Resumo: Este artigo busca investigar o trabalho de fronteira em torno do cuidado de idosos enquanto uma possibilidade de ocupação específica e diferenciada no Brasil. Para tal, analisa os discursos produzidos pelo estado sobre a figura da cuidadora de idosos, a partir de análise documental. Em seguida, discute o distanciamento estratégico entre a profissional do cuidado e a trabalhadora doméstica, mobilizando pesquisas qualitativas realizadas entre 2014 e 2017, no Rio de Janeiro e em São Paulo, com: (1) empresas que agenciam os serviços de cuidadoras de idosos, atuantes em domicílio e; (2) acompanhantes de idosos que trabalham em uma política pública que oferece cuidado domiciliar. A partir de uma perspectiva interseccional, discute-se como as cuidadoras que atuam em domicílio visam se desvencilhar do trabalho doméstico, enquadrado narrativamente como distinto, a despeito da proximidade e da imbricação entre o campo do cuidado e o dos serviços domésticos.
Palavras-chave: Cuidado, Cuidadoras, Serviços domésticos, Novas ocupações, Interseccionalidade.
Abstract: This article seeks to investigate boundary-work surrounding elderly care as a specific e occupation in Brazil. To this end, it analyzes the speeches produced by the State on the figure of the care worker, using documental analysis. Then it discusses the relevance of the strategic distancing between care workers and domestic workers, mobilizing qualitative research carried out between 2014 and 2017 in Rio de Janeiro and São Paulo with: (1) companies that negotiate elderly care givers’ services, working at home and; (2) caregivers who work in a public policy that offers home care. From an intersectional perspective, it is discussed how care workers who provide services at home seek to untangle themselves from domestic work, discursively framed as distinct, despite the proximity and imbrication between the fields of care and domestic services.
Keywords: Care, Care workers, Domestic services, New occupations, Intersectionality.
Resumen: Este artículo busca investigar el trabajo de frontera en torno al cuidado de las personas mayores como una ocupación específica y diferente en Brasil. Para ello, analiza los discursos producidos por el Estado sobre la figura de la cuidadora, a partir de un análisis documental. Luego, se discute la distancia estratégica entre la profesional de cuidado y la trabajadora doméstica, movilizando la investigación cualitativa realizada entre 2014 y 2017 en Rio de Janeiro y São Paulo con: (1) empresas que brindan servicios de cuidadores de personas mayores, que trabajan en el hogar y; (2) acompañantes de personas mayores que trabajan en una política pública que ofrece atención domiciliaria. Desde una perspectiva interseccional, se discute cómo las cuidadoras que trabajan desde casa pretenden desprenderse del trabajo doméstico, enmarcado narrativamente como distinto, a pesar de su proximidad y traslape entre los campos del cuidado y del servicio doméstico.
Palabras clave: Cuidado, Cuidadora, Servicio doméstico, Nuevas ocupaciones, Interseccionalidad.
Artigos/Articles
“Não sou empregada, sou cuidadora”: o trabalho de fronteira em torno de uma nova ocupação
“I am not maid, I am a care worker”: Boundary-work around a new occupation
“No soy empleada, soy cuidadora”: el trabajo de frontera en torno a una nueva ocupación
Recepção: 31 Março 2021
Aprovação: 30 Outubro 2021
Publicado: 03 Novembro 2022
O cuidado alcançou recentemente o status de questão social. Hoje, inclusive, fala-se de uma “crise do cuidado”, um termo amplo e, passível de críticas, que visa designar as disjunções entre oferta e demanda de cuidado em diversos contextos nacionais. O fato é que a demanda por cuidado se encontra em crescimento, em virtude, especialmente, do envelhecimento da população – que no Brasil, é um fenômeno bastante intenso –, a queda nas taxas de fecundidade 3 e a maior entrada das mulheres no mercado de trabalho, especialmente, após os anos 1970 ( Guimarães, Brito e Barone 2016).
Desta forma, novos arranjos passam a ser necessários para a prestação de cuidado, de modo que essa passa a se configurar cada vez mais como uma atividade profissional e remunerada, organizada e ofertada tanto pelo estado quanto pelo mercado, mantendo sua dimensão sexuada ( Hirata e Kergoat 2007). É neste contexto que emerge a figura da cuidadora no país, uma atividade profissional que está em expressiva expansão ( Hirata e Guimarães 2012). Em 2015, havia 1,3 milhão de pessoas trabalhando como cuidadoras – seja de crianças, adultos ou idosos – em domicílios e instituições no Brasil ( Guedes e Monçores 2019). 4 O objetivo deste artigo é discutir o processo de consolidação do trabalho de cuidado e, mais especificamente, do trabalho de cuidado de idosos no Brasil, como ocupação, mostrando como o estado, o mercado e, especialmente, as próprias profissionais do cuidado atuam como agentes desse processo. Para tal, a análise é focada na construção discursiva do estado sobre a ocupação de cuidadora e, principalmente, na formação das identidades profissionais das cuidadoras, mostrando a tensão constitutiva entre trabalho doméstico remunerado e trabalho de cuidado no contexto brasileiro. Para compreender esta tensão é útil recorrer às teorias da interseccionalidade.
A noção de interseccionalidade, cunhada em 1989 pela intelectual negra norte-americana Kimberlé Crenshaw (1989), tem ganhado bastante notoriedade entre as teóricas feministas desde então. Neste artigo, interseccionalidade é compreendida como uma sensibilidade analítica ( Choo, Crenshaw e McCall 2013), isto é, um modo de conduzir análises e fazer avançar o debate sobre a relação entre a produção de categorias e as relações de poder, considerando, em especial, as dinâmicas inter-relacionadas – ou mutuamente constitutivas – da produção de gênero, raça e classe, tomadas como eixos centrais da desigualdade e da subordinação. O artigo analisa também o papel das micro hierarquias, construídas nos níveis institucional e interacional, que sedimentam a diferenciação social entre cuidadoras e trabalhadoras domésticas, 5 a partir da noção de trabalho de fronteira, definida mais à frente. Em campo, tornou-se comum ouvir a frase: “Não sou empregada, sou cuidadora”, ou variantes dela, o que alude para a centralidade desta distinção para as cuidadoras de idosos.
Este artigo se baseia em um conjunto de pesquisas mais amplo sobre trabalho de cuidado remunerado no Brasil. O texto é dividido da seguinte forma: primeiro, mostro como a ocupação de cuidadora de idosos no país emerge no âmbito do estado, que passa a categorizá-la e contabilizá-la na passagem dos anos 1990 para os anos 2000, a partir de análise documental. Foi realizada uma análise crítica dos principais documentos oficiais brasileiros após 1988 que discutem especificamente a questão do cuidado de idosos em âmbito nacional. Esses textos foram tomados como mecanismos burocráticos e de autoridade, que estabelecem sujeitos específicos e significados oficiais sobre o mundo ( Bourdieu 1996).
Em seguida, discuto como a conformação do cuidado de idosos no Brasil é caudatária de estratégias de fortalecimento de uma identidade profissional específica que se estabelece a partir do distanciamento com o trabalho doméstico, entendido como distinto tanto pelas empresas que oferecem serviços de cuidado e cursos de qualificação profissional quanto pelas cuidadoras. 6 Para tal me baseio em pesquisas realizadas entre 2014 e 2017 com profissionais do cuidado domiciliar no Rio de Janeiro, RJ, e em São Paulo, SP. O material empírico coletado consiste em entrevistas e etnografias realizadas com: (1) cuidadoras que têm seus serviços oferecidos por uma empresa e trabalham em domicílios de idosos e; (2) acompanhantes comunitárias de idosos (ACIs) de uma política pública que oferece cuidado domiciliar gratuito, o Programa Acompanhantes de Idosos (PAI), do município de São Paulo. O trabalho de campo se deu da seguinte forma: no Rio de Janeiro, foram realizadas, em 2014, 45 entrevistas semiestruturadas com cuidadoras de idosos que tinham se cadastrado para fazer parte do banco de profissionais de empresa ou que já haviam conseguido trabalho por meio desta. Também se observou a rotina da empresa durante um mês, incluindo a participação em seu curso de formação de cuidadoras de idosos, que tem duração de 18 horas. Em São Paulo, em 2017, foram realizados três meses de trabalho de campo em uma equipe do PAI localizada em uma região de classe média baixa de São Paulo. 7 As atividades realizadas pelas ACIs foram observadas cinco dias por semana, durante seu horário de trabalho. Mais especificamente, examinou-se o trabalho das cuidadoras em suas rotinas administrativas, reuniões, conversas informais e, principalmente, em suas interações com os idosos. Também foram realizadas 20 entrevistas com ACIs de outras equipes do PAI, localizadas em diferentes regiões da cidade.
Em que momento, no Brasil, o termo cuidadora de idosos passou a ganhar proeminência? Como argumenta Nadya Guimarães (2016), só muito recentemente a ocupação começou a figurar no cenário brasileiro, isto é, apenas nos anos 2000 o uso do vocábulo “cuidador” ou “cuidadora” se consagra, passando a denotar um tipo específico de trabalho e de profissional. A popularização do termo “cuidador” também ocorre no âmbito do estado, mais ou menos na mesma época.
O termo cuidador(a) de idosos ganha definição e passa a ser largamente utilizado como parte das diretrizes oficiais da saúde de idosos a partir da aprovação da Política Nacional de Saúde do Idoso, em 1999. O texto visa fundamentar as ações do setor de saúde com relação às pessoas idosas e assim define a figura do cuidador:
[O cuidador] é a pessoa, membro ou não da família, que, com ou sem remuneração, cuida do idoso doente ou dependente no exercício das suas atividades diárias, tais como alimentação, higiene pessoal, medicação de rotina, acompanhamento aos serviços de saúde ou outros serviços requeridos no cotidiano – por exemplo, ida a bancos ou farmácias –, excluídas as técnicas ou procedimentos identificados com profissões legalmente estabelecidas, particularmente na área da enfermagem. 8
No texto, fica claro que a cuidadora pode ou não receber salário e que há fronteiras estabelecidas com outras ocupações, especialmente aquelas do setor de enfermagem. No mesmo ano em que se publicou este texto, uma Portaria Interministerial envolvendo o Ministério da Saúde e o Ministério da Previdência e Assistência Social criou o Programa Nacional de Cuidadores de Idosos, tendo em vista a capacitação de cuidadoras familiares e profissionais, domiciliares e institucionais. 9 O Programa foi descontinuado cerca de um ano depois, sem atingir suas metas.
Paralelamente, a capacitação de cuidadoras continuou por outras vias, envolvendo mercado, gestores estaduais e municipais, projetos ligados a universidades, entre outros ( Groisman 2015, 100). Destaca-se a atuação de Escolas Técnicas de Saúde na formação destes profissionais. 10 No Rio de Janeiro, a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (ESPJV/Fiocruz), por exemplo, oferece, anualmente, desde 2007, curso para formação de cuidadores de idosos, com duração atual de 240 horas. Alguns Institutos Federais também oferecem cursos semelhantes, incluindo Cursos Técnicos, com duração de 1200 horas.
No mercado, é possível encontrar uma multiplicidade de cursos de formação, com duração muito variável. Também há uma ampla oferta de cursos de cuidadora online. A realização do curso não é condição necessária para exercer a função, sendo comum encontrar cuidadoras e acompanhantes de idosos sem qualificação formal na área.
Em 2002, a reedição da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) reconheceu a família ocupacional das cuidadoras de crianças, jovens, adultos e idosos. Nesta família figuram as cuidadoras de idosos, podendo também ser denominadas como acompanhantes de idosos, cuidadoras de idosos domiciliares, cuidadoras de idosos institucionais, cuidadoras de pessoas idosas e dependentes e, gero-sitters. As funções das cuidadoras de pessoas, bem como a formação e a experiência requeridas para o trabalho são descritas da seguinte maneira no texto:
Cuidam de bebês, crianças, jovens, adultos e idosos, a partir de objetivos estabelecidos por instituições especializadas ou responsáveis diretos, zelando pelo bem-estar, saúde, alimentação, higiene pessoal, educação, cultura, recreação e lazer da pessoa assistida. Essas ocupações são acessíveis a pessoas com dois anos de experiência em domicílios ou instituições cuidadoras públicas, privadas ou ONGs, em funções supervisionadas de pajem, mãe-substituta ou auxiliar de cuidador, cuidando de pessoas das mais variadas idades. O acesso ao emprego também ocorre por meio de cursos e treinamentos de formação profissional básicos, concomitante ou após a formação mínima que varia da quarta série do ensino fundamental até o ensino médio. [...] No caso de atendimento a indivíduos com elevado grau de dependência, exige-se formação na área de saúde, devendo o profissional ser classificado na função de técnico/auxiliar de enfermagem. 11
Apesar de constar como ocupação específica, a função de cuidador/acompanhante de idosos ainda não está regulamentada por lei, o que gera ambivalências e incertezas para as cuidadoras de idosos em relação às suas funções e direitos ( Araujo 2015). Em 21 de maio de 2019, um projeto de lei que regulamentaria as profissões de Cuidador de Pessoa Idosa, Cuidador Infantil, Cuidador de Pessoa com Deficiência e Cuidador de Pessoa com Doença Rara foi aprovado pela Câmara e pelo Senado, após longa tramitação – o projeto inicial datava de 2007. Entre os requisitos para ser cuidador, constavam no projeto: no mínimo ensino fundamental completo, curso de qualificação na área e certificado de bons antecedentes criminais. O projeto não se tornou lei, porque em 8 de julho de 2019 sofreu veto total do presidente Bolsonaro, sob alegação de que a lei disciplinaria a profissão de cuidadora, com a imposição de requisitos e condicionantes, assim restringindo o livre exercício profissional. 12
Em resumo: as dificuldades em regulamentar a ocupação 13 e a claudicância do Estado em oferecer oportunidades de qualificação profissional (e parâmetros para essa qualificação), têm como efeito o fato de que as identidades profissionais das cuidadoras e as fronteiras ocupacionais entre o cuidado e outros setores sejam muito mais implementados na prática cotidiana, não encontrando muito apoio nas normas prescritas pelo Estado, como mostrarei a seguir.
Vimos, então, que o cuidado de idosos pode ser entendido como uma ocupação relativamente nova e com grandes fragilidades no que concerne os modos como o Estado vem lidando com a mesma. Mas o que acontece na prática? As cuidadoras de idosos reivindicam uma identidade profissional específica? E, se sim, de que formas? Para explicar isso, analiso como há um esforço por parte das profissionais do cuidado e por parte das empresas que oferecem os serviços das cuidadoras, em se afastar progressivamente do que é definido como pertencente ao campo do trabalho doméstico.
O trabalho doméstico é reconhecido no campo dos estudos de gênero como um trabalho altamente precário, com níveis de remuneração baixos e más condições de trabalho ( Sanches 2009), desvalorizado socialmente ( Chaney e Garcia Castro 1989 [1999]), entendido como desqualificado ( Gutiérrez-Rodríguez 2007) e que congrega trabalhadoras com múltiplas desvantagens sociais em termos de gênero, raça e classe ( Crompton 2006; Sorj 2014; Uhde 2016). Se distanciar do trabalho doméstico aparece como estratégia de valorização profissional (cuja efetividade é baixa) para as profissionais do cuidado, muito embora as aproximações com as trabalhadoras domésticas, no caso brasileiro, sejam bastante pronunciadas.
Trabalhando em domicílio, as cuidadoras de idosos são amparadas pela mesma legislação que as trabalhadoras domésticas, conhecida popularmente como PEC das domésticas. As trabalhadoras domésticas, parcela expressiva da força de trabalho brasileira, são mulheres em sua maioria negras, de baixa renda e baixa escolaridade ( Pinheiro et al. 2019), assim como as cuidadoras ( Guimarães e Hirata 2020). Pode-se dizer que há uma notável fluidez de fronteiras entre as trabalhadoras domésticas e as cuidadoras domiciliares quando se examina seu perfil e suas atividades de trabalho no Brasil ( Guimarães, Hirata e Sugita 2012; Guimarães e Hirata 2020). Não obstante, as cuidadoras que pesquisei realizam um verdadeiro trabalho de fronteira [ boundary-work] ( Lamont e Mónar 2002), para distinguir suas atividades daquelas realizadas por trabalhadoras domésticas, para se distanciar do trabalho doméstico na casa dos idosos.
O conceito de trabalho de fronteira foi inicialmente desenvolvido por Gieryn (1983) para descrever o processo de seleção de determinadas características como científicas, por oposição a práticas, instituições e sujeitos que estariam fora deste domínio, ou seja, poderiam ser caracterizados como não científicos. Posteriormente, Michèle Lamont (1992, 2000) utilizou o termo para descrever a formação de identidades, destacando como as pessoas se classificam em relação a outros indivíduos e grupos. A autora mostra, por exemplo, como os brancos de classe trabalhadora norte-americana constroem sua identidade por oposição aos negros e pobres, por eles associados a características e comportamentos negativos.
No caso das cuidadoras de idosos, o trabalho de fronteira envolve a construção de uma identidade profissional diferenciada e distanciada do trabalho doméstico. Esse distanciamento, por sua vez, diz respeito às distinções de atividades que caberiam à cuidadora, mas, principalmente, representa uma tentativa de afastamento das representações sociais comumente relacionadas ao trabalho doméstico no país.
Nesse sentido, é importante ressaltar que as desigualdades sociais, em especial, de classe, raça e gênero, em sua articulação, ajudam a construir um estigma do trabalho doméstico e de suas trabalhadoras ( Lima e Prates 2019), incluindo a dimensão cotidiana da humilhação na relação entre patroas e domésticas ( Freitas 2014). O trabalho de cuidado é também desvalorizado e congrega, grosso modo, como vimos, os mesmos atores sociais: em sua maioria, mulheres negras ( Guedes e Monçores 2019). Mesmo assim, há um esforço de diferenciação por parte das cuidadoras. Vejamos a seguir as estratégias utilizadas para tal.
Esta seção é baseada em pesquisa realizada em uma empresa que agencia o trabalho de cuidadoras de idosos na cidade do Rio de Janeiro. A empresa funciona como uma intermediária entre as cuidadoras e os clientes da mesma (em geral, familiares dos idosos que precisavam de cuidados), selecionando, treinando e alocando as cuidadoras nos domicílios dos idosos cuidados. Ou seja, trata-se de uma situação na qual, para as cuidadoras, a própria inserção profissional é moeda de negociação. A partir da pesquisa, foi possível notar que as cuidadoras de idosos defendem que as tarefas domésticas que realizam – ou devem realizar – são apenas aquelas relacionadas diretamente ao idoso, como fica claro neste trecho de entrevista:
Então, recentemente eu até saí de uma casa pra onde a Marcela 14 [diretora da empresa onde foi realizada a pesquisa] me indicou, que a pessoa achava que eu tinha que regar as plantas lá na calçada, lavar o quintal. E não tinha por favor não. “Vai fazer isso, vai fazer aquilo”. Aí falei assim: “Olha só, a Princesa Isabel assinou a lei da escravidão, tá, então dá licença, eu vou fazer uso da minha Lei Áurea”. E saí da casa. Então tem muito cuidador que não se importa de fazer essas coisas, e aí o dono, né, o patrão fica achando que o cuidador além de cuidar do paciente – é obrigação do cuidador cuidar do paciente, cuidar do ambiente, manter limpo o quarto do paciente, manter limpo as roupas do paciente, fazer a comida do paciente – não é cozinhar pra família toda, não é lavar a roupa da família toda, não é dar faxina na casa. [...] Então eu acho que é uma coisa que tem que ser demarcada, delimitada, ser bem exposta, ser bem determinado nisso. [...] “Ah, mas que que custa ele fazer o almoço também?”. Custa muito porque não é serviço dele. A menos que você acerte um dinheiro à parte com ele pra fazer aquilo ali, mas não é serviço dele. (Cuidadora de idosos Nara, entrevista à autora, abr. 2014).
Para essas cuidadoras de idosos, apartar-se do trabalho doméstico e da figura da doméstica polivalente constitui uma estratégia que legitima a especificidade de sua ocupação. A cuidadora também menciona o passado escravocrata brasileiro, que, constitui uma herança relevante aos significados de servidão comumente atribuídos ao trabalho doméstico ( Ávila 2016), o que aponta para a relevância das opressões interseccionadas de raça e gênero ( Collins 2015).
Essa narrativa nos permite destacar a importância da análise intracategórica no campo dos estudos de interseccionalidade ( McCall 2005). Isto é, um grupo social que em aparência é relativamente homogêneo em termos sociodemográficos – neste caso, trabalhadoras domiciliares, sejam domésticas ou cuidadoras – quando analisado em um nível micro, pode apresentar diferenças significativas e contextuais em termos de posições e identidades sociais e, principalmente, em termos de percepções sobre posições sociais. Nas palavras da autora:
Embora estruturas de desigualdade amplas, de raça, nacionalidade, classe e gênero tenham impacto e devam ser discutidas, elas não determinam a textura complexa do dia a dia para os membros individuais do grupo social em estudo, não importa quão detalhado seja o nível de desagregação. ( McCall 2005, 1782, tradução própria).
No âmbito da empresa pesquisada, o afastamento entre cuidadora e trabalhadora doméstica era fortemente incentivado, o que foi percebido em outras empresas semelhantes. Esse afastamento se dá tanto nos cursos de formação, em que os professores buscam constantemente mostrar quais as diferenças entre os trabalhos, quanto nos sites das empresas, em que é comum encontrar definições sobre as atribuições (diferentes) de cada uma das ocupações.
A diferenciação entre as duas ocupações é fartamente mobilizada por um dinâmico e crescente mercado privado nas grandes cidades brasileiras, voltado ao recrutamento, treinamento e encaminhamento de cuidadoras para o mercado de trabalho. Abre-se assim uma nova e vigorosa franja de atuação na intermediação de serviços domiciliares.
A qualificação profissional, por meio de cursos de formação, mesmo que de curta duração, também desempenha um papel relevante na construção das distâncias. Isso se expressa na fala de uma ex-trabalhadora doméstica, que hoje se identifica como cuidadora:
- Tenho 42 anos, sempre trabalhei como doméstica, diarista, essas coisas, mas aí uma das minhas pacientes ficou idosa e eu cuidei. Profissionalmente tem três anos só que eu trabalhei com carteira assinada nessa área, no Leme (bairro da zona sul do Rio de Janeiro), com uma paciente de 90 anos, foi lá que eu aprendi algumas coisas na prática e ser cuidador é dia a dia né, aprendizado todo dia. E eu sempre gostei muito de idoso. Sempre cuidei com muito amor. E me profissionalizei, trabalhando nessa casa, e já tinha dois cursos, tenho um aqui pela Marcela [diretora da empresa onde foi realizada a pesquisa] e tenho outro. E tô fazendo um outro pela Cruz Vermelha, pra aprender mais, me especializar mais [...].
- Você pretende continuar como cuidadora?
- Sim, eu tô fazendo esse curso que eu te falei pela Cruz Vermelha pra dar mais uma lembrada e eu tô pensando em fazer enfermagem, mas assim, seguindo nessa linha de idosos mesmo, se eu conseguir terminar eu continuaria cuidando de idoso. Porque não tem muita mão de obra qualificada. Hoje em dia ser cuidador não é simplesmente um empregado doméstico que vai cuidar, tem que tá qualificado. Tem que se qualificar. E quanto mais você se informar, melhor. (Cuidadora Mariana, entrevista à autora, abr. 2014).
As pesquisas sobre cuidado na Argentina realizadas por Natacha Borgeaud-Garciandía (2015) indicam que a capacitação das trabalhadoras do cuidado desempenha um papel subjetivo para elas. Assim, estas trabalhadoras falam de valorização das competências adquiridas e aprendidas, por oposição àquelas consideradas naturais, associadas ao trabalho feminino de (re)produção social. A autora afirma ainda que esta valorização não necessariamente se transforma em maiores ganhos financeiros. A situação é, portanto, bastante similar ao que ocorre no Brasil.
Agora, discutirei o que acontece quando as trabalhadoras do cuidado não são empregadas pelas famílias dos idosos ou por esses, mas trabalham em um programa social de política pública. Mostrarei que também neste caso, a tensão com o trabalho doméstico permanece e que o trabalho de fronteira continua a ser realizado.
Como afirma Yumi Garcia dos Santos (2014), uma característica específica dos programas sociais brasileiros é a adoção das figuras de agentes de ponta, ou agentes de rua, que atendem a população em seu domicílio, tendo em vista a garantia da capilaridade, a proximidade e a continuidade do serviço. São mulheres, em geral de classes populares, que são empregadas na interface entre estado e famílias. Como exemplo destas trabalhadoras de ponta do cuidado, pode-se citar as ACIs de uma política pública do município de São Paulo voltada ao cuidado domiciliar de idosos, o PAI. 15 Cada equipe do PAI é composta por um coordenador(a), um médico(a), um enfermeiro(a), dois auxiliares ou técnicos de enfermagem, um auxiliar administrativo, um motorista e 10 acompanhantes, atendendo cerca de 120 idosos.
Em 2017, quando foi realizada a pesquisa, havia quase 40 equipes do PAI em funcionamento. A maioria das equipes está sediada em Unidades Básicas de Saúde (UBS) – os antigos postos de saúde – espalhadas por todas as regiões da cidade e atendem idosos que residem próximos das mesmas. Os idosos atendidos têm média de idade acima de 80 anos, são em sua maioria mulheres e possuem problemas de saúde diversos.
O trabalho das ACIs consiste em realizar visitas domiciliares a estes idosos, além de acompanhá-los em consultas médicas e em outras atividades, como ir à farmácia ou ao supermercado e, mais ocasionalmente, promover atividades coletivas como festas, caminhadas e rodas de conversa. Segundo o Documento Norteador do PAI, que é uma espécie de manual da política pública, cabe também às acompanhantes realizar atividades domésticas na casa do idoso, quando necessário, incluindo cozinhar, lavar e limpar. De fato, vi durante a pesquisa ACIs estendendo e recolhendo roupas no varal, dando comida aos animais domésticos, lavando louça, guardando roupas em armários, entre outras atividades facilmente categorizáveis como trabalho doméstico. A despeito disso, o cenário com o qual me deparei na pesquisa, tanto na realização da etnografia quanto das entrevistas, foi um esforço contínuo, por parte das ACIs, em se distanciar, discursivamente, do trabalho doméstico, a partir da mobilização da noção de ajuda:
A gente ajuda o idoso hoje com alguma coisa que ele precise. Se ele tiver cozinhando eu posso auxiliar, eu não posso fazer por ele. Porque a gente tá aqui, esse Programa é pra dar autonomia pra eles né, pra estimular. A não ser que eles não tenham condições nenhuma, aí você vai ajudar, né. Mas eu ajudo, assim, quando tá na cozinha fazendo alguma coisa, se tiver uma batata pra descascar, eu posso auxiliar, ajudar, sabe, pra idosa poder cozinhar, porque muitas não quer mais nem cozinhar, perdeu a vontade de fazer tudo. (ACI Cleusa, entrevista à autora, jun. 2017).
Assim, está claro para as ACIs que ajudar é diferente de executar, isto é, ao invés de fazer algo para os idosos, enfatizam que fazem algo com eles. Esta diferenciação é bastante mobilizada quando o que está em questão é o trabalho doméstico.
Parte da literatura sobre cuidado ( Tronto 1993; Glenn 2010) tende a conceber (pelo menos) duas dimensões distintas dele. Uma diz respeito ao trabalho físico, muitas vezes sujo, do cuidado e a outra remete ao trabalho emocional, de supervisão e relacional. É importante destacar que estas duas dimensões, muitas vezes, são polos de uma divisão social do cuidado ( Glenn 2010) que tende a: (1) valorizar a última em detrimento da primeira e; (2) alocar provedores distintos para cada dimensão. Aqui ela é útil para analisar como a valorização do cuidado desempenhado pelas ACIs se realiza a partir do distanciamento – e de uma narrativa sobre este distanciamento – do trabalho doméstico. Na literatura feminista há um amplo debate sobre em que medida o conceito de cuidado “purifica” os debates sobre desigualdades que são centrais à literatura sobre trabalho doméstico e reprodução social ( Duffy 2007; Casanova e Brites 2019).
Nos bairros mais abastados, no entanto, as ACIs, especialmente as negras, se ressentem frequentemente de serem “feitas de empregada” ( Araujo 2020), isto é, demandadas a executar trabalho doméstico e tratadas com desrespeito, o que aponta como essa estratégia de afastamento não gera, necessariamente, efeitos concretos no sentido de maior valorização do trabalho.
A partir de um conjunto de pesquisas em torno do cuidado de idosos, este artigo buscou mostrar como a emergência do cuidado como ocupação compreende variadas esferas: o estado, que nos anos 2000 sugeriu a inclusão da figura da cuidadora como parte das políticas públicas de saúde para idosos no Brasil e criou a ocupação de cuidadora de pessoas, embora sua atuação tenha sido bastante limitada; o mercado, que oferece os serviços especializados das cuidadoras e os distingue daqueles realizados pelas trabalhadoras domésticas e; as práticas das próprias trabalhadoras do cuidado, que visam se distanciar do trabalho doméstico e dos sentidos normalmente atribuídos a ele.
Longe de ser unívoco, no entanto, o distanciamento com o trabalho doméstico no âmbito do cuidado diz respeito aos estigmas associados ao trabalho doméstico e em uma tentativa de diferenciação social do cuidado. A interseccionalidade e atenção à posicionalidade das prestadoras e beneficiários do cuidado se mostra fundamental para compreender a organização das práticas de cuidado e os embates entre cuidado e trabalho doméstico no Brasil.
Também vale ressaltar que este distanciamento com o trabalho doméstico, diagnostica uma (micro)hierarquia vigente entre as próprias cuidadoras, para quem o cuidado seria mais valorizado (ou valorável) que o trabalho doméstico. Isso tem efeitos políticos, inclusive para a própria organização dessas trabalhadoras, que por vezes discordam sobre as melhores estratégias para valorização do trabalho doméstico e de cuidado ( Araujo, Monticelli e Acciari, 2021). Na prática, no entanto, o cuidado continua a ser bastante invisibilizado e sujeito a desqualificações e estigmas muito similares do que aqueles enfrentados pelas trabalhadoras domésticas. Neste sentido, é importante observar e analisar continuidades e similitudes entre as duas ocupações.
Anna Bárbara Araujo Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Natal, RN, Brasil. Doutora e mestra em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no Rio de Janeiro, RJ, Brasil. annabarbaraaraujo@gmail.com