Resumo: O artigo faz uma análise sobre como a visão de uma masculinidade “normal/natural” impõe processos de normalização a partir de discursos de gênero produzidos e reproduzidos no espaço escolar às múltiplas referências de masculinidades experienciadas nesse espaço. Caracteriza-se por abordagem qualitativa, com seu aporte teórico e conceitual nos estudos pós-estruturalistas e na teoria queer, tendo como instrumentos metodológicos o estudo bibliográfico, observação participante, conversa informal e entrevista semiestruturada. A pesquisa foi realizada em uma escola estadual de ensino médio em tempo integral da cidade de Bacabeira-MA e mostra que o espaço escolar é atravessado por diversos discursos de gênero que estão atuando no processo de normalização das múltiplas referências de masculinidades. Conclui-se que a visão a respeito da existência de uma masculinidade “normal/natural” ainda impõe processos de normalização no espaço escolar às referências de masculinidades que não seguem os padrões normativos de gênero.
Palavras-chave: Masculinidades, Gênero, Espaço escolar, Normalização.
Abstract: The article analyzes how the vision of a “normal / natural” masculinity imposes processes of normalization from gender discourses produced and reproduced in the school space to the multiple references of masculinities experienced in that space. It is characterized by a qualitative approach, with its theoretical and conceptual support in post-structuralist studies and queer theory, with bibliographic study, participant observation, informal conversation and semi-structured interview as methodological instruments. The research was carried out in a state full-time high school in the city of Bacabeira-MA and shows that the school space is crossed by several gender discourses that are acting in the process of normalizing the multiple references of masculinities. It is concluded that the view regarding the existence of a “normal / natural” masculinity still imposes normalization processes in the school space to references of masculinities that do not follow normative gender standards.
Keywords: Masculinities, Genre, School space, Normalization.
Resumen: El artículo analiza cómo la visión de una masculinidad “normal / natural” impone procesos de normalización desde los discursos de género producidos y reproducidos en el espacio escolar hasta las múltiples referencias de masculinidades vividas en ese espacio. Se caracteriza por un enfoque cualitativo, con su apoyo teórico y conceptual en los estudios postestructuralistas y la teoría queer, con el estudio bibliográfico, la observación participante, la conversación informal y la entrevista semiestructurada como instrumentos metodológicos. La investigación se llevó a cabo en una escuela secundaria estatal de tiempo completo en la ciudad de Bacabeira-MA y muestra que el espacio escolar está atravesado por varios discursos de género que están actuando en el proceso de normalización de las múltiples referencias de masculinidades. Se concluye que la mirada sobre la existencia de una masculinidad “normal / natural” aún impone procesos de normalización en el espacio escolar a referencias de masculinidades que no siguen estándares normativos de género.
Palabras clave: Masculinidades, Género, Espacio escolar, Normalización.
Artigos/Articles
Os discursos normativos de gênero configurando masculinidades no espaço escolar
Normative gender discourses configuring masculinities in the school space
Discursos normativos de género que configuran masculinidades en el espacio escolar
Recepção: 07 Junho 2021
Aprovação: 30 Outubro 2021
Publicado: 03 Novembro 2022
Abraçar quem gosta, dizer que ama um amigo, demonstrar afeto, poder sorrir, dançar, chorar, dentre muitas outras expressões, estão colocadas como não pertencentes à identidade de gênero masculina tida como “normal”. Já na infância, o menino aprende que não seguir as regras para o gênero atribuído a ele é correr o risco de ser considerado “menos homem” e, assim, tornar-se o lugar da violência, através do bullying, preconceito, discriminação e um universo de possibilidades de violências físicas e simbólicas as quais estão sujeitas pessoas que não se adéquam aos padrões normativos configurados para os gêneros.
Ainda que os estudos sobre as questões de gênero e sexualidade tenham avançado consideravelmente desde os anos 1960 quando jovens estudantes, mulheres, negros, as chamadas minorias sexuais e étnicas começaram a dar força aos seus discursos ao denunciarem as suas inconformidades e questionarem teorias, conceitos, fórmulas e criando uma nova linguagem refletida em novas práticas sociais ( Louro 2008; Sarti 2004), os discursos sociais continuam presos às concepções de masculinidades 2 como atributos naturalizados e, com isso, não só se fortalece o binarismo de gênero pautado na dicotomia masculino e feminino, como criam grandes barreiras que impossibilitam a percepção de que existem especificidades e diferenças entre os sujeitos homens e as suas experiências masculinas.
Esses discursos normatizadores adentram o espaço escolar e passam a ser reproduzidos no cotidiano das aulas, no recreio, nas brincadeiras, nos jogos, nas atividades pedagógicas etc. Essa norma delimita espaços, “servindo-se de símbolos e códigos, ela afirma o que cada um pode (ou não pode) fazer, separa e institui. Informa o ‘lugar’ dos pequenos e dos grandes, dos meninos e das meninas” ( Louro 2004, 58).
Nesse sentido, este artigo tem por objetivo analisar como a visão de uma masculinidade “normal/natural” 3 impõe processos de normalização a partir de discursos de gênero produzidos e reproduzidos por alunos no espaço escolar às múltiplas referências de masculinidades experienciadas nesse espaço.
Perceber esses processos de normalização poderá ajudar a se compreender a multiplicidade de pensamentos, expressões, identidades, gêneros, sexualidades etc., que constituem o espaço escolar e, assim, perceber os processos de normalização de referências de masculinidades a partir de discursos de gênero que configuram a ideia de uma masculinidade “normal/natural”.
Concordando com Meyer e Paraíso (2012, 17), que “uma metodologia de pesquisa é sempre pedagógica porque se refere a um como fazer”. O “ como fazer” deste artigo se configura a partir de uma abordagem de pesquisa qualitativa e tem seu aporte teórico e conceitual no campo dos estudos pós-estruturalistas e de seus desdobramentos na teoria queer.
O olhar está focado para as linguagens e os discursos que produzem identidades sexuais e de gênero e que compõem as experiências de sujeitos, entendendo o sujeito como “criado através de processos discursivos” “[...] e de uma repetição corporal contínua, ou “ performance” de gênero e sexualidade” ( Gamson 2006, 354).
Como instrumentos para o levantamento dos dados deste artigo optamos pelo uso da observação participante, pela necessidade de estar e participar ativamente do dia a dia e das experiências dos alunos no espaço escolar. Observamos como os discursos são produzidos e reproduzidos nas práticas desses sujeitos, pois entendemos que é por meio das práticas corporais manifestadas cotidianamente que as normas regulatórias de gênero são produzidas, reproduzidas e impostas aos sujeitos como a forma “natural/normal” para as suas experiências, no entanto, também são nessas práticas corporais cotidianas que as normas de gênero são questionadas e alteradas ( Butler 2000).
Em uma metodologia construída a partir da teoria queer, o ponto de partida deve ser sempre o pressuposto de que as identidades são múltiplas, dinâmicas e são compostas por um número infinito de discursos e elementos que os constituem, como classe, orientação sexual, gênero, idade, nacionalidade, etnia, raça etc., elementos que estão ou não articulados, mas que estão configurando inúmeras subjetividades em cada pessoa. Desta forma, ouvir os sujeitos da pesquisa, seus próprios significados e os modos como eles significam suas próprias experiências é fundamental para que compreendamos como as normas de gênero são internalizadas por essas pessoas. Para esse ouvir, optamos pelo uso de entrevistas semiestruturadas e conversas informais.
A pesquisa passa pelo reconhecimento da diferenciação, da multiplicidade de papéis e da dinamicidade pela qual as pessoas têm suas experiências de gênero. Assim:
[...] as informações que são coletadas em um trabalho de campo não são dados passíveis de serem explicados, mas são significados produzidos no contexto pesquisado, que podem ser lidos e construídos de diferentes formas ( Reis 2011, 40).
Logo, aquilo que observamos e ouvimos, os vários discursos que identificamos não dizem tudo, daí coube a nós buscarmos os efeitos e sentidos desses discursos. Para isso, tivemos que buscar aquilo que estava oculto e silenciado nesses discursos. Em vista disso, a partir das informações produzidas, optamos por realizar uma análise discursiva dessas informações a partir da teorização queer, pois assim, poderemos compreender como os discursos de gênero estão atuando na constituição dos sujeitos.
Entendemos que as masculinidades não podem ser pensadas como fixas e acabadas, uma vez que qualquer forma de masculinidade é internamente complexa e contraditória, tendo como referência o lugar ocupado nas relações de gênero e nas práticas determinadas por essa posição. Essa estrutura de posicionamento de masculinidades pode seguir diferentes trajetórias históricas e, desse modo, a masculinidade correlaciona-se constantemente em sua trajetória a contradições internas e a rupturas históricas ( Connell 1997).
São essas contradições e a relação entre si das masculinidades que buscamos analisar. Por isso, o nosso olhar esteve voltado para a relação dos garotos4 entre si, tendo em vista a nossa compreensão de que existem várias formas de masculinidades se relacionando e se conflitando o tempo todo.
Desse modo, foram observados os corpos que se autodeclararam masculinos de quatro turmas do ensino médio de uma escola pública em tempo integral, pertencente a rede estadual de ensino, no município de Bacabeira-MA, 5 no período de junho a dezembro de 2018. Os garotos foram observados durante as aulas e nos espaços de convívio comum, como corredores, pátio, quadra e refeitório.
Após o período de observação e já com alguns dados em mãos, selecionamos doze alunos dentre aqueles que mais manifestaram discursos de gênero durante o período da observação, sendo três de cada uma das turmas observadas, para as entrevistas.
Seguimos todos os procedimentos éticos para a pesquisa com seres humanos, em conformidade com a Resolução Conep nº 510/2016, prestando todos os esclarecimentos sobre a pesquisa, adotando Termo de Assentimento Livre e Esclarecido e Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para os pais e/ou responsáveis dos participantes menores de idade.
Para garantir o total sigilo, confidencialidade e privacidade dos participantes da pesquisa, eles não foram identificados por seus nomes próprios ou por qualquer outra forma que poderia associar o que está escrito neste trabalho com o participante da pesquisa que prestou a informação. Por essa razão os participantes foram nomeados apenas pelos termos “aluno(s)” e “garoto(s)”. No caso dos entrevistados foram usados nomes fictícios.
O conceito de masculinidade nasce dos debates sobre gênero e envolve as regras construídas socialmente ao longo da história direcionadas aos homens, buscando determinar as suas maneiras de representação e apresentação dos corpos, por meio da forma de agir consigo, com o outro e com a sociedade ( Connell 1995, 2005; Connell e Messerschmidt 2013; Kimmel 1998; Nolasco 1997; Seffner 2003). Portanto, para entendermos as masculinidades, precisamos primeiro pensar um pouco sobre o gênero.
O gênero é uma categoria de análise que rompe com o determinismo biológico presente na categoria sexo ou nas diferenças sexuais, trazendo as masculinidades e feminilidades para o campo das definições culturais ( Scott 1990). Pode ser visto como uma construção cultural, uma vez que
[...] seja no âmbito do senso comum, seja revestido por uma linguagem ‘científica’, a distinção biológica, ou melhor, a distinção sexual, serve para compreender — e justificar — a desigualdade social ( Louro 2001, 21).
Nesse segmento, pode-se entender que o gênero se refere a um sistema de relações de poder baseadas em um conjunto de qualidades, papéis, identidades e comportamentos opostos atribuídos a mulheres e homens. É “um meio de decodificar o sentido e de compreender as relações complexas entre diversas formas de interação humana” ( Scott 1990, 23).
Nas relações entre sujeitos de gênero, o poder
[...] é constituído de estruturas sociais e históricas que se refletem nas interações e construções linguísticas que são mantidas na realidade social e, a linguagem funciona como um dispositivo ( Martins 2017, 83).
Nessa perspectiva, entendemos gênero a partir Butler (2003, 2014), como produção cultural normativa que, ao se reproduzir em atos, gestos, práticas etc., é reiterado como norma e internalizado nos corpos.
Nesse sentido, gênero é uma performatividade experienciada de forma quotidiana, na qual as suas expressões permitem não só a sua existência, mas as suas transformações ( Butler 1986, 2003). Acontece a partir da repetição de atos baseados em normas constituídas socialmente e prescritas pela cultura. Essas normas que regulam os gêneros, ao serem incorporadas pelos sujeitos, vão criando e dando forma a uma aparência de gênero, apoiadas em atos exaustivamente repetidos ( Butler 2003).
Para Seffner (2003), o gênero é um regime classificatório que opera entre homens e mulheres, mas não se encerra só nisso, pois ele está o tempo todo operando entre homens e homens, possibilitando hierarquias, lugares sociais e diferenças de poder entre eles. Por essa razão, os sujeitos tidos masculinos precisam provar o tempo todo que estão seguindo os padrões estabelecidos para a sua masculinidade.
Tomando essa perspectiva como referência, entendemos masculinidades como construções identitárias de gênero, plurais e que se expressam de múltiplas formas, uma vez que o gênero é compreendido como sendo construído socialmente ( Scott 1990), e que a sua inscrição “nos corpos é feita, sempre, no contexto de uma determinada cultura e, portanto, com marcas dessa cultura” ( Louro 2007, 11).
Desse modo, em um mesmo espaço social diferentes masculinidades estão sendo produzidas e reproduzidas. A direção tomada pelos processos de construção dessas identidades masculinas terá por base a referência de masculinidade tida como hegemônica naquele meio social ( Connell 1995).
Essa referência está sempre presente e sendo reforçada pelas instituições sociais como a igreja, a família, as instituições jurídicas e médicas, pela escola, pela mídia etc., todavia, ao mesmo tempo, estão transitando junto a referência hegemônica uma pluralidade de outras experiências e expressões de masculinidades significadas pelos próprios sujeitos em suas relações com a realidade social ( Seffner 2003).
No caso da escola, por falta de uma educação que reflita a diversidade, não mais como padrões fixos heterossexuais, mas pautada no respeito às formas como cada sujeito orienta seu comportamento e sua sexualidade, acaba legitimando a ideia de que existe um padrão “normal” para as pessoas. Ao invés de incluir, a escola pode se tornar espaço de exclusão de pessoas tidas como diferentes ( Louro 2001).
Seffner (2011) também ressalta que, se existissem políticas públicas avançadas sobre questões de gênero e sexualidade, as vozes silenciadas por desigualdades e discriminações sofridas na escola poderiam ser ouvidas. Contudo, ao se deixar influenciar pelos discursos conservadores e valores familiares, ao permitir que seu espaço assuma os moldes de espaços privados, a escola acaba tornando muito mais difícil a prática formadora da igualdade entre indivíduos, das relações sociais que deveriam promover a equidade de gênero e de orientação sexual na instituição pública.
A escola acaba reproduzindo a masculinidade tida como hegemônica na sociedade. A masculinidade hegemônica, segundo a conceituação de Connell (1995, 77), é
[...] a configuração de práticas de gênero que incorpora a resposta comumente aceita ao problema da legitimação do patriarcado, que garante (ou é tomada como garantia) a posição dominante dos homens e a subordinação das mulheres.
Desta forma, dependendo das relações que estão estabelecidas, existem diferentes configurações de masculinidades; e, por existirem múltiplas configurações, elas estão em constante disputa pelo poder da hegemonia dentro das relações de gênero, por essa razão nenhuma masculinidade pode ser considerada como uma referência fixa ( Connell 2005).
Essa ideia de hegemonia, segundo Kimmel (1998, 105), é parte das construções sociais a respeito das masculinidades. Portanto, as masculinidades devem ser entendidas como “socialmente construídas, e não uma propriedade de alguma de essência eterna, nem mítica, tampouco biológica”, variando de acordo com a cultura e dentro da própria cultura conforme o tempo e os elementos que ali se criam.
[...] as masculinidades são construídas simultaneamente em dois campos inter-relacionados de relações de poder – nas relações de homens com mulheres (desigualdade de gênero) e nas relações dos homens com outros homens (desigualdades baseadas em raça, etnicidade, sexualidade, idade etc.). Assim, dois dos elementos constitutivos na construção social de masculinidades são o sexismo e a homofobia. ( Kimmel 1998, 105).
Outro ponto apontado por Kimmel (1998) é que a construção das masculinidades está envolvida em relações de poder que, muitas vezes, são invisíveis aos homens, já visto que esses estão em posição de mais privilegiados na ordem de gênero, sendo que essa construção é mais percebida por aqueles que são menos privilegiados nessa ordem.
No campo da educação, o conceito de masculinidade hegemônica também foi usado como mecanismo de compreensão das dinâmicas que ocorrem no espaço da sala de aula, “incluindo os padrões de resistência e bullying entre meninos”. O conceito também foi usado para estudos relacionados aos currículos e “as dificuldades da pedagogia neutra de gênero”, assim como esteve presente na tentativa de se entender quais estratégias e quais as identidades de professores ( Connell e Messerschmidt 2013, 245).
Portanto, é nos níveis coletivos que as masculinidades podem ser definidas e sustentadas em regimes institucionais, como é o caso da escola. Porém, como sustenta Connell (1996), na escola existem outras relações de poder atuando, dentre elas as relações dos alunos entre eles mesmos que, a partir de suas relações, criam definições a respeito de gênero e dimensões coletivas sobre masculinidades e feminilidades.
A ideia da existência de identidades de gêneros naturalmente “normais” impõe às pessoas preferências, interesses, habilidades e saberes em conformidade com a referência de gênero social e culturalmente determinada para as masculinidades e feminilidades. Portanto, nessa busca pelo ideal de “homem de verdade”, as pessoas acabam se expressando a partir de atributos que seriam “naturalmente” características do seu gênero e da sua sexualidade, apenas com o intuito de atender às exigências sociais que os posicionam ( Louro 2000).
Os alunos que fazem parte do espaço escolar pesquisado possuem uma visão a respeito do que é “normal” para as masculinidades e a partir disso configuram em seus corpos marcas que expressam essas masculinidades, mesmo que nem sempre algumas dessas expressões sejam algo que eles queiram experienciar, porém as expressam performativamente para que sejam aceitos, façam parte e se identifiquem com aquilo que é tido como o “normal”, como vemos a seguir:
Eu quero casar e ter filhos, sou louco para ser pai. O homem precisa ter uma mulher pra ter filhos e construir uma família. Ele vai crescendo e tem que assumir suas responsabilidades com a família. Depois de uma certa idade não pode ficar sozinho levando uma vida sem responsabilidade. (Aluno do 3º ano, fragmento de conversa informal, 12 set. 2018).
Durante o almoço um aluno estava sentado comendo quando outro aluno chegou e o cumprimentou falando “aperta a minha mão rapá, mas aperta como homem”. Depois fez alguns gestos e falou “viu siô, é assim que macho aperta a mão de outro”. (Fragmento de diário de campo, 23 out. 2018).
A partir dos fragmentos apresentados podemos perceber que as normas de gênero, sobre o que é ser homem, ainda fazem parte da forma como os garotos significam as suas identidades e as identidades dos outros, uma vez que existe a concepção de que o “ homem de verdade é..”. Se o “ homem de verdade é” alguma coisa, o garoto tende a querer ser essa coisa e tudo aquilo que “ não é” passa a pertencer aos desvios, transgressões, patologias, anormalidades.
Nesse sentido, existem múltiplas expressões de gênero circulando no espaço escolar através de múltiplos discursos e por estarem circulando entre todos os garotos, acabam se tornando referências de como devem ser os comportamentos dos outros, pois para se dizer masculino o aluno deve apresentar alguns desses comportamentos, ao menos quando estiver em um grupo que os tenha mais ou menos em comum, como mostra o discurso que segue.
Eu simplesmente não gosto de jogar futebol, mas o que eu consigo falar com eles sobre futebol, o que eu entendo por baixo, eu tento conversar só pra não ficar de fora. É meio que uma forma de eu me encaixar na conversa, pois se eles estão conversando sobre futebol, pra eu não ficar de fora, eu tento falar um pouco, mesmo que eu não goste de futebol. Se eu não falasse de futebol, eu acho que eu não teria mais essa interação, porque eu não ia estar tentando interagir ali com eles. (Moisés, aluno do 2º ano, fragmento de entrevista, 14 fev. 2019).
Esses arranjos feitos ao assumirem determinados comportamentos para estar em um grupo específico nos revelam que existe uma performatividade nas expressões de gênero ( Butler 2003). O garoto configura seu comportamento de acordo com o comportamento dos outros membros daquele grupo e, com isso, por mais que não exista uma imposição direta da escola, dos professores e dos próprios alunos a respeito de qual comportamento cada garoto deva ter e nem uma exclusão ou discriminação daqueles que tenham comportamentos diferentes, ainda assim, nesse espaço escolar existe a noção de “normalidade” para as masculinidades.
Em vista disso, demonstrar determinados comportamentos é uma exigência para aqueles que se dizem pertencentes a determinados grupos, como, por exemplo, o grupo dos garotos machões, 6 pois, nesse caso, um garoto com comportamentos tidos como pertencentes ao feminino poderia não ser aceito e isso pode ser percebido no discurso do aluno Moisés quando ele diz, se eu não falasse de futebol, eu acho que eu não teria mais essa interação.
Contudo, esses arranjos performativos para fazer parte de um determinado grupo podem ser localizados em um momento demarcado e em situações específicas, nas quais um aluno tenha que fazer parte de alguma atividade com os garotos que mais se aproximam dos comportamentos tidos como pertencentes naturalmente ao sujeito que se diz masculino, como podemos perceber nas situações descritas a seguir.
Eu sou gay e eu jogo futebol, mas eu costumo ter o padrão deles, pois se eu tiver o meu padrão eu vou acabar não me saindo bem no jogo. Porque, tipo assim, eles são um time masculino, masculino mesmo, machão, eles não vão estar com essa quebradinha pra cá, com essa quebradinha pra lá, eles vão jogar firme, duro, pra sociedade ver que eles são homens de verdade, aí eu costumo pegar alguns costumes deles pra eu me adaptar ao jogo deles, mas não que eu seja iguais eles. (Marlon, aluno do 1° ano, fragmento de entrevista, 27 fev. 2019).
O que se tem são cristalizações de posições que servem de base para relações de poder que, por sua vez, vão definir lugares e quais práticas sociais são aceitas, assim como vão configurando privilégios a quem segue essas práticas ( Butler 2000), como pertencer ao grupo, por exemplo. Em vista disso, a perspectiva de pertencimento à determinada identidade é normalizadora, uma vez que seguir a perspectiva de uma referência identitária fixa lugares e privilégios, bem como dispositivos de exclusão e de normalização ao definirem práticas, corpos e padrões para determinados grupos ( Butler 2003).
Dessa maneira, as identidades são normalizadoras por fixarem papéis sociais e algumas referências identitárias tornam-se mais rígidas e homogêneas que outras e nos processos de trânsito entre as múltiplas referências de masculinidades presentes no espaço escolar pesquisado, essas referências mais rígidas e homogêneas se tornam lugar de adaptação, como demonstram os discursos transcritos acima.
Nesses casos, temos de um lado, os privilégios de uma determinada referência de masculinidade como sendo a detentora das expressões tidas como “normais/naturais” para determinadas situações e espaços e, por outro lado, a internalização por parte de alguns alunos de que os seus próprios comportamentos estariam, nessas situações, desviados, indesejados, fora do rumo etc., e, por isso, precisariam se adequar ao “natural/normal” em uma tentativa de homogeneizar os comportamentos.
O problema disso tudo é que as expressões de gênero que precisam se adequar são sempre aquelas que estão mais distantes dos padrões normativos naturalizados para as identidades de gênero, ou seja, é o gay que muda o comportamento no futebol, é o garoto que tem que falar sobre futebol para interagir, são os garotos que falam palavrões e ficam competitivos no jogo de pingue-pongue etc. São sujeitos que, de alguma forma, estão se construindo
[...] através da força da exclusão e da abjeção, uma força que produz um exterior constitutivo relativamente ao sujeito, um exterior abjeto que está, afinal, dentro do sujeito, como seu próprio e fundante repúdio ( Butler 2000, 153).
Nesse caso, os alunos constroem suas expressões de gênero a partir de operações de exclusão que funcionam como um lugar de produção, regulação, ressignificação e de relações insidiosas, pois ao terem que mudar seus comportamentos para serem aceitos ou participarem de alguma atividade com garotos que expressem comportamentos diferentes, aqueles que possuem os comportamentos que precisam ser repetidos, que no caso do espaço escolar pesquisado são os dos garotos machões, se tornam a referência de masculinidade que possui certa dominação no espaço.
Outro ponto revelado no espaço escolar pesquisado é que os garotos parecem precisar provar o tempo todo que são mais fortes que os outros alunos, como se isso refletisse em algum tipo de status, respeito ou dominação. Isso pode ser visto muitas vezes durante os intervalos, nas atividades extraclasses e mesmo durante as aulas. A prática mais comum de testar a sua força física é desafiar outro aluno em pequenas competições de empurrões. Nos espaços da escola eles sempre ficam se empurrando e se batendo.
O “prêmio” do vencedor parece não importar muito, o que importa mesmo é ter conseguido afastar o outro com a força do seu corpo. O que confirma os estereótipos construídos ao longo da história através de diversos discursos de que o “homem de verdade” precisa ter um corpo forte, ser destemido, corajoso, valente ( Grossi 2004) e não só ser tudo isso, ele precisa demonstrar para que todos acreditem que ele é tudo isso, como mostra o discurso descrito a seguir.
Durante o intervalo do almoço dois alunos que estavam na fila estavam se empurrando para passar um na frente do outro. Se empurravam até um se afastar e o outro ocupar o lugar da frente. (Fragmento de diário de campo, 20 dez. 2018).
Esses constantes testes de força física são sempre praticados em tom de brincadeira e, na maioria das vezes, seguidos por sorrisos. São práticas pertencentes às referências de masculinidades com expressões mais próximas dos padrões normativos estabelecidos para a ideia de uma masculinidade “normal”. Os alunos que estão envolvidos nessas práticas, nas quais constantemente estão testando a sua força física e a força do outro, são aqueles tidos como garotos machões e como garotos masculinos não machões. Não percebemos entre as outras referências de masculinidades a presença desses testes de força.
O status, poder, domínio, hegemonia que um corpo com maior força física traz é momentâneo e limitado, mas não deixa de ser uma forma desses garotos tentarem provar que estão dentro da norma tida como “natural/normal” para o sujeito masculino. Não é o resultado do desafio ou teste que comprova isso, mas a repetição do desafio ou teste, pois é na “repetição estilizada de atos” em tempos e espaços determinados que se configuram as identidades de gênero, através de uma “realidade performativa”. ( Butler 2003, 200). O que importa é repetir aquele comportamento para que se possa dizer pertencente a determinada referência de masculinidade.
Essa mesma relação pode ser percebida na prática de ameaças de violências, como bater, dar murro, te arrebentar7 etc., muito comum entre os garotos que fazem parte do espaço escolar pesquisado. Isso pode ser observado em todos os espaços da escola, pois bastava surgir algum tipo de conflito, discussão, discordância, até mesmo em brincadeiras, que as ameaças apareciam, como mostra o discurso transcrito abaixo.
Durante a aula, dois alunos sentados do lado direito da sala conversam em voz baixa, de repente um deles falou “o que é caralho, ta vacilando é? Tu não tem nem medo de apanhar não?”, o outro aluno ficou rindo e pareceu levar tudo na brincadeira. (Fragmento de diário de campo, 20 set. 2018).
Esses discursos nos permitem perceber que entre os garotos com comportamentos próximos às normas de gênero existe uma constante tentativa de não se mostrarem fracos, submissos ou dominados, pois se derem sinais de fraqueza podem ser considerados “menos homens” e serem dominados pelos outros. Portanto, por mais que aceitem e “respeitem” as outras referências de masculinidades presentes na escola, ainda assim, essas referências não são significadas como pertencentes a um “homem verdadeiramente masculino”.
Por essa razão existe a constante necessidade de se mostrar forte e não deixar outro garoto diminuir sua força, sua masculinidade. Conduto, como mostra Connell (1995), essa desvalorização de outras referências de masculinidades e de suas expressões, acabam por fortalecer o normativo, uma vez que colocam as outras formas de masculinidades como menos masculinas ao se negarem a expressar qualquer comportamento tido como pertencente a elas e ao tentarem tornar as práticas normativas comuns a todas as referências, como no caso das ameaças de violência aqui apresentadas.
E isso pode ser percebido no espaço escolar, pois além dos garotos machões, essas práticas são encontradas nas outras referências, pois alguns dos discursos descritos acima foram feitos por garotos fora dos padrões normativos de comportamentos tidos como pertencentes às masculinidades.
Nesse sentido, não existe uma imposição de uma referência como a “normal” para todos, mas existe a presença da norma, uma vez que no espaço escolar pesquisado persiste a ideia de que o “homem masculino de verdade” possui algumas características apresentadas por essas referências mais próximas aos padrões normativos, visto que esses alunos ainda estão descobrindo a multiplicidade dos gêneros e, por essa razão, os seus discursos ainda estão vinculados a uma perspectiva de gênero limitada. Assim, as práticas do dito “normal” se impõem de forma camuflada, oculta e silenciosa.
Portanto, essas expressões representam a aparência de necessidade que esses garotos têm de demarcar seus espaços, demonstrar poder e dominação e que não podem ser ofendidos, mesmo em brincadeiras, sem que tenham que revidar, pois caso não revidem podem ser considerados como não sendo homens suficientes. A prática de ameaças de violência é uma maneira dos alunos defenderem suas identidades masculinas e, por isso, medem força para estabelecer quem manda no espaço escolar.
Um ponto importante de tudo isso é que essa relação de dominação, poder, força, atenção, visibilidade etc., muito apontada pelos estudos feministas como existente entre homens em relação às mulheres, também é muito forte entre os próprios homens e suas masculinidades, como demonstrado aqui. Os homens competem entre si para ver quem tem mais atenção, visibilidade e demonstrar para o outro que não podem ser dominados, que são mais “machos”, mais fortes. Eles precisam provar para o outro que são “homens masculinos de verdade”.
Existe uma pressão constante entre os homens em relação à forma como cada um experiencia a sua própria masculinidade. São muitos olhares vigilantes sobre cada aluno e aquele que é vigiado também é vigia do outro, através de “vigilâncias múltiplas e entrecruzadas”, de “olhares que devem ver sem ser vistos” ( Foucault 2014, 168). É um garoto vigiando e exercendo certo controle sobre o comportamento do outro para que estes se mantenham fiéis àquilo que dizem ser.
Os discursos dos alunos nos permitem perceber que as práticas de demonstrações de força física fazem parte de brincadeiras, o que poderia estar relacionado a uma ideia de “inocência” dessas práticas. Contudo, as “brincadeiras” funcionam como um dispositivo de reprodução e incorporação das normas de gênero, tendo-se em conta que desde criança as brincadeiras são separadas entre “meninos” e “meninas”, o menino brinca de bola, jogos, carros e as meninas brincam de boneca e casinha.
Essas “brincadeiras inocentes” podem estar aprisionando, controlando e regulando como deve ser experienciada a identidade de gênero de cada um e acabam funcionando como um aparato de disciplinamento dos corpos a partir de uma determinada referência de masculinidade, uma vez que, ao assentarem o poder do masculino em práticas significadas como brincadeiras, as normas de gênero se impõem sem uma imposição direta.
Desse modo, ao significarem esses discursos produzidos e reproduzidos nessas práticas como brincadeiras, os alunos retiram delas o caráter de uma imposição direta das normas de gênero. No entanto, qualquer discurso está localizado em um lugar específico e, assim, não é neutro, livre ou independente, pois sempre está desempenhando uma função em meio a outros discursos, seja para apoiar-se neles, seja para distinguir-se deles, uma vez que
[...] não há enunciado que não suponha outros; não há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo de coexistências, efeitos de série e de sucessão, uma distribuição de funções e de papéis [...] ( Foucault 2012, 121).
É tendo essas construções e imposições como base, que os alunos constroem em seus discursos as significações em relação a comportamentos tidos como “normais” para garotos que se dizem masculinos, como demonstra o discurso a seguir.
Além do gênero, para se dizer masculino, o cara tem que, de acordo com as pessoas, tem que ter preferência e gostar só de mulher, ele tem que ser hétero e tal, mas acho que só o jeito de agir mesmo. Ser sério, por exemplo, pra algumas pessoas isso é masculinidade, se considerar muito homem, também pode ser. (Flavio, aluno do 1° ano, fragmento de entrevista, 18 fev. 2019).
As referências de masculinidades tidas como “normais” têm como principais características, na visão dos alunos do espaço escolar pesquisado, gostar de futebol, ser fiel, ser respeitado, gostar só de mulher, ser heterossexual e respeitar a todos, pois se ele tiver todas essas características poderá se dizer masculino, porém precisa juntar a tudo isso a seriedade demonstrada como a principal característica que fará dele um “homem de verdade”.
Nesse sentido podemos considerar o gênero como uma forma de poder social que torna as pessoas inteligíveis através do estabelecimento de padrões de legibilidade que devem ser reiterados o tempo todo e, assim, estabelece os limites entre um gênero considerado “normal” e aqueles que não o são. Portanto, ao nomear um corpo como masculino, está se reiterando um ato que expressa aquilo que se configurou como significado cultural para esse corpo e definindo fronteiras entre corpos que podem ser considerados masculinos e não masculinos.
A partir do que foi discutido no texto pode se dizer que no espaço escolar pesquisado existem múltiplas referências de masculinidades interagindo entre si e as expressões de gênero associadas a essas referências são performativas. Assim, não existem tipos puros de masculinidade, mas múltiplas referências que estão se (re)construindo e (re)significando, a partir da relação entre si das masculinidades.
Para os alunos do espaço escolar pesquisado existe uma significação a respeito do que é ser masculino “normal” e, mesmo que as outras referências sejam respeitadas pela grande maioria dos alunos, elas não são significadas como pertencentes à masculinidade tida como “normal”, pois ainda persiste a ideia de que determinados comportamentos não podem ser feitos por pessoas que se dizem masculinas.
Por mais que não pareça existir marcadores de diferenciação entre os alunos a partir de suas expressões de masculinidades, uma vez que não se percebem tantas imposições normativas a respeito de comportamentos que devam expressar, mesmo assim, as normas de gênero estão presentes o tempo todo no espaço escolar e se manifestam através de brincadeiras, piadas, testes de força, ameaças, comentários e nas mudanças de comportamentos ao participarem de determinados grupos.
Os testes de força, as ameaças, o uso de palavrões etc., não trazem grandes vantagens aos seus praticantes, mas o que importa para as normas de gênero é a constante repetição desses atos, pois é isso que irá representar a participação daquele aluno no grupo dos que se dizem pertencer a uma masculinidade “normal”.
Portanto, a visão a respeito da existência de uma masculinidade “normal/natural” ainda impõe processos de normalização no espaço escolar às referências de masculinidades que não seguem os padrões normativos de gênero. Não seguir essa normativa ainda coloca o aluno sujeito a práticas de violência físicas e simbólicas e, para não ser posicionado nesse lugar de violência, o aluno tenta se adaptar às expressões tidas como pertencentes naturalmente à masculinidade.
É necessário que a escola esteja atenta e combata esses processos que tendem a silenciar e invisibilizar sujeitos, discursos e corpos, muitas vezes de forma violenta e constrangedora ao colocar sujeitos como anormais, patológicos, abjetos e indesejados. O espaço escolar deve ser um lugar de liberdade, no qual as identidades possam ser expressas livremente.
Arthur Furtado Bogéa Mestre em Educação pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), em São Luís, MA, Brasil; doutorando pela mesma instituição. arthurbogea@gmail.comIran de Maria Leitão Nunes Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Natal, RN, Brasil. Mestre em Administração e Supervisão Escolar pela American World University of Iowa, EUA. Professora da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), em São Luís, MA, Brasil. irandemaria@hotmail.com