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A POÉTICA DO MITO DE “ECO E NARCISO” NAS METAMORFOSES, DE OVÍDIO: INTERFACES ENTRE O ÉPICO E O LÍRICO
A POÉTICA DO MITO DE “ECO E NARCISO” NAS METAMORFOSES, DE OVÍDIO: INTERFACES ENTRE O ÉPICO E O LÍRICO
Muiraquitã, vol. 11, núm. 2, pp. 399-417, 2023
Universidade Federal do Acre

Recepción: 08 Junio 2023
Aprobación: 08 Agosto 2023
Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar os gêneros, a poiesis e a aesthesis do mito de “Eco e Narciso”, inserido no “livro III” das Metamorfoses (Ovídio, 2017), com a finalidade de mapear como essas instâncias formais dos gêneros no poema dão margem à criação de sentidos na instância estética. Para o alcance desse propósito, fundamenta-se, essencialmente, nas ideias propostas por Hegel (1980), Croce (1997), Lacan (1995), Bakhtin (2014), Lukács (2009), Santaella (2017) e Eco (1985). O estudo é de natureza bibliográfica e analítico-interpretativa. Ainda se toma por base as perspectivas metodológicas da Semiótica e da Teoria Literária na produção de nossa análise. Verificase que o mito clássico foi composto por ícones metafóricos simultaneamente elegíacos e épicos, sendo a última instância dominante. Embora a carpintaria do poema estabeleça tais distinções, destaca-se o papel cooperativo do leitor na produção dos efeitos de sentido que evolam desse poema.
Palavras-chave: Ovídio, Metamorfoses, Eco e Narciso, Gêneros literários.
Abstract: The objective of this article is to analyze the genres, poiesis, and aesthesis of the myth “Echo and Narcissus,” included in “Book III” of the Metamorphoses (Ovid, 2017), in order to map how these formal instances of genres in the poem give rise to the creation of meaning in the aesthetic instance. To achieve this purpose, the discussion is grounded in the ideas proposed by Hegel (1980), Croce (1997), Lacan (1995), Bakhtin (2014), Lukács (2009), Santaella (2017), and Eco (1985). This study is of a bibliographic and analytical-interpretive nature. Theoretical perspectives from Semiotics and Literary Theory are also considered in the analysis. It is evident that the classical myth was composed of metaphorical icons that are simultaneously elegiac and epic, with the latter being the dominant instance. Although the construction of the poem establishes such distinctions, the cooperative role of the reader in the production of meaning is relevant.
Keywords: Ovid, Metamorphoses, Eco and Narcissus, Literary genres.
INTRODUÇÃO
As Metamorfoses ([8 d.C.] 2017), de Ovídio (43 a.C. - 18 d.C.), obra poética da Literatura Universal, influenciou artistas muito diversos, como Dante e Shakespeare. O texto das Metamorfoses é constituído por poemas que se dividem em 15 livros, com uma divisão de variados mitos que contribuíram para compor o imaginário da Antiguidade. Dessa perspectiva, assemelha-se à Teogonia ([VIII-VII a.C.] 2017), de Hesíodo, sobretudo quanto à visada de registrar os mitos fundadores, que antes eram divulgados oralmente.
Para diversos autores, Metamorfoses (2017) – apesar de ser obra cujo catálogo apresenta temas associados à cosmogonia, que parte da genealogia dos tempos, aos moldes de outras obras mitológicas da Antiguidade Clássica – “é um poema cujo principal conteúdo são diversas histórias míticas reunidas sob o tema da metamorfose, sem um protagonista único a ser considerado [...] sem um recorte mítico específico” (Diniz, 2016, p. 57). Nesse sentido, diferente do que se deu na Teogonia (Hesíodo, 2017) ou na Ilíada (Homero, 2013), Ovídio (2017) não se preocupou com uma ordem cronológica, mas, sim, com uma distribuição temática coerente e coesa.
Há, ainda, conforme aponta Cardoso (2003), um extenso debate quanto ao gênero das Metamorfoses (2017), de Ovídio, em que, de acordo com ela, não se classificaria nem como uma epopeia, nem como um poema didático. De acordo com O’Hara (2007, p. 118), por exemplo, Ovídio (2017) “[...] frequentemente se dedica à extensiva adaptação simultânea de fontes variadas”. Com tal heterogeneidade que fundamenta o autor na construção de suas obras, seus poemas acabam sendo caracterizados pela “justaposição de material de diferentes gêneros” (O’Hara, 2007, p. 118). Conte (1999, p. 352) complementa: “As Metamorfoses são, entre outras coisas, uma espécie de galeria de arte de vários gêneros literários”.
Consoante ao que apontaram os estudiosos, há, nessa obra, um trabalho cuidadosamente elaborado sobre a linguagem, que requer uma poética tecida de vários estilos e convenções literárias, reveladoras da verve do poeta, capaz de incorporar e traçar estilos diversos e convenções com mestria. Nesse segmento a essência heterogênea da poética de Ovídio é atestada no poema de “Eco e Narciso”, inserido no “Livro III”, em que se observa a mescla de gêneros lírico e épico. À vista disso, propõe-se, neste estudo, analisar a poiesis (como o poema foi produzido por Ovídio), a fim de categorizá-lo segundo a lírica e a épica, e a aesthesis (leitura estética analítica) do mito em questão, com o intuito de investigar possíveis formas de sua recepção.
Contribuem para esse estudo as considerações de Hegel (1980) e Croce (1997), como alicerce da representação poética do mito perpassado pelo gênero lírico e, ainda, as de Lacan (1995), com a noção do objeto inacessível do desejo. Para a análise de nosso corpus como poema épico, o escopo está em Bakhtin (2014), quando propõe que o gênero épico pertence a um passado absoluto perdido no tempo, à abstração do passado nacional que resulta em seu caráter patriótico. Outro autor que corrobora ou complementa essa visada é Lukács (2009), empregado com o intuito de se compreender o que ele denomina de a faceta “oclusa” presente na cosmovisão épica.
A Semiótica está na base para a apresentação do contraste entre os gêneros lírico e épico contido na obra em tela, especialmente nos estudos de Santaella (2017). A partir das leituras de Peirce (2005), aclara-se o presente objeto de estudo com base na análise sígnica icônica. Por fim, utilizam-se os conceitos desenvolvidos por Umberto Eco (1985), na sequência de Peirce (2005), com o intuito de embasar a compreensão do processo estético da imbricação dos gêneros no mito de “Eco e Narciso” (2017).
Para uma leitura analítico-interpretativa do poema, o artigo foi dividido em quatro seções: na primeira, que recebe o título de “O mito de “Eco e Narciso” como poema lírico: a sensibilização subjetiva da alma do “herói”, exploramos e analisamos os artifícios utilizados pelo autor na produção do poema, no que se vincula ao gênero lírico; em seguida, na segunda seção, “O fio condutor do mito de “Eco e Narciso”: a poesia épica”, com propósito semelhante ao da anterior, de verificar os mecanismos de sentido do poema, no que se associam ao gênero épico; na terceira seção, intitulada de “Sistematização Semiótica”, realiza-se a discussão e análise dos signos do mito a partir da estruturação icônica e, por fim; na última seção, “Epos, elegia e aisthesis: da análise sígnica ao fundamento semiótico da cooperação textual”, serão apresentados os sentidos deslindados pelo poema a partir da visada da Estética da Recepção de Eco (1985).
O MITO DE "ECO E NARCISO" COMO POEMA LÍRICO: A SENSIBILIZAÇÃO DA ALUNA DO "HERÓI"
Segundo Bakhtin (1997, p. 277), todos os enunciados são marcados pela especificidade de um campo de comunicação, de forma que “[...] cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso”. Isso significa que os gêneros não são entidades estáticas, deslocadas do espaço e do tempo: diversamente, eles se constituem por uma certa heterogeneidade/variação, que não é unívoca, mas plural. Em decorrência, é natural que os gêneros se misturem e se separem em uma profusão criativa. Como explicitado na apresentação desta seção, a obra das Metamorfoses (2017), de Ovídio, abarca, em sua narrativa, a mescla de gêneros, que divergem por um lado, mas que convergem na tessitura de suas histórias, por outro. Com relação a essa problemática, Pechillo (1984, p. 5) comenta o seguinte:
In his Metamorphoses Ovid has created an ostensibly epic poem which, however, combines features common to other literary forms, especially the epyllion and the epic catalogue. Using epyllion and epic catalogue as organizational devices, Ovid combines within these frames the characteristics of several genres, including didactic or elegiac poetry, as well as rhetorical forms found in drama and oratory. Ovid exploits this combination of genres to create unusual effects: epic heroes, for example, act in an unheroic way; rustics become ludicrous in their attempts to display pietas; gods appear ridiculous as they behave in a manner worse than that of the worse wicked mortals, and love stories most often focus on illicit and unnatural passion. The few stories centered on legitimate, natural love end tragically[1] (PECHILLO, 1984, p. 5).
Faz-se visível a utilização do gênero épico na obra ovidiana, contudo esse é combinado com procedimentos de outros gêneros textuais e tipologias discursivas, decorrendo na pluralidade de temas e fragmentos. Dentre as partes que compõem as Metamorfoses (Ovídio, 2017), sobressai, de maneira distinta, a mescla de gêneros e de tipologias utilizadas na composição do fragmento sobre o poema de “Eco e Narciso” (Ovídio, 2017).
No mito, identifica-se a intercalação do gênero épico, pertencente à tipologia discursiva narração com a tipologia discursiva lírica: no caso, enquanto o épico é marcado pelo discurso narrativo e pela “objetividade da criação” (Hegel, 1980, p. 217), o lírico é marcada pelo fulcro da expressão emotiva, que se desgarra da objetividade épica. Neste último, o espírito reflui sobre si mesmo e se autoexamina minuciosamente, de sorte que “[...] sua consciência procura dar satisfação não a realidade das coisas, mas ao modo por que elas afetam a alma subjetiva e enriquecem a experiência pessoal, o conteúdo e a atividade da vida interior” (Hegel, 1980, p. 217). A respeito de tal caráter subjetivo, que é o que reaparece em Ovídio (2017), Hegel afirma que
Toda a gente sabe que basta exprimir e descrever por palavras a dor ou a alegria para logo as atenuar pelo desabafo até ao alívio; a poesia lírica, pelo contrário, não pode recorrer a tal processo para produzir o mesmo efeito na consciência alheia; a sua missão é mais elevada: consiste em libertar o espírito, não do sentimento, mas no sentimento (Hegel, 1980, p. 218, grifo nosso).
Pela afirmação, pode-se dizer que a poesia lírica leva o processo catártico às últimas consequências, não purga apenas as frustrações, liberta para além delas. Conforme contribui o filósofo, a lírica é um gênero que condiz à libertação espiritual, que se faz na imersão do eu lírico em seu interior e na exteriorização desse pelas vias linguísticas, impulsionando-o em direção dos afetos em potência. Com base nessas acepções, apresentamos a passagem do lamento de Narciso, que se passa após a personagem rejeitar a ninfa Eco e um de seus desprezados suplicar para que ele ame e nunca possua o amado. Ramnúsia, deusa da vingança, assiste a esse lamento. A solicitação é atendida e o jovem, tão desejado, apaixona-se por si mesmo. O excerto de sua lamentação é o que segue:

A materialidade do excerto acima e os vieses que constituem o gênero lírico, os quais atravessam o discurso do enunciador, no seguimento das afirmações de Hegel (1980), também se sustentam em Benedetto Croce (1866-1952). Em sua obra Breviário de Estética (1997), o teórico italiano trata dos elementos que compõem o poema, sobretudo o lírico, como podemos observar pelo excerto abaixo:
Se nos dispomos a considerar qualquer poema para determinar o que nos faça julgá-lo como tal, discernimos ao primeiro olhar, constantes e necessários, dois elementos: um complexo de imagens e um sentimento que o anima. (CROCE, 1997, p. 155).
Segundo Croce (1997), há a possibilidade de considerar um poema tomando por base a relação entre a imagem e o efeito de sentido que dela emana. Como em uma moeda, que tem duas faces inseparáveis, há sempre, para o autor, um compósito de imagens, doado ao leitor pela linguagem, e um agregado de sentimentos que resultam da tonalidade afetiva da expressão lírica. Em decorrência, surge a possibilidade de analisar os versos e o poema em sua materialidade, com a sua forma e o seu conteúdo, que se encontram plasmados nessa dualidade de imagem e sentimento.
Com tal perspectiva teórica em vista, o eu lírico inicia seu canto com uma interrogação à selva, que passa a ser um espaço figurativizado e antropomorfizado, como um ser imemorial e benfazejo, capaz de fornecer refúgios aos amantes e deles se recordar. Os quatro primeiros versos são construídos com a ênfase expressiva da figura de linguagem ou tropos chamada hipérbole, resultante do exagero da significação linguística, em que há aumento da intensidade semântica. A hipérbole engrandece o eu lírico como aquele que amou em demasia. Ela (selva), que viu tantos amantes sofrerem, acaso viu outro que sofresse mais do que ele, o próprio sujeito lírico? Esses quatro versos colocam o amador numa posição de destaque em relação a tantos outros amantes cantados em versos, fazendo com que sua história seja um acontecimento que merece ser expresso como emblema dos amadores.
A partir do quinto verso, são expostas as motivações das queixas desse amador, começando por dizer que vê o que deseja, mas que está impedido de tocar o que vê e deseja. A conjunção adversativa “mas”, do quinto verso, marca a cisão, a impossibilidade de comunhão com o ser desejado que está ali, tão próximo, mas simultaneamente impossível e distante.
Posteriormente, do sétimo verso ao décimo segundo, faz-se possível identificar a reflexão que Narciso faz sobre o obstáculo que o impede de alcançar o seu amado. Dessarte, ele cita que não se trata de um impedimento relativo ao concreto, intransponível ou à distância, mas sim de uma superfície fluida e superficial que lhe está próxima na fonte de água. O eu lírico padece, na tentativa de tocar o “Outro”, que ele vê tão ali e tão intocável, na imagem refletida na água. Esse “Outro”, que é ele mesmo e igualmente o objeto de sua intencionalidade, propõe-lhe o sujeito: portanto, ali está o seu objeto “a”.
Lacan, em sua obra O Seminário, livro 4: A relação de objeto (1995), teoriza acerca do objeto “a”, em que busca retomar a abordagem psicanalítica do lugar da falta, teorizado por Freud, em Inibições, sintomas e angústia (2014). O objeto “a” está presente desde o início da teorização lacaniana, quando ele aponta que o “Outro” (meu semelhante) adquire um forte poder de encantamento, já que nele reside o encontro do “eu”. Ou seja, o objeto “a’” relaciona-se com a constituição da imagem. Lacan, refletindo como esse (o objeto) atua no campo da linguagem como sistema simbólico, questiona-se acerca da raiz da angústia dos seres humanos. Enquanto Freud afirma que a angústia “tem uma qualidade de indefinição e falta de objeto” (Freud, 1996, p. 189), o psicanalista francês enuncia que esse estado de ausência do objeto, na realidade, vincula-se à existência de um objeto não especular, conceituando, então, que esse objeto “a” é aquilo “que lidamos no desejo e por outro lado na angústia” (Lacan, 1995, p. 179).
Essa topologia é atestada em Narciso, pois aquilo que lhe causa angústia é, também, causa de desejo. Por conseguinte, Narciso introduz, como uma exterioridade anterior – apreendida como forma especular –, a distinção entre o “eu” e o não “eu”, que se configura mais radicalmente no objeto olhar:

Nos versos seguintes, o eu lírico, por meio de uma apóstrofe (figura de linguagem que equivale a uma invocação), demonstra inquietude, como uma compulsão, uma imposição interna verificada pela reiteração que este faz a esse “Outro” espelhado na água. Simultaneamente, observamos a paixão que arde por esse ser com quem ele conversa.
Narciso reflete sobre suas belezas análogas e se consola, ao deduzir que entre o “eu” (Narciso) e o “Outro” (seu reflexo) existe uma correspondência afetiva. Contudo, ao compreender que os lábios que vê se moverem não produzem som, descobre, no vigésimo segundo verso, que a imagem por quem se apaixonou é ele mesmo. Assim ele prossegue:

Nos últimos versos, Narciso, após compreender que se apaixonou por si mesmo, manifesta seu lamento. Com a utilização de metáforas para expressar a dor que sente, o eu lírico questiona-se a quem recorrer; contudo, ele apenas tem a si mesmo e é ele a causa de sua dor de amor. Com o uso da interjeição, no vigésimo sexto verso, vê-se que sua lamentação se intensifica ao paroxismo, refletindo sobre o pouco tempo de vida que lhe resta, considerando que esse busca encerrar com a angústia que sente. Narciso anseia pela antropomorfização da imagem refletida na água em um ser que existe no mundo material, palpável, mas a única solução exequível, para ele, é a de conter a projeção de sua imagem refletida, com a morte do “eu” e do “Outro”.
Tendo em vista a análise realizada do poema em relação ao seu conteúdo, nota-se um tom intimista e melancólico, que se encaixa em um subgênero da lírica denominado de “elegia”. De acordo com Costa (1956, p. 50), “por poesia elegíaca, não compreendiam os helenos, necessariamente, poesia chorosa e melancólica, a ‘plaintive Elégie’, como a chamou Boileau (‘Art Poétique’, II, 39), mas toda aquela poesia que traduzisse sentimento, podendo ser belicosa”. Quanto ao seu conteúdo, voltado para princípios latinos, aponta a autora que “em Roma [...] a verdadeira elegia têm um vivo sentimento de amor, são gritos d’alma, é poesia lacrimosa, patética, confidencial” (Costa, 1956, p. 56). Nesse entendimento, denota-se que a poesia elegíaca compreende tanto melancolia quanto sentimentos amorosos. Sua forma antiga foi o dístico, constituído de um hexâmetro e de um pentâmetro. Complementa ainda a autora que um dos grandes autores deste subgênero foi Ovídio:
Ovídio imprime à elegia um tom próprio, jocoso e perverso, e melhora até o requinte o ritmo datílico, que, na pena de Vergílio, atingira já à perfeição. O tom declamatório, a retórica, o convencionalismo, mormente nas elegias do exílio, comprometem-lhe, porém, irreversivelmente, as páginas mais enternecedoras (COSTA, 1956, p. 57).
Ovídio tem uma extensa jornada de produções poéticas que dizem respeito a esse gênero. Como apresentado pela análise, seria possível compreender que as exclamações que Narciso faz por seu amado e suas respectivas lamentações culminam no tom geral enternecedor do subgênero elegíaco.
O FIO CONDUTOR DO MITO DE "ECO E NARCISO": A POESIA ÉPICA
Como apresentado na introdução deste artigo, o canto de “Eco e Narciso” (Ovídio, 2017), apesar de enredado por passagens que correspondem ao gênero lírico, atestado na seção anterior, com a passagem das lamentações que Narciso faz ao se apaixonar por si próprio, o gênero que se sobressai neste episódio das Metamorfoses (Ovídio, 2017) é o épico. Sobre essa tipologia, acrescenta Diniz (2016, p. 57) que, na obra ovidiana, inclusive no episódio de Narciso, “há de certo modo um fio condutor que o assemelha aos moldes da poesia épica de raiz mitológica e cosmogônica, como os poemas de Hesíodo. Esse fio condutor se dá pelo procedimento da metamorfose, o que dá certo dinamismo à escritura do poema”.
A partir das noções apresentadas anteriormente, apresenta-se a linha condutora da história de “Eco e Narciso”, redigida por Ovídio (2017). Inicialmente, no canto 345, revela-se a origem de Narciso. Dessa maneira, tem-se:

Já nessa primeira parte, o eu lírico fornece indícios do lócus discursivo do restante do poema. As palavras que compõem essa hibridez tipológica organizam-se em um ponderado revezamento de sílabas longas e breves, por toda a extensão poética, que resulta em um tom elevado e mítico associado ao conteúdo. O verso é sistematizado intencionalmente em uma métrica padronizada, como se verifica na escansão do primeiro verso: pri- ma - fi | de - vo - cis | que - ra | tae - temp | ta - mi - na | sump - sit. Consoante ao gênero representado, constatamos a recorrência rítmica e métrica qualificada como hexâmetro dactílico. O poema evidencia, mediante uma relação indicial, uma atmosfera que, segundo Aristóteles (2013, p. 28), considera-se “rara”, além “do tom habitual do diálogo” (ARISTÓTELES, 2013, p. 28) e, em especial, de elevada solenidade.
O eu lírico inicia sua narração apresentando como ocorreu a concepção da ninfa Liríope, que é extremamente bela, por Cefiso, deus dos lagos e rios. Com o nascimento de seu filho Narciso, ela consulta um profeta que revela o destino do jovem. Doravante, a premonição feita pelo vate faz-se evidente, pois, assim como em outras obras da mitologia grega, como no Édipo Rei (1998), de Sófocles, ou na Teogonia (2017), de Hesíodo, não há possibilidades de fugir desse futuro que lhe foi atribuído.
Narciso, com seus dezesseis anos de idade, era já aspirado por muitos jovens e, apesar do desejo que os outros tinham por ele, jamais sentiu atração por ninguém: “nenhum rapaz, nenhuma moça lhe tocou” (Ovídio, 2017, p. 100). Dentre esses que estavam apaixonados por Narciso, a ninfa Eco, em cujo nome está presente o notável traço de sua personalidade (ela falava demais e repetia o final das frases), desejava-o encarecidamente. Vendo seu amado vagando pelos campos, persegue-o, incansavelmente. Logo, são estabelecidos os versos a seguir:

Com o trabalho da linguagem que faz o eu lírico, observa-se a tentativa de Narciso de fugir de Eco. Considerando o repúdio sofrido, a ninfa, envergonhada, cobre seu rosto e procura refúgio em uma caverna. Contudo, Eco se mantém em duplo sofrimento: pelo constrangimento que teve e por não conseguir conter o amor que arde por seu amado. Devido a tal amargura, seu corpo atrofia, sobrando apenas sua voz e seus ossos, que se convertem em pedra.
Mesmo com o desaparecimento de Eco, sua voz habita nos montes e ecoa a todos que por lá vivem. Escutam-na, inclusive Narciso. Leva-se em conta que, além da ninfa, muitos outros foram iludidos por esse jovem desejado. Após ser amaldiçoado pela deusa da vingança, por conta da súplica de um daqueles que se dedicava ao sentimento do desprezo, Narciso sofre, inconsolavelmente, de amor por si mesmo, como apresentamos na seção anterior.
Em meio a suas lamentações, Narciso apunhala-se e pelo seu corpo transpassa um sentimento de vergonha, que enrijece seu ser. Ao olhar para a água novamente, não o/se suporta, sente seu ser enfraquecendo cada vez mais. A chama que lhe animava o espírito desaparece vagarosamente e o Narciso que a ninfa Eco amou não é mais o mesmo. Esse se despede de seu “Outro”, ao som de suas lamúrias, que, assim como faz a Eco, também ecoam. A seguir, contempla-se seu fim:

Nesse último fragmento, observamos a descrição da morte de Narciso. Nos primeiros versos, há a caída do jovem no gramado e a figura da morte, que fecha seus olhos; olhos esses que ele mesmo tanto desejou. O corpo de Narciso flutua no rio que deságua no Tártaro. Na sequência, as ninfas da água, como sinal de oferenda, dão-lhe cachos de uva e lamentam, assim como as ninfas dos bosques, por sua morte. Eco repercute. Na preparação do funeral do belo corpo, não o avistaram. Em seu lugar, havia tão somente uma flor de um narciso.
Levando em consideração a análise que fizemos do poema ovidiano, tencionamos nossa visão, primeiramente, para o exercício do autor no manuseio de sua tessitura linguística. Desde os primeiros versos destacados da narração desse episódio, é notável que, diferente da poesia lírica, a manipulação das palavras inseridas nos versos elegidos é, em sua maioria, mais objetiva. Em consonância a Hegel (1980, p. 2017), o caráter épico escritural do poema tende a “tornar perceptíveis à representação as impressões até então obscuras, e exprimir a interioridade assim liberta. Só o fará com o auxílio das palavras e da linguagem” (Hegel, 1980, p. 217). Em outras palavras, na poesia épica, os sujeitos são o objeto/a materialidade de uma narração/discurso.
Isso significa que o poema de Narciso também apresenta aspectos narrativos que, na verdade, são os predominantes em sua estrutura. Não obstante, a poiesis da narrativa de feitio épico, que aparece em “Eco e Narciso”, de Ovídio (2017), caracteriza-se por uma singularidade temporal. Tal como o gênero específico da epopeia clássica, há uma descontinuidade no posicionamento estabelecido entre o produtor da enunciação, os receptores e o enunciado em si. Sobre esses aspectos do discurso épico, Bakhtin (2014, p. 405 - 406) propõe determinadas concepções fundamentais, cujo conteúdo pode ser extraído a partir do seguinte excerto:
O discurso épico, por seu estilo, tom e caráter imagético, está infinitamente longe do discurso de um contemporâneo que fala sobre um contemporâneo aos seus contemporâneos. [...] O aedo e o ouvinte, imanentes ao gênero épico, situam-se na mesma época e no mesmo nível de valores (hierárquico) mas o mundo representativo dos personagens situa-se em um nível de valores e tempos totalmente diferente e inacessível (Bakhtin, 2014, p. 405 - 406).
O objeto da épica, segundo Bakhtin, associa-se a um passado absoluto, perdido no tempo, e à abstração do passado nacional. A lenda nacional atua como fonte do gênero épico, que não diz respeito à memória individual daquele que conta e ficcionaliza, mas à da coletividade. O mundo épico, como anuncia o autor, é isolado, distante do escritor, do autor e dos seus ouvintes, de sorte que se faz impossível acessá-lo ou o alterar. Nesse prisma, o episódio de Narciso, além de não aparecer em uma data definida, segundo o calendário humano, encontra-se em um mundo mítico fechado, sem a possibilidade de seu alcance, de sua alteração, afastado tanto do próprio autor como dos leitores.
Precisamente com respeito ao traço coletivo do epos, oriundo do fato de a lenda nacional operar como a fonte/materialidade da épica e desse seu distanciamento com relação ao enunciador e aos leitores da Antiguidade, Lukács (2009) trata de aprofundar o papel do herói, cuja apreciação ajuda-nos a compreender, neste texto, o destino de Narciso. O que era símbolo na tragédia, por exemplo, torna-se realidade na épica: o peso da associação de um destino com sua totalidade. “O destino universal, que na tragédia não passava da sequência necessária de zeros transformados em milhão pelo acréscimo da unidade” (Lukács, 2009, p. 68), é o que, na épica, “confere conteúdo aos acontecimentos; e o fato de portar tal destino não cria isolamento algum à volta do herói épico; antes, prende-o com laços indissolúveis à comunidade cujo destino cristaliza-se em sua vida” (Lukács, 2009, p. 68).
Em vista do que declara o filósofo, a trama de Narciso, que se inicia com a manifestação de um destino concebido pelo vate, entra em consonância com a teoria épica. O desenvolvimento dos fatores que culminam em sua fatalidade inevitável é discorrido pelos versos construídos por meio dos recursos estilísticos, empregues pelo eu lírico. Por consequência da aparência do jovem e de seu desdém para com os demais, ao se conhecer, Narciso acaba morrendo de amor por si mesmo. Logo, constatamos que o herói e seu destino co-determinam o destino da comunidade. Os atos do protagonista, sendo a unidade simbólica, ultrapassam as linhas ficcionais e atingem o ambiente sociocultural do mundo não ficcionado: em outras palavras, a vida passa a imitar a arte.
SISTEMATIZAÇÃO SEMIÓTICA
Nas duas seções anteriores, foi identificado como o articulador desses discursos poéticos, sendo eles os gêneros lírico e épico, produziram as partes para se interligarem em um todo, que é o poema. Sendo assim, na primeira seção, apresentamos a passagem da lamentação de Narciso, que é identificado como pertencente ao gênero lírico. Na seção seguinte, constatamos, por meio da amostragem de excertos do poema, como a poiesis de “Eco e Narciso” (Ovídio, 2017), marcada por características do poema que a fazem épica, é estruturada: desde o nascimento do herói até sua morte.
Nesta seção, volta-se aos signos arranjados na poética de Ovídio (2017), para extrair algumas das suas decorrências, no campo da semiose. A proposta é fazer o desmembramento dos segmentos que compõem o mito ovidiano, com base nas teorizações desenvolvidas por Santaella (2017), na perspectiva da semiótica peirceana. Assim, tomando concepções como ícone, derivadas do modelo triádico, expõe-se o quadro abaixo:

Para compreensão do quadro icônico acima, há a necessidade de se ter em mente algumas noções de semiótica. Neste artigo, como já discorremos, utilizamos a semiótica peirciana, que trabalha as noções de Signo. Para Peirce (2005, p. 28), “um Signo [ou Representamem] é tudo aquilo que está relacionado com uma Segunda coisa: seu Objeto, com respeito a uma Qualidade, de modo a tal trazer uma Terceira coisa, seu Interpretante, para uma relação com o mesmo Objeto”. Em outras palavras, o Signo é um elemento que engloba os demais termos: o Interpretante é o mediador entre o Representamem (sendo ele o próprio Signo) e o Objeto. De acordo com Santaella (2017), o Representamem é “a imagem visual percebida” (Santaella, 2017, p. 32) e o Objeto, “[...] a referência” (Santaella, 2017, p. 32).
Peirce (2005) indica, em seu texto, mais um termo “sinônimo” ou derivado de Signo, denominado ícone, definido da seguinte maneira: “Ícone, que é um Signo cuja virtude significante se deve apenas a sua Qualidade” (Peirce, 2005, p. 28). Nesse sistema semiótico/semiológico da iconicidade, Peirce (2005) divide-o, ainda, em três subníveis, sendo eles os ícones imagético, diagramático e metafórico.
Isso posto, Santaella (2017) apresenta que esses signos icônicos “agem propriamente como signos porque representam algo, sendo, portanto, intrinsecamente triádico” (Santaella, 2017, p. 62). A especialista indica, ainda, as definições dos três ícones peircianos: o primeiro deles, os ícones imagéticos, “[...] representam seus objetos porque apresentam similaridades no nível de qualidade” (Santaella, 2017, p. 64), ou seja, condizem às imagens identificadas, podendo ser elas verbal, abstrata ou concreta.
Os ícones diagramáticos “representam as relações das partes de uma coisa, utilizando-se de relações análogas em suas próprias partes” (Santaella, 2017, p. 64). Nessa linha, esse se refere aos índices/sintomas, exprimindo causa ou motivo. Por fim, os ícones metafóricos, segundo Santaella (2017, p. 64), “representam o caráter representativo de um signo, traçando-lhe um paralelismo com algo diverso”, em outras palavras, concerne aos símbolos gerados.
Tendo em vista esses apontamentos dos teóricos, dispostos acima, considera-se o encapsulamento das figurações do quadro icônico de significações de “Eco e Narciso” (Ovídio, 2017). No ícone imagético, associaram-se os acontecimentos de maior relevância que resultam nos dois ícones posteriores (diagramático e metafórico). Posto isso, em primeiro lugar, tem-se a passagem em que o destino de Narciso é definido pelo vate, pois este configura a imagem que é criada da trajetória desse herói. Em segundo lugar, trazemos a constituição imagética do recorte do excerto em que o eu lírico manifesta seu desejo pela presença física de seu reflexo e seu sofrimento.
No campo da iconicidade seguinte, como se pode identificar, a abrangência do símbolo não está no índice ou no ícone, mas na convenção do gênero épico. Assim, por integrar-se diagramaticamente/indicialmente ao resto do poema, a estrutura métrica que perfaz os acontecimentos efabulados passa a representar em sua profundidade o tom grave dos acontecimentos como também o mundo mítico, perfeito, acabado e inalcançável de Narciso.
Por fim, no último ícone, atestamos pelo menos dois símbolos possíveis gerados nesse poema. O primeiro é o do pertencimento ao gênero épico. A demonstração de que o herói (Narciso) possui um destino já dado valida que este espelha o de sua comunidade mítica. Ressalta-se, também, que a atuação de Narciso representa o reflexo sociocultural vivido fora da ficção. Por último, os sentimentos manifestados pelo herói, ao se apaixonar por si mesmo, demonstram o caráter elegíaco do tecido escritural dessa passagem, solidificando tanto a dualidade topológica do poema quanto da comprovação do destino determinado ao herói.
Por intermédio da decomposição das partes que integram o processo de semiose do poema, nota-se que, apesar do seu feitio híbrido, isto é, de intercessão entre os aspectos lírico e épico, o dominante deriva do epos. De acordo com Jakobson (1995, p. 485), “pode-se definir o dominante como sendo o centro de enfoque de um trabalho artístico: ele regulamenta, determina e transforma os seus outros componentes”, precisamente aquilo que o traço épico performa no texto: conduz os seus resquícios líricos em direção a esse fim seguido pelo herói, Narciso, em seu isolamento temporal.
EPOS, ELEGIA E AESTHESIS: DA ANÁLISE SIGNICA AO FUNDAMENTO SEMIÓTICO DA COOPERAÇÃO TEXTUAL
Na seção anterior, argumentou-se que a composição formal dos signos do mito de “Eco e Narciso”, contida na obra de Ovídio (2017), poderia ser deslindada a partir de três instâncias, a saber: imagética, diagramática e metafórica. Ao recuperar os estudos que já trataram da temática em um sentido mais amplo com relação à obra como um todo e tomar o aparato semiótico perceiano, destaca-se o modo pelo qual o imbricamento dos gêneros épico e lírico no mito estabeleceu-se no campo da poiesis.
Para deslindar como o substrato formal analisado anteriormente se estabelece no campo da aisthesis, acionamos a teoria do italiano Umberto Eco, que publicou, em 1972, Lector in fabula: la cooperazione interpretativa nei testi narrativi (1985). Ao retomar a tríade de Peirce, ele ampliou a perspectiva semiótica, a fim de incluir o espaço do leitor. Nesse sentido, seria especificamente a concepção do interpretante, segundo Eco (1985), que funcionaria não somente como uma categoria lógica ou semântica, mas, sim, uma que abarcaria traços pragmáticos. Se aceito o postulado, firma-se, na prática, um encaminhamento teórico rumo a uma pragmática do texto, que, a partir dessa rede semiótica pautada no Interpretante, lança-se sobre os efeitos que os signos produzem sobre os seus destinatários. Sobre essa conexão, o teórico justifica que é sobretudo em Peirce que “si disegna il giunto cardanico che può unire una semiotica del codice a una semiotica del testi e dei discorsi[2]” (Eco, 1985, p. 49).
Em seu ensaio, o autor desemboca, por isso, na ideia de que todo o texto necessita da participação ativa/construtiva de seu destinatário, o leitor, para o seu funcionamento. Ele demonstra que o leitor/destinatário é o encarregado de completar ou atualizar o tecido narrativo. Mais ainda, argumenta que “un texto postula il proprio destinatario come condizione indispensabile non solo della propria capacità comunicativa concreta ma anche della propria potenzialità significativa. In altri termini, un testo viene emesso per qualcuno che lo attualizzi” (Eco 1985, p. 52-53). Confirma-se, em decorrência, que a condição de possibilidade do texto é o leitor, o responsável por conceber a capacidade comunicativa e, ademais, a sua potencialidade semiótica. Logo, o texto é redigido, editado e publicado exatamente para que alguém o atualize – aceite, incremente, consuma.
Nota-se, então, que o processo é constituído por ao menos dois eixos. Por um lado, “un testo è un prodotto la cui sorte interpretativa deve far parte del proprio meccanismo generativo: generare un testo significa attuare una strategia di cui fan parte le previsioni delle mosse altrui[3]” (Eco, 1985, p. 54), isto é, o escritor pensa nos seus movimentos como um estrategista que prevê os esforços do seu adversário, o leitor (modelo). No que se refere a esse último, ele faz a moção reversa, reconstituindo as linhas tecidas pelo autor. Por conseguinte, resulta que “la nozione di interpretazione coinvolga pur sempre una dialettica tra strategia dell’autore e risposta del Lettore Modello[4]” (Eco, 1985, p. 59), não sendo então a interpretação completamente escancarada.
Nessa estrutura de relações, correlações e cooperações, verifica-se, à guisa de Eco (1985), a existência de uma série de elementos postos em tela. No gesto da decodificação do texto pelo destinatário, entram no quadro os elementos contidos na narrativa, como as configurações dos heróis e da ideologia que os atravessa, mas também do discurso que tipifica esses itens. Emergem, igualmente, questões extrínsecas: tópicos informativos, como o domínio linguístico, cultural e afins, e traços das circunstâncias em que se perfazem as leituras. Eco (1985) auxilia a compreender tal processo quando propõe uma padronização dessa profusão de variáveis na figura que indexamos abaixo:

A Figura 1 não trata apenas de uma reconstituição teórica do fenômeno, mas de uma articulação metatextual, que se interessa pelo movimento cooperativo do leitor de um texto escrito. Para conceber a esquematização, o pensador italiano tomou emprestada a teorização de Petöfi (1931-2013), mas também de Algirdas Greimas (1917-1992) e Teun van Dijk (1943-), incorporando âmbitos como os textuais, actanciais e outros, mais amplos, relativos aos aspectos intencionais e o que chamam de extensionais, bem como expressivos. Cada uma das caixas representa, consequentemente, níveis cooperativos.
Como se pode verificar pela confluência das visões de Eco (1985), uma série de elementos integram-se ao eixo estético. Assomam, portanto, caracteres ideológicos, históricos, co-textuais e contextuais. Sobre a convergência desses elementos, Eco (1985, p. 68) nos adverte que “il modello petöfiano stabilisce rigidamente la direzione del processo generativo, mentre il nostro esplicitamente rifiuta di raffigurare le direzioni e la gerarchia di fasi del processo cooperativo[5].” Em outras palavras, o seu modelo (da Figura 1) não define um nível ou outro como superior: os blocos ideológico e narrativo, por exemplo, não seriam naturalmente dominantes, pois há espaço para a diversidade de combinações heterogêneas.
É precisamente por meio dessa (des)estrutura da cooperação autor-texto-leitor que se pode observar o modo pelo qual se perfaz a recepção do mito em tela, respondendo ao problema proposto inicialmente. No caso, em razão do esboroamento de uma pré-definição estrutural do significado final da leitura, ou seja, pela inexistência de uma sorte de exegese conferida a priori, notamos que cada sociedade, grupo ou indivíduo pode atualizar o texto distintamente, segundo uma organização semelhante à proposta na figura de Eco (1985), mas divergente em relação ao dominante ou ao ponto hierarquizante. As peças são dadas, mas cada um as joga à sua maneira.
Pode-se observar a operacionalidade desse fenômeno de maneira mais clara caso historicizemos a variedade de atualizações do mito de “Eco e Narciso” (Ovídio, 2017). Sem entrar em pormenorizações, vemos que, na Antiguidade Latina, os mitos constitutivos das Metamorfoses tinham, conforme sugerem Segal (1971) e McKinnon (2017), a título de exemplo, um papel não necessariamente determinante, mas funcional na formação das numerosas tradições romanas mitológicas/religiosas. Nesse sentido, poderiam ser os dominantes nesse jogo da cooperação do texto não necessariamente aqueles componentes intrínsecos ao mito, mas os extrínsecos, com destaque para o uso das figurações com o intuito de construir determinados modelos de indivíduo.
Mais recentemente, a contingência emergiu por sobre o humanismo clássico. Percebeu-se que o “eu” não é um sujeito inocente, anterior ao texto e que dele se serviria em seguida como de um objeto que se desmonta ou uma praça que se cerca. Esse “eu” que se aproxima do texto é já uma pluralidade de outros textos, de códigos infinitos, ou mais exatamente: perdidos (cuja origem se perde).” (Barthes, 1999, p. 16). Dessa maneira, novos itens integraram-se ao jogo de cooperação do texto (Eco, 1985). Os sentidos se abriram mais intensamente a partir do momento em que passou a se conceber que um autor não é mais dono da sua voz (Barthes, 2012), que a obra é aberta (Eco, 2015) e que o leitor não é mais unívoco, mas fragmentado e socialmente integrado (Cândido, 1965).
Com efeito, o imbricamento ou mescla dos gêneros épico e lírico no mito parece operar, por meio do esquema operativo que se estabelece no jogo de afastamento e aproximação dos campos da poiesis e da aisthesis, como o motor de geração de sentidos. Lançando mão da linguagem de Eco (1985), a hibridação dos gêneros funciona como o ponto nodal para a formação de interpretações, que se constituem precisamente graças à cooperação que se firma entre, de um lado, o autor com as estratégias do texto e, de um outro, o leitor (ideal), que atua ativamente na construção desse percepto. Forma-se, assim, uma abertura da obra, rumo à pluralidade: máquina gerativa da aventura perversa dos sentidos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A épica foi um dos gêneros mais importantes na Antiguidade Clássica. Dentre os autores mais ilustres de tal constituição poética de um passado absoluto, destacou-se o poeta Romano Ovídio, com sua obra Metamorfoses ([8 d. C] 2017). Em meio à totalidade de cantos dessa composição, está inserido, em seu terceiro livro, o mito de “Eco e Narciso”, que provocou, durante a história, dentro e fora do Ocidente, diversas releituras intra e intersemióticas. Sobre esse mito, Kiening (2015, p. 256) pontua: “dificilmente alguma outra das várias histórias marcantes das Metamorfoses impregnou tanto o imaginário do Ocidente quanto a de Narciso e Eco”. Como aponta a autora, o poema de “Eco e Narciso” é uma das histórias mais cativantes presente nas Metamorfoses (Ovídio, 2017), tendo deixado uma forte influência na cosmovisão europeia.
A partir de um olhar analítico, icônico e receptivo do poema, argumentamos que o gênero lírico no mito de “Eco e Narciso” (2017) se apresenta entre os versos 440 e 470 da obra. Nesse trecho em específico, Narciso, ao negar o amor de Eco, é amaldiçoado por Nêmesis e se apaixona por seu próprio reflexo na água. O trabalho com a linguagem nessa passagem demonstra o sentimento melancólico de Narciso, com um aspecto mais subjetivo, associando-se à elegia. Contudo, o arrolamento dos preceitos versificatórios caracteriza-se, predominantemente, pelo gênero épico, com o uso mais objetivo da linguagem no restante do mito. Posto isso, ressalta-se que sua estrutura é composta de versos hexâmetros datílicos, que projetam um tom grave ao conteúdo da passagem.
A partir dessa organização analítica, descrita anteriormente, o excerto foi estruturado semioticamente. Assim, alicerçado nos estudos Icônicos dos Signos, dividiu-se o exame dos gêneros em ícones imagético, diagramático e metafórico. Quanto ao ícone imagético, separamos duas passagens: a do destino definido pelo Vate para Narciso, apresentando, dessa maneira, a imagem produzida dos acontecimentos futuros; e a do findar desse destino, elucidando a melancolia do herói. Em seguida, no ícone diagramático, o índice da passagem do mito foi definido pela estrutura do poema, ou seja, pelo tom solene dos versos épicos. Por fim, no último ícone, foram apresentadas as considerações representativas do gênero épico e das características elegíacas do poema, associadas ao que Narciso simboliza nesse mito.
Após delinear os traços constituintes dos eixos épico e lírico do mito, buscou-se responder a como tais figurações poderiam ser, possivelmente, rearticuladas no ato da recepção. Tomando como ponto de partida a incursão seminal de Eco (1985) sobre o campo da recepção, argumentou-se que diferentes níveis de cooperação leitora podem interferir na consumação da produção de sentidos referentes ao processo poético da mescla dos gêneros. Considerando os eixos determinantes nesse processo colaborativo de atualização, destacamos os campos do código, das circunstâncias de enunciação, da expressão e do conteúdo.
Realça-se, dessa maneira, que, em uma hipotética análise diacrônica dos processos de atualização, poder-se-ia observar variedade de atribuições de significação ou significado (mais restrito). No que respeita a essa pluralidade destaca-se que, caso se quisesse chegar a uma compreensão mais extensiva dessas formulações, seria necessário, então, identificar como as estruturas expostas foram atualizadas na leitura, em cada tempo, período e, radicalmente, leitura. Tratar-se-ia de um projeto mais amplo, presumivelmente vinculado à Estética da Recepção.
A despeito da possibilidade de se empreender no futuro essa análise de viés sociológico, o destaque deste artigo foi demonstrar por vias semióticas como se estabeleceram as confluências épico-elegíacas no poema e os caminhos para a constituição do processo cooperativo do leitor. Embora o caráter interpretativo seja existente, não houve a pretensão de se estabelecer um sentido definitivo para a obra, mas deslindar a forma a partir da qual brotam os conteúdos/sentidos.
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Notas