Dossiê

A NARRATIVA DIASPÓRICA DE ORLANDA AMARÍLIS SOB A PERSPECTIVA BAKHTINIANA[1]

Adriana Garcia
Araújo Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
Jozanes Assunção Nunes
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil

A NARRATIVA DIASPÓRICA DE ORLANDA AMARÍLIS SOB A PERSPECTIVA BAKHTINIANA[1]

Muiraquitã, vol. 11, núm. 2, pp. 223-238, 2023

Universidade Federal do Acre

Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade is licensed under CC BY-NC-ND 4.0

Recepción: 22 Agosto 2023

Aprobación: 08 Noviembre 2023

Resumo: Este artigo apresenta três livros de contos afro-lusófonos: Cais-do-Sodré té Salamansa (1974), Ilhéu dos pássaros (1982) e A casa dos mastros (1989), de Orlanda Amarílis (1924-2014), aprofundando na análise do conto Cais-do-Sodré, verificando como se dá a relação de construção de identidades em situação diaspórica, diáspora esta que é um tema recorrente nas obras de Amarílis. Com fundamentação teórica na Teoria do Romance, de Bakhtin (2014), nos estudos de Hall (2003), Brah (2011), Bauman (2017) e Kristeva (1994), pretende-se entender como ocorre o processo migratório e os dilemas identitários. O resultado do processo migratório e a vivência da diáspora é uma identidade influenciada pelas mudanças e diferenças culturais e sociais. Embora as obras da escritora tenham traduções em diversos países, ainda são insípidos os estudos sobre sua produção literária, justificando este trabalho, pois se trata de uma escritora mulher, africana e subalterna.

Palavras-chave: Orlanda Amarílis, Literatura afro-lusófona, Diáspora, Cronotopo.

Abstract: This article presentes three Afro-Lusophone short books: Cais-do-Sodré té Salamansa (1974), Ilhéu dos pássaros (1982), and A casa dos mastros (1989), by Orlanda Amarílis (1924-2014), delving into the analysis of the short story Cais-do-Sodré to examine how the construction of identities occurs in a diasporic situation. Diaspora, a recurrent theme in Amarílis’s works, is explored. With a theoretical foundation in Bakhtin’s Theory of the novel (2014) and insights from the studies os Hall (2003), Brah (2011), Bauman (2017), and Kristeva (1994), the aim is to comprehend the migratory process and identity dilemmas. The outcome of the migratory process and the experience of the diaspora result in an identity influenced by cultural and social changes and differences. Despite the writer’s works being translated into various countries, there is still a dearth of in-depth studies on her literary production. This justifies this work, as she is a female, African, and subaltern writer.

Keywords: Orlanda Amarilis, Afro-lusophone literature, Diaspora, Chronotope.

INTRODUÇÃO

Orlanda Amarílis Lopes Rodrigues Fernandes Ferreira[1] nasceu em 08 de outubro de 1924, em Assomada, situada na Ilha de Santiago (Cabo Verde). Iniciou e concluiu os estudos básicos em Cabo Verde, mais tarde concluiu o curso de Ciências Pedagógicas na Faculdade de Letras em Lisboa. Aos 21 anos, em 1945, casou-se com o escritor Manuel Ferreira, com quem teve dois filhos. Amarílis está ligada a vários escritores de renome dentro da literatura de expressão em Língua Portuguesa, incluindo seu pai, Armando Napoleão Fernandes, primeiro escritor a organizar um dicionário crioulo-português.

Em decorrência de seu casamento com Manuel Ferreira, Amarílis viajou para vários países e teve contato com múltiplas culturas. Morou seis anos na Índia e dois em Angola (Tutikian, 1999, 13), fixando residência em Lisboa. Sua escrita diaspórica encontra asilo na sua própria experiência de ser o “outro” em terras alheias. Em sua produção, podemos destacar três obras: Cais-do-Sodré té Salamansa (1974), Ilhéu dos pássaros (1982) e A casa dos mastros (1989), que têm por conteúdo contos. Dentro dos livros de contos, há um tema recorrente: a diáspora. Fora os livros que contam as histórias de mulheres que vivem insuladas (nas Ilhas e dentro de si mesmas), Amarílis é autora de três livros infantis: Folha a folha (1987), Facécias e Peripécias (1990) e A Tartaruguinha (1997). Em homenagem à escritora, a Academia Cabo-verdiana de Letras e a Biblioteca Nacional e Ministério da Cultura, criaram em 2016 o Prêmio Literário Infanto-Juvenil Orlanda Amarílis. O prêmio teve duas edições.

A autora foi a primeira escritora caboverdiana publicada em livro (Tutikian, 1999, 12) e, apesar de sua importância para o sistema literário caboverdiano, poucas são as pesquisas envolvendo seus escritos. Mesmo contemporânea da Revista Claridade – importante movimento literário para Cabo Verde –, Orlanda Amarílis não teve participação ativa nas edições da revista. Em entrevista para a Revista Expresso das Ilhas, a autora afirma que, “Nha Claridade só gostava dos filhos-machos. Não queria saber das filhas-fêmeas”. Sua participação deu-se na Geração Certeza, onde começou a colaborar na Folha da Academia Certeza desde seu primeiro número, em 1944. Das suas colaborações para a Certeza, anos após emergem os seus livros de contos, alguns traduzidos para o russo, húngaro e holandês.

Em Cais-do-Sodré té Salamansa (1974), primeiro livro da autora, encontram-se mulheres geograficamente, emocionalmente e psicologicamente insuladas. São personagens contidas por uma sociedade em que o masculino se impõe e as implicações da colonização portuguesa são latentes – no caso de Cabo Verde. As que migram para Portugal encontram os mesmos obstáculos de sua terra além da barreira cultural, social e econômica. Em condições diaspóricas, essas mulheres “[...] mantêm vivas as raízes caboverdianas, quer houvessem sido fadadas ao insulamento definitivo, quer se deixassem levar nas correntes do mundo por um vapor qualquer”. (Santilli, 1985, p. 110). Acerca da produção de Cais-do-Sodré té Salamansa (1974), Santilli pontua que a obra foi:

[...] fundamentalmente organizada sobre os sulcos da memória, por convergência de pequeninas e múltiplas vertentes das recordações, canalizadas na rede de vasos comunicantes da intriga da ficção. A memória funciona, então, como sistema de estímulos para se irem abrindo as comportas de interligação de muitas caixinhas de segredo, revelando a pouco e pouco o retrato caprichoso de suas mal-amadas heroínas. Nas voltas delicadas para fundir o que ‘era’ no que ‘é’ caboverdiano fica delineada a solução literária ‘feminina’ da Contista, quase como contraponto do estilo convulso, de ‘serpentinata’ da memória de seu companheiro de letras caboverdianas, o Manuel Ferreira [...]. (Santilli, 1985, p. 111, grifos da autora).

Ao citar Manuel Ferreira na condição de companheiro de letras, Santilli traz um ponto da vida de Amarílis que não pode ser desprezado. A contista foi casada com o autor e crítico literário, considerado um escritor de grande envergadura. É possível que os escritos de Amarílis tenham sofrido um apagamento, devido ao grande destaque de seu companheiro, hipótese que não pode ser desconsiderada, tendo em vista as características sociais às quais as mulheres estavam submetidas. As inúmeras viagens e a residência em outros países deram-se por conta da carreira de Manuel Ferreira, à Amarílis cabia o papel de acompanhar seu esposo em suas viagens de trabalho.

Nas narrativas, Amarílis utiliza uma linguagem mestiça, misturando o crioulo de Cabo Verde e o Português de seu colonizador, conservando na língua traços da resistência cultural. “A linguagem de Orlanda é ainda a das mulheres contidas, a caminho de libertarem-se do código da manifestação que a sociedade masculina ao longo dos tempos lhes impôs” (Santilli, 1985, p. 111). A linguagem escolhida pela autora para se expressar por si só revela essa identidade fraturada entre o africano e o europeu. Essa origem que brota, irrompe à superfície pretensamente homogênea da colonização. É uma atitude decolonial.

Em seu segundo livro de contos, Ilhéu dos pássaros (1982), a autora continua sua empreitada de denunciar as condições vividas pelas suas gentilícias. Nos contos, as personagens são mulheres insuladas, solitárias e perdidas em terras distantes, que buscam se (re)conhecer no contato com “outro”, para então voltar para o “Eu” e desvelar suas próprias identidades, agora transformadas pelas relações culturais, sociais e econômicas que foram estabelecidas na migração. A diáspora, de acordo com Santilli (1985, p. 111), é uma “[...] encruzilhada estreita da única opção: ouvir a voz das origens com os riscos de ‘vegetar’ e até rastrear a trilha da miséria, ou ... atirar-se à incógnita dos mares, aspirantes a cidadãs de outras pátrias”. Amarílis dá visibilidade a uma condição diaspórica vivida por milhares de mulheres, e como pontuado, experienciado pela própria autora.

Ao escrever sobre suas experiências, a autora atende o propósito que Amílcar Cabral pontua sobre o que é ser poeta: “O poeta, em vez de olhar para as nuvens, deveria buscar o sentido da sua poesia na realidade em que vive”. (Cabral, 1952, p. 26).

Em sua segunda obra, Ilhéu dos pássaros (1982), as sete histórias reunidas trazem fortes denúncias de uma sociedade cruel e opressora para com a figura feminina. Mulheres caboverdianas, solitárias, que vivem em Ilhas e, tal qual sua realidade geográfica, encontram suas vidas: mulheres-ilhas. As relações afetivas e familiares são de ausência, mesmo que presentes fisicamente, a mulher figura em cena, é um acessório para seus parceiros, transitando entre cozinhas, quintais, mercados e rezas. Essas personagens são:

Figuras literárias femininas paridas de outra mulher, à escritora Orlanda Amarílis, ganham presença no mundo com o alto custo da representação de ser mulher no universo de Cabo Verde. [...] as heroínas de Orlanda marcam sua trajetória pelas propriedades de mulher-objeto no contexto da tradição machista onde se definem em situações e experiências caracteristicamente delas, com as marcas históricas ou de natureza que então as distinguem dos homens. (Santilli, 1985, p. 107).

Para mostrar a realidade dessas figuras literárias, a autora leva essas mulheres para outro ambiente, fora do mundo doméstico, evidenciando suas intimidades, suas solidões e o exílio em terras estranhas. Desse modo, Amarílis revela o novo papel desempenhado pelas mulheres – fora do conservadorismo nacional –, ser mão-de-obra para o sistema de produção.

Ainda sobre Ilhéu dos Pássaros (1982), Santilli (1985) afirma que a autora projeta nessas personagens seu próprio exílio definitivo de sua terra, carregado de uma discreta mágoa pela sua separação e uma intensa saudade de seu país. Foi com Ilhéu dos Pássaros que, de acordo com a crítica literária, Orlanda Amarílis inscreveu para sempre as mulheres caboverdianas na literatura.

A casa dos mastros (1989), terceiro e último livro de contos sobre as mulheres em situação de diáspora, traz histórias que ultrapassam o ambiente cotidiano, evidenciando as várias formas de violência sofridas, sendo elas: econômica, social, sexual, emocional, psicológica e alienação parental. De acordo com Pires Laranjeira (1989), os contos possuem um mote em comum e desembocam em desenlaces abruptos, violentos, trágicos e carregados de dor. A atmosfera que envolve A Casa dos Mastros é tensa, saindo de tragédias coletivas rumo às tragédias individuais, onde se evidencia a solidão, a culpa, o pecado e a desesperança.

Nesta análise, interessa-nos o conto Cais-do-Sodré que compõe o livro Cais-do-Sodré té Salamansa (1974), no qual temos uma protagonista que vive em uma situação diaspórica nas terras de seu colonizador, Portugal. Na narrativa temos uma mulher que há 15 anos saiu de Cabo Verde em busca de melhores condições de vida em Portugal, e essa busca gerou um conflito de identidade, de não pertencimento a um lugar que não é a sua terra natal. Para lidar com a diáspora e com os sentimentos de não pertença e solidão, Andresa (a protagonista) busca contato com pessoas recém-chegadas de Cabo Verde, na esperança de relembrar e reviver suas memórias dos tempos de outrora.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para analisar o conto Cais-do-Sodré (1974), precisamos antes discorrer sobre alguns conceitos fundamentais para este trabalho: diáspora, identidades em deslocamento e cronotopo. No que tange à diáspora, recorremos a Nei Lopes, quando este conceitua em diferentes situações:

DIÁSPORA. Palavra de origem grega que significa “dispersão”. Designando, de início, principalmente o movimento espontâneo dos judeus pelo mundo, hoje aplica-se também à desagregação que, compulsoriamente, por força do tráfico de escravos, espalhou negros africanos por todos os continentes. A Diáspora Africana compreende dois momentos principais. O primeiro, gerado pelo comércio escravo, ocasionou a dispersão de povos africanos tanto pelo Atlântico quanto pelo oceano Índico e mar Vermelho, caracterizando um verdadeiro genocídio, a partir do século XV – quando talvez mais de 10 milhões de indivíduos foram levados, por traficantes europeus, principalmente para as Américas. O segundo momento ocorre a partir do século XX, com a emigração, sobretudo para a Europa, em direção às antigas metrópoles coloniais. O termo “diáspora” serve também para designar, por extensão de sentido, os descendentes de africanos nas Américas e na Europa e o rico patrimônio cultural que construíram. (Lopes, 2011, p. 64).

A diáspora representada nos contos de Amarílis enquadra-se no segundo momento caracterizado por Lopes, que é a emigração dos africanos para a Europa, em direção às colônias. Embora a migração retratada nos contos de Amarílis tenha acontecido após a independência política de Portugal, essas personagens cabo-verdianas tiveram motivos para deixarem seu país. A respeito dos motivos para emigrar, Hall disserta: “A pobreza, o subdesenvolvimento, a falta de oportunidades – os legados do Império em toda parte – podem forçar as pessoas a migrar, o que causa o espalhamento – a dispersão. Mas cada disseminação carrega consigo a promessa do retorno redentor”. (Hall, 2003, p. 28). Hall problematiza o conceito de diáspora, afirmando que “O conceito fechado de diáspora se apoia sobre uma concepção binária de diferença. Está fundado sobre a construção de uma fronteira de exclusão e depende da construção de um ‘Outro’ e de uma oposição rígida entre o dentro e o fora” (Hall, 2003, p. 33).

Essa construção da imagem do outro, do pertencer e o não pertencer, bem como “a promessa do retorno redentor”, são evidenciados no conto Cais-do-Sodré. Percebe-se que o deslocamento vivido pelas personagens afeta suas identidades, que transitam entre o passado e o presente. Essas afetações são sentidas não somente em decorrência da diáspora, mas, sobretudo, pelo contato com outra cultura, outros discursos sociais. O autor Luiz Paulo da Moita Lopes desenvolve em seus estudos investigações sobre discursos, identidades e raças. Moita Lopes articula tais conceitos e instiga o leitor a repensar como as identidades são forjadas por meio dos discursos presentes na sociedade. A fim de compreender como se dá o processo de constituição dessas identidades precisamos entender que o discurso e a linguagem estão no centro desses estudos, pois, como afirma o autor, estamos “em um mundo no qual nada se faz sem discurso” (Moita Lopes, 2003, p. 230).

Moita Lopes (2003), em seus estudos, disserta sobre a importância do discurso e o quanto este é carregado de construções ideológicas, que perpassam a construção identitária de qualquer sujeito. Nesse ponto, as ideias do autor coadunam com o pensamento de Mikhail Bakhtin (2014), pois para o teórico russo é no discurso e pelo discurso que as pessoas demonstram o seu posicionamento no mundo, seus pensamentos, sonhos, crenças, ideologias etc. Ao partir do pressuposto de que em todo processo de interlocução estão presentes diálogos que constituem a subjetividade dos sujeitos, conseguimos ter uma prévia do quanto os discursos nos revelam em seus enunciados (posições discursivas). Desse modo, a linguagem é carregada ideologicamente e o sujeito que se utiliza da linguagem também se constitui dela. A linguagem é um fenômeno social, não sendo possível apartar sujeito dela, e é nos momentos em que a linguagem se manifesta que as identidades se desvelam e se constituem. A linguagem é viva e fluida, do mesmo modo são as identidades, pois, [...] hoje há uma tendência cada vez maior de compreender nossas sociabilidades de classe social, raça, idade, gênero, sexualidade etc. como móveis, transitórias, fragmentadas e, principalmente, performativas (Moita Lopes, 2003, p. 232).

Afirma-se que são performativas, pois a linguagem carrega consigo diversas vozes expressas nas mais diferentes formas de discursos. O sujeito performa no mundo por meio de seus discursos, ele se posiciona historicamente e socialmente no mundo e suas ideologias são concretizadas nas mais diferentes esferas sociais por meio do seu discurso, que, por sua vez, é atravessado por diversas vozes identitárias. São nos discursos que se verificam quais são as vozes que mais se sobressaem, evidenciando as ideologias que constituem esses sujeitos, iluminando e direcionando as suas ações em diferentes esferas.

Numa visão ingênua pode-se pensar que esses discursos são articulados e convivem em harmonia num espaço plural e heterogêneo, assim como as mais diferentes identidades. O que não condiz com a real situação. Moita Lopes afirma que o que já foi chamado de “mundo em descontrole” pode ser entendido também

[...] como um espaço no qual é possível reescrever outras narrativas sobre quem somos ou podemos ser, reinventando o futuro, por prestigiar a situacionalidade da vida social e suas pequenas narrativas e não as grandes narrativas, construídas à custa do apagamento de quem somos localmente ou das histórias que não se adequam a ou não cabem em uma narrativa padronizada hegemónica. (Moita Lopes, 2003, p. 232).

Orientados por essa visão de constituição dos sujeitos e por narrativas que surgem nessas esferas não hegemônicas, investigaremos como se dá o processo de formação identitária no conto de Amarílis. A protagonista do conto Cais-do-Sodré (1974) é uma mulher que se desloca de sua cidade natal e vê sua história sendo apagada de sua memória, dando espaço para uma identidade insurgir em meio às novas experiências em diáspora. Essas mudanças vividas estão intrinsicamente ligadas ao novo espaço em que a protagonista se encontra. Esse novo espaço e tempo vivenciados são estudados por Bakhtin, quando o autor desenvolve o conceito de cronotopo para investigar as relações entre tempo e espaço. O teórico elabora esse conceito inspirado na teoria de Albert Einstein, com as teses do filósofo Immanuel Kant, acerca da importância do tempo e do espaço, sendo um dos elementos-chave de sua teoria.

O termo “cronotopo” é composto por duas palavras gregas: “chronos” (tempo) e “topos” (espaço) e se refere à interseção entre tempo e espaço na literatura. O teórico utiliza o conceito de cronotopo para destacar como a relação entre tempo e espaço é necessária na construção do significado na literatura. Ele afirma que o cronotopo é fundamental para analisar um romance, pois é nas relações espaço-temporais que a narrativa ganha corpo e se desenvolve. Isso ressalta a importância do cronotopo como um componente intrínseco das narrativas literárias.

O filósofo da linguagem aprofunda sua explicação, mostrando como diferentes tipos de cronotopos podem ser encontrados em várias formas dentro da narrativa. Ele descreve, por exemplo, o cronotopo do “romance aventuresco”, onde a ação central ocorre em um espaço e tempo bem definidos. Por outro lado, o que podemos entender de “cronotopo do romance psicológico” enfatiza as experiências internas dos personagens em um espaço mental. Nesse caso, o tempo é psicológico.

Além disso, Bakhtin argumenta que os cronotopos são essenciais para a construção de personagens, eventos e tramas em um texto. Eles fornecem o contexto em que os elementos da história ganham significado. Nessa direção, o teórico salienta que as relações com outros eventos determinam tanto o conteúdo quanto o significado de qualquer acontecimento, sendo essas relações, por sua vez, influenciadas pelo tempo e espaço.

Sob essa perspectiva, Bakhtin (2014a) analisa os romances considerando que os personagens estão inseridos em um dado espaço e tempo, sendo que estes são permeados pelos valores históricos e sociais. Não é possível dissociar tempo e espaço, pois ambos são ligados por um matiz emocional, ou seja, o que ocorre em determinado tempo e espaço é irrepetível, não pode ver vivido novamente, pois o tempo não volta, o espaço muda, assim como os personagens e seus discursos. Para melhor explicar como o conceito de cronotopo foi desenvolvido, recorremos a Sobral (2008):

As características básicas do conceito de cronotopo são: (a) o tempo e o espaço estão ligados de modo intrínseco, necessário; (b) o tempo e o espaço são o continente da atividade, embora nem sempre se mostrem visivelmente nesta; (c) o tempo e o espaço unidos no cronotopo variam de acordo com as ordens, aspectos, séries ou momentos do universo (ritmos distintos entre os organismos, os indivíduos, as sociedades); (d) o sentido de tempo e espaço não é único, variando de acordo com a “posição” do agente da percepção; (e) as categorias de tempo e espaço são históricas, pois variam em reação a alterações das necessidades humanas de percepção. (Sobral, 2008, p. 139, grifo do autor).

Entende-se, assim, que o cronotopo, dentro do romance, é a junção entre espaço e tempo, e a relação entre os dois é estabelecida pela causalidade, ou seja, o momento do ato do personagem, a causa de sua ação, porém, na arte “[...] todas as definições espaço-temporais são inseparáveis umas das outras e são sempre tingidas de um matiz emocional” (Bakhtin, 2014a, p. 349).

Pensando na relação espaço-temporal, é seguro afirmar que o cronotopo reforça a noção de que o romance é atemporal, ele se desloca no tempo, ganhando acabamento ético e estético no olhar do autor-contemplador (leitor). A respeito da atemporalidade do gênero romanesco, Irene Machado (2008) lembra-nos de que:

O cronotopo trata das conexões essenciais de relações temporais e espaciais assimiladas artisticamente na literatura. Enquanto o espaço é social, o tempo é sempre histórico. Isso significa que tanto na experiência quanto na representação estética o tempo é organizado por convenções (Machado, 2008, p. 159).

Dessarte, como o gênero possui uma existência intrinsicamente cultural, e esta, por sua vez, está vinculada ao seu tempo e espaço, os personagens do romance também sofrerão as ações do (e no) tempo e espaço da narrativa. Em outras palavras: sabemos que o livro de contos Cais-do-Sodré té Salamansa foi publicado pela primeira vez em 1974, momento em que o arquipélago de Cabo Verde ainda era colônia de Portugal. Teóricos como Maria Aparecida Santilli (1985) e Manuel Ferreira (1987) afirmam que os autores que produziram nesse período sofreram grande influência do momento político e social do país, que se via num movimento em busca de uma identidade nacional, por meio, também, da literatura. É certo que não só os autores, mas também o público leitor teve seu olhar sobre essa produção cultural afetado pelo espaço-tempo em que vivia. As narrativas construídas representam uma realidade vivida pelo povo de modo refratado pela visão do autor-criador. Os cronotopos revelam como o mundo se organizava em determinada época, pois a obra estabelece uma ligação entre o mundo real representante e o mundo representado na literatura.

Podemos afirmar que um leitor do século XXI certamente não terá as mesmas impressões que um leitor teve em 1974 ao ler os contos de Amarílis, pois as relações entre o espaço e o tempo em que esse leitor está situado diferem do momento em que o livro foi elaborado. A esse respeito, Machado (2008, p. 159) lembra que “Bakhtin entende que as obras vivem num grande tempo porque são capazes de romper os limites do presente onde surgem. Reportam-se tanto ao passado quanto ao futuro, ao devir”. Portanto, as relações cronotópicas estão para além de uma simples intersecção entre tempo e espaço, elas estabelecem um vínculo com o momento histórico em que o romance foi escrito e o momento em que o leitor (coautor) contempla esse romance com a leitura.

Bakhtin (2014a) analisa os tipos de cronotopos que são relativamente estáveis, nomeando-os, como o cronotopo da estrada, que, como o próprio nome sugere, advém dos encontros ocorridos na estrada, em que os personagens, naquele espaço-tempo em que o encontro ocorreu, trocam experiências e vivências. Nesse universo, o tecido dialógico ganha extensão na narrativa, pois, como ressalta o filósofo da linguagem:

Na estrada (“a grande estrada”) cruzam-se num único ponto espacial e temporal os caminhos espaço-temporais das mais diferentes pessoas, representantes de todas as classes, situações, religiões, nacionalidades, idades. Aqui podem se encontrar por acaso, as pessoas normalmente separadas pela hierarquia social e pelo espaço, podem surgir contrastes de toda espécie, chocarem-se e entrelaçarem-se diversos destinos. (Bakhtin, 2014a, p. 349)

Temos no cronotopo da estrada relações metafóricas, o “topo” não precisa ser, necessariamente, a estrada, mas a vida do personagem. Amorin (2006) lembra-nos de que em alguns romances é na estrada que as grandes ações da narrativa acontecem. Nesse cronotopo “[...] a definição temporal (naquele momento) é inseparável da definição espacial (naquele lugar). A estrada é, portanto, o lugar onde se escande e se mede o tempo da história.” (Amorin, 2006, p. 102). Outro cronotopo importante para Bakhtin (20

Temos no cronotopo da estrada relações metafóricas, o “topo” não precisa ser, necessariamente, a estrada, mas a vida do personagem. Amorin (2006) lembra-nos de que em alguns romances é na estrada que as grandes ações da narrativa acontecem. Nesse cronotopo “[...] a definição temporal (naquele momento) é inseparável da definição espacial (naquele lugar). A estrada é, portanto, o lugar onde se escande e se mede o tempo da história.” (Amorin, 2006, p. 102). Outro cronotopo importante para Bakhtin (2014a) é o cronotopo do encontro. Esse tipo está ligado ao cronotopo da estrada, pois é nela que ocorrem os encontros.

Quando analisamos os cronotopos de um romance, ao lidarmos com o tempo, estamos no campo das transformações, das mudanças que ocorrem com o personagem. O principal objeto de análise de um romance é o homem e a sua fala; ao atribuirmos nessa análise o conceito de cronotopo, situamos esse homem e seu discurso no tempo e espaço. Como mencionamos, o cronotopo possui uma especial significação ao trabalhar a noção de espaço e tempo nos gêneros literários, determinando uma unicidade da obra, por intermédio de um matiz emocional. Assim, Bakhtin esclarece que os cronotopos

[...] são os centros organizadores dos principais acontecimentos temáticos do romance. É no cronotopo que os nós do enredo são feitos e desfeitos. Pode-se dizer francamente que a eles pertence o significado principal gerador do enredo. Ao mesmo tempo salta aos olhos o significado figurativo dos cronotopos. Neles o tempo adquire um caráter sensivelmente concreto; no cronotopo, os acontecimentos do enredo se concretizam, ganham corpo e enchem-se de sangue. Pode-se relatar, informar o fato, além disso, pode-se dar indicações precisas sobre o lugar e o tempo de sua realização. Mas o acontecimento não se torna uma imagem. O próprio cronotopo fornece um terreno substancial à imagem-demonstração dos acontecimentos. Isso graças justamente à condensação e concretização espaciais dos índices do tempo – tempo da vida humana, tempo histórico – em regiões definidas do espaço. [...] Ele serve de ponto principal para o desenvolvimento de “cenas” no romance [...]. (Bakhtin, 2014a, p. 355, grifo do autor)

Esse conceito bakhtiniano difere muito da concepção de tempo e espaço que temos na crítica literária tradicional, em que, tempo é uma categoria analítica, e espaço é outra. Antônio Dimas, em seu livro Espaço e Romance (1985), explica que o espaço é o lugar em que as cenas se desenrolam, ou seja, é “[...] puro e simples (o quarto, a sala, a rua, o barzinho, a caverna, o armário etc.) [...]” (Dimas, 1985, p. 20). O tempo é o tempo cronológico, quantidade de horas, meses, anos, se se está no verão, inverno, enfim, essas duas categorias podem ser analisadas separadamente. Em Bakhtin, elas são indissociáveis. Em Para uma filosofia do ato responsável, o teórico russo postula que:

[...] todas as relações espaciais e temporais pensáveis adquirem um centro de valores, [...]. O lugar que apenas eu ocupo e onde ajo é o centro, não somente no sentido abstrato geométrico, mas como o centro emotivo-volitivo concreto responsável pela multiplicidade concreta do mundo, na qual o momento espacial e temporal – o lugar real único e irrepetível, o dia e a hora reais, únicos, históricos do evento – é momento necessário, mas não exclusivo de minha centralidade real, uma centralidade para mim mesmo. (Bakhtin, 2010, p. 118).

Desse modo, entendemos que o tempo e espaço são fundidos por um centro emotivo-volitivo, ou seja, por um matiz emocional, que impelirá o agir do sujeito, conferindo ao romance (e também à vida real), um caráter único e irrepetível a cada evento que se sucede.

Como afirma Bakhtin (2014a), é com o cronotopo que o enredo ganha corpo e consistência, é nos cronotopos que o romance se constitui um gênero diferente da poesia, que, em geral, não possui muitos cronotopos e, sendo assim, não se desenvolve um extenso enredo. O autor afirma ainda que cada cronotopo possui um significado, que é dado na concretização de seu espaço-tempo, todavia um cronotopo pode agregar a si mesmo outros cronotopos. Em outros termos, podemos ter no romance o cronotopo da estrada e, dentro do cronotopo da estrada, acontecer o cronotopo do encontro, por exemplo.

Podemos afirmar que o cronotopo, além de trabalhar com a ideia de tempo e espaço indissolúveis, possibilita a construção de momentos irrepetíveis dentro da narrativa, dado o caráter volitivo-emocional que tingem esses momentos. Desse modo, tanto o discurso quanto a ação de cada personagem são eventos irrepetíveis também, pois é o fator volitivo-emocional que dará o tom para o acontecimento e este não se repete. É em busca desses momentos irrepetíveis e dos discursos que demonstram a construção identitária das personagens, que analisaremos a narrativa de Amarílis.

A CONSTRUÇÃO DAS MULHERES-ILHAS: ENTRE O PARTIR E O FICAR

Os contos de Amarílis possuem um mote: a diáspora. Um processo vivido pela própria escritora e considerado nas críticas que existem acerca da mesma. Laranjeira é categórico sobre a escrita exortativa de Amarílis:

Destino: entre amor e a morte, só a diáspora persiste. Mas se a diáspora existe, o amor é, então, mais forte: tem-se saudades da terra e da mãe. Se a terra é madrasta e a morte levou a mãe, só resta a memória de um pai castrador: casa dos mastros (monárquica, republicana), poder paternal. Mulheres à deriva, perdidas, insuladas, buscando o amor. Homens, seus iguais. Há muitas solidões e desencontros no arquipélago da vida. Há uma ilha dentro de nós, nas ilhas da diáspora, nas ilhas. (Laranjeira, 1989, p. 11).

Nos contos de Amarílis verificamos personagens diaspóricas que vivem com a promissora ideia de redenção com o retorno à sua terra. Essa promessa do retorno é percebida nos contos, como verificamos em Cais-do-Sodré (1974), com a protagonista Andresa sentada no Cais de Lisboa aguardando os comboios que trazem seus conterrâneos de Cabo Verde. Ao reconhecer os seus, Andresa trata de estabelecer contato:

“A senhora está cá sozinha?” Tanha levantou os olhos, virou a cara para Andresa e teve um sorriso de convívio, um sorriso das pessoas daquelas terras se encontram pessoas conhecidas, patrícios, amigos antigos. (Amarílis, 1974, p. 14).

Andresa, que mora há 15 anos em Lisboa, busca contato com pessoas recém-chegadas de Cabo Verde como um modo de manter suas raízes identitárias, conforme evidenciado no conto:

De algum tempo pra cá acontece-lhe isto. Vê um patrício, sente necessidade de lhe falar, de estabelecer uma ponte para lhe recordar a sua gente, a sua terra. Entretanto, feito o contacto, o desencanto começa a apoderar-se dela. […] Não há afinidades nenhumas com as pessoas de há quinze anos para trás. Nem são as mesmas. (Amarílis, 1974, p. 15).

A protagonista sente-se atraída pelos seus patrícios, ao mesmo tempo em que busca romper esse hábito de conversar com o seu povo, vivendo essa dualidade interna sempre que encontra alguém para recordar sua terra. Sobre esse sentimento dúbio de saudade e estranhamento, podemos recorrer à autora Avtar Brah para explicar esse desejo de estar em casa e ao mesmo tempo não reconhecer sua pátria, ao afirmar que “el concepto de diáspora oferece una crítica a los discursos de orígenes inmutables, mientras que tiene en cuenta el deseo de un hogar. El deseo de un hogar, sin embargo, no es lo mismo que el deseo de una «patria»” (Brah, 2011, 229).

Diante do que Hall (2003) e Brah (2011) nos trazem, podemos pensar sobre a diáspora nas obras. Aparentemente essa migração é voluntária, mas verifica-se que o sujeito não possui condições humanas de permanência em seu país. Desse modo, o processo de saída de Cabo Verde para Portugal é, antes de tudo, um processo de desumanização. As personagens migram não porque querem melhores condições de vida, mas porque anseiam por condições de vida humana minimamente digna.

Zigmunt Bauman (2017) disserta a respeito dos motivos de se migrar:

A migração em massa não é de forma alguma um fenômeno recente. Ele tem acompanhado a era moderna desde seus primórdios (embora com frequência mudando e por vezes revertendo a direção) –, já que nosso “modo de vida moderno” inclui a produção de “pessoas redundantes” (localmente “inúteis”, excessivas ou não empregáveis, em razão do progresso econômico; ou localmente intoleráveis, rejeitadas por agitações, conflitos e dissensões causados por transformações sociais/políticas e subsequentes lutas por poder). (Bauman, 2017, p. 07).

O que ocorre com as protagonistas de Amarílis é essa redundância citada por Bauman, pois com a partida da coroa portuguesa a economia de Cabo Verde sofreu um declínio. As pessoas viram-se obrigadas a migrar, pois se tornaram “localmente inúteis” para o mercado de trabalho. Em se tratando do processo de colonização, em Cabo Verde se estendeu até a segunda metade do século XX, causando subordinação econômica e política. Mas isso no campo institucional. Tratando-se de epistemologia e subjetividade há um problema sutil, porém de difícil resolução. O colonizado é muito crioulo para ser português, e é muito português para crioulo. Explicando de outra forma, a colonização parece criar um impasse na construção da identidade. Quais vozes aparecem nos textos de Orlanda? A escrita é, em grande medida, em Língua Portuguesa e produzida em Portugal, mas o referencial de lugar é Cabo Verde.

Andresa é uma personagem que encena um dos mais comuns dilemas do deslocado: a saudade de casa e a necessidade de preservar suas raízes contrapondo a necessidade vital de ser aceita e assimilada no novo país. Mas o deslocado, não está deslocado apenas do espaço, da terra natal, está também deslocado no tempo. O país que a personagem deixou e que agora tenta reencontrar nos conterrâneos que chegam não é mais o mesmo. Há uma perda de sincronia. Andresa desliga-se cronotopicamente de seu país de origem. Vive agora em outro espaço, com outras pessoas que lhe são desconhecidas, num tempo diferente. Ao tentar contato com os seus patrícios vive um anacronismo, pois ela sabe que “Não há afinidades nenhumas com as pessoas de há quinze anos para trás. Nem são as mesmas”. (Amarílis, 1974, p. 15).

Nesse ponto da narrativa percebemos como o espaço-tempo afeta emocionalmente a protagonista, pois Andresa sabe que aquele espaço-tempo de sua origem (Cabo Verde) não é mais o mesmo, assim como as pessoas que ali habitavam. A mudança também se deu dentro de Andresa, que agora habita outro país, mas não se sente totalmente pertencente a ele. Fazendo uma analogia, chamaremos de cronotopo do entrelugar. O entrelugar geográfico das embarcações que chegam no porto trazendo seus conterrâneos, que lhe parecem estranhamente familiar. O entrelugar emocional e psicológico, de uma mulher que busca suas raízes nos recém-chegados de Cabo Verde, ao passo que tenta ser assimilada pela população portuguesa. O entrelugar identitário, de quem busca o conforto no olhar de um patrício e o reconhecimento de que ainda é parte de seu povo caboverdiano, ao mesmo tempo que se vê moldada pela nova cultura e sociedade na qual vive há 15 anos.

Percebe-se que a protagonista Andresa sofreu uma desconexão com o tempo. Busca reviver suas memórias inutilmente, pois as pessoas mudaram e os tempos também. Junto a esse descompasso de tempo tem-se a privação do espaço, da terra natal, o exílio. Ao encontrar sua conterrânea Tanha se lembra de Cabo Verde e tenta reconhecer na face da mulher alguém que foi deixado pra trás:

É devera, não estava a reconhecê-la.” Andresa rebusca na memória a família da cara parada na sua frente. [...] Oh gente, se encontra pessoas, como ela, vindas daquelas terras de espreguiçamento e lazeira, associa-se quase sempre a uma ou outra família. Se não as conhece, bom, de certeza conheceu o pai, ou o primo ou o irmão, ou ainda uma tia velha, doceira de fama, até talvez uma das criadas lá da casa. E a conversa, por esse elo, estende-se, alarga-se, num desfolhar calmo, arrastado, saboroso quase sempre. (Amarílis, 1974, p. 11).

Essa busca por um elo com o passado é recorrente em toda a narrativa. Essa tentativa de reviver o passado e encontrar um rosto amigo acaba por criar um tempo paralelo na vida de Andresa. Ela não se situa no passado, muito menos no presente, vive esse limbo espaço-temporal. Andresa vive em outro tempo, ou ainda, entretempos, no momento em que suas memórias a jogam para o passado corriqueiramente. A espacialidade e a temporalidade se mostram partes indissociáveis desse todo existencial. A linha que separa o passado e o presente é demasiada tênue, quase imperceptível, uma vez que a protagonista espacialmente vive no presente, mas temporalmente suas emoções se encontram em busca do passado.

O lugar para o qual Andresa se volta não é o mesmo, não há retorno que garanta a recuperação do tempo que passou, seus habitantes mudaram e, a própria personagem é outra, sua identidade vive em constante (des)construção, influenciada pelas relações espaço-temporais e com o outro.

Ao pensar em identidade em processo de (des)construção recorremos aos conceitos bakhtinianos de alteridade e exotopia. Para Bakhtin (2011), o sujeito/personagem é dialógico, situado histórico e socialmente, constituído pela linguagem e na relação com o “outro”. Sendo a personagem constituída na relação com o “Outro” e com o meio em que vive, temos uma relação de alteridade que só é possível pela posição exotópica que o “Eu” ocupa em relação ao “Outro”. Julia Kristeva (1994) aborda as relações entre o “eu” e o “outro” que o estrangeiro vivencia. A autora afirma que o estrangeiro não possui um “si”, pois este vive:

No limite, uma segurança oca, sem valor, que centra as suas possibilidades de ser constantemente no outro, ao sabor dos outros e das circunstancias. Eu faço o que se quer, mas não sou “eu” – meu “eu” está em outro lugar, meu “eu” não pertence a ninguém, meu “eu” não pertence a “mim” ... “eu” existe? (Kristeva, 1994, p. 16, grifo da autora).

A metáfora do trem em marcha ou do avião em pleno ar também é empregada por Amarílis no conto Cais-do-Sodré, pois Andresa tem o hábito de ir à estação aguardar os comboios que chegam com imigrantes de Cabo Verde e, entre um comboio e outro, ela busca por rostos familiares, busca por conversas que lhe tragam memórias de como é sua terra. Ao ouvir os relatos de seus compatriotas, relembra de sua antiga vida: “Andresa relembra tudo isto com tanta minúcia como se nunca se tivesse desapegado da Mãe-Terra [...]”. (Amarílis, 1974, p. 18). Os comboios, indo e vindo, nada mais são do que a identidade de Andresa, em trânsito, pois mesmo tendo se passado 15 anos desde que saíra de Cabo Verde, sua mente ainda transita pelas casas e vielas de sua terra natal, há um matiz emocional que une passado e presente, Cabo Verde e Portugal, dentro de Andresa. Seu espaço-tempo emocional é aqui e lá, e assim a identidade da protagonista se desenha com traços esvaídos e difusos.

As relações de Alteridade dentro da obra de Amarílis são estabelecidas partindo da posição diaspórica das personagens, o espaço-tempo e as relações com o outro estão ligados pelo matiz emocional que dá significado ao cronotopo do entrelugar, pois o outro caboverdiano, recém-chegado em Portugal, representa para Andresa a possibilidade de reviver o passado, à proporção que o espaço-tempo presente a coloca como estranha em contato com seus conterrâneos, e, desse modo, ela passa a ser o “outro”, tanto para os recém-chegados, quanto para os nativos de Portugal. Nessa perspectiva, ela vai se constituindo à medida que se encontra com o outro, existindo a partir dos diálogos com os outros “eus”, buscando a integração em um todo significativo (Bakhtin, 2011).

Nessa ótica, temos aí o cronotopo do encontro, que está correlacionado ao cronotopo da estrada, visto que, como vimos, é nela que os encontros acontecem. Todavia, diferentemente do cronotopo da estrada, ele possui uma carga emocional muito mais intensa e a temporalidade é predominante. Percebemos na narrativa que o tempo e o espaço agem sobre a protagonista, constituindo-a, pois a concepção de tempo traz consigo uma concepção de sujeito e, assim, a cada nova temporalidade, corresponde a um novo ser. “[...] O tempo, conforme já indicamos, é a dimensão do movimento, da transformação [...]” (Amorin, 2006, p. 103).

Sob essa ótica, Amarílis constrói uma personagem que nos possibilita refletir, a partir do espaço-tempo em que se ocupa, sobre quem é o outro, considerando que Andresa para os portugueses é o outro, o estranho que migra. Por sua vez, quando Tanha chega à estação a imagem de Andresa representa o outro para ela, do mesmo modo Tanha também é a imagem do outro para Andresa, pois esta já não se reconhece como caboverdiana ao se comparar com Tanha. O conto Cais-do-Sodré é uma narrativa acurada pelo olhar de Amarílis, que permite-nos entender como as identidades são forjadas nesse lugar de fronteira, pois parece-nos que o deslocamento para Portugal não é apenas geográfico, mas um deslocamento de si, de sua essência.

BREVES CONSIDERAÇÕES

Nos livros de contos da autora Orlanda Amarílis, as personagens migram de Cabo Verde para Portugal, vivendo em uma situação de diáspora. Com essa brusca mudança, os comportamentos sociais, as rotinas, os meios cultural, histórico e econômico são outros. Observa-se que essas alterações no cenário causam mudanças comportamentais.

Na perspectiva de Bakhtin (2014), o sujeito é único, concreto, vivo, inacabado, está em constante processo de formação, pois é situado histórico e socialmente. Todo o sistema ideológico a que esse sujeito está imerso ressoará na sua identidade. Dito isso, pensamos nas identidades que são forjadas no processo de migração vivido pelas protagonistas de Amarílis, pois temos um sujeito que carrega o sistema ideológico de sua pátria e, ao mesmo tempo, está imerso em um sistema ideológico diferente do de origem. Há uma luta interna e externa vivida por essas mulheres que, forçadas a deixar Cabo Verde, se veem num processo de negação da sua pátria e negação da cultura do país em que vivem atualmente.

A protagonista Andresa do conto Cas-do-Sodré, trazida tangencialmente neste estudo, é uma refração primorosa dos sujeitos imigrantes que se encontram no limbo espacial e temporal, que veem suas identidades em constante mudança, afetados pelos espaços que ocupam e vivendo entre o tempo presente e o passado. Andresa vive no entrelugar. Como bem colocado por Kristeva, esse entrelugar não é tão simples assim, pois o imigrante “[...] jamais está dividido entre aqui e alhures, agora e antes. Os que se acreditam assim crucificados esquecem que nada mais os fixa lá longe e que nada ainda os prende aqui. Sempre em outro lugar, o estrangeiro não é de parte alguma”. (Kristeva, 1994, p. 18).

O não pertencimento a um lugar, o não ser de parte alguma é um tema recorrente para os escritores e escritoras que viveram o processo de diáspora ou migração. Sabemos que nem todos que imigram viveram uma crise migratória em seus países. Quem imigra tem a opção de ficar e vai pra outro país buscar uma vida melhor, diferentemente de um exilado, por exemplo. E é exatamente a busca por essa vida melhor que Amarílis refrata em seus contos, pois suas protagonistas acreditam que em Portugal terão melhores condições, as quais lhe foram negadas em suas terras natais. E, pensando nessa busca incessante de uma vida melhor, encerramos este artigo com a seguinte questão: Quando o colonizador explora economicamente, culturalmente e politicamente um povo e, depois parte subtraindo as riquezas e reduzindo as condições humanas de todo um povo, esse povo tem verdadeiramente a opção de ficar em sua pátria?

REFERÊNCIAS

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Notas

[1] Informações retiradas do prefácio do livro A Casa dos Mastros (1989), escrito por Pires Laranjeira.
[2] Artigo publicado na revista Expresso das Ilhas por Manuel Brito-Semedo em março de 2019.
[3] Em Cabo Verde, o movimento pela busca de uma literatura de cunho nacionalista pode ser dividido em dois momentos: de modo incipiente antes da Revista Claridade e; com maior força e notoriedade com a Claridade (1936-1960). O período conhecido como cabo-verdianismo que antecedeu a Revista Claridade era marcado por produções que colocavam o estilo europeu em evidência, prevalecendo o idealismo romântico. Somente com a Claridade é que foi possível uma mudança “[...] na história e na evolução da vida literária e cultural do Arquipélago”. (Ferreira, 1987, p. 43). A revista abrange muito além do aspecto literário do país, correspondendo a circunstâncias políticas, sociais, históricas e literárias, levando os escritores cabo-verdianos a se preocuparem com a identidade em sua literatura. Desse modo, a Claridade constituiu-se não apenas como uma escola literária, mas como uma transformação nos rumos artísticos e culturais de Cabo Verde.
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