Resumo: O artigo contribui para o debate sobre comportamento judicial em casos de corrupção. Ele indaga sob quais condições integrantes do Poder Judiciário condenam autoridades políticas acusadas de corrupção e por que algumas autoridades são tratadas mais severamente do que outras. Para tanto, ele analisa todos os 1.716 casos julgados pela 4.ᵃ Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, primeiro órgão especializado no julgamento de crimes de prefeitos municipais instituído no Brasil, em 1992, até 2016. O artigo examina o impacto de três grupos de hipóteses, relativas ao perfil dos prefeitos acusados, às características socioeconômicas dos municípios e ao funcionamento das instituições dos sistemas de justiça. Testadas por meio de técnicas descritivas e multivariadas, a análise sugere que o último grupo de variáveis exerce maior impacto sobre a chance de condenação criminal de prefeitos, e que as demais variáveis exibem impacto mais reduzido ou estatisticamente insignificante.
Palavras-chave: CorrupçãoCorrupção,Poder JudiciárioPoder Judiciário,AccountabilityAccountability,PrefeitosPrefeitos,Rio Grande do SulRio Grande do Sul.
Abstract: The article contributes to the debate on judicial behavior in cases of corruption. It asks under what conditions members of the judiciary convict political officials accused of corruption and why some officials are treated more severely than others. To this end, it analyzes all 1,716 cases tried by the 4th Criminal Panel of the Supreme Court of Rio Grande do Sul, the first body specialized in the judgment of crimes by city mayors instituted in Brazil, in 1992, until 2016. The article examines the impact of three groups of hypotheses, concerning the profile of the accused mayors, the socioeconomic characteristics of the municipalities and the workings of justice system institutions. Tested using descriptive and multivariate quantitative techniques, the analysis suggests that the last group of variables exerts greater impact on the chance of criminal conviction of mayors, and that the other variables exhibit a smaller or statistically insignificant impact.
Keywords: Corruption, Judicial branch, Accountability, Mayors, Rio Grande do Sul.
Resumen: El artículo contribuye al debate sobre comportamiento judicial en casos de corrupción. Pregunta bajo qué condiciones los miembros del poder judicial condenan a los políticos acusados de corrupción y por qué algunos políticos son tratados con mayor severidad que otros. Con este fin, analiza todos los 1.716 casos juzgados por la Cuarta Sala Penal de la Corte de Justicia de Rio Grande do Sul, el primer organismo especializado en el juicio de crímenes por alcaldes municipales instituidos en Brasil, en 1992, hasta 2016. El artículo examina el impacto de tres grupos de hipótesis, relacionados con el perfil de los alcaldes acusados, con las características socioeconómicas de los municipios y con el funcionamiento de las instituciones de los sistemas de justicia. Probado utilizando técnicas descriptivas y multivariadas, el análisis sugiere que el último grupo de variables tiene un mayor impacto en la posibilidad de condena penal por parte de los alcaldes, y que las otras variables exhiben un impacto menor o estadísticamente insignificante.
Palabras clave: Corrupción, Poder Judicial, Accountability, Alcaldes, Rio Grande do Sul.
Dossiê: Luta contra a corrupção: estado da arte e perspectivas de análise
Condenando políticos corruptos? Análise quantitativa dos julgamentos de prefeitos municipais pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (1992-2016)
Sentencing corrupt politicians? Quantitative analysis of the trials of mayors by the Supreme Court of Rio Grande do Sul (1992-2016)
¿Condenar a los políticos corruptos? Análisis cuantitativo de los juicios de alcaldes municipales por el Tribunal de Justicia de Rio Grande do Sul (1992-2016)
Recepção: 28 Fevereiro 2020
Aprovação: 28 Maio 2020
Publicado: 23 Dezembro 2020
Sob quais condições o Poder Judiciário condena criminalmente políticos acusados de corrupção? Embora essa seja uma pergunta relevante tanto para o debate público como para o acadêmico, ela não parece ter sido respondida de forma satisfatória nas literaturas brasileira e comparada dedicadas ao tema. Ao menos em parte, isso deriva de uma lacuna metodológica: há escassez de pesquisas quantitativas que testem, por meio de técnicas multivariadas, as hipóteses desenvolvidas na área.5 Análises qualitativas predominam na produção acadêmica sobre o tema, com destaque para estudos de caso e, em menor grau, pesquisas comparativas envolvendo poucos casos. Este artigo busca contribuir para o preenchimento dessa lacuna por meio do exame de todos os julgamentos realizados pelo Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul (TJRS) em casos criminais nos quais prefeitos municipais foram réus ao longo de um período de mais duas décadas.
Desde a Constituição de 1988, os prefeitos municipais brasileiros gozam de foro por prerrogativa de função – ou “foro privilegiado” – ante os Tribunais de Justiça (TJs) estaduais.6 Como consequência dessa regra, inexistente anteriormente, e por conta de sua autonomia administrativa, os vários TJs do país se organizaram de formas diferentes para processar e julgar tais casos.7 Particularmente, alguns TJs criaram câmaras criminais especializadas em crimes cometidos por prefeitos, assim gerando os primeiros casos de especialização de órgãos judiciais no combate à corrupção no Brasil – anteriores, inclusive, à criação das varas federais especializadas em lavagem de dinheiro, que hoje recebem atenção por conta de iniciativas como a operação Lava Jato.8
A primeira câmara criminal especializada em crimes de prefeitos do país foi estabelecida no âmbito do TJRS em maio de 1992.9 Desde então, a 4.ᵃ Câmara Criminal do TJRS julgou mais de 1.700 processos e decidiu pela condenação em mais de 300 desses casos envolvendo atuais ou ex-prefeitos municipais. Considerando-se que o Rio Grande do Sul atualmente possui 497 municípios – e que abrigava apenas 222 em 1988 –10 os números tanto de denúncias oferecidas pelo Ministério Público estadual como de julgamentos realizados pela 4ᵃ Câmara Criminal (4CC) sugerem uma atuação expressiva.
Mais ainda, esse amplo acervo de casos oferece uma oportunidade possivelmente única no Brasil para testar quantitativamente uma série de hipóteses sobre a ocorrência e a severidade de condenações criminais impostas a autoridades políticas. De posse de todos os casos digitalizados julgados pela 4CC desde sua criação, indagamos: quais são os fatores preditivos da condenação criminal de prefeitos municipais pelo TJRS? O que explica, em outras palavras, a decisão dos magistrados de condenar alguns prefeitos, mas não outros, no âmbito da câmara especializada do Tribunal? E, por que algumas penas aplicadas por esses magistrados a alguns prefeitos são mais severas do que outras?
Para responder às perguntas, formulamos três grupos de hipóteses relativas: (i) ao perfil dos prefeitos acusados; (ii) às características socioeconômicas dos municípios; e (iii) ao funcionamento das instituições do sistema de justiça. Testadas por meio de técnicas multivariadas, logísticas e lineares, nossa análise sugere que o último conjunto de variáveis exerce maior impacto sobre a chance de condenação criminal dos prefeitos pela câmara criminal estudada e que as demais variáveis exibem impacto mais reduzido ou estatisticamente insignificante.
Isto posto, o artigo está organizado como segue. Na seção seguinte, delimitamos conceitualmente o fenômeno analisado e apresentamos as hipóteses desenvolvidas para explicar sua variação. Em seguida, detalhamos a forma da coleta dos dados e os métodos de análise empregados. Depois, apresentamos os resultados descritivos e multivariados da análise realizada. Concluímos revisando os achados e sugerindo novos caminhos para pesquisas futuras.
Explicar a variação na incidência e na intensidade das respostas judiciais à corrupção articula-se ao debate mais amplo sobre accountability. Entendida genericamente como o processo retrospectivo de prestação de contas e de responsabilização de agentes que ocorre em relações de delegação de poderes, a accountability é classificada em diversos tipos, dos quais apenas alguns ensejam a atuação do Poder Judiciário (Schedler 1999; Manin, Przeworski, e Stokes 1999). Esse é especialmente o caso da chamada accountability legal, definida como a aplicação (enforcement) de punições previstas em lei por agentes estatais investidos de tais poderes a agentes que adotaram condutas ilegais no exercício de suas atribuições (Karklins 2005; Bovens 2007; Lindberg 2013; Da Ros 2019).11 Embora não se limite a ela, a imposição de sanções criminais pelo Poder Judiciário a agentes tidos como corruptos enquadra-se exatamente nessa definição.12
Ainda que haja clareza conceitual quanto ao fenômeno estudado, a literatura vem sendo tímida na formulação de hipóteses explicativas sobre a variação nos resultados dos processos de accountability legal. De pronto, é importante frisar que inexiste na literatura associação positiva entre as taxas de condenação criminal por corrupção por um lado, e a incidência de corrupção propriamente dita, por outro. Na realidade, “a higher level of convictions per capita often is less an indicator of high corruption than of a more determined fight against it” (Karklins 2005, 134). A quantidade de condenações penais ou civis em casos de corrupção, portanto, não é um indicador seguro capaz de mensurar o nível de corrupção existente em uma determinada comunidade política. Antes, ela reflete a performance das instituições judiciais nesse particular – abrangendo o funcionamento de órgãos de monitoramento, investigação, persecução e julgamento.13
Consequentemente, ao analisar decisões judiciais que condenam ou não políticos por práticas corruptas, este artigo se insere fundamentalmente no debate acadêmico sobre comportamento judicial. Muito examinado em supremas cortes em casos de controle de constitucionalidade de leis, esse consiste em buscar explicar quais fatores – políticos, sociais, institucionais etc. – influenciam as decisões tomadas pelos juízes no exercício de suas atribuições (Ingram 2015; Da Ros 2017; Da Ros e Ingram 2018, 2019; Hilbink e Ingram 2019; Volcansek 2019). Há inclusive um vasto conjunto de teorias consolidadas na literatura, incluindo os modelos atitudinal, estratégico e institucional, entre diversos outros, todos derivados do exame de processos decisórios em casos de judicial review.14
A formulação de teorias voltadas a explicar como magistrados decidem casos de corrupção, contudo, ainda é incipiente. Por um lado, a adaptação de teorias já existentes em outras áreas de comportamento judicial a esses casos praticamente inexiste. Por outro, teorias próprias de comportamento judicial em casos de corrupção são escassas. Há ainda um viés metodológico nas pesquisas sobre o tema que dificulta tanto a formulação de novas teorias como o teste das já existentes: nos estudos dedicados à atuação do poder judiciário em casos de corrupção, prevalecem as abordagens lastreadas no uso de dados ecológicos. Essas adotam como unidades de análise coletividades inteiras, como países, estados, escândalos de corrupção ou investigações de grande visibilidade, entre outros, valendo-se de medidas agregadas destas unidades de análise. Elas diferem de abordagens baseadas em dados individuais, em que cada ação ou decisão (judicial, no caso) constitui a unidade mínima de análise (King 1997; Macintyre e Ellaway 2000).
Neste universo, o tipo mais frequente de abordagem ecológica é o estudo de caso longitudinal. Na maior parte das vezes, essas pesquisas buscam explicar por que o Poder Judiciário de um determinado país passou a condenar mais ou menos autoridades por corrupção ao longo do tempo. Geralmente motivados pela ocorrência de grandes investigações que impactam profundamente o sistema político, o esforço destas pesquisas é compreender por que os magistrados passaram a se tornar mais assertivos no enfrentamento à corrupção do que vinham sendo antes. Exemplificam essa abordagem estudos de casos exemplares, como as investigações Mani pulite na Itália da década de 1990 e o seu refluxo na década seguinte (Della Porta 2001; Della Porta e Vannucci 2007; Vannucci 2009) e o julgamento de vários escândalos de corrupção na França também ao longo da década de 1990 (Roussel 1998; Garraud 2001; Adut 2004), entre outros.15
Embora menos frequentes e também baseados em uma perspectiva ecológica, há também estudos comparativos. No caso, o esforço é compreender por que alguns países ou estados produziram mais resultados de accountability legal – i.e., condenações, persecuções, investigações – do que outros. Em comum, essas pesquisas se valem de um número reduzido de casos, dedicando-se a comparar países na Europa Ocidental (Sousa 2002; Maravall 2003; Sims 2011), América Latina (Da Ros 2014; Ang 2017; González-Ocantos e Hidalgo 2019) e Leste Europeu (Popova e Post 2018), entre outros.
Uma das consequências do predomínio das abordagens ecológicas nas pesquisas sobre a atuação do Poder Judiciário em casos de corrupção – tanto dos estudos de caso como das pesquisas comparativas envolvendo poucos casos – é que prevalece o emprego de métodos qualitativos nas análises. Estudos quantitativos, por consequência, são menos comuns. Isso ocorre porque abordagens ecológicas frequentemente reduzem o número de unidades de análise, tratando os dados disponíveis de forma agregada. Quer dizer, ao se preocupar em explicar os números totais de condenação de autoridades em um dado país ou período histórico, essas pesquisas deixam de indagar sobre os fatores que afetam cada uma das decisões judiciais de condenar ou não autoridades nos casos examinados.
Em vista disso, propomos desagregar os dados ao máximo, adotando cada uma das decisões judiciais individualizadas por réu como unidades de análise da pesquisa. Assim, subscrevemos a uma perspectiva “individual” do problema de pesquisa proposto, abrindo espaço para o uso de métodos quantitativos e de técnicas multivariadas, de forma a complementar as análises já existentes. Para isso, desenvolvemos as hipóteses abaixo, que se originam tanto de adaptações de hipóteses oriundas de pesquisas ecológicas sobre o tema como de estudos sobre comportamento judicial em casos de judicial review, área em que predominam abordagens individuais.16 Elas podem ser classificadas em três grupos, relativas: i) ao perfil do réu; ii) às características dos municípios; e iii) ao funcionamento do sistema de justiça criminal.
O primeiro grupo busca explicar a decisão judicial de condenar ou não políticos denunciados a partir do seu partido político e condição socioeconômica. Neste particular, há duas hipóteses. A primeira sugere que os magistrados decidem de forma distinta em função do partido político dos réus, de tal forma que políticos filiados a alguns partidos seriam tratados com maior severidade do que os políticos filiados a outros. Essa hipótese pensa no comportamento judicial como uma extensão da competição político-partidária e encontra suporte em pesquisas a respeito de estados mexicanos (Ang 2017), países do Leste Europeu (Popova e Post 2018) e promotores federais nos Estados Unidos (Gordon 2009), por exemplo. Uma variante dessa hipótese diz respeito não necessariamente aos partidos políticos dos réus, mais à ideologia por eles expressada. Assim, testamos também não apenas os partidos políticos individualmente dos acusados, mas também eles agrupados de acordo com o espectro entre direta e esquerda adotado para os partidos do Brasil (Rodrigues 2002). Esta hipótese é, com efeito, a adaptação mais imediata do modelo atitudinal a julgamentos de casos de corrupção (e.g. Segal e Spaeth 2002). A segunda hipótese desse grupo busca examinar se há viés nos julgamentos em função da condição socioeconômica dos réus, algo comumente analisado na sociologia do sistema de justiça criminal, no Brasil e no mundo (Adorno 1995; Wacquant 2009). No caso, adotamos como proxy a ocupação ou profissão dos réus prévia ao ingresso na carreira política. Essas, ao seu turno, como são mais de quarenta nos casos analisados, foram classificadas em três níveis a partir do estudo de Codato, Costa e Massimo (2014), relativos à disposição para o exercício da atividade política com base nas características das diferentes ocupações prévias, incluindo seu status, afinidade e disponibilidade.17
O segundo grupo de hipóteses cumpre função dupla. Por um lado, ele introduz uma dimensão estratégica na tomada de decisão dos julgadores (Epstein e Knight 1998). O argumento teórico subjacente é que há um custo envolvido na tomada de decisão que aplica a legislação existente, especialmente impondo sanções, e que esse custo varia de caso para caso (Holland 2015, 2016). Os principais indicadores desse custo são relativos à população e ao nível de riqueza dos municípios administrados pelos prefeitos. Isto é, magistrados enfrentariam menor custo político para condenar prefeitos de municípios mais pobres e de menor porte, aumentando assim a severidade do tratamento concedido a esses réus. Inversamente, o custo de condenar prefeitos de municípios mais ricos e mais populosos seria maior, reduzindo as chances de tratamento rigoroso a esses políticos. Por outro lado, esse segundo grupo de hipóteses introduz variáveis associadas na literatura à própria incidência de corrupção no setor público (e.g. Treisman 2000, 2007, 2015; Ross 2015). Essas incluem os níveis de desigualdade e de desenvolvimento humano dos municípios, o seu tempo de existência e dependência em relação a royalties, e sua localização – em função de padrões de aglomeração territorial de práticas corruptas – além do próprio nível de riqueza do município.
Finalmente, o terceiro grupo de variáveis aborda o processamento dos casos pelas instituições judiciais. Em primeiro lugar, isso inclui o tipo de crime pelo qual o acusado foi denunciado. Uma vez que prefeitos gozaram, ao longo de todo o tempo coberto nessa pesquisa, de foro por prerrogativa de função para quaisquer crimes cometidos durante os seus mandatos, fossem eles relacionados aos cargos ocupados ou não, há crimes – e.g., ambientais, contra a honra etc. – que não possuem relação com corrupção. Isso, por sua vez, permite analisar se o tratamento judicial difere em função dos crimes denunciados, sejam eles relacionados à corrupção ou não (Della Porta 2001; Sousa 2002). Nesse grupo de hipóteses há também o número de réus denunciados, além do gestor municipal. Essa variável captura se há variação no tratamento conferido pelos magistrados a ilegalidades individuais ou coletivas, conforme sugerido na literatura para os casos de criminalidade organizada (Arantes 2018). Ainda nesse grupo de variáveis, há o perfil de carreira do desembargador relator do caso, dada a regra do chamado “quinto constitucional”, por meio da qual um quinto dos membros dos Tribunais de Justiça dos estados são oriundos não de carreira na magistratura, mas alternadamente, de indicação do Ministério Público estadual e da advocacia privada, por meio da seccional estadual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Pesquisas sugerem que os magistrados oriundos do Ministério Público tendem a ser mais severos no tratamento dos réus do que os juízes de carreira, e que esses seriam mais rigorosos do que os oriundos da advocacia privada, que seriam os menos severos em seus julgamentos (Castro 2018; Trombini 2018). Por fim, nesse grupo de variáveis, buscamos examinar o impacto da quantidade e da qualidade da prova produzida nos casos. Adotamos como proxies o número de volumes físicos do processo (cada volume soma aproximadamente duzentas páginas), o tempo de tramitação (necessário para produzir mais provas), e a presença de relatórios de auditoria realizados ou não nos municípios pelo Tribunal de Contas do estado do Rio Grande do Sul (TCERS), sugeridos como provas robustas na pesquisa qualitativa dedicada ao objeto (Da Ros 2014; Bento 2017). Todas hipóteses estão descritas na tabela 1.
O teste das hipóteses da tabela 1 foi realizado a partir de banco de dados compilado a partir do sítio eletrônico do TJRS, que permite a consulta integral a praticamente todos os casos julgados pela 4CC do Tribunal desde a sua criação. Também conhecida como “Câmara de Prefeitos”, a 4CC foi estabelecida por meio da Lei Estadual n. 9.662, de 11 de maio de 1992, e possui competência originária para processar e julgar infrações penais atribuídas a prefeitos municipais e, em sede recursal, para julgar casos envolvendo ex-prefeitos, dentre outras atribuições correlatas. Embora criada por lei, a competência da 4CC é definida no regimento interno do TJRS e foi pouco modificada desde sua criação (Bento 2017; Da Ros 2014).
Ao longo desses mais de vinte anos de existência, a 4CC já julgou e condenou, em sede originária e recursal, expressivo número de prefeitos e ex-prefeitos municipais. De acordo com nosso levantamento, que cobre o período que se estende desde a criação da Câmara até o final de 2016, foram 1.716 casos julgados e 315 condenações realizadas, predominantemente em casos de crimes contra a administração pública (art. 312 a 327 do Código Penal), crimes licitatórios (art. 89 a 99 da Lei n. 8.666/93) e crimes de responsabilidade de prefeitos municipais (definidos no Decreto-Lei n. 201/67) – isto é, predominantemente em casos relacionados ao conceito de corrupção política, ou no setor público (Philp 1997; Warren 2004). Esses perfazem setenta por cento de nossa amostra. Em menor medida, os casos julgados pela 4CC englobam crimes ambientais (art. 29 a 69-A da Lei n. 9.605/98) e o crime de não atendimento de requerimentos de informação solicitados pelo Ministério Público no curso de inquéritos civis (art. 10 da Lei n. 7.347/85), entre outros (e.g., crimes contra a honra, cf. art. 138 a 145 do Código Penal).
Por conta de sua atuação, que contrastaria com o diagnóstico de impunidade legal em relação a autoridades políticas no Brasil, a 4CC recebeu atenção de diversos veículos de mídia, tanto em âmbito local como nacional, especialmente ao longo das décadas de 1990 e 2000.18 De igual forma, já serviu de inspiração para iniciativas de reforma em Tribunais de Justiça de vários outros estados do Brasil e mesmo em âmbito federal.19 Em decorrência de sua relevância e longevidade, bem como da possibilidade de realização de consultas completas em seu sítio eletrônico, a 4CC apresentou-se como um objeto de estudo promissor para testar as hipóteses aptas a responder à questão teórica proposta no início deste artigo.
Para tanto, o banco de dados utilizado neste artigo foi inicialmente coletado por Bento (2017) e, posteriormente, complementado por Londero (2018). Ele compila todos os processos criminais – tanto ações penais originárias como apelações em sede recursal – obtidos em consulta ao sistema on-line de jurisprudência do TJRS julgados pela 4CC em que constava ao menos um prefeito ou ex-prefeito municipal como réu no período entre 01 de janeiro de 1992 e 31 de dezembro de 2016. Realizada a busca, foram incluídos no banco de dados todas as informações de interesse da pesquisa oriundas da leitura dos acórdãos de julgamento ou das decisões terminativas (e.g., decisões de não recebimento de denúncia) que estavam disponíveis nos documentos.20 Essas, por sua vez, foram desagregadas nas variáveis de interesse da pesquisa, definidas a partir das hipóteses apresentadas na seção anterior.
Fundamentalmente, nosso objetivo consiste em saber quais fatores conduzem à condenação ou não dos prefeitos e ex-prefeitos acusados, por um lado, e a severidade das penas aplicadas, por outro. Desta forma, a variável dependente foi medida de três formas. A primeira é por meio de uma variável dicotômica (dummy) que captura a existência (=1) ou a ausência (=0) de condenação do prefeito ou ex-prefeito no caso julgado. Por ausência de condenação dos prefeitos consideramos não só os casos de absolvição, mas também de não recebimento da denúncia, de extinção do processo e de declinação da competência para os poderes judiciários federal ou eleitoral. A segunda forma é idêntica à anterior, mas inclui no rol de não condenação (=0) também casos em que a condenação ocorreu, mas foi declarada a prescrição. A terceira forma de mensuração da variável dependente é contínua e mede o tempo de pena atribuído aos réus condenados, em meses. Essa oscila entre um (1) e 160 (cento e sessenta), casos dos prefeitos que receberam a menor e a maior pena atribuída pela 4CC no período estudado, respectivamente.
Quanto às variáveis independentes, várias estavam disponíveis na própria decisão da 4CC. Essas incluem o tipo de crime, o tempo de tramitação, o número de volumes e de réus, e a referência à auditoria do TCERS, integrantes do terceiro grupo de hipóteses. Para as demais variáveis, foram utilizadas consultas a bases públicas de informação, todas on-line. Esse foi o caso dos perfis dos desembargadores relatores (consultados no sítio eletrônico do TJRS), dos partidos políticos dos prefeitos municipais (consultados no sítio eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral, que reúne informações sobre os então candidatos), das ideologias dos partidos (classificadas a partir de Rodrigues [2002]), da população, tempo de existência, localização, nível de riqueza, de desigualdade de renda e de desenvolvimento humano dos municípios (obtidos em consulta aos sítios eletrônicos da Fundação de economia e estatística do estado do Rio Grande do Sul e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), e do recebimento de royalties pelos municípios (obtido a partir de consulta no sítio eletrônico da Agência Nacional do Petróleo, Gás e Biocombustíveis). O quadro 1 complementa a tabela 1 e detalha tanto os nomes das variáveis como a sua operacionalização.
As hipóteses acima foram testadas por meio de técnicas multivariadas. O teste relativo à incidência ou não condenação dos acusados foi realizado por meio de regressão logística múltipla e o teste relativo ao tamanho das penas aplicadas foi feito por meio de regressão linear de mínimos quadrados ordinários. De forma a evitar a multicolinearidade entre as variáveis independentes, elaboramos uma matriz de risco com todas as variáveis independentes e adotamos coeficientes de correlação de Pearson superiores a 0,9 como critério para exclusão de variáveis, indicando alta correlação.21 A partir disso, dada a alta correlação entre variáveis “partido político de centro” e “MDB” (=0,908), as variáveis relativas ao partido político do réu e sua ideologia foram incluídas em modelos distintos, discutidos a seguir. As demais variáveis não apresentaram correlação acima dos níveis aceitáveis. De igual forma, para fins de operacionalização, os modelos multivariados omitem ao menos uma variável de cada conjunto de variáveis dummy, de modo a evitar multicolinearidade perfeita. Ainda, levando em consideração as excepcionalidades de se processar os casos como instância originária (quando as ações são julgadas pela 4CC quando os prefeitos ainda estão no exercício dos cargos) ou instância recursal (quando as ações são julgadas pela 4CC quando os prefeitos não ocupam mais os cargos e são, portanto, ex-prefeitos), desenvolvemos modelos para cada um desses tipos de processos. Dito isso, os modelos utilizados e suas respectivas variáveis dependentes estão na tabela 2.
Antes de apresentar os resultados dos testes multivariados, discutimos os dados descritivos coletados, que se encontram sumarizados na tabela 3. Dentre as variáveis dependentes, do total de 1.716 processos, em 1.495 deles (87,1%) a 4CC atuou como instância originária. Nas outras 221 ações (12,9%), sua atuação se deu como instância recursal. Nestes casos, a 4CC iniciou o processamento dos casos quando os prefeitos ainda estavam nos cargos, mas esses os deixaram ao longo do processo por diferentes motivos, acarretando o envio das ações para a primeira instância, onde foram inicialmente julgadas. A 4CC voltou a decidir esses casos quando eles foram objetos de recursos, e é essa decisão recursal que incluímos na amostra. Em relação às condenações, o levantamento indica sua ocorrência em 315 casos (18,3%), 212 das quais em instância originária e 103 em instância recursal. Das 315 condenações, a 4CC declarou 79 delas prescritas. Com efeito, há 236 condenações sem declaração de prescrição (13,7%). Quanto às penas impostas, a média é de 27 meses para os condenados.
Em relação às variáveis independentes, os dados indicam que os dois principais partidos políticos derivados do bipartidarismo imposto pelo regime militar (MDB e PP) são os principais alvos das ações – equivalentes a 27% e 26% dos casos, respectivamente – possivelmente em decorrência do fato desses dois partidos ocuparem a maior parte das prefeituras do Estado no período. Prefeitos filiados a partidos políticos de direita figuram ligeiramente à frente dos prefeitos de centro e de esquerda como réus das ações, totalizando 38% dos casos. Há ainda marcada prevalência, dentre os prefeitos acusados, dos ligados a ocupações de baixa disposição para a atividade política (54%). Quanto às características dos municípios dos prefeitos acusados, predominam micromunicípios (com população inferior a 10 mil habitantes) e municípios pequenos (entre 10 mil e 50 mil habitantes), perfazendo 42% e 38% da amostra, respectivamente. Em conjunto com os dados sobre as ocupações dos prefeitos, esses dados sugerem que os alvos mais frequentes das ações são prefeitos de menor escolaridade situados em municípios interioranos. Mais uma vez, isso é coerente às características da política local brasileira, em que os municípios pequenos, com pouco pessoal qualificado, existem em quantidade muito superior aos municípios mais populosos (Marenco dos Santos 2013, 2017). Predominam nos julgamentos também os prefeitos de municípios das regiões Noroeste e Metropolitana do Estado – equivalentes a 34% e 29% dos casos, respectivamente. Isso possivelmente decorre do fato dessas duas regiões congregarem a maioria dos municípios do Estado – 216 e 98 dos 497 municípios, respectivamente. Por fim, em relação às características do funcionamento das instituições do sistema de justiça, prevalecem os casos de crimes de corrupção (70%) relatados por desembargadores que fizeram carreira no próprio Poder Judiciário (64%) ou Ministério Público (34%). A baixa média do número de réus (1,82) sugere que a maioria das ações é proposta somente contra o prefeito e um ou outro indivíduo, embora haja casos com alto número de réus (atingindo 14, no máximo). Quanto aos proxies para as provas, os casos possuem uma média de 3,64 volumes (equivalentes a 728 páginas de documentos). Há, contudo, muita variação, capturada pelo desvio padrão superior à média, com um caso, por exemplo, atingindo 34 volumes (ou aproximadamente 6.800 páginas de documentos). Há muita variação também no tempo de tramitação dos casos, com uma média de quase 23 meses, mas com casos perfazendo mais de 163 meses (13 anos). A referência à auditoria do TCERS realizada no município ocorreu em 28% dos casos examinados.
Passando à análise multivariada, discutimos primeiro os resultados dos modelos 1A a 1F, que avaliam o impacto das variáveis explicativas sobre a chance de condenação de prefeitos e ex-prefeitos pela 4CC. A tabela 4 detalha esses resultados. Em geral, os modelos testados apresentam elevada capacidade preditiva, mas com resultados distintos entre si. Por um lado, os modelos gerais (1A e 1B) e os relativos aos casos julgados em instância originária (1C e 1D) exibem um conjunto expressivo de variáveis significativas estatisticamente. Por outro, os dois últimos modelos (1E e 1F) apresentam pouquíssimas variáveis estatisticamente significativas, o que pode decorrer do menor número de casos julgados apenas como instância recursal na corte.
Com efeito, apenas uma variável resultou estatisticamente significativa em todos os modelos testados: a presença de relatório de auditoria do TCERS nos municípios, que incrementa as chances de condenação dos prefeitos. Outras variáveis apresentam impacto semelhante a essa. O número de volumes do processo, que está associado ao incremento das chances de condenação dos acusados, é significativo em cinco modelos. O tempo de duração dos casos, também associado ao aumento das chances de condenação dos réus, é significativo em quatro modelos. Ainda, outras variáveis aparecem significativas apenas nos modelos gerais (1A e 1B). Esse é o caso do nível de desenvolvimento econômico (associada positivamente às chances de condenação, em contrariedade à hipótese inicial) e ao perfil do relator do caso, em que desembargadores oriundos da advocacia reduzem as chances de condenação dos réus, comparativamente a desembargadores oriundos da própria magistratura, os quais apresentam comportamento estatisticamente indistinguível de relatores com carreira no Ministério Público. Algumas variáveis são significativas somente nos modelos dos casos julgados em instância originária (1C e 1D). Aqui se incluem todas as variáveis associadas à ocupação dos réus. No caso, prefeitos com média disposição para atividade política possuem a maior chance de condenação, seguidos por prefeitos com baixa disposição para atividade política e, finalmente, por prefeitos com alta disposição para política. Ainda em relação a esses modelos, os resultados indicam que o tempo de existência do município e o número de réus estão ambos negativamente associados às chances de condenação. A variável relativa ao tamanho dos municípios resultou estatisticamente significativa apenas para os de pequeno porte, que possuem suas chances de condenação aumentada em relação aos municípios grandes em dois tipos de modelos distintos, um geral (1B) e outro relativo apenas aos casos julgados como instância recursal (1E). De forma menos promissora, outras variáveis resultaram significativas em apenas um dos seis modelos testados. Essas são o tipo de crime (apenas crimes de corrupção no modelo 1A, aumentando as chances de condenação), e os partidos dos prefeitos (DEM e PDT no modelo 1E, reduzindo as chances de condenação). Por último, algumas variáveis não resultaram estatisticamente significativas em nenhum dos modelos testados. Esse é o caso das variáveis: ideologia dos partidos dos prefeitos, localização dos municípios, nível de desigualdade de renda e de desenvolvimento humano dos municípios e recebimento de royalties.
Em geral, os resultados sugerem que variáveis associadas ao funcionamento das instituições do sistema de justiça – e particularmente aquelas relacionadas à produção de prova, tais como o número de volumes e tempo de tramitação dos processos, e a presença de relatórios de auditoria do Tribunal de Contas estadual – aumentam as chances de condenação dos prefeitos e ex-prefeitos no Rio Grande do Sul. Outras variáveis, contudo, são menos promissoras para explicar o comportamento decisório dos membros da 4CC. Sinteticamente, a tabela 5 apresenta as razões das chances de condenação de prefeitos, reunindo apenas as variáveis explicativas estatisticamente significativas. Nela, verifica-se a magnitude do impacto dessas variáveis sobre as chances de condenação dos gestores municipais. Por exemplo, a referência à auditoria realizada pelo TCERS incrementa as chances de condenação dos prefeitos entre 1,93 e 2,77 vezes, isto é, entre 93% e 177%. Cada novo volume de 200 páginas de cada um dos processos, por sua vez, aumenta as chances de condenação dos prefeitos entre 1,038 e 1,106 vezes, isto é, entre 3,8% e 10,6%, com exceção do Modelo 1F, em que essa variável não pode ser considerada diferente de zero.
Em complemento à análise anterior, a tabela 6 altera a forma de mensuração da variável dependente, classificando como positivos (=1) apenas os casos em que ocorreu condenação sem a declaração de prescrição e como negativos (=0) todos os demais. Isso reduz o total de condenações de 315 para 236 e afeta parcialmente as conclusões acima. Particularmente, ao introduzir essa nova maneira de medir a incidência de condenações, um conjunto relativamente menor de variáveis se mostra estatisticamente significativo e nenhuma delas se apresenta assim em todos os modelos testados. Tal como no anterior, nos casos julgados em instância recursal há um conjunto ainda menor de variáveis aptas a explicar os resultados: apenas uma variável, relativa aos municípios de pequeno porte, aparece estatisticamente significativa nos modelos 2E e 2F, e com nível de significância igual a 0,10. Em sentido semelhante à análise anterior, e ainda que nenhuma possa ser apontada como significativa em todos os modelos, as variáveis mais promissoras são as relativas ao funcionamento das instituições do sistema de justiça e, dentre essas, aquelas relacionadas à produção de prova – número de volumes, tempo de tramitação e referência à auditoria do TCERS realizada no município. Essas figuram estaticamente significativas em quatro dos seis modelos testados (2A a 2D). Em reforço a esse grupo de hipóteses, também nesses modelos o número de réus e a origem do desembargador relator do caso no Ministério Público resultaram estatisticamente significativas em dois modelos (2C e 2D), ainda que com significância estatística apenas ao nível de 0,10. Diferentemente dos anteriores, nesses modelos algumas variáveis relativas ao partido político dos prefeitos e à sua ideologia resultaram significativas com maior frequência, ainda que ao nível de 0,10. A variável relacionada ao Partido dos Trabalhadores (PT) aparece associada à redução das chances de ocorrer condenação sem a declaração de prescrição em dois dos três modelos possíveis para essa variável (2A e 2C). Já os prefeitos de partidos de direita apresentaram maiores chances de condenação em dois dos três modelos possíveis (1B e 1D). Em relação às características dos municípios, o tempo de existência dos municípios e a sua localização na região Sudeste do Estado figuram estatisticamente significativas em dois modelos cada e ao nível de 0,10. Por fim, outras variáveis resultaram significativas em apenas um modelo testado, praticamente todas ao nível de 0,10, conferindo reduzida confiabilidade à significância teórica das hipóteses subjacentes a essas variáveis.
A exemplo da análise anterior, a tabela 7 sintetiza o resultado das variáveis estatisticamente significativas e apresenta a sua razão das chances, permitindo auferir a magnitude de seu impacto sobre a variável dependente. Embora significativas em menor número de modelos, o impacto das variáveis relativas ao funcionamento das instituições do sistema de justiça exibe magnitude semelhante aos modelos anteriores. Possivelmente, as variáveis mais interessantes que se diferem nesses modelos daqueles que constam nas tabelas 4 e 5 são as relacionadas aos partidos políticos dos prefeitos e à sua ideologia. Com efeito, ceteris paribus, os resultados sugerem que prefeitos do PT possuem entre 57% e 67% de redução de chances de serem condenados sem declaração de prescrição pela 4CC comparativamente à categoria omissa (PSDB), em média. Prefeitos de partidos de direita, por sua vez, apresentaram entre 33% e 53% mais chances de serem condenados sem declaração de prescrição pela 4CC comparativamente à categoria omissa (partidos de centro), em média.22 Vale lembrar, entretanto, que esses resultados não se mantêm para todos modelos testados, sendo indistinguível de zero o impacto dessas variável no caso do julgamento de ex-prefeitos em sede recursal (modelos 2E e 2F).
Finalmente, testamos o comportamento decisório da 4CC em relação à dosimetria das penas de detenção e de reclusão. No caso, o modelo quantitativo empregado é linear de mínimos quadrados ordinários e avalia o efeito das variáveis explicativas sobre o tempo de pena aplicada aos prefeitos e aos ex-prefeitos condenados. Novamente, o comportamento da 4CC em casos decididos como instância recursal difere bastante dos demais, havendo pouquíssimas variáveis estatisticamente significativas. Nos modelos 3E e 3F, apenas as variáveis relativas ao desembargador relator com origem na advocacia e ao nível de desigualdade social resultaram estatisticamente significativas em ambos. A primeira está associada à redução da pena de 42 a 44 meses, e a segunda está associada ao aumento da pena, de modo que incremento de 0,1 no índice de Gini no julgamento de ex-prefeitos está associado a um incremento de 17,5 a 18,6 meses de pena. Com efeito, especialmente por conta dos resultados dos modelos 3E e 3F, inexiste variável que seja estatisticamente significativa em todos os seis modelos testados.
Nos demais modelos (3A a 3D), as variáveis mais promissoras para explicar as penas impostas aos prefeitos seguem sendo as relacionadas à produção de prova. Duas variáveis resultaram estatisticamente significativas nesses modelos, o número de réus e o número de volumes do processo. Mantidas as demais variáveis constantes, cada réu a mais na ação incrementa, em média, entre 1,32 e 2,75 meses a pena imposta aos prefeitos, e cada volume de 200 páginas acrescido ao processo incrementa, em média, de 1,36 a 1,60 meses a pena imposta aos prefeitos. Há uma diferença saliente no impacto das variáveis relativas à produção de prova entre esses quatro modelos e os anteriores. Ao passo que a presença de relatórios de auditoria do TCERS figurou significativa para a decisão da 4CC condenar ou não os prefeitos, ela não parece sê-lo para definir a sua pena, tendo em vista sua insignificância estatística nos modelos 3A a 3F. Outra variável promissora, contudo, não figurava nos modelos anteriores. É o caso do Índice de Desenvolvimento Humano (IDHM), que resultou estatisticamente significativo em três dos seis modelos (3A, 3C e 3D), incluindo os dois relativos a casos de julgamentos em instância originária. Considerando que esse oscila entre 0 e 1, cada incremento de 0,1 no IDHM dos municípios aumenta a pena de 7,17 a 11,47 meses as penas dos prefeitos, em média. Isso sugere que a 4CC é mais rigorosa com prefeitos em exercício de mandato em municípios mais desenvolvidos, comparativamente aos demais.
De forma semelhante aos modelos sobre a chance de condenação sem declaração de prescrição, os resultados sugerem que a 4CC foi menos severa na imposição das penas a prefeitos de alguns partidos nos casos julgados em instância originária (cf. modelo 3C). Este é o caso não apenas do PT, que figura negativamente associado a penas mais longas também no modelo 3A, mas igualmente de MDB, PP e PSB. Embora essas variáveis sejam estatisticamente significativas apenas em um ou dois modelos, e apenas ao nível de 0,10, elas não parecem propriamente promissoras para explicar a atuação da Câmara, mas tampouco podem ser inteiramente descartadas. Ainda, crimes de corrupção parecem estar associados a incrementos nas penas nos modelos 3A e 3B, aumentando-as entre 8,2 e 9,4 meses. Por fim, variáveis estatisticamente significativas em apenas um modelo incluem os demais partidos (associados a maiores penas no modelo 3A) e municípios pequenos e médios que (positivamente associados ao tamanho das penas no modelo 3F). Em tempo, variáveis relativas à localização dos municípios, ao recebimento de royalties, à ideologia dos partidos dos prefeitos, à ocupação dos prefeitos e ao tempo de tramitação dos casos não resultaram estatisticamente significativas em nenhum dos modelos testados para a severidade das penas impostas pela 4CC.
O debate sobre as razões que fazem com que membros do Poder Judiciário sejam mais ou menos rigorosos com agentes políticos acusados de corrupção tem ocupado lugar proeminente na agenda pública brasileira, particularmente, desde princípios da década de 2010. Alçada ao centro das atenções por eventos grandiloquentes como a operação Lava Jato e o julgamento do Mensalão, a discussão sobre o tema é quase sempre acalorada e tingida por sensibilidades partidárias e corporativas que mais ofuscam do que iluminam o entendimento rigoroso do tema. Dada a sua complexidade e dificuldade de acesso a informações confiáveis, isso é o oposto que um assunto dessa sensibilidade e magnitude necessita para ser adequadamente descrito, compreendido e explicado.
Longe de almejar exaurir o tema, nosso objetivo neste artigo foi contribuir para o seu debate a partir da análise de um caso ainda pouco examinado, mas que foi pioneiro no julgamento e na condenação de autoridades políticas no Brasil desde 1988: a 4.ᵃ Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, apelidada de “Câmara dos Prefeitos” (Da Ros 2014; Bento 2017). Trata-se de um objeto de estudo promissor para discutir o tema por diversas razões. Sua longevidade e facilidade de acesso a dados permitem o teste de um conjunto de hipóteses que ainda estão dispersas na literatura.
Para tanto, adotamos uma estratégia analítica não usual, mas também promissora: o exame de dados individualizados, adotando cada ação proposta contra cada prefeito ou ex-prefeito municipal como unidade de análise. Com isso, diferimos da abordagem presente na maior parte dos estudos existentes sobre a atuação do Poder Judiciário em casos de corrupção, que é preponderantemente qualitativa e ecológica, isto é, voltada a entender por que um número total de processos ou condenações foi gerado por uma coletividade (estado, país etc.). Nossa abordagem permitiu não somente sermos detalhados no exame de cada um desses casos, mas também utilizarmos técnicas multivariadas de pesquisa que permitem o teste conjunto das hipóteses. Com efeito, examinando mais de 1.700 decisões da 4CC de condenar ou não prefeitos e ex-prefeitos ao longo de mais de vinte anos, bem como as penas impostas aos condenados, uma série de conclusões emergiram.
Em geral, as hipóteses relacionadas ao funcionamento das instituições do sistema de justiça parecem ser mais promissoras para explicar o comportamento dos julgadores de condenar ou não os prefeitos acusados, bem como de impor penas mais elevadas. Isso é especialmente verdadeiro para as variáveis relativas à produção de prova, seja em juízo (número de volumes e de réus do processo, e tempo de tramitação), seja em cooperação com outras instituições (relatórios de auditoria do TCERS). Em conjunto ou isoladamente, essas variáveis resultaram estatisticamente significativas na grande maioria dos modelos testados. Essas conclusões reforçam os achados da literatura brasileira de acordo com os quais melhorias na qualidade das provas produzidas e incrementos na coordenação entre instituições conduzem a resultados mais assertivos de accountability legal (Taylor e Buranelli 2007; Taylor 2011; Arantes 2011; Da Ros 2014).
Por outro lado, hipóteses relacionadas ao perfil dos acusados e às características dos municípios parecem ser menos promissoras para explicar o comportamento da 4CC. Embora essas apresentem significância estatística em alguns modelos, isso não ocorre em outros. Ao menos em relação a esse objeto de estudo, o reduzido impacto de variáveis tipicamente associadas tanto à política (e.g., partido e ideologia dos prefeitos) como ao custo da tomada de decisão dos julgadores (e.g., porte e nível de riqueza dos municípios) reforçam a interpretação frequente da literatura de acordo com a qual o Poder Judiciário brasileiro goza de elevado grau de independência (Arantes 1997; Taylor 2008).
Os resultados também sugerem que há diferenças importantes no comportamento dos magistrados ao julgar prefeitos e ex-prefeitos, por um lado, e nas decisões de condenar e de impor penas, por outro. Quer dizer, os motivos que conduzem à decisão de condenar prefeitos ou ex-prefeitos, ou de condená-los sem declarar prescrição, ou ainda de aplicar penas mais ou menos severas não parecem ser os mesmos. Por exemplo, ainda que a presença de relatório de auditoria do TCERS esteja significativamente associada ao incremento das chances de condenação de prefeitos e de ex-prefeitos, ela não assegura a imposição de penas elevadas ou mesmo que os processos não prescrevam. Isso sugere que os relatórios do TCERS são reconhecidos pelos magistrados como provas robustas da ocorrência de crimes, mas que eles se apoiam em outros tipos de provas para impor penas mais severas e para não declarar os processos prescritos – e, para isso, se amparam em processos mais volumosos, com documentação mais farta e maior número de réus. De certa forma, isso é esperado na literatura sobre políticas públicas anticorrupção, dado que as diferentes fases desse processo – monitoramento, investigação, denúncia e decisão – são executadas por instituições com capacidades institucionais distintas (Taylor e Buranelli 2007; Machado e Paschoal 2016; Da Ros 2019). Um exemplo ainda mais agudo dessas diferenças são as decisões em casos de ex-prefeitos, que parecem muito mais difíceis de prever dos que as decisões em casos de prefeitos no exercício do cargo. Em todos os modelos de casos julgados em instância recursal, há pouquíssimas variáveis significativas e nenhuma delas se repete nos modelos testados, sugerindo que essa é uma classe de casos que merece maior atenção no futuro.
Neste sentido, os achados deste estudo podem servir como pontos de partida para ouras análises sobre o tema. Em particular, sugerimos que novas pesquisas podem se expandir em pelo menos três direções não mutuamente excludentes: (i) adição de novas variáveis independentes; (ii) análise de outros objetos de pesquisa; e (iii) aplicação de técnicas de pesquisa diferentes. Elas se encontram detalhadas abaixo.
No caso de novas variáveis explicativas a serem incorporadas em análises futuras, essas se aplicam a praticamente todos os grupos de variáveis testadas. No caso dos perfis dos réus, elas podem incluir outras medidas do perfil socioeconômico dos réus, incluindo renda, sexo e raça. No plano das características dos municípios, parecem ser importantes variáveis relacionadas aos níveis de competição política e de capacidade administrativa. Essa parece ser particularmente importante por conta da prevalência de irregularidades municipais derivadas de má gestão em relação à corrupção propriamente dita no Brasil (Gehrke 2018). Quanto ao funcionamento das instituições judiciais, essas podem incluir o exame do perfil dos procuradores que propuseram as ações, a atuação de outros órgãos de investigação (e.g. Polícia Civil), a produção de outros tipos de prova nos casos (e.g., número de testemunhas de acusação) e a desagregação dos tipos penais de acordo com o definido na legislação (e.g., corrupção passiva, peculato, dispensa de licitação fora das hipóteses previstas em lei). A ausência dessas variáveis nos modelos testados, ademais, sugere ao menos cautela com relação aos resultados e conclusões dessa pesquisa.
Em relação a novos objetos de pesquisa, eles se desdobram em dois tipos: outras instâncias do Poder Judiciário e outras instituições do processo de accountability legal. O primeiro desdobramento deriva do reconhecimento da própria singularidade da história da 4CC, o que torna pouco confiável a generalização de achados desse estudo para outros tribunais, do Brasil ou mundo. No Brasil, isso serve tanto para outros TJs como para as diferentes instâncias do Poder Judiciário, de juízes de primeiro grau ao Supremo Tribunal Federal. Em todo caso, a pesquisa sugere direções para as quais outras pesquisas podem atentar quanto examinar outras instituições, como inclusive já vem sendo feito por outros pesquisadores (Levcovitz 2014; Madeira e Geliski 2019; Fontoura 2019).23 O segundo desdobramento deriva da incompletude de se examinar apenas o comportamento de integrantes do Poder Judiciário para se compreender os resultados dos processos de accountability legal. Como se sabe, a decisão dos magistrados pela condenação criminal ou não de autoridades políticas requer que os atos julgados sejam primeiramente detectados, investigados e denunciados (Taylor e Buranelli 2007; Da Ros 2014; Costa, Machado e Zackeski 2016; Aranha e Filgueiras 2016). E as decisões que integram estas outras etapas – detecção, investigação e acusação – ocorrem predominantemente em outras instituições, como órgãos de monitoramento, investigação e persecução penal, cada qual merecedor da análise do comportamento dos seus respetivos integrantes para se compreender integralmente os resultados de processos de accountability legal. Quer dizer, cada uma dessas etapas pode estar sujeita a diferentes tipos de viés – em relação ao perfil dos réus, aos custos da tomada de decisão, ao tipo de prova valorizada etc. E, como sugere Ang (2017), mesmo que os membros do Judiciário se comportem de maneira independente, nada assegura que os processos trazidos a ele não apresentem algum tipo de viés, ocorrido nas etapas anteriores.
Por fim, como qualquer outra, nossa abordagem quantitativa possui limitações. Por um lado, ela pode ser complementada por trabalhos de caráter qualitativo, como inclusive já existe a respeito da própria 4CC (Bento 2017; Da Ros 2014). Por outro, o uso de outras técnicas quantitativas encontra-se em aberto para verificar a robustez dos achados. Esses incluem, por exemplo, a clusterização de réus repetitivos, o emprego de erros padrão robustos e o uso de técnicas que analisem séries temporais, entre outros.
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