Resumo: Este artigo apresenta alguns aspectos das teorias de Foucault e Derrida como influentes nas teorias decoloniais e aponta que é possível “complementar” tais teorias com a justificação moral de que carecem. Neste sentido, recupera-se a teoria da redistribuição e do reconhecimento de Nancy Fraser como princípios de justiça social para as teorias decoloniais.
Palavras-chave: Democracia, Justiça social, Justificação moral.
Abstract: This article presents some aspects of Foucault and Derrida’s theories as influential in decolonial theories and points out that it is possible to “complement” such theories with the moral justification they lack. In this sense, Nancy Fraser’s theory of redistribution and recognition as principles of social justice for decolonial theories are recovered.
Keywords: Democracy, Social Justice, Moral Justification.
Resumen: Este artículo presenta algunos aspectos de las teorías de Foucault y Derrida como influyentes en las teorías decoloniales y señala que es posible “complementar” tales teorías con la justificación moral de la que carecen. En este sentido, se recupera la teoría de la redistribución y el reconocimiento de Nancy Fraser como principios de justicia social para las teorías descoloniales.
Palabras clave: Democracia, Justicia social, Justificación moral.
ATUALIDADE POLÍTICA DA TEORIA CRÍTICA
Democracia estancada: crítica da crítica, sujeitos, denúncias e reivindicações em perspectiva
Stalled democracy: criticism of criticism, subjects, denunciations and claims in perspective
Democracia estancada: crítica de críticas, sujetos, denuncias y reclamos en perspectiva
Recepção: 24 Agosto 2021
Aprovação: 21 Novembro 2021
A pandemia do Covid-19 e a emergência de governos de extrema direita em várias regiões do planeta se tornaram provavelmente o novo paradigma político e humano do século 21. Não apenas questões de saúde humana foram tratadas e (des)tratadas, mas a politização da saúde, dos direitos individuais e coletivos, entre outros embates anticientíficos, negacionistas, pós-humanistas e “globalistas” foram colocados em xeque por parcelas insatisfeitas com suas políticas domésticas. A democracia nunca foi tão discutida, questionada e, em certo aspecto, fincada com unhas e dentes frente aos avanços autoritários de políticos despreocupados com o que seriam valores intrínsecos2 da política democrática. Diante da tentativa de retrocessos e do não avanço de políticas públicas, temos um contexto de uma democracia estancada, na qual não se avança em termos de direitos, ao contrário, se recua e segura-se as pontas daquilo que parte da população consegue resistir.
Tal contexto de estancamento da democracia possibilita uma reflexão acerca dos valores que em tese estariam em xeque neste novo contexto. De certa maneira, parece que valores como igualdade e liberdade não seriam mais articulados em termos morais e políticos, e o seu oposto, desigualdade e autoritarismo enquanto fenômenos são denunciados a todo o momento, em parte por novas perspectivas e abordagens teóricas que questionam teorias críticas e normativas liberais que teriam seu “lugar de fala” privilegiado situado no norte global. Teóricos desta região seriam desprovidos de conhecimento, experiência vivida e conteúdo que possibilitaria seu “uso” intelectual, sob pena de se estar excluindo outros não ouvidos do debate científico e moral até então.
Se por um lado, teorias liberais e comunitaristas que as criticam estariam situadas em um plano privilegiado, visto seus autores serem em sua maioria europeus ou americanos do Norte, por outro lado, teorias decoloniais e feministas entre outras, apontam para o outro excluído do debate no plano científico e moral. Por fora desta tensão entre estes dois polos, penso que ao recuperar partes dos objetivos morais de ambos, temos subjacente ao último, uma concepção alargada de igualdade e de reconhecimento identitário que não se fundamenta na moralidade iluminista ou da filosofia moral contemporânea, mas denuncia aquilo que ficou de fora efetivamente, via discurso da prática.
As críticas comunitaristas3 às teorias liberais morais contemporâneas buscaram elucidar o “vazio” ou o abstrato das premissas morais liberais, as quais partem de indivíduos “desincorporados”, ou sujeitos sem cultura, localidade, gênero, classe, etnia e outros marcadores que fazem de nós indivíduos sujeitos pertencentes e codependentes socioculturais. Um dos seus aspectos críticos seria a questão da imparcialidade, pressuposto de uma teoria da justiça liberal universal em uma situação “original” de participantes que buscam princípios de justiça. Tal pressuposto não se sustentaria sob o véu da ignorância rawlsiano e seria apenas uma expectativa moral de que agiriam desta maneira, de forma que a imparcialidade não pode ser tomada como dada, visto as condições múltiplas que cada um e cada comunidade vivencia (Góes 2019).
A imparcialidade, portanto, seria um horizonte normativo, mas nunca uma premissa teórica, a priori, visto que o aspecto fundacional epistêmico desta premissa ocultaria as condições reais de existência das pessoas, privilegiando, injustamente aquele ou aquele grupo que propõe a teoria, no caso, o europeu branco ou o americano branco. A parcialidade, a meu ver não é considerada algo estritamente negativo, mas parte de nossa condição enquanto humanos localizados, situados culturalmente, socialmente e politicamente (Góes 2020) Desde que haja participação igualitária, a parcialidade humana e sua aceitação, possibilitaria que as vozes sejam expressas, cada uma de acordo com seu “lugar” de fala e a articulação parcial de todas as vozes possibilitaria uns ouvirem aos outros e suas demandas, o que contribuiria para um sentido intrinsecamente valorativo da democracia. Em tese, minha crítica à época foi considerada “comunitarista”, embora eu não tenha partido da cultura ou da comunidade epistêmica como sujeito valorativo.
Outras críticas, não especificamente comunitaristas, foram desferidas às teorias liberais, como os teóricos pós-estruturalistas, feministas ou desconstrucionistas e, atualmente, perspectivas decoloniais ou de decolonialidade se voltam para a crítica das teorias “críticas” liberais por defenderem que essas também possuem viés de localidade privilegiado e, portanto, deveriam ser “substituídas” por aqueles que não tinham até então lugar de fala ou voz, ou participação epistêmica. Considero que as teorias decoloniais possuem valor intrínseco ao reivindicar voz e participação abrangentes, sejam culturais, teóricas ou de experiências. De certa maneira, ou por outra maneira, as teorias desconstrucionistas ou decoloniais, de forma diferente da minha (Góes 2020), apostam na parcialidade, com a diferença apenas de que, enquanto defendi a moralidade da parcialidade, me parece que as teorias decoloniais não desejam “moralizar”, ao menos não teoricamente. Afirmo isso diante do fato de que autores desta corrente teórica,4 possuem alguns aspectos em comum. Dentre eles, o engajamento político de seus autores e a primazia do “encorporamento” ou das experiencias vividas como substituto da episteme “tradicional”. Além disso, ao não fundamentar moralmente suas teorias, isto é, ao se reservarem o papel de críticos, não colocam nada (moral) no lugar. Sobre este segundo aspecto que pretendo discorrer a seguir.
Pensadores e filósofos ditos eurocêntricos desenvolviam críticas aos sistemas de pensamento ou a teorias anteriores a eles consideradas em seu desenvolver, insuficientes, inconsistentes ou incoerentes. Estes pressupostos - coerência, consistência ou suficiência teórica, são pressupostos epistemológicos que para alguns autores deixaram de ser importantes ou relevantes para o desenvolvimento de novas teorias que tinham como objetivo questionar politicamente o desenvolvimento da produção científica, como foi o caso do “segundo”, Rorty (2007),5 ou de autores que em outras chaves teóricas criticaram o saber científico moderno.6
Em termos gerais, enquanto Foucault desenvolveu sua arqueologia como episteme, Nietzsche (2009) e Taylor (1994) apostaram na hermenêutica, e Derrida (1967) na linguagem como estrutura crítica. Paralelamente, teóricas feministas, como Judith Butler (2003), seguiram a chave epistêmica de Derrida e a conjugaram com críticas às teorias psicanalíticas. Neste sentido, o universo teórico crítico atualmente ultrapassa talvez a continuidade das teorias liberais morais, que relegadas ao ostracismo por sua “apologia” ao universal, ao vazio formal ou a imparcialidade, não são mais consideradas relevantes. Contudo, tais teorias não apenas abriram o espaço para os novos conteúdos críticos, mas fundamentam normativamente aquilo que as novas teorias pretendem apenas criticar. Em outras palavras, a moralidade subjaz as críticas decoloniais embora não adentrem o universo da fundamentação moral.
Em um primeiro momento, farei uma breve recuperação de alguns aspectos da teoria Foucaultiana e de Derrida (I) como teóricos influentes no debate sobre colonialidade para mostrar sua influência nas teorias decoloniais e, em um segundo momento, recuperarei Nancy Fraser (II) para mostrar o que sua teoria contribui para a moralidade das relações sociais e do reconhecimento e como podemos “ler” as novas abordagens desconstrucionistas e decoloniais via fundamento moral, visto tais teorias não serem excludentes mutuamente.
Para Foucault, as novas formas de sujeição humana no advento do século 20 começaram a ser delineadas a partir da construção moderna do saber humano. Até o medievo, as atividades de controle nas cidades eram conduzidas pelo poder pastoral e pelas ramificações religiosas de país para país. O poder de Deus se dava através da igreja católica como mediadora do homem com a divindade, controlando seu poder supremo de redenção e classificação dos pecados humanos. A partir da era moderna, novas configurações de poder acompanharão o desenvolvimento científico, assim como novas concepções de homem surgirão.
Até o fim do século 19, as manifestações de racismo estavam relacionadas ao saber médico-jurídico de controle social, na forma de eliminação daqueles que não correspondessem ao padrão de saúde e de segurança característicos da sociedade europeia (Foucault 2006b). O poder do estado europeu, de uma forma geral visava à capacidade de detenção de poder de guerra, de ser imune a um possível ataque por parte de outros estados ou por populações bárbaras. A civilização europeia percebia como barbaridade todo grupo ou nação que não possuísse sua forma de organização social, assim como os mecanismos de disciplina populacional.
Até o século 18, a pesquisa acerca do homem estava condicionada à análise da história natural e essencialista do homem e seu meio. O desenvolvimento da biologia a partir do século 19 apresenta uma retirada do sujeito de cena para um novo formato de acordo com a seleção natural darwinista. Esta perspectiva ensejou a classificação e a separação dos seres de acordo com as diferenças e as características biológicas que se desenvolveriam em uma escala evolutiva diferenciada ao mesmo tempo em que os conectava na forma da continuidade sucessiva das espécies.
A História e a Biologia passam a estar interligadas e o destaque dado por Foucault a estes aspectos do saber humano será de extrema importância para entender a arqueologia do saber ocidental e a emergência das descobertas do exotismo de outras culturas e das “irregularidades” biológicas do novo mundo. As novas formas do saber, concomitante com o estabelecimento do estado como forma de governo sobre os indivíduos apresentou conjugadamente, portanto, novos dispositivos de controle da vida humana, como a higiene, o trabalho, a alimentação e a sexualidade.
Enquanto a sociedade disciplinar característica da idade moderna até o século 19 detinha o controle dos indivíduos através da disciplinarização e da normalização de forma singular e repetitiva, o que emerge no século 20 é o controle totalizador da vida humana (Foucault 2008a). Esta biopolítica, na linguagem de Foucault (2008b), marcou a passagem do modelo fordista para o pós-fordismo e influenciou toda relação de trabalho através do imaginário social e da ciência administrativa como um todo. O modelo capitalista que surge neste momento detém o poder de sistematização cultural dominante transbordando o estado para o nascimento do Império, como define Negri (Negri e Hardt 2001). Este seria uma formação multifacetada de poder e controle sobre os indivíduos, que se relaciona às formas de produção de capital, e informatização da vida humana.
Ainda segundo Foucault (2006a), novas formas de poder social começam a surgir, assim como novas formas de resistência. As antigas lutas de classes agora passam a ser redefinidas em estratégias de força dentro e fora do sistema capitalista. Neste contexto, a construção das subjetividades e das identidades sociais se transforma de forma a achar uma saída para o extensivo controle biopolítico que se manifestam como estados de dominação, pois perpassam toda a vida humana.
Entre estes estados de dominação, situam-se o governo e as tecnologias governamentais, que definem os jogos estratégicos em fechados ou abertos. É através do governo que se percebem as relações institucionalizadas de dominação e o consequente bloqueio de mobilidade ou de fluidez e abertura à experimentação de subjetividades que escapam ao poder de dominação. Como Foucault (2006a) desenvolveu em Em defesa da sociedade, a nova arte de governar que detinha como função anteriormente a razão de estado como princípio de soberania, hoje iria consistir em manipular, manter, distribuir, em estabelecer relações de força, em ambientes competitivos.
Em contraste, Derrida foi um crítico literário e filosófico e um crítico das instituições políticas da justiça, e sua proposta se caracterizou como filosofia da desconstrução. Em linhas gerais, Derrida (1967, 1991) propõe uma releitura, ou melhor, uma “reconcepção” das diferenças que dividem a autorreflexão.
Influenciado por Kant, Husserl e Heidegger, Derrida (1991) busca as condições fundacionais e necessárias da experiência, partindo da questão da alteridade. Para o filósofo, não é possível separar insubstituíveis singularidades e repetibilidades - tipo máquinas - em duas substâncias que estejam fora uma da outra. Estas singularidades e repetibilidade são condições que estão na base de todas as experiências e estão no limite do que seja o determinável e divisível. Para Derrida (1991), não é possível o “um” no outro, já que só existiria uma substância.
Estas condições estão relacionadas ao “tempo”, que é um elemento-chave em Derrida (1991), pois para ele toda experiência acontece agora, no presente, e o que acontece agora é diferente de qualquer outro agora que se tenha experimentado. No entanto, através da memória podemos lembrar o que aconteceu e assim antecipar o que está por acontecer. A memória em conjunto com a antecipação, é o que Derrida (1991) chama de repetibilidade. Justamente pelo fato de que o que experimento agora pode ser imediatamente invocado, ele é repetível e isto motiva a que a mesma experiência aconteça novamente. Diante da repetibilidade, ao mesmo tempo uma experiência presente é um evento é não é um evento.
Para Derrida (1991), então, há sempre outra agência no presente, o que passou e que também é presente, e o que vai acontecer, e que não é ainda presente. Para Derrida (1991), o presente é sempre acompanhado pelo não presente. Como para Derrida as condições da experiência são sempre empíricas e a condição original é heterogenia, nada seria dado como certo. O que é dado é dado, como qualquer outro dado no passado ou no futuro e assim para ele não haveria conhecimento, não haveria verdade, ou melhor dizendo, a desconstrução seria a verdade e a justiça.
O projeto desconstrucionista (Sallis 1987) abre as portas, portanto para um projeto político, no qual a crítica destes sistemas permitiria um engajamento, no qual se abandonaria a universalidade e as formas dominação que ela ocultaria. Judith Butler (2003) soube fazer a defesa de uma concepção alargada das descrições sociais, se alinhando com as teorias desconstrucionistas, mas mantendo a primazia do sujeito de forma a manter o processo aberto para possíveis inclusões políticas. Se partirmos da ideia de que as novas teorias pós-modernas “descontroem” as noções pré-estabelecidas que ao longo da história refletiram formas de dominação legítimas através das instituições políticas e sociais, chegaremos às grandes narrativas que se embasaram em conceitos que detinham universalidade normativa que mascaravam suas próprias contingências conceituais. Para Butler (2003), certas concepções de sujeito são politicamente perigosas e impedem a liberdade política de outros sujeitos não contemplados nas descrições ou definições pré-concebidas. Ao ressignificar o sujeito ou problematizá-lo, minamos o mecanismo de opressão e abrimos a possibilidade para uma realidade em eterna mudança social e que dá conta de novos agentes, dando margem às modificações durante os diversos processos históricos.
Assim, Butler (2003) traz à tona a possibilidade de mudança a partir da ressignificação conceitual, ao mesmo tempo, que permite pensarmos na liberdade de escolha não como propriedade ontológica de um sujeito, mas como possibilidade real de agência. No aspecto teórico, portanto, as concepções a priori sobre indivíduos entram em colapso diante da constatação de um sujeito construído historicamente. Enquanto a preocupação teórica teria primazia sobre os fatos, tal preocupação teria motivação moral na medida em que querem manter a liberdade de escolha ou o livre-arbítrio individual. Mas esse, segundo a autora, seria um falso problema, na medida em que afirmar que o sujeito é constituído nos processos históricos e culturais não significa dizer que ele é determinado por ele, mas sim que o caráter constituído do sujeito seria justamente a mola propulsora de sua capacidade de agir.
Ao contrário de Foucault (2006b), que “denuncia” ou desmascara as formas de poder e resistência a partir de um saber arqueologicamente articulado via os dados históricos, Derrida (1991) aposta na estrutura temporal heterogênea como constante. Dito desta forma, temos pensadores que questionam as formas “tradicionais” de poder, justiça e conhecimento e contribuem para um alargamento reflexivo conceitual e epistêmicos destes. Contudo, a característica destas correntes teóricas é desconstrutiva, isto é, nada colocam no lugar em termos morais. Neste caso, teríamos um vácuo normativo, visto que diante do relativismo ético que se deduz teoricamente de suas abordagens, não haveria nenhum princípio básico em comum do qual poderíamos partir para defender uma concepção de justiça social. Então no que se justificaria moralmente desenvolver teorias da decolonialidade? Em que princípios normativos, ou qual justificativa moral teríamos para afirmar a necessidade de que outras vozes sejam ouvidas? Por que deveriam? A resposta a esta pergunta me parece por demais óbvia, pois não podemos fugir do “é justo”, ou historicamente injusto, por questões de justiça ou igualdade. Ao final, não podemos fugir do fato de que nosso horizonte normativo subjaz nossas reivindicações políticas, denúncias de injustiça ou o clamar por maior participação, seja acadêmica, epistêmica, cultural ou ética.
Seguindo esta linha, resgato Nancy Fraser (2007) para mostrar que sua “voz” pode ser articulada com novas perspectivas reivindicativas sem prejuízo de privilegiar autores, mas em complemento a eles. Fraser (2001) propõe inicialmente que as reivindicações por reconhecimento e por redistribuição se encontram em chaves diferentes. Enquanto os proponentes do reconhecimento buscam seu fundamento a partir da ética, ou seja, da realização de uma vida boa embasada na eticidade de Hegel (2014) na qual os valores se dariam de acordo com o contexto e diferenças particulares, os da redistribuição se fundamentariam na moralidade kantiana, na qual as normas de justiça seriam universalmente vinculantes se manteriam sem o envolvimento das particularidades dos agentes.
Fraser (2001) considera esta antinomia falsa e busca defender as duas abordagens possuem pontos em comum e podem ser entendidas em conjunto. Seguindo a linha kantiana, Ralws (1981) defendeu uma concepção de justiça que envolvesse a todos numa hipótese neocontratualista7 que pudesse fornecer uma distribuição equitativa de bens desde que os princípios acordados no pacto8 fossem satisfeitos. Rawls (1981) construiu sua teoria de forma que a universalidade fosse mantida com base na razão, apelo abstrato este que formalizaria o tratamento igualitário, pois ao escolher o melhor para o outro, escolhe-se o melhor para si.9
A partir da teoria de Ralws (1981), vários críticos surgem para relativizar a hipótese de liberdade formal que Rawls (1981) defende, isto é, diante de uma hipótese de estado ideal, não se torna possível perceber as particularidades dos indivíduos, nem seu contexto, de forma que muitos autores, através de uma perspectiva comunitarista defenderam a hipótese contrária, ou seja, que seria possível uma distribuição justa de acordo com cada contexto. Os grupos culturais e as sociedades possuem valores díspares, o que inviabiliza a universalidade de um todo constituído de múltiplas diversidades. Os seguidores da linha liberal rawlsiana, defendem que a integridade e a justiça são conceitos que não podem ser relativizados, na medida em que correspondem à liberdade de ser humano e de ser reconhecido como um.
Do ponto de vista comunitarista, o reconhecimento se daria através do apelo à diversidade humana, sendo os valores construídos de acordo com cada sociedade ou grupo social e não a priori com pressupostos europeus.10 Diante do confronto teórico e das problemáticas práticas da vida real, Fraser (2001) elabora uma terceira possibilidade para a realização de ambas as reivindicações. Justiça social no sentido socioeconômico de redistribuição e de reconhecimento cultural ou da diferença no sentido de igualdade. A estratégia de Fraser (2007) para romper com o padrão do reconhecimento nos moldes da ética é tentar entender as reivindicações de um grupo cultural dentro de outro dominante.
Em uma sociedade em que direitos existem para um grupo e não para outro, a identidade do grupo não reconhecido se dá através da negação de direitos. Além da discriminação, a não realização de direitos de forma igual para todos11 enseja a baixo-estima e a desumanidade obscurecendo a interação social que impedem o reconhecimento. Neste contexto, o que se espera enquanto reconhecimento minoritário é a possibilidade de autoafirmação enquanto grupo através da participação real dos membros da minoria no grupo majoritário de formas equitativas (Fraser 2002). Isso resulta em um status de participação paritativa de forma que sua cultura se materialize e possibilite direitos como em um todo.
Sendo o reconhecimento uma questão de status, pode se inferir que em uma determinada sociedade na qual há subordinação social por parte de algum grupo, podemos dizer que esta sociedade é injusta, desde que um grupo não possui condições de participar daquela sociedade no mesmo nível que outros. O reconhecimento enquanto status, portanto, deve ser entendido a partir do exame dos valores culturais institucionalizados que impedem a interação e a fruição de direitos de determinado grupo em prol de outro.
As demandas por reconhecimento serviriam como forma de deslegitimação destes valores como naturalizados. O modelo do status para a filosofa também possui outro benefício, que é a fluidez do conceito de status em comparação com o da identidade. Enquanto a identidade demandaria uma política de reconhecimento específica de um grupo, que materializaria a cultura de forma fixa e ignoraria as travessias de comunicação culturais contemporâneas, o modelo do status relacionaria a igualdade como igualdade de condições, ou seja, paridade de participação igual, fornecendo um modelo deontológico compatível com a moralidade sem ser fixo a um valor específico, desde que esteja de acordo com determinada cultura. Definir o que será justo, portanto, dependerá do que naquela sociedade específica, a justiça seja concebida e talvez realizada.
Enquanto para Axel Honneth (2009) e Charles Taylor (1994), o reconhecimento deve ser fundamentado na ética por servir ao propósito de desenvolvimento de capacidades para viver uma vida boa, Nancy Fraser (2001) propõe o viés do reconhecimento através da justiça, isto é, da moralidade. Dizer que alguns indivíduos sofrem restrições de determinados grupos, é menosprezar características particulares e distintivas destes mesmos indivíduos de forma que o subordinem a determinados padrões culturais institucionalizados pela outra parte da população. Assim, a falta de reconhecimento seria errada, pois constituiria forma de violação à justiça.
Como entendimento para viver uma boa vida, o pressuposto teórico daquele que formula a dimensão ética entra em conflito no caso do reconhecimento, pois na medida em que as dimensões éticas são dadas de acordo com a realidade e com a perspectiva cultural, na hipótese de confronto de valor, ou seja, de concepções de bem diferentes, o reconhecimento se torna inviável. Já no caso do reconhecimento com base em um fundamento deontológico, o ideal de justiça vincula-se ao segmento social como um todo e não em determinados grupos. Partindo da ideia de que uma sociedade que detém concepções diferentes de bem e de vida boa, ser justa é fornecer possibilidades para que todos possam usufruir de sua própria concepção de bem.
O exame dos padrões institucionalizados de valor cultural tem como objetivo revelar os acordos ou desacordos sociais que impedem a participação, ou seja, a igualdade de condições no acesso a bens e direitos de todos os membros da sociedade. Sobre a falta de participação, Fraser (2007) enumera dois tipos de condições que a impossibilitam. A condição objetiva, na qual a desigualdade econômica e social é o fator preponderante para a dependência e subordinação social de determinados grupos e a condição intersubjetiva, na qual determinadas normas culturais institucionalizadas depreciam determinados grupos, categorizando-nos com atributos negativos ou desumanizando-os no sentido de torná-los invisíveis. Destas condições, objetivas e intersubjetivas, decorreriam dois tipos de reivindicações por justiça social: reivindicações redistributivas, que buscam uma distribuição mais justa de recursos e riquezas e reivindicações por reconhecimento ou “políticas de reconhecimento”, nas quais a meta seria um mundo que acolha amistosamente as diferenças.
Estas duas reivindicações, em tese, seriam separadas, o que resultaria em um divórcio generalizado entre políticas culturais da diferença e as políticas sociais de igualdade econômica. Para Fraser (2001) tais antíteses “redistribuição ou reconhecimento” seriam falsas, assim como multiculturalismo ou democracia social. Os dois aspectos destes dois paradigmas precisariam então ser integrados em uma única e abrangente estrutura.
O reconhecimento seria visto através da lente da identidade, o que requereria o reconhecimento das identidades culturais especificas do grupo. O não reconhecimento pela cultura dominante causaria danos ao self dos membros dos mais variados grupos. Para reparar este dano, engaja-se em uma política de reconhecimento, para obter o respeito e a estima da sociedade como um todo horizontalmente.
No entanto, este modelo de identidade tenderia a reificar identidades em grupos, promovendo um separatismo e comunitarismo repressivo.
Fraser (2007) propõe a partir daí um modelo alternativo de reconhecimento, que seria o modelo do status. Reconhecimento é uma questão de status social. O que requer reconhecimento não é a identidade específica do grupo, mas o status dos membros individuais como parceiros plenos na interação social. Assim, o não reconhecimento não significaria depreciação e deformação da identidade do grupo, mas subordinação social, no sentido de que os indivíduos inapropriadamente reconhecidos são impedidos de participar como iguais na vida social.
A partir dos padrões culturais e da posição relativa dos atores sociais, tem-se a capacidade para participar em condições de igualdade com outros na vida social. Quando isso acontece a todos, podemos falar em reconhecimento recíproco e status de igualdade. Quando, pelo contrário, os padrões institucionalizados de valor cultural constituírem alguns atores como inferiores, excluídos ou impossibilitados de participar plenamente na interação social, então temos um reconhecimento inapropriado e uma subordinação de status.
No modelo do status, portanto, o reconhecimento inapropriado é uma relação institucionalizada e de subordinação social, sendo transmitido através de padrões institucionalizados de valor cultural que impedem a paridade social. Dentre alguns exemplos, estigmatizações e práticas policiais de perfis raciais que associam indivíduos com a criminalidade em função de sua raça. Fundamentalmente, teríamos, portanto, que o reconhecimento inapropriado constitui uma séria violação de justiça e o objetivo das reivindicações por reconhecimento é, portanto, desinstitucionalizar os padrões de valor cultural que impedem a participação paritária e substituir por outros que a incentivem.
Parti da premissa de que as teorias decoloniais que se baseiam fortemente em pensadores desconstrucionistas carecem de fundamentação moral e não se enquadrariam na perspectiva das teorias críticas, visto que não questionam epistemologicamente as teorias eurocêntricas, apenas a denunciam como localizadas geograficamente e pertencentes a outro contexto. Isto, é, no limite, aplicam a crítica ao lugar de fala e fundamentações linguísticas, históricas e políticas às teorias “eurocêntricas”. No entanto, não colocam nada no lugar em termos morais a não ser a crítica da política de produção epistêmica. A contribuição científica que trazem não “reforma” epistemologicamente as teorias críticas, visto que não partem dos mesmos pressupostos. Tampouco conceitos como “justiça social” ou reconhecimento são questionados, ao contrário, estes conceitos são dados como objetivos ocultos normativos, visto que o que se busca com as teorias decoloniais é reivindicar um lugar de paridade que em tese estaria ausente, ou seja, reivindicar participação, voz e com isso igualdade epistêmica. Em um sentido moral, articulam a mesma concepção de igualdade de participação e reconhecimento identitário produzido por Fraser, se utilizando, no entanto, do arcabouço teórico de outras fontes e metodologias.
Isso resulta em um ponto: primeiro é que teorias decoloniais buscam engajamento, ativismo político de agentes colonizados, que escrevam e tenham seu lugar de fala além da contextualização de sua produção. Neste sentido, e com toda razão, buscam reivindicar igualdade de reconhecimento, seja identitário enquanto grupo cultural seja de redistribuição e de igualdade no valor de suas experiências. Quanto a este item, me parece que a busca por igualdade se relaciona mais adequadamente ao universo normativo e menos em uma crítica científica. Além deste aspecto, parece que apresentar o termo “colonizado” como conceito universal vazio contradiz a própria justificativa teórica de experiências vividas e localizadas como fundamento para desconstrução.
Ora, se pretende-se a concretude da experiência, é possível generalizar tal experiência do colonizado? Quem é o colonizado ou quem são os colonizados? Cada particularidade seria única, indivisível ou poderia se colocar o termo como abrangendo toda e qualquer experiência histórica de colonização ou decolonialidade? Tais perguntas não visam destituir o valor destas perspectivas teóricas, mas contribuir para sua fundamentação e alargamento.
Se entendermos, com Bourdieu (2003) que cultura dialeticamente seria um duplo processo de interiorização da exterioridade e da exteriorização da interioridade, o sentido de uma expansão cultural se encontraria naquilo que estamos munidos para sua compreensão, ou seja, para identificar algo como cultural, devemos poder ter a cifra para sua leitura compreensiva. Embora este momento de leitura compreensiva seja inconsciente, algo de comum perpassa os universos culturais dos agentes e suas experiências para que possam se compreender mutuamente. Ainda assim, como Bourdieu adverte, a interpretação mais compreensiva corre o risco de não ser mais do que uma forma de etnocentrismo. Funções como usos de fatores linguísticos e extralinguísticos, contextos e situação de escolha de uma fonia não são artificiais nem impostos de fora. O que seria artificialismo social consistiria em colocar implicitamente na consciência dos agentes singulares o conhecimento teórico que só pode ser construído contra esta experiência. Neste sentido, podemos perguntar o que consideramos artificial ou imposto de fora? Será que já não introjetamos valores, princípios normativos e a tal da igualdade?
A vida de cada pessoa está profundamente afetada pelo ambiente social, jurídico e cultural em que vive. Isso não exclui afirmar que apenas quando cada pessoa tem a mesma voz e voto no processo de tomada de decisão coletiva cada um tem o verdadeiro controle sobre este ambiente. Desde que todos tenham direito ao autogoverno, eles têm o direito de participação democrática em sentido mais largo. Clamar por voz, direitos, participação científica e cultural requer, neste sentido, minimamente uma justificação moral baseada em princípios.