ARTIGO INTERNACIONAL
Recepção: 16 Abril 2021
Aprovação: 26 Abril 2021
Resumo: Partindo do ensino remoto durante a pandemia no Rio de Janeiro, analisamos o uso dos meios e suas mediações, seguindo estudos de Martín-Barbero, em dois polos opostos da sociedade. Primeiro, referimo-nos, com exemplos etnográficos próprios e sob o olhar da educomunicação, ao ensino nas periferias e favelas da cidade. Nesse contexto, destacamos os problemas materiais e logísticos dos estudantes para ter acesso às novas plataformas de ensino e as dificuldades para ler e compreender apostilas disponibilizadas pela prefeitura. O outro polo recai num curso particular de idioma e cultura, com a apresentação de vantagens do ensino à distância: convivência solidária, união virtual de pessoas separadas geograficamente, benefícios da plataforma Zoom e aprendizagem sobre outras culturas. Na conclusão, levantamos questões sobre como e se podemos aproveitar essas vantagens para o benefício geral.
Palavras-chave: Ensino remoto, pandemia, mediações, cidadania, favela.
Abstract: Based on online teaching during the pandemic in Rio de Janeiro, we analyze the use of media and its mediations according to Martín-Barbero in two opposed parts of society. Firstly, and by looking through an educommunication lens with own ethnographic examples, we refer to teaching in the periphery and favelas of the city. In this context, we emphasize the students’ logistic and material problems of access to the new teaching platforms and with reading and understanding the didactic materials provided by the city council. The other side focusses on a private cultural institute by introducing advantages of online teaching, such as convivial solidarity, the virtual coming together of geographically separated people, the benefits of the online platform zoom and the learning about other cultures. In the conclusion we ask if and how these advantages can be reused for general benefit.
Keywords : Online teaching, pandemic, mediation, citizenship, favela.
1. INTRODUÇÃO
A crise sanitária mundial do novo coronavírus vem funcionando como fator decisivo para a multiplicação do ensino remoto: as aulas on-line em escolas, institutos culturais e universidades são hoje, em grande parte, uma consequência e/ou uma resposta à pandemia e às medidas de distanciamento e isolamento social. Surge então o desafio de lidar com estruturas deficitárias, falhas de tecnologia e ausência de metodologias adequadas. Isso tudo ainda se verifica num clima preponderante de choque, tristeza e medo, que domina essa nova realidade midiática escolar. Ou seja, podemos constatar a dramaticidade do momento dessa crise 2 , relacionada a uma necropolítica brutal que, nas palavras do filósofo camaronês Achille Mbembe, nem mais garante o direito de cada indivíduo de respirar 3 .
Assim, os efeitos da pandemia colocam uma lupa nas desigualdades econômicas e sociais, que se agravam no nível digital. A “lupa”, amplamente usada como metáfora e lugar comum em escritos jornalísticos no Brasil e no mundo afora para descrever as diferentes visualizações de desigualdades no contexto da pandemia, serve como ferramenta simbólica para nosso estudo. Considerando a estrutura geral deficitária e altamente desigual, como consta também nos relatórios e avaliações escolares internacionais comparativos 4 , gostaríamos de, principalmente, apontar a lupa para dois lados opostos da sociedade brasileira. Para isso, tomaremos como pano de fundo o relativo fracasso da implementação do ensino virtual em nível nacional, que foi devido à falta de serviços gratuitos de acesso à internet, de equipamentos e de instrução adequada aos professores. Gostaríamos de focar primeiramente nos marginalizados e excluídos da educação formal de qualidade nas periferias e favelas do Rio de Janeiro. A seguir, mostraremos um exemplo do lado dos privilegiados, como um instituto privado de idioma e cultura, para apontar alguns aspectos positivos dessa nova realidade.
Nesse empreendimento, direcionamos a lupa, inicialmente, nos processos das diferentes mediações verificadas nas dinâmicas de ensino e aprendizagem entre aluno e professor, bem como no uso de mídias, apropriação destas e criação de sentido. A análise de tal criação se baseia na teoria da comunicação de Martín-Barbero 5 , cujo foco recai sobre as mediações, não apenas nos meios em si. De fato, a ênfase é naquilo que acontece “entre” os diferentes meios, ou seja, na forma como o aluno utiliza a mídia, como dela se apropria, como troca ideias sobre ela com colegas e professores, e como dessa maneira, criam-se diferentes tipos de sentido a partir dos processos ocorridos entre transmissões e receptores. Dessa maneira, para visualizar tais processos, a ideia central das mediações de Martín-Barbero, formulada no contexto do século XX, segue válida hoje em dia 6 , quando quase tudo é mediado de alguma forma, como destaca o educomunicólogo inglês David Buckingham 7 .
O presente trabalho se baseia nos princípios da educomunicação , no sentido dado por Adilson Citelli 8 , Maria Immacolata Vasallo de Lopes e Ismar de Oliveira Soares que enfatizam o compromisso com pesquisas de cunho emancipador e dialógico, na linha de Paulo Freire, assim como a teoria de mídia de Jesus Martín-Barbero, que destaca a relação imbricada entre educação, comunicação e cultura 9 . Metodologicamente, baseamo-nos em observações participativas próprias, registradas em caderno de campo, e em extratos das etnografias surgidas a partir disso, seguindo assim o antropólogo George Marcus 10 ao produzir uma etnografia multi--situada . Esse enfoque se aproxima, em muitos aspectos, das pautas da pesquisa de intervenção, descritas por Adilson Citelli, Maria Immacolata Vasallo de Lopes e Ismar de Oliveira Soares 11 .
2. DESIGUALDADE DIGITAL EXTREMA NA PERIFERIA 12
Como assinalado acima, a distribuição de recursos para acesso digital intensifica as já existentes desigualdades socioeconômicas na sociedade brasileira. No Rio de Janeiro, a pandemia ensejou uma desorientação geral, com prolongado período sem educação presencial. Porém, segundo a Secretaria Municipal de Educação 13 , existe desde março de 2021 uma ampla cobertura de serviços para os estudantes. No caso do ensino fundamental administrado pelo município, isso inclui o acesso a plataformas com tarefas para os alunos e a produção de videoaulas, gravadas e ao vivo, em colaboração com a empresa MultiRio e transmitidas pelo Youtube e pela TV Escola. Para o ensino médio, a responsabilidade é do Estado, que provê o acesso à plataforma Google, com a criação de um aplicativo próprio de ensino para celulares. Nos dois casos, há ainda a possibilidade de retirar, nas escolas, apostilas com o conteúdo das disciplinas 14 .
No entanto, não é o que se verifica na realidade. As plataformas para ensino remoto, que também podem ser acessadas por redes sociais como o Facebook, muitas vezes, são pouco conhecidas entre os moradores das favelas. Quando chegam a conhecê-las, apresentam-se outros problemas, como na ativação e utilização do aplicativo educativo, que ocasionalmente veicula conteúdo duvidoso e até racista 15 .
Nesse momento, portanto, percebe-se uma condensação das desigualdades socioeconômicas com as digitais: a maioria das famílias na favela carece de uma boa e rápida internet 16 , bem como de computadores, espaço físico tranquilo, tempo e recursos didáticos e pedagógicos para acessar ao conteúdo das plataformas, do aplicativo ou das apostilas. O resultado é uma elevada taxa de abandono e evasão escolar. Sem acesso aos estudos a nível municipal, estimativas obtidas por relatos dispersos indicam que a grande maioria dos alunos de favelas não participa dos ambientes de ensino virtual 17 .
Diferente do que anuncia a prefeitura, muitas escolas dentro das comunidades 18 sequer conseguiram organizar plataformas de ensino remoto. Em casos nos quais elas foram criadas, houve relatos de restrições financeiras que impediam o acesso ao material das plataformas 19 .
Ou seja, a condensação de fatores socioeconômicos e digitais tem de ser vista no contexto da vida cotidiana precária da favela: as altas taxas de desemprego que acarretam insegurança alimentar; a falta de acesso a serviços básicos como eletricidade, água e saneamento; sem contar o risco pessoal relacionado a uma política de segurança pública especialmente truculenta nessas regiões.
Ao mesmo tempo, observa-se uma intensa auto-organização nas comunidades para garantir o isolamento social e a provisão de cestas básicas. Vale salientar, contudo, que, por muito tempo, não houve ações públicas para promover uma melhor inclusão digital. Apenas quase um ano depois do começo da pandemia, a Central Única das Favelas (CUFA) criou o programa nacional Mães da Favela, com vistas justamente a oferecer uma maior inclusão digital nas periferias. Porém, mesmo esse programa, cuja meta é atingir dois milhões de moradores de favela, beneficiaria apenas 1% da população do país 20 .
As realidades dos fracassos no cumprimento da missão didática e pedagógica da educomunicação e no processo de “prover-instruir-estudar-trocar-aprender” foram registradas nas observações etnográficas numa das comunidades mais afastadas e periféricas da cidade, o Jardim Gramacho na Baixada Fluminense 21 . Durante uma visita em fevereiro de 2021, o cabeleireiro afro-descendente Arnaldo reclama que o filho de cinco anos ficou sem estudar desde o começo da pandemia, e que o outro, de sete, só recebeu uma apostila em fevereiro de 2021. Acrescenta que ele próprio não sabe como passar o conteúdo para os filhos, além de desconhecer e não ter condições de acessar à plataforma online . A mãe Maria, também afrodescendente, que sempre chega tarde e cansada do trabalho, mantém um grupo no aplicativo WhatsApp com outras mães da turma do filho, e vai uma vez por semana à escola para buscar tarefas para ele. Mesmo assim, ela relata problemas de compreensão do conteúdo dessas apostilas, bem como para motivar a criança e organizar sua rotina de estudos. De fato, observou-se a presença do filho no salão durante todo o dia, com uma programação adulta de televisão ao fundo, sem interações escolares com o pai, apenas jogando games no celular e assistindo a desenhos no Youtube. Perguntado ao filho Ismael o que ele está aprendendo com a apostila – impressa – da escola, o jovem responde, desanimado: “nada, isso é algo chato”.
Em suma, verifica-se uma prolongada situação de nenhum acesso à educação, o que foi confirmado por outras crianças da vizinhança, no Jardim Gramacho, que também ficaram um ano sem aula. Sem acesso à plataforma do ensino por falta de um bom serviço de internet , elas dependem das apostilas que não sabem como ler, entender e estudar. As poucas mães – os pais se mostram, em geral, ausentes – com condições práticas de ajudar no processo de aprendizagem enfrentam, porém, a mesma dificuldade para compreender e explicar o conteúdo das apostilas. Elas reclamam que também não conseguem acessar às plataformas do Ministério da Educação, como comprova o líder comunitário Márcio, em março de 2021.
Ou seja, as mediações dos alunos são reduzidas ao material impresso da apostila, o que acarreta consideráveis restrições no processo de aprendizagem. No geral, observa-se outros tipos de mediações multimodais que não fazem parte do ensino oficial: as dos games do celular, dos vídeos assistidos no Youtube, além do consumo aleatório de programas de televisão muitas vezes não adequados à faixa etária, sem instrução específica e com caráter de entretenimento com pouca aprendizagem 22 . Assim, a triste realidade de Jardim Gramacho reflete outros exemplos do morro do Turano, da Rocinha e da Ladeira dos Tabajaras, todos com alto número de população afrodescendente: comprovada por estudos divulgados por reportagens tanto pela mídia hegemônica quanto pela comunitária 23 .
3. DO OUTRO LADO: O ENSINO REMOTO NUM INSTITUTO PARTICULAR
No geral, há relatos positivos, em escolas particulares no Rio de Janeiro com boa estrutura e recursos, tanto das instituições quanto dos alunos que conseguem adaptar a administração do conteúdo escolar pelas plataformas, até com certo grau de sucesso. É o caso das caríssimas British School e das escolas alemãs Colégio Cruzeiro e Colégio Corcovado. Entre essas experiências – relativamente – positivas, elegemos abordar o caso especial de um instituto cultural de ensino de língua e cultura alemã 24 . Reiteramos que, neste breve estudo de caso, valemo-nos da técnica de observação participativa e de trechos etnográficos de caderno de campo.
Ele pode ser tido como caso específico por reunir, na sua grande maioria, alunos universitários brancos que pretendem aprender o idioma por conta própria e não por obrigação, como no ensino oficial. Falam fluentemente entre uma a quatro línguas estrangeiras, estão em ótimas condições socioeconômicas, possuem não apenas os mais avançados equipamentos tecnológicos, mas também o acesso ao mais rápido e estável serviço de internet .
No início de abril de 2020, houve uma transição da modalidade presencial para o ensino remoto. Introduziu-se a utilização da plataforma Zoom para transmitir o conteúdo do curso e dos livros didáticos impressos e também nas suas novas versões virtuais. Mesmo com todo o equipamento e melhores formas de capital econômico, social, cultural e simbólico, houve casos de falta de luz, de motivação, de cansaço e de aborrecimento por acessar aulas mediadas por uma tela: o aluno Felipe até destaca, nesse contexto em dezembro de 2020, que é uma pessoa “câmera-fóbica”. Sem embargo, a seguir, gostaríamos de enfatizar apenas alguns aspectos positivos dessa modalidade.
3. 1. Lições do ensino remoto
As experiências relatadas foram colhidas nas aulas do curso de alemão, nas respectivas aulas de conversação e no cineclube, todas complementares entre si. Se por um lado as aulas do curso são obrigatórias, a conversação tem a função de exercitar o idioma com temas da cultura e do cotidiano, e o cineclube, através da exibição de filmes em língua alemã, promove um contato mais descontraído, democrático e não vertical com a língua alemã 25 .
Uma breve introdução à plataforma Zoom foi acompanhada por um longo processo de mediações de learning by doing , trial and error (aprender fazendo, tentativa e erro) . Sucedeu uma mútua aprendizagem entre professor, aluno, coordenação pedagógica e chefia. Desse processo dinâmico surgiram efeitos sinergéticos positivos. Por exemplo, a descoberta das vantagens do aplicativo, como a função de chat, que possibilita ao professor inserir imediatamente novas palavras e expressões. Essas anotações da aula podem ser gravadas e se transformam assim num caderno de vocábulos.
Antes do segundo semestre, em agosto de 2020, o corpo docente recebeu uma oficina de nove horas para aperfeiçoar técnicas e melhorar a utilização de ferramentas da plataforma, entre outras, levantar a mão, enviar convites personalizados de aula e subdividir as turmas em várias salas simultâneas diferentes. Esse recurso se revelou de altíssima importância no segundo semestre, pois possibilita quebrar, por vezes entediante, a distância entre professor e aluno, tornando a aula mais dinâmica. Essa metodologia ainda permite aos alunos interagirem em grupos de dois ou três participantes, sem qualquer interferência que atrapalhe o contato, como eventualmente ocorre no ensino presencial. Assim, com essa nova técnica, observou-se os alunos com uma mais alta concentração, os mais tímidos se sentem mais a vontade de falar e ainda há um melhor desempenho.
A já acima mencionada confluência entre impulsionamento do ensino à distância e começo da pandemia se reflete também em muitas atividades executadas em sala de aula: desde a conversa introdutória com o grupo, na qual se pergunta sobre a saúde e o bem-estar dos alunos, até a discussão da situação da pandemia na Alemanha e os neologismos criados em alemão, como “pandemüde” (cansado de pandemia), “Maskentrottel” (se referindo a pessoa supostamente “idiota” que não sabe usar a máscara de proteção) e “Abstandsbier” (sair para beber uma cerveja respeitando o distanciamento). Assim, nessas traduções interculturais linguísticas, criou-se uma zona virtual de contato e de troca de experiências individuais e coletivas 26 . As traduções linguísticas culturais, através das mediações pela plataforma, renderam criações dos alunos, como a invenção da palavra “Coronameeting” (encontro virtual pelo zoom na época da pandemia) pelo aluno Alan numa aula de conversação intermediária em abril de 2021. Ou seja, teve a possibilidade do uso da própria criatividade do aluno para falar, na sua forma traduzida em língua alemã com outras conotações, sobre as opiniões, medos, desejos e em relação à crise sanitária.
Assim, percebe-se uma crescente proximidade no uso de meios e no contato dos alunos entre si e com o professor. Ou seja, com o ensino on-line , a comunicação entre professor e aluno transferiu-se do e-mail para os grupos do aplicativo de mensagens WhatsApp, com intensificação das interações e trocas de ideais. Possibilitou-se, por exemplo, o envio e a discussão frequente de artigos e vídeos sobre cultura e língua alemã. E, diferente do tipo da comunicação e das mediações anteriores, esse caminho se “democratizou”: não é mais apenas o professor que disponibiliza material e promove incentivos. Agora existe também um engajamento dos alunos, houve assim alguns que alertaram sobre o aniversário do holocausto ou mesmo compartilharam “memes” 27 e vídeos com curiosidades sobre língua e cultura alemã de youtubers e instagramers alemães desconhecidos até então pelo professor. Ou seja, a troca de saberes enriqueceu e ganhou em quantidade e qualidade.
A nova interação social entre alunos e professor e o uso de novas técnicas têm relação também com tempo. Apesar de alguns estudantes terem reclamado bastante do maior grau de exigência da faculdade na época da pandemia, há vários relatos de outros que conseguem aproveitar o tempo para aprender em casa e a partir de casa, e com isso usufruir das possiblidades das novas mídias. Emblemático é o caso da aluna Ana, que se insere num contexto privilegiado: estudante de alemão em nível avançado, a estudante de Relações Internacionais de 22 anos conta que, em outubro de 2020, por conta do exacerbado tédio decorrente do isolamento social gerado pela crise sanitária, ela seguiu a orientação de sua psicóloga lacaniana para preencher esse vácuo com novos conteúdos. Assim, ela relata ter reiniciado os estudos de alemão e francês on-line e ter se associado a um clube de leitura também virtual, no qual se lê um romance por mês.
Ainda podemos constatar que as redações e tarefas de casa pareciam ter um efeito pedagógico-terapêutico, proporcionando momentos catárticos para os alunos. Temas como “descreva sua vida nesse novo normal do coronavírus” foram usados para apresentar, criticar, desabafar e até desafiar a pergunta colocada pelo professor. Um exemplo desse último caso se verifica na redação do aluno Adam, estudante de biologia de 23 anos. Ele escreve, em maio de 2020, que “não podemos falar de um ‘novo normal’ se a cada dia morrem milhares de pessoas”. A redação, escrita em documento Word, enviada por e-mail e devolvida de volta corrigida pelo mesmo meio, transforma-se assim em tema de aula, transmitida pela plataforma Zoom. Trata-se de mecanismos multimodais de compartilhar e se livrar dos próprios medos e preocupações que passam do individual para o coletivo da turma, bem como para outros grupos de amigos no Facebook e Instagram.
Os relatos sobre a convivência escolar dos estudantes e o uso e a criação de sentidos pela base da troca de saberes na forma mediada pela plataforma Zoom ensejam também certas constelações impossíveis numa aula presencial. Gostaríamos de citar o curioso caso de Samanta, secretária e mãe de três filhos adultos, que realizou o sonho de aprender a língua alemã e estuda o idioma de forma dedicada durante quatro anos. Na pandemia, ela contraiu o coronavírus e mesmo assim participava das aulas. Apresentado leves sintomas de resfriado e dor de garganta, ela preferiu participar das aulas on-line para ocupar a mente e “se divertir no curso”, como ela destaca em novembro de 2020. A solidariedade prestada pelos colegas por mensagens motivacionais e de interesse por sua saúde proporcionaram um clima que, segundo Samanta, ajudou-a a atravessar melhor a fase da doença.
Na nova experiência de aulas mediadas por uma plataforma digital, com alunos e professores em suas respectivas casas, podemos observar a intervenção da vida individual de cada um: familiares e vizinhos gritando, cachorros latindo, ruídos da rua, como a Kombi do caranguejo e do ovo, que anunciam suas mercadorias. Também se percebe a vizinhança precária quando se ouve tiroteios do morro do Turano, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Nesse último caso, ocorrido em junho de 2020, os sons foram captados pelo microfone do estudante Geraldo, de 25 anos, aluno do último período de produção cultural. A partir dele, ensejou-se o debate sobre o tema e comparações sobre acontecimentos nas vizinhanças dos outros alunos.
Ou seja, as imediações das mediações das diferentes localizações dos estudantes constroem um novo tecido de proximidade e de solidariedade entre os alunos. Isso também se manifesta em dimensões geográficas maiores, como no caso de uma aluna que se mudou para São Paulo; outra que voltou, devido à crise, para a cidade natal de Toledo; e ainda uma que obteve uma bolsa de doutorado nos EUA. Todas elas somente conseguem participar das aulas por conta da modalidade virtual. A diferença de fusos horários, a diversidade de referências culturais – inclusive no que se refere ao modo de lidar com a crise sanitária, os diferentes tipos de Covid-19 e os variados tipos de lockdown – engendram novas dinâmicas e intensificam as possibilidades de conversas transregionais. Isso se mostrou particularmente no cineclube que então reuniu alunos de níveis de aprendizagem diferentes e de lugares diversos comentando os filmes em língua alemã de forma descontraída com referências ao próprio cotidiano da pandemia. Assim, várias das questões temáticas, contextuais e de linguagem cinematográfica levantadas foram reaproveitadas na aula. Conseguimos observar uma atitude de solidariedade e comunitas entre os alunos, de “vamos passar por isso juntos”.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo da situação geral do ensino à distância no Rio de Janeiro através dos recursos oferecidos pela prefeitura, como apostilas e meios digitais consistentes em plataforma de ensino e um aplicativo próprio, constatamos uma dificuldade tanto de prover os serviços em questão quanto de efetivo acesso à leitura e à instrução. Isso foi evidenciado de forma intensificada ao colocarmos uma lupa simbólica nas periferias e favelas do Rio de Janeiro, com elevado número de habitantes afrodescendentes, onde percebemos uma grande carência em relação ao acesso e ao uso do material da prefeitura. Utilizando material empírico etnográfico do Jardim Gramacho, da Baixada Fluminense, com alto número de afrodescendentes, constatamos alunos que não sabem usar e ler as apostilas, e que não têm acesso às plataformas de ensino. Ou seja, como proposto na introdução, as desigualdades econômicas e sociais se potencializam no ambiente digital com a falta de uma boa e rápida internet, computadores, espaços físicos tranquilos, tempo e recursos didáticos. Percebemos, no caso concreto de um estudante afro-descendente da comunidade do Jardim Gramacho, processos de mediações apenas no nível lúdico, ao assistir vídeos no Youtube, jogar games no celular e assistir à televisão de forma aleatória, com uma programação não adequada para a faixa etária. As mediações do lado do ensino oficial ficam assim negligenciadas. Os muitos casos, inclusive, de evasão das escolas são uma frequente consequência da não integração dos jovens ao contexto desse novo ensino remoto.
Entretanto, para dar um sopro de esperança na situação devastadora da educação, escolhemos um exemplo não representativo do ensino particular de um instituto de língua e cultura para apresentar lados positivos dessa nova forma de ensino. Mesmo com os óbvios problemas de falhas técnicas e falta de contato real, bem como o desgaste geral ocasionado pela pandemia, destacamos alguns pontos positivos: uma convivência solidária, inclusive com a integração de uma aluna infectada com Covid-19 às aulas on-line ; a união de pessoas afastadas geograficamente na mesma turma; os benefícios da plataforma Zoom – que permite trabalhar de forma mais concentrada e eficaz em salas simultâneas –; as possibilidades de investir o tempo com atividades literárias e linguísticas e, finalmente, a aprendizagem sobre outras culturas e a apuração da sensibilidade para o “outro” cultural, também através das animadas discussões no cineclube.
Em suma, pela criação de novas comunidades on-line , com conexões multimodais por plataformas como o Zoom , os celulares e a internet, seria possível atingir um dos alvos propostos por um dos já citados mestres da educomunicação, David Buckingham: a media literacy (alfabetização midiática) e a preparação para uma melhor forma de cidadania.
No entanto, ante esses dois lados extremos da sociedade brasileira, o das “periferias” e o dos privilegiados maioritariamente brancos, é necessário um passo atrás para questionar a estrutura do sistema educativo. Reaproveitando a ferramenta da lupa simbólica proposta para esse estudo, devemos questionar: como podemos falar em “cidadania” se sequer existe uma integração plena e justa, particularmente, do grupo dos moradores de “periferia” e/ou afrodescendentes da população jovem nesse novo sistema de ensino virtual? O exemplo do menino e dos seus coleguinhas afro-descendentes do Jardim Gramacho condensa um fantasma que ameaça transformar-se em realidade: o do analfabetismo total e da falta da integração dos jovens na sociedade. Altamente simbólicos, para suscitar essa questão, são os exemplos de não entender a apostila e de nem saber manusear o aplicativo de ensino da prefeitura: a falta de um domínio de linguagem tanto analógica (a escrita e a leitura) quanto digital.
No fundo, segue-se a linha das reivindicações do comunicólogo Martín-Barbero 28 , ao se referir a Paulo Freire para afirmar que precisamos de uma segunda alfabetização digital: uma alfabetização digital democrática na qual conhecimento vira reconhecimento, para mais uma vez parafrasear o comunicólogo colombiano 29 .
Com isso, abre-se o debate para questionar as ideias gerais de “público” e de “privado”. Como conseguirmos que as positivas experiências do ensino privado possam ser transportadas para o benefício de toda a sociedade?
Talvez, ao olharmos para o surgimento da esfera pública no Brasil, entendamos o quanto os mecanismos são já definidos de uma forma bem específica: como destacam o cientista político Leonardo Avritzer 30 e o sociólogo Sérgio Costa a partir do modelo da esfera pública de Habermas, verifica-se que o Brasil passou de uma primeira oralidade a uma segunda, fragmentada e fragilizada, sem ter atravessado por uma fase intermediária de uma esfera pública cívica de escrita. E como podemos conseguir superar essa desigualdade histórica, discriminatória, de legado colonial e escravocrata, particularmente, contra a população afrodescendente e/ou da periferia, juntar ou recriar os fragmentos para prover uma media literacy geral e integradora para os jovens numa esfera pública democrática, com acesso indiscriminado?
Novas pesquisas, ao também considerar as multiligações e localizações das multiterritorialidades 31 das mediações, parecem ser necessárias, bem como reflexões sobre acesso e distribuição de bens comuns. Para isso, precisa-se de muita esperança ou, nas palavras do filósofo social Ernst Bloch 32 : acreditar num sonho que possamos projetar para a frente, no “ainda não” 33 .
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Notas
Autor notes
Email: gundocostas@gmail.com