso propósito de análise, selecionamos enunciados de 34 artigos científicos para compor o corpus de estudo. Essa seleção advém de nosso lugar de pesquisadoras e de nossa relação emotivo-volitiva com a divulgação científica, que nos possibilita refletir sobre nosso objeto de estudo e mobilizar aqueles artigos dos quais emergem vozes, tons axiológicos, relações dialógicas bem como alteritárias, de modo a cumprirmos nossos objetivos de pesquisa.
CIÊNCIA COMO EMANCIPAÇÃO ALTERITÁRIA
Convencionamos adotar para a análise dos enunciados do Quadro 1, a seguir, a partir de nosso percurso emotivo-volitivo, a ótica da ciência como emancipação alteritária. Tal refração é resultado de nossa interação com o discurso dos professores-pesquisadores e de nossa atitude responsiva ao estudo dos enunciados. Trata-se de uma forma de acabamento, atribuída para esta investigação, ou seja, “[...] uma relativa conclusibilidade em determinadas condições, em certa situação do problema, em um dado material, em determinados fins colocados pelo autor” (BAKHTIN, 2016, p. 37). A compreensão de ciência como emancipação alteritária consiste em organizar os enunciados dos professores-pesquisadores nos quais a ciência é vista como promotora do desenvolvimento intelectual, crítico, político e social do público, que vemos como uma relação de reciprocidade e, por isso, alteritária: eu-para-mim (ciência-para-ciência), o eu-para-outro (ciência-para-público) e o outro-para-mim (público-para-ciência).

Integrar as esferas científica e acadêmica, para os professores-pesquisadores, significa, de certa maneira, olharem para si mesmos, e, portanto, vislumbrar os impedimentos que percorrem as adversidades e as fronteiras da divulgação de conhecimentos científicos. Ainda que estas representem certo deslocamento em direção aos cientistas, são marcadas pelas valorações da vivência dos professores-pesquisadores na esfera científica. Em outras palavras, concentrados nessa esfera, não há a movimentação em direção ao público.
Entretanto, ao confrontarmos os sentidos que perpassam o discurso dos professores-pesquisadores, percebemos as interações e as mudanças de posicionamento do eu-para-mim ao outro-para-mim: “[...] eu devo vivenciar – ver e inteirar-me – o que ele vivencia, colocar-me no lugar dele, como que coincidir com ele” (Bakhtin, 2011, p. 23), como vemos nos enunciados do artigo 2016N “[a] ciência deve estar para a sociedade como algo que pode ser pensado não apenas em termos de transmissão do conhecimento científico dos especialistas para os leigos” e, no artigo 2017N, “[a] divulgação dos conhecimentos científicos para fora do seu contexto de origem mobiliza diferentes técnicas, recursos e procedimentos [...] para todo tipo de público”.
Para que haja a assimilação das palavras do outro, os professores-pesquisadores precisam se colocar no lugar do público, apreciá-lo de perto e enxergar a ciência do ponto de vista de quem está fora da esfera científica. Trata-se de uma empatia simpática, que:
introduz na vida objeto da empatia valores a ela transgredientes, desde o início transfere essa vida para um novo contexto de valores e de sentidos, desde o início pode dar-lhe um ritmo temporal e uma forma espacial. (Bakhtin, 2011, p. 76).
Os movimentos empáticos, alicerçados à noção de alteridade, constituem o processo compreensivo a respeito do outro. Do contrário, o que saberíamos seria apenas fruto de nossa observação superficial do outro. E, nesse sentido, Bakhtin (2011, p. 35, grifos do autor) explica que “[n]o mundo único do conhecimento não posso colocar-me como eu-para-mim em oposição a todos sem exceção”, porque “[a] forma do vivenciamento concreto do indivíduo real é a correlação entre as categorias imagéticas do eu e do outro [...]”.
Ao seguirmos essa perspectiva alteritária na análise dos enunciados, consideramos que a empatia simpática é exercida quando os professores-pesquisadores experienciam a ciência pelos olhos do público, como por exemplo nos enunciados, a citar: do artigo 2018N “[a] DC, em sua essência, preza pela discussão contínua e pela redefinição da ideia de ciência”; do artigo 2018S, “[o]s indivíduos [...] têm oportunidade de satisfazer curiosidades naturais e de formar uma cultura científica” e “[a] transmissão de conhecimentos científicos à sociedade em geral, na denominada divulgação científica, é apontada como uma prerrogativa da democracia”; e, no artigo 2017B, “a ciência precisa ser divulgada de maneira que ela não seja algo que só pode ser entendido por poucos, mas algo que está ao alcance de todos”.
Enquanto se aproximam dos cientistas, como vimos anteriormente, os professores-pesquisadores observam as adversidades do fazer divulgação científica, porém não podem compreendê-la exclusivamente de seus lugares na esfera científica, precisam vivenciar os seus valores também a partir da realidade do público, como vemos nos enunciados, respectivamente, dos artigos 2017S e 2017N, “um meio através do qual a sociedade geral pode ter contato com as informações científicas e tecnológicas e estar mais preparada para a discussão” e “uma dimensão educativa pode ser atribuída às práticas de DC, pois além do caráter informativo, elas socializam conhecimentos”.
Podemos perceber, nos enunciados, que há relações alteritárias, porque os reflexos e refrações da divulgação científica englobam as percepções do público (que o público poderia ter) nesse contato dos professores-pesquisadores, como vemos nos enunciados, a citar: no artigo 2016J, “[m]ecanismos eficientes de divulgação científica podem favorecer ao público uma compreensão mínima sobre ciência”; no artigo 2017B, “a fim de que cada cidadão da sociedade possa basear-se na ciência para executar atividades diárias básicas e fazer suas escolhas”; no artigo 2018A, “[é] como se cada um de nós fosse um pouco cientista”; no artigo 2018S, “[o]s indivíduos, ao agregar informações sobre as descobertas científicas ao seu dia a dia, podem tomar decisões pessoais de maneira mais consciente”; e, no artigo 2017S, “meio através do qual a sociedade geral pode ter contato com as informações científicas e tecnológicas e estar mais preparada para a discussão e para a tomada de decisões”.
Para contemplarmos esses enunciados, precisamos, portanto, ter em vista que esses tons axiológicos da representação da divulgação científica para o público são conduzidos pelo lugar que os professores-pesquisadores ocupam ao se movimentarem empaticamente. Quando revelam aspectos que o público não poderia perceber, há um retorno a esse lugar, porque ambos não coincidem. Os professores-pesquisadores, uma vez nessa condição como sujeitos, não podem considerar a divulgação científica exclusivamente do ponto de vista do público, pois seus horizontes já se expandiram e, sobretudo, não se fundiram, o que “[...] [i]mporta, nesse processo, [é] a fronteira, o limiar, entre o eu e o outro. Essa reflexão implica o eu-para-mim, o eu-para-o-outro e o outro-para-mim, em que o eu não se funde com o outro” (Di Fanti, 2020, p. 21, grifos da autora).
Os enunciados dos professores-pesquisadores, como vemos nos enunciados dos artigos 2016D e 2016J, respectivamente, “divulgação científica, atualmente, vem sendo considerada, por estudiosos da área, como um importante instrumento de inclusão social, devido ao seu estreito vínculo com a educação” e “favorecer ao público uma compreensão mínima sobre ciência, para que ele consiga participar dos debates políticos”, nos permitem evidenciar que as concepções de divulgação científica são sentidos compreendidos pela oportunidade e vontade (empatia) de alcançar perspectivas distintas, cujas circunstâncias são promovidas por esses movimentos de contemplação do público:
Esse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha posse – excedente sempre presente em face de qualquer outro indivíduo – é condicionado pela singularidade e pela insubstitutibilidade do meu lugar no mundo: porque nesse momento e nesse lugar, em que sou o único a estar situado em dado conjunto de circunstâncias, todos os outros estão fora de mim. (Bakhtin, 2011, p. 21, grifos do autor).
Ao considerarmos o excedente de visão, os enunciados revelam as diferenças de sentidos da divulgação científica, as quais surgem dessa distância contempladora que, de certa forma, completa o público. Podemos observar as refrações dessa interação com o outro em enunciados, como: no artigo 2017N, “uma dimensão educativa pode ser atribuída às práticas de DC, pois além do caráter informativo, elas socializam conhecimentos que, em algum momento, se apartaram dos cidadãos comuns”; no artigo 2016D, “a relevância da pesquisa deve-se ao fato de que a divulgação científica, atualmente, vem sendo considerada, por estudiosos da área, como um importante instrumento de inclusão social”; no artigo 2018N, “[a] divulgação da ciência é a porta de saída dos saberes para o ser humano de uma forma geral”; e, no artigo 2017B, “[a] divulgação científica é a janela que suplementa e aproxima a ciência e a sociedade, de maneira que permite uma conversação entre esses meios”. Nesses enunciados, podemos perceber que a divulgação científica é valorada a partir das percepções que os professores-pesquisadores estabelecem na relação com o público. São valores compartilhados, no aproximar-se e no afastar-se, que transparecem o encontro de vozes, porém “[...] cada um tem excedente de visão único, condicionado pela singularidade do lugar ocupado, que permite que se veja no outro o que ele próprio não consegue ver” (Di Fanti, 2020, p. 15-16, grifo da autora).
Observamos, por exemplo, no enunciado do artigo 2018A “[é] como se cada um de nós fosse um pouco cientista e, sendo assim, cada indivíduo possui um pouco do conhecimento científico como algo totalmente comum, mesmo que intrinsecamente”, que a alteridade se estabelece nos tons axiológicos de equivalência entre os cientistas e o público. É interessante perceber como a professora-pesquisadora constrói o seu posicionamento por meio das vozes dos sujeitos que se veem fora da esfera científica e, ainda assim, possuem “um pouco do conhecimento”. Nesse enunciado, essas vozes se opõem ao modelo de déficit, uma vez que não estratificam os indivíduos em leigos e cientistas nem impõem barreiras ao público. A palavra do outro, nesse caso, amplia o distanciamento existente entre a professora-pesquisadora e a esfera científica, ou seja, possibilita o excedente de visão.
A constituição discursiva dos enunciados é concebida pelo atravessamento de palavras outras, de outras vozes. Dentro das esferas científica e acadêmica, os discursos se formam nessa interação e sob o efeito das forças discursivas. As forças centrípetas centralizam o conhecimento científico no interior dessas esferas, conforme observamos nos enunciados sobre o modelo de déficit e sobre as fronteiras da ciência. Contudo, as forças centrífugas também perpassam os discursos e incorporam valorações que problematizam esse domínio, impregnando os enunciados de vozes dissonantes, como nos enunciados, a citar: do artigo 2017A, “as universidades têm papel importante, especialmente na promoção do empoderamento comunitário e desenvolvimento de habilidades pessoais”; no artigo 2016N, “[o]s públicos da ciência e da tecnologia apresentam um repertório cultural, e por isso não podem ser imaginados como tábuas em branco”; e, no artigo 2016L, “[i]ndependente da constância de verbas públicas para investimento na popularização da C & T alguns pesquisadores vêm se dedicando a esse tema como cerne de suas preocupações”. Desse encontro alteritário com o público, entendemos como as forças centrífugas são capazes de movimentar o discurso dos professores-pesquisadores, pois resistem ao controle da ciência.
Nos enunciados dos professores-pesquisadores, a divulgação científica é o palco, no qual se situam as valorações centralizadoras da ciência e os posicionamentos dispersantes. Não é possível, como afirmamos, pensar na divulgação científica sem o público, o que a torna extremamente heterogênea, uma vez que reconhecemos também as vozes dos cientistas, dos jornalistas e dos professores-pesquisadores. Todos esses outros coexistem nesse palco e atravessam a divulgação científica por diferentes construções valorativas. Sendo assim, quando os professores-pesquisadores explicam que, por exemplo como no artigo 2018A, “é importante que a produção científica e sua divulgação não sejam restritas apenas a cientistas, mas que sejam levadas, de alguma maneira, ao público em geral” e ressaltam, por exemplo, no artigo 2018N, sobre o “aumento de sua divulgação que depende da ruptura da noção hierárquica científica que somente leva à divisão e enfraquecimento”, emergem os tons axiológicos dessas vozes e, ao contemplá-las, podemos compreender que há a contestação a uma tentativa de concentrar os conhecimentos científicos entre os cientistas.
Nessa resposta dos professores-pesquisadores sobre a restrição da ciência, percebemos como os valores de um grupo podem ser questionados e reconsiderados. Conforme explica Volóchinov (2019, p. 122), “[...] quando a avaliação fundamental precisa ser enunciada e comprovada, ela já se tornou duvidosa [...], perdeu a sua ligação com as condições da existência dessa coletividade”. Portanto, podemos pressupor que o acesso à ciência pelo público é uma “[...] reavaliação [que] está sendo preparada” (Volóchinov, 2019, p. 122) dentro da esfera científica, por uma coletividade de professores-pesquisadores.
Dessas reavaliações, novos tons axiológicos surgem no horizonte social dos professores-pesquisadores, enquanto outros enfraquecem. Se pensarmos no modelo de déficit, podemos dizer que, quando este se torna inadequado ou, até mesmo, insatisfatório para a comunicação científica, novos modelos são criados, e outros pontos de vista se estabelecem para reforçar o contato com o público.
Os enunciados refletem a necessidade de interação com o público e revelam a influência das forças que organizam a divulgação científica. O que condiciona a expressividade dessas vozes é o aspecto social de sua realização. Ao evidenciarem a relação com o público, os professores-pesquisadores partilham de valorações com outros sujeitos de seu grupo social. Os distintos enunciados que refletem e refratam os tons axiológicos de aproximação ao público são vozes que se agregam em função da realidade sócio-histórica vivenciada na e pela divulgação científica. Assim, enunciados, como os dos artigos 2017N e 2017B, “[a] divulgação dos conhecimentos científicos para fora do seu contexto de origem mobiliza diferentes técnicas, recursos e procedimentos para veiculação das informações científicas para todo tipo de público”, “popularizar a ciência é democratizar o acesso ao conhecimento científico” e “a ciência precisa ser divulgada de maneira que ela não seja algo que só pode ser entendido por poucos, mas algo que está ao alcance de todos”, são reflexos e refrações vinculadas ao contexto sócio-histórico de sua época. Nas palavras de Medviédev (2012, p. 214), “[...] todas as objetivações do ser humano pertencem, sem exceção, a um único mundo da realidade sócio-histórica e, portanto, encontram-se em mútua interação e podem entrar em contradições e consonâncias”.
Nesse sentido, é interessante observar que as valorações a respeito da ciência bem como do público são enfatizadas como lembranças de enunciados antecedentes e permanecem (vivem) dialogicamente, porque há, dentro das esferas científica e acadêmica – e suas grandes áreas do conhecimento –, o processo de luta para que os conhecimentos científicos sejam acessados pelo restante da sociedade. Esses tons axiológicos penetram no discurso dos professores-pesquisadores por estarem em circulação, se orientarem e responderem aos embates envolvidos na divulgação científica nesse horizonte social.
No pensamento bakhtiniano, segundo Cavalheiro (2009, p. 73-74), “a linguagem deve ser contemplada em sua realidade social avaliativa, pois ela é uma criação dialógica, em que o ‘eu’ e o ‘outro’ se integram”. Sendo assim, os valores em relação ao público são posicionamentos das forças centrífugas frente às forças centrípetas do discurso científico, são laços dialógicos com enunciados precedentes, são respostas à ciência e aos cientistas, visto que os enunciados “[...] abarca[m] as esferas de uso da linguagem, na medida em que pressupõe a dinâmica dialógica da troca entre sujeitos, cujas posturas valorativas se expressam no enunciado” (Cavalheiro, 2009, p. 79).
Aprendemos com o Círculo de Bakhtin que os enunciados são um encontro com o outro, e esse contato social conduz o discurso, que é exterior e interiormente regido por “[...] leis da correspondência valorativa (emocional), de enfileiramento dialógico etc., dependendo estreitamente das condições históricas da situação social e de todo o decorrer pragmático da vida” (Volóchinov, 2017, p. 136). Ao observarmos os enunciados dos professores-pesquisadores, compreendemos que seu discurso implica relações alteritárias com o meio social no qual se situam em estreita afinidade com o contexto avaliativo da divulgação científica. Desse modo, os tons axiológicos que permeiam os enunciados são determinados pela relação dialógica entre os professores-pesquisadores e os interlocutores – o público – e são manifestações, entre tantas outras, da ideologia de grupos sociais dentro da esfera científica.
Diante do exposto, podemos evidenciar que os enunciados são indícios do processo social de desenvolvimento da divulgação científica que evidenciam a natureza, praticamente, intrínseca entre a ciência e a sociedade, como vemos nos enunciados, a citar: no artigo 2018S, “os argumentos em defesa da publicização dos resultados de pesquisas científicas vão além da necessidade de validação dos estudos entre os pares” e “[...] divulgação científica, é apontada como uma prerrogativa da democracia, uma forma de prestação de contas, uma demanda do capitalismo, um direito do cidadão”; no artigo 2016L, “a DC exercita o dever considerado ético por esses dois autores da prestação de contas dos cientistas a sociedade”; e, no artigo 2017A, “as universidades têm papel importante, especialmente na promoção do empoderamento comunitário e desenvolvimento de habilidades pessoais, através de ações de extensão universitária” e “[...] é fundamental aproveitar-se de tais situações [propagação do zika vírus] que geram curiosidade do público para propor ações de DC e ES”.
Nesses enunciados, podemos perceber que o excedente de visão, sobre o qual discorre Bakhtin (2011), pode ser compreendido nessa relação mútua entre a ciência e o público. A divulgação científica, conforme os professores-pesquisadores, é justificada a partir de diferentes aspectos que abrangem desde os benefícios ao público por terem acesso aos conhecimentos científicos até o compromisso que essa ação exige. Essas justificativas parecem manter movimentos de reciprocidade entre a ciência e o público que permitem exceder a visão de ambos.
Bakhtin (2011, p. 23) explica que as ações que praticamos em relação ao outro só podem ser praticadas por nós, e que, para o outro, elas seriam “inacessíveis”. A ciência produz conhecimento científico que, por vezes, é inacessível ao público, o que nos revela, conforme já comentamos, a relação empática dos cientistas que olham para essa problemática pelos olhos do outro. Além disso, ao perceberem as vantagens que a ciência proporciona para o público, os cientistas, em um movimento exotópico, conseguem olhar para o seu objeto, do qual surgem “novos aspectos, novas profundezas do sentido” (Bakhtin, 2017b, p. 19). Assim, a divulgação científica seria um “encontro dialógico” de várias culturas, por possibilitar que tanto a ciência quanto a sociedade “se enrique[ça]m mutuamente” (Bakhtin, 2017b, p. 19).
Com base nos enunciados, podemos inferir dessas relações alteritárias o reconhecimento da participação da sociedade na ciência, especialmente pelos tons axiológicos em “prerrogativa da democracia”, “prestação de contas”, “direito do cidadão”, “geram curiosidade do público” e “empoderamento comunitário”, nos artigos 2018S, 2016L e 2017A. Mesmo que os professores-pesquisadores comentem que há outros financiadores das pesquisas científicas, como é o caso da iniciativa privada, verbas públicas etc., observamos que os enunciados reverberam vozes de valorização ao público como interlocutor central da divulgação científica.
Esse posicionamento axiológico pode evidenciar a relação de convívio entre os cientistas e o público, já que, segundo Bakhtin (2018, p. 322), “ser significa conviver [...] ser para o outro e, através dele, para si”. É possível compreender, a partir desses acentos valorativos a respeito do público, que os cientistas não estão em “[...] um território interior soberano, está todo e sempre na fronteira, olhando para dentro de si [...]”, e a ciência “[...] olha o outro nos olhos ou com os olhos do outro” (Bakhtin, 2018, p. 323).
As concepções da divulgação científica refletem os desafios em divulgar os conhecimentos científicos e refratam o (des)encontro com o público como expressão da multiplicidade de vozes no discurso dos professores-pesquisadores. Ao mencionarmos, anteriormente nesta seção, que os sentidos se revelam apenas no contato com outros sentidos, queremos enfatizar que o potencial dessa perspectiva acerca dos enunciados se dá pela compreensão de que as relações alteritárias entre a ciência e a sociedade se desenvolvem na correlação das vozes, que é sempre “[...] [o] cruzamento de interesses sociais multidirecionados nos limites de uma coletividade sígnica, isto é, a luta de classes” (Volóchinov, 2017, p. 112, grifo do autor). No contexto da divulgação científica, engendram-se processos de luta entre as vozes e suas posições valorativas que possibilitam evidenciar as mudanças que o signo ideológico carrega.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No discurso dos professores-pesquisadores, as relações alteritárias são fundantes nas concepções de divulgação científica. Os enunciados nos revelaram que os professores-pesquisadores, ao se colocarem na esfera científica, compreendem as adversidades de divulgar ciência, uma vez que acentuam e apresentam justificativas que corroboram para a noção de alteridade. Nesse caso das adversidades, os cientistas são vistos a partir de movimentos empáticos e, por conseguinte, exotópicos, e desse lugar de contemplação, percebemos que os professores-pesquisadores reconhecem os cientistas como indivíduos cercados de imposições externas e internas que se tornam empecilhos para a divulgação científica.
Há, nesses movimentos alteritários entre os cientistas e os professores-pesquisadores, relações emotivo-volitivas com a divulgação científica, que é considerada ora um objeto carregado de adversidades, ora a solução para os problemas que se estabelecem entre a ciência e a sociedade. Nesse sentido, alguns enunciados se destacaram por atuarem como uma forma de chamamento, de convocação para que os cientistas se desloquem da esfera científica e se aproximem do público. Vimos que esses movimentos revelam o excedente de visão por parte dos professores-pesquisadores, pois evidenciam uma perspectiva mais abrangente, que não incorpora apenas as adversidades e as fronteiras, mas também os benefícios dessa relação com o público.
Ao contemplarmos as relações alteritárias, vimos que os professores-pesquisadores se deslocam em direção ao público, ao enfatizarem que a divulgação científica proporciona o desenvolvimento intelectual, social e político de toda a sociedade. Pudemos perceber um processo de escuta que norteia as concepções de divulgação científica. Por essa razão, vimos enunciados que criticam os cientistas que não se envolvem com a divulgação de pesquisas e descobertas e que se encerram em seus ambientes e espaços científicos. De mesmo modo, percebemos que há também uma contestação ao modelo de déficit, pois essas críticas bem como a imposição de fronteiras ou de adversidades, consequentemente, impossibilitam a interação com o público.
Ainda que o público, como vimos no corpus de estudo, seja visto como aquele que não possui conhecimentos científicos tampouco pertence à esfera científica, podemos afirmar que, para os professores-pesquisadores das grandes áreas do conhecimento da CAPES contempladas nesta investigação, a alteridade é constitutiva da divulgação científica, uma vez que o público é o interlocutor central e para o qual as relações são estabelecidas nas concepções analisadas. Essa afirmação que propomos nos permite revelar que os professores-pesquisadores e os cientistas não somente ocupam lugares únicos – eu-para-mim – na divulgação científica, mas também se relacionam com o público – eu-para-outro –, constituindo movimentos de reciprocidade – outro-para-mim. Portanto, a divulgação científica é concebida pelas relações alteritárias, pelos movimentos empáticos e exotópicos, que possibilitam assumir os pontos de vista do público. Trata-se, portanto, de percepções que surgem na distância contempladora que os professores-pesquisadores assumem em relação ao público.
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