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O significado do 4 de julho para o negro, de Frederick Douglass
Marcos Fanton; Tatiana Vargas Maia
Marcos Fanton; Tatiana Vargas Maia
O significado do 4 de julho para o negro, de Frederick Douglass
The meaning of July fourth for the negro, from Frederick Douglass
Civitas - Revista de Ciências Sociais, vol. 17, núm. 2, pp. 27-59, 2017
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
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O significado do 4 de julho para o negro, de Frederick Douglass

The meaning of July fourth for the negro, from Frederick Douglass

Marcos Fanton
Tatiana Vargas Maia
Civitas - Revista de Ciências Sociais, vol. 17, núm. 2, pp. 27-59, 2017
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Introdução

O discurso de Frederick Douglass,1 aqui traduzido, é considerado um dos textos abolicionistas mais famosos da história norte-americana. Convidado pela Rochester Ladies' Anti-Slavery Society, Douglass proferiu seu discurso, em comemoração ao dia da independência norte-americana, por mais de duas horas diante de um público de cerca de seiscentas pessoas, entre elas homens e mulheres negras e brancas, que se faziam presentes no Salão Corinthian, em Rochester, Nova Iorque.

Assim como hoje, o quatro de julho, para os norte-americanos, sempre foi associado à rituais e cerimonias patrióticas, com eventos privados e públicos, para celebrar a data de nascimento dos Estados Unidos da América e da Declaração da Independência. Porém, para a maioria dos negros e dos movimentos abolicionistas, este era um feriado de pessoas brancas. Como era possível comemorar o dia da assinatura de um documento que visava garantir liberdade e direitos iguais para todos, se o país permitia a escravidão? O quatro de julho, por isso, era um dia de luto, não de celebração. Para os negros, era a data da promessa da liberdade e de sua negação. Como forma de protesto, muitos movimentos abolicionistas adiavam para o dia 5 de julho a realização de alguma manifestação. O discurso de Douglass, nesse sentido, é uma desconstrução retórica e argumentativa do “dilema [norte-]americano”. É uma reapropriação crítica não só da data de celebração, mas das crenças, da narrativa da história norte-americana e de seus principais documentos.

Douglass começa seu discurso com um artifício retórico muito comum à época ao colocar em dúvida suas habilidades oratórias e sua capacidade intelectual. O tom de humildade e desculpa procura manter seus ouvintes atentos aos seus argumentos. Esta “máscara de subserviência” tinha também o propósito, segundo James Colaiaco,2 de mostrar como negros precisavam adotar ares de passividade diante de brancos, na medida em que suas habilidades intelectuais (e sua condição humana) eram constantemente menosprezadas e atacadas - sem contar a fragilidade de suas vidas.

Não obstante, Douglass já era conhecido, antes do discurso de 1852, como um dos maiores oradores do abolicionismo. Tinha viajado para diversos estados norte-americanos e países europeus para realizar conferências, escrito uma autobiografia condenando a instituição da escravidão e era editor de jornais abolicionistas, entre eles, o Estrela do Norte (Lee, 2009).3

Em seguida, Douglass passa a se posicionar a respeito do quatro julho a partir de uma perspectiva dissonante. Enquanto negro e ex-escravo, Douglass dirige-se à plateia através dos pronomes “eu” e “vocês”. Estes marcam a tensão entre a comemoração da liberdade conquistada pelos revolucionários norte-americanos e a liberdade negada, por estes mesmos revolucionários, aos negros, que continuam escravizados ou, na melhor das hipóteses, com direitos políticos negados. Ao mesmo tempo, porém, Douglass dirige-se à plateia como um “concidadão”, isto é, alguém que pode (e, de um ponto de vista moral, deve) discutir questões fundamentais do país e apontar suas injustiças. Para Colaiaco, esta dualidade antecipa aquilo que W.E.B. Du Bois chamará, em The souls of black folks (1903), de “dupla consciência” dos negros norte-americanos: uma percepção de si mesmo a partir de outro, o que implica, neste caso, em uma situação de inclusão e de exclusão dos Estados Unidos da América (Colaiaco, 2006, p. 33-34).

Em nível macro, este dualismo expressa o “dilema [norte-]americano”: a contradição entre a assinatura de uma Declaração da Independência, que pretende garantir direitos iguais para todos, e a manutenção da instituição da escravidão. Douglass irá se reapropriar da narrativa histórica da nação norte-americana para mostrar que não apenas a defesa da escravidão é contrária aos seus documentos fundadores, como também ao próprio espírito revolucionário. “É uma calúnia sobre sua memória”, irá afirmar Douglass. Com isso, Douglass não apenas mostra a “distância incomensurável” entre ele (os negros) e a plateia (a sociedade norte-americana), mas entre a plateia e os Pais Fundadores (Wilson, 2015, p. 30). Assim, as justificativas da revolução (a opressão da Coroa inglesa) e as analogias históricas (o povo hebreu contra egípcios) serão utilizadas em favor da causa abolicionista. É, ao mesmo tempo, uma mensagem sobre as possibilidades de uma nova revolução.

O modo de reapropriação da narrativa, efetivado por Douglass, segue a tradição do chamado “sermão político”, estabelecido aos moldes das denúncias e profecias de Jeremias. O discurso de Douglass reflete a estrutura deste tipo de sermão e pode ser dividido em três partes: [I] uma referência ao povo norte-americano, que, ao se estabelecer a partir de um documento fundador oficial, realiza a promessa de garantir determinados direitos a todos; [II] a denúncia do povo norte-americano, que não cumpriu sua promessa ao permitir o pecado da escravidão em suas terras; e [III] a possibilidade de sua redenção, dada a “juventude” da nação, e a esperança no cumprimento da profecia (Colaiaco, 2006, p. 46-7).

Ao olhar para o presente (e para o futuro do país), Douglass volta a ressaltar a “distância imensurável” entre brancos e negros e choca a plateia ao questionar o próprio convite para falar nesta data: “Este quarto de julho é seu, não meu”. A partir disso, Douglass passa a mostrar o “ponto de vista do escravo” e as atrocidades da escravidão em todo o país.

A esta altura do discurso, Douglass torna um pouco mais claro o público a qual o discurso é dirigido (Colaiaco, 2006, p. 35). Ele não é os integrantes dos Estados do Sul, com sua defesa brutal da escravidão e da visão de negros como propriedade. Douglass visa, principalmente, o Norte e sua complacência moral com a perpetuação do regime escravista - aqueles “cujo julgamento não é cego por preconceito ou que não é, de coração, um senhor de escravos”. É por isso, então, que seu foco não está, exatamente, nos motivos contra a escravidão ou contra a visão da inferioridade dos negros, mas em quando e como esta instituição será extinta e a condição dos negros alcançará parâmetros mais equitativos. Em um editorial de 1850, de seu jornal Estrela do Norte, Douglass afirma, de maneira convicta e indignada: “Eles [os senhores de escravo] falam de direitos (!!) da escravidão, como se fosse possível a escravidão ter direitos. [...] A escravidão não tem direitos” (Colaiaco, 2006, p. 66). As menções a respeito da “nacionalização da escravidão”, consequência direta da Lei do Escravo Fugitivo, e da complacência da igreja católica com a situação dos negros, vão nessa direção.

Além disso, esta exortação ao engajamento imediato dos simpatizantes à causa abolicionista encontra paralelos com a indignação moral de Martin Luther King a respeito de uma “maioria moderada”:

Eu quase cheguei à conclusão lamentável de que a grande pedra no caminho dos negros rumo à liberdade não era o White Citzens Counciler ou o Ku Klux Klanner, mas os brancos moderados que são mais devotados à ‘ordem’ do que à justiça, que preferem uma paz negativa, que é a ausência de tensão, à paz positiva, que é a presença da justiça, que constantemente dizem ‘eu concordo com você no objetivo que busca, mas não posso concordar com os seus métodos de ação direta’, que paternalisticamente sentem que podem estabelecer a agenda para a liberdade de outro homem, que vivem pelo mito do tempo e que constantemente aconselham os negros a esperar até ‘um tempo mais conveniente’. A compreensão superficial de pessoas de boa-fé é mais frustrante do que a absoluta incompreensão de pessoas de vontade doentia. Aceitação morna é pior do que rejeição completa (King Jr., 2014, p. 304).

Por fim, é importante comentar que o discurso de quatro de julho marca uma transformação no pensamento de Douglass a respeito dos meios para se alcançar a abolição dos escravos negros (Colaiaco, 2006, cap. 4). Na época, os movimentos abolicionistas estavam divididos em dois grupos. O primeiro deles, liderado por William Loyd Garrison, tinha como principal estratégia a denúncia moral do sistema escravista e a rejeição a qualquer tipo de ação política. Os garrisonianos, como eram conhecidos, defendiam a dissolução do Norte com os Estados do Sul através do slogan “Nenhuma união com senhores de escravos”. Afirmavam, ainda, que a constituição norte-americana era uma “convenção com a morte e um acordo com o inferno”. Nesse sentido, qualquer ação política, como o exercício do voto ou a formação de partidos políticos, era considerada atos condescendentes à escravidão.

Douglass, em sua juventude, foi favorável a esta visão. Inclusive, Garrison foi seu grande mentor e protetor. Contudo, para indignação deste último, Douglass passou a adquirir, gradativamente, uma visão mais favorável da ação política e da Constituição. A ruptura com Garrison marcou, também, uma modificação da própria identidade de Douglass e é, geralmente, vista através de sua segunda biografia My bondage and my freedom.4

O segundo grupo de abolicionistas, nesse sentido, percebia a necessidade e a importância da ação política e compreendia a Constituição norte-americana como o instrumento para atingir o fim da escravidão. Entre seus membros, pode-se destacar Gerrit Smith, um dos fundadores do Partido da Liberdade, que influenciou enormemente Douglass em sua nova leitura.

Esta mudança na visão de Douglass deveu-se, em parte, a uma nova compreensão da relação entre ação moral e ação política. Para ele, a esfera moral pode ter um padrão alto de exigência, na medida em que é direcionada a indivíduos. Já a política, como envolve grupos de pessoas, deve deixar de lado a perfeição e buscar os limites praticáveis em cada contexto (Colaiaco, 2006, p. 77 e p. 93). Para Douglass, desistir da ação política, em detrimento de uma defesa incondicional da ação moral, significa falhar em compreender a situação política de maneira mais realista. Não podemos nos cegar completamente às consequências políticas dos nossos ideais morais. O projeto de secessão do Norte, feito pelos garrisonianos, para garantir uma consciência moral intocada, poderia levar ao abandono da responsabilidade moral dos negros escravizados do Sul: “[O movimento abolicionista] começou com o intuito de libertar o escravo, [...] mas pode acabar deixando o escravo se libertar por si próprio” (Colaiaco, 2006, p. 92-3).

Douglass defende, assim, uma leitura da Constituição baseada “em seus próprios termos”, dando prioridade ao seu preâmbulo e à Declaração da Independência. Tais documentos (e os direitos naturais expressos neles) têm precedência para dar sentido ao texto da Constituição e, com isso, mostram que a promessa de direitos e liberdades deve ser estendida a todos. A consequência desta interpretação, contrária até mesmo à de Lincoln, torna a escravidão não apenas imoral, mas inconstitucional - e, assim, o dilema norte-americano se mantém como uma tensão não resolvida politicamente. Portanto, a emancipação dos negros é necessária para a própria preservação da democracia norte-americana (Wilson, 2012, p. 26). A interpretação da Constituição de Douglass ia contra diferentes interpretações: contra os sulistas, que acreditavam que não havia uma violação das ideias republicanas, pois negros não eram pessoas; contra Lincoln, que acreditava que a escravidão não era um problema do governo federal; e contra Garrison, que não acreditava no poder político e na imparcialidade deste documento (Colaiaco, 2006, p. 110).

Material suplementar
Referências
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada - edição pastoral < Bíblia Sagrada - edição pastoral http://www.paulus.com.br/biblia-pastoral> (26 abr. 2017).
COLAIACO, James. Frederick Douglass and the fourth of july. New York: Palgrave MacMillan, 2006.
DOUGLASS, Frederick. A narrativa da vida de Frederick Douglass, um escravo americano: escrita por ele mesmo. Trad. Leonardo Poglia Vida. Porto Alegre: [s.ed.]2012.
DOUGLASS, Frederick. The meaning of the 4th of July for the negro < The meaning of the 4th of July for the negro http://rbscp.lib.rochester.edu/2945> (21 abr. 2017).
KING JR., Martin Luther. Carta da prisão da cidade de Birmingham. In: James Rachels; Stuart Rachels (Org.). A coisa certa a fazer: leituras básicas sobre filosofia moral. Porto Alegre: AMGH, 2014.
LEE, Maurice. Slavery, philosophy, and American literature, 1830-1860. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
LEE, Maurice. The Cambridge companion to Frederick Douglass. Cambridge: Cambridge University Press , 2005.
WILSON, Ivy. Specters of democracy: blackness and the aesthetics of politics in the antebellum U.S. Oxford: Oxford University Press, 2011.
Notas
Notas
1 Tradução, introdução, revisão e notas realizadas por Marcos Fanton (PPG em Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco, em Recife, PE, Brasil <fanton.marcos@gmail.com>) e Tatiana Vargas Maia (PPG em Memória Social e Bens Culturais na Unilasalle em Canoas, RS, Brasil <vargasmaia@gmail.com>).
Notas
2 Colaiaco (2006, p. 30). O livro, como um todo, é extremamente instrutivo e é utilizado como base para a realização destes comentários introdutórios.
Notas
3 Esta autobiografia, felizmente, encontra-se traduzida para o português (ver Douglass, 2012).
Notas
4 Questões sobre identidade são muito discutidas na literatura sobre Douglass. Ver, por exemplo, os primeiros capítulos de Lee (2009).
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