EXPERIÊNCIA
Mídia na escola: um relato de prática pedagógica na pandemia
Mídia na escola: um relato de prática pedagógica na pandemia
Comunicação & Educação, vol. 26, núm. 1, pp. 167-178, 2021
São Paulo SP: Universidade de São Paulo Escola de Comunicações e Artes Departamento de Comunicações e Artes
Recepção: 30 Setembro 2020
Aprovação: 04 Dezembro 2020
Resumo: Considerando a mídia como um mediador que envolve o reconhecimento das lógicas de produção e de consumo de textos midiáticos, apresentamos o relato de uma prática pedagógica, organizada em torno de um projeto interdisciplinar e realizada a distância e no contexto da pandemia com estudantes dos anos finais do Ensino Fundamental, a partir do consumo de conteúdos publicados no Joca , um veículo jornalístico voltado para o público infantojuvenil. Para tanto, recorremos à material elaborado pelos professores envolvidos e a entrevistas semiestruturadas. Refletimos acerca da relação comunicação/educação/consumo partindo do pensamento de diversos pesquisadores, como Maria Aparecida Baccega .
Palavras-chave: Jornalismo, educação, consumo, pandemia, escola.
Abstract: Considering media as a mediator that involves the recognition of media texts production and consumption logics we present a narrative description of a pedagogical practice organized upon an interdisciplinary project and conducted in a pandemic context with students of the latest years of Middle School, based on the consumption of Joca ’s contents, a news company dedicated to children and youths. Therefore, we worked over elements and resources prepared by the involved teachers and conducted semi-structured interviews. We considered the communication/education/consumption relation based on works from several researchers, like Maria Aparecida Baccega.
Keywords : Journalism, education, consumption, pandemic, school.
1. INTRODUÇÃO
Uma das formas de conhecer o mundo e a nós mesmos é pelos meios de comunicação, seja pela mídia tradicional ou pelos canais e plataformas digitais independentes. Como não podemos estar presentes em todos os acontecimentos e lugares, os produtores de mídia selecionam contextos para nos informar. Ao fazerem recortes, deixam de lado alguns aspectos e elegem outros, dependendo do tipo de interesse e intencionalidade que pretendem construir, o que envolve aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais.
Editar é construir uma outra realidade, a partir de supressões ou acréscimos no relato de um acontecimento. Ou, muitas vezes, apenas pelo destaque de uma parte do fato em detrimento de outra. Assim, editar é reconfigurar alguma coisa, dando-lhe novo significado, atendendo a um determinado interesse, buscando um determinado objetivo, fazendo valer um determinado ponto de vista. Esse recorte da realidade reconfigura-se no enunciatário/receptor com base em seu universo cultural e dinâmica próprios.
A mídia pode ser pensada como um processo de mediação que envolve o reconhecimento das lógicas de produção e consumo de textos midiáticos, as quais não se esgotam no consumo 1 . As mediações influenciam na seleção de eventos e saberes, na circulação de significados, e são provenientes de distintos atores, como empresas, instituições públicas, privadas ou governamentais e até das pessoas que produzem e distribuem informações.
As habilidades comunicacionais abarcam tanto as mediações da (e pela) mídia como as referências oriundas de outras instâncias mediadoras, como escola, família e religião. Entender como se constituem essas dimensões implica a “formação de um sujeito capaz de participar criticamente da sociedade” 2 . O percurso comunicacional engloba a educação e, consequentemente, a escola, pois os processos de ensino e de aprendizagem fundam-se nos processos de interação social e de construção de significados.
Uma aproximação dos campos da educação e da comunicação numa perspectiva interdisciplinar vem tomando força e visibilidade. Essa tentativa de conjunção se constrói a partir de divergências e convergências referentes à estruturação de um corpus de conhecimento, de metodologias e de objetos de estudo, respeitadas as peculiaridades de cada área do conhecimento, uma vez que ocupam lugares socialmente distintos 3 .
A escola contemporânea insere-se num contexto de comunicação em que o consumo midiático é recorrente na vida dos professores e alunos. Com o fechamento das instituições de ensino em decorrência da pandemia do novo coronavírus, esse consumo é ampliado no cotidiano da educação não presencial.
O relato que apresentamos trata especificamente do consumo jornalístico por crianças e jovens, promovido, estimulado e dinamizado por seus professores em diferentes formatos de ensino remoto. Para além da diversidade de situações e dificuldades enfrentadas por cada estudante, a reflexão acerca de como recursos midiáticos e plataformas digitais utilizadas para comunicação e relacionamento social mostram a transformação de espaços de aprendizagem, muitas vezes, alimentados por conteúdos pedagógicos, mas em outras tantas sendo fonte inspiradora ou disparadora para atividades didáticas, como relataremos mais adiante.
A maior parte das redes públicas usou alguma combinação de mídias para tentar assegurar que a aprendizagem chegasse a todos. Assim, foram utilizados aqui, como em boa parte dos outros países, plataformas digitais, televisão, rádio e roteiros de estudo em papel. Por meio de uma logística complexa, que envolveu inclusive o envio de cestas de víveres, para que a falta de merenda não resultasse em insegurança alimentar para parte das crianças e adolescentes, foram entregues materiais didáticos nas escolas ou nas residências, adquiridos pacotes de dados para celulares e construídas parcerias com canais de TV ou rádio 4
É da necessidade imposta pela pandemia – de distanciamento entre professores e estudantes, de uso de plataformas de videoconferência, de aprofundamento nos estudos via internet e de utilização da mídia como amparo – que emerge o relato apresentado a seguir. Trata-se de um projeto didático interdisciplinar decorrente da leitura de um conteúdo publicado no Joca5 , um veículo jornalístico para o público infantojuvenil. Tais atividades foram executadas pelos educadores com seus estudantes e, posteriormente, encaminhadas ao jornal para que fossem disponibilizadas a outros professores, formando assim uma rede de compartilhamento de práticas pedagógicas executadas a distância, pautadas em conteúdos jornalísticos.
Para a apresentação do relato, além da análise do registro da prática em vídeo e dos textos publicados no site do Joca , realizamos entrevistas semiestruturadas com uma das educadoras idealizadoras e executoras da prática pedagógica e com a diretora executiva do mencionado jornal infantojuvenil, pois há necessidade de “processo de interação, diferenciação e reciprocidade entre a reflexividade do sujeito cognoscente – senso comum, teoria, modelo explicativo de conexões tendenciais – e a dos atores ou sujeitos/objetos de investigação” 6 . Ambas as entrevistas foram realizadas a distância, em decorrência da necessidade de distanciamento físico por questões sanitárias. Quanto à entrevista realizada com a educadora, destacamos ainda que a dinâmica se ajustou à sua nova rotina de trabalho, totalmente on - line, compreendendo aulas, lives com estudantes, atendimentos e reuniões. Também nos utilizamos do aplicativo de mensagens WhatsApp para envio dos questionamentos por texto e áudio, os quais foram respondidos conforme a disponibilidade da educadora, que solicitou não divulgar o nome da escola em que o projeto foi desenvolvido.
O relato de prática pedagógica que traremos a seguir foi selecionado – ante outros também disponíveis no site do Joca – pelos seguintes aspectos:
Abranger consumo e produção midiática (jornal, vídeos, sites diversos) tanto pelos educadores quanto pelos estudantes envolvidos;
Contemplar as quatro áreas do conhecimento da Educação Básica (Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas);
Evidenciar a recorrente importância da educação para os meios, para a condução das diferentes áreas do conhecimento e suas disciplinas;
A educadora líder do projeto ter aceitado contribuir com depoimentos acerca do processo de desenvolvimento e avaliação junto aos estudantes;
Por se tratar de um projeto pedagógico desenvolvido no início da pandemia e já ter resultados observados.
Avançamos com a apresentação do relato de experiência e, sequencialmente, trazemos a fundamentação teórica pautada na relação comunicação/educação/consumo, a qual recorremos para a elaboração deste texto, concluindo-o com nossas reflexões e ponderações.
2. DESAFIOS E OPORTUNIDADES DA MÍDIA DIGITAL EM PRÁTICAS PEDAGÓGICAs
A primeira ação do jornal Joca , após decretado o fechamento das escolas, foi abrir todo seu conteúdo sobre o novo coronavírus no site, tal qual veículos jornalísticos adultos que também o fizeram. O objetivo foi permitir que jovens e crianças, assinantes ou não, acessassem a conteúdos apurados que lhes possibilitasse obter informações sobre o impacto da pandemia no Brasil e no mundo e saber como proceder no dia a dia em relação ao vírus e à doença.
Na França, em 2015, quando houve o atentado ao jornal Charlie Hebdo, por exemplo, jornais para crianças e adolescentes publicaram sobre o atentado e disponibilizaram a edição gratuitamente. O objetivo de abrir o jornal a todo o público foi de informar para tranquilizar as crianças, para que entendam o cenário, identifiquem onde está o problema, que possam refletir criticamente sobre determinados comportamentos ou falas detratoras que circulam na sociedade e ainda possam agir com segurança. (Informação verbal) 7
Não há comparação entre um atentado terrorista e uma pandemia viral, mas considerando a extensão e a gravidade global provocada pela pandemia, Stephanie Habrich, fundadora do Joca , coloca em pauta uma oportunidade identificada para expansão do jornalismo infantojuvenil.
Com as escolas fechadas, muitos solicitaram a suspensão do envio do jornal impresso, veiculado quinzenalmente. O professor teve de enfrentar um novo a desafio: transpor a dinâmica antes realizada por meio do jornal em papel para a tela do computador e dispositivos móveis. O que fazer para apoiar os educadores nessa tarefa? Primeiro, a equipe do Joca foi ouvir e perceber os comportamentos que estavam se estabelecendo em relação às práticas pedagógicas de escolas das redes pública e particular de ensino. Também procuraram identificar quais eram os conhecimentos, dúvidas e conteúdos mais buscados pelos estudantes e os maiores desafios da educação no distanciamento.
Ao longo desse processo, o jornal lançou um espaço colaborativo aos educadores, uma área aberta em seu site para compartilhamento de práticas pedagógicas a serem executadas de forma remota com os estudantes, utilizando conteúdo jornalístico. Uma dessas práticas é objeto deste relato, referente a uma experiência interdisciplinar realizada durante o fechamento físico das escolas, a partir de conteúdo jornalístico do Joca . Trata-se de uma atividade compartilhada pelos professores Renata Aguilar e Fabiano Kirschener Leite, intitulada “Luz e água para a África – Projeto Interdisciplinar” 8 , aplicada junto a estudantes do 6º ao 9º ano de uma escola da rede particular de São Paulo, que teve como objetivo “estabelecer causa e consequência sobre um texto jornalístico com informações contextualizadas com a realidade. Interdisciplinar os conteúdos programáticos e estabelecer relação entre diferentes fontes” 9 .
O desenvolvimento do projeto foi motivado pela reportagem “Luz e água para a África” 10 , publicada na edição nº 145 do referido jornal, produzida por Joseph F., de 8 anos, que – com apoio da equipe de jornalistas do Joca –, entrevistou a israelense Sivan Ya’ari, fundadora da organização Innovation: Africa, com foco na geração de energia renovável e para levar água limpa a aldeias africanas.
Eu queria um texto que falasse sobre alguma coisa muito boa porque, na época, estava muito complicada a história do coronavírus, uma coisa assim muito negativa, com muito medo, o pessoal em depressão… Foi aquela época de pânico. Então, a gente queria alguma coisa muito mais positiva. (Informação verbal) 11
O projeto envolveu as disciplinas de Geografia, História, Linguagens (Língua Portuguesa, Língua Inglesa e Arte), Ciências e Matemática e foi desenvolvido ao longo do mês de abril de 2020, considerando as seguintes etapas de realização:
Ler a reportagem;
Assistir ao vídeo elaborado pelos professores com a apresentação da proposta do projeto, etapas e disciplinas envolvidas;
Assistir ao vídeo com conteúdo complementar em inglês;
Pesquisar sobre a produção de energias renováveis, em especial a energia solar;
Estabelecer a relação entre falta de higiene e o desenvolvimento de doenças;
Refletir sobre o avanço tecnológico israelense e a dissonância referente aos conflitos sociais, culturais e políticos de Israel;
Localizar geograficamente países citados na reportagem e compará-los em relação à extensão territorial, volume populacional e poder econômico;
Pesquisar sobre a relação entre energia elétrica e obtenção da água;
Relacionar a pandemia vivida no Brasil com o contexto reportado na matéria;
Levantar dados estatísticos associados à disseminação da covid-19 para a elaboração de gráficos de progressão aritmética e progressão geométrica, a fim de realizar previsões sobre contágio.
Ao considerar que as crianças estavam em quarentena, dentro de suas casas, a leitura jornalística tornou-se uma possibilidade de expandir horizontes, refletir sobre o que acontece em outros lugares e pensar criticamente sobre o que os seres humanos estão enfrentando, seja acerca da pandemia, seja por outras questões, como a escassez de água e energia elétrica, citados na reportagem que deu início ao projeto. Conectar conceitos matemáticos com o que os estudantes estão vivendo permitiu que entendessem “para que serve”, ou ainda “por que aprender”; logo, torna-se significativa a aprendizagem dos conceitos.
O projeto se estendeu ao longo do mês de abril de 2020, com cinco aulas de Ciências, cinco de História, cinco de Geografia, duas de Inglês, sete de Linguagens e sete de Matemática. Como resultado, os estudantes elaboraram apresentações com gráficos e mapas conceituais, e compuseram textos dissertativo-argumentativos e opinativos. Segundo Renata Aguilar, a escola já desenvolvia projetos interdisciplinares. A adaptação foi para estimular os alunos a se reunirem regularmente, além das aulas, através das plataformas de videoconferência.
A ideia era que eles trabalhassem em grupo, porque está muito individual essa questão do engajamento. […] Tudo o que nós pedimos, eles já estavam acostumados a fazer. Então, acho que isso acabou facilitando um pouco. Houve uma dificuldade ainda no conteúdo, porque o conteúdo de Matemática, de progressão aritmética é mais difícil, mas não em relação ao Joca . (Informação verbal) 12
No entanto, relata que, cinco meses após a execução do projeto e já há seis meses em quarentena, a dinâmica com os estudantes já não era mais a mesma. Para ela, o longo período de confinamento tem cada vez mais desestimulado as participações nas aulas e o envolvimento com as atividades e, por isso, acredita que, após seis meses de aulas on-line, o projeto não alcançaria os mesmos resultados.
Eu acho que como foi um trabalho feito logo no começo da pandemia, eles estavam mais engajados. Eu sinto que agora caiu mais o engajamento dos alunos. […] eles estão acostumados ao uso da tecnologia, só que é de uma forma livre. Então, eu percebo que eles estão usando algumas estratégias até mesmo para sair da aula. […] E a maior dificuldade que os professores têm é não saber se o aluno está realmente aprendendo. […] Então, a gente tem feito atividades um pouco mais lúdicas, algumas brincadeiras, o professor põe um chapéu diferente, usa metodologias ativas. (Informação verbal) 13
Abordamos, neste relato, uma experiência vivida em uma escola da rede particular de São Paulo, o que nos traz um contexto que pode parecer bastante específico e privilegiado, considerando a dimensão nacional. É importante levarmos em consideração, entretanto, o fato de que nem todas as escolas e famílias dentro dessa “categoria” dispõem de plataformas digitais ou outros recursos para alcançar seus estudantes. A diversidade de vivências e de dificuldades revelam os muitos desafios encarados pela educação. Acreditamos que isso pode oportunizar o desenvolvimento de novas formas de ensinar e aprender, a partir da reflexão acerca do que funcionou ou não no modelo instaurado e que vem caminhando para a consolidação de um ensino híbrido.
Com o tempo, ocorreu um processo de aprender fazendo, e mesmo na dor, desenvolvendo nos mestres algumas competências para um ensino que demanda não só conhecimentos sobre computadores e aplicativos, como trabalho colaborativo entre pares. Houve também professores que se voluntariaram a dar aulas na TV ou no rádio. Talentos foram revelados, num processo de reinvenção profissional de muitos, mas foi, de fato, bastante desafiador para boa parte dos docentes 14 .
Lançar luz sobre a multiplicidade de experiências de educadores possibilitará visualizar novas perspectivas do que é necessário para que crianças e jovens se desenvolvam socialmente de agora em diante.
3. COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E CONSUMO: REFLEXÕES SOBRE O ENSINO EM TEMPOS E COVID-19
Em pesquisa publicada em 2013, Citelli 15 verificou que quase metade dos professores entrevistados não se sentiam à vontade para usar os meios de comunicação como recurso pedagógico por não possuírem formação para trabalhar com a mídia. Seis anos mais tarde, uma pesquisa realizada pela Cátedra Maria Aparecida Baccega com educadores do ensino básico da rede particular de São Paulo acerca da interface Comunicação/Educação/Consumo registrou que é emergente:
a necessidade de se atualizarem constantemente para acompanhar os interesses de seus alunos, acerca das mídias e dos conteúdos pelos quais eles mais se interessam, e também para garantir que acompanhem as demandas colocadas pelas próprias escolas aos seus educadores, relacionadas principalmente a recursos e plataformas para uso em sala de aula 16 .
E trouxe outro grande desafio: “fazer com que os alunos aprofundem as informações dos conteúdos midiáticos” 17 . Educadores destacaram o enorme esforço despendido para que os jovens leitores se conectassem aos assuntos e ampliassem as discussões sobre temas da atualidade.
No cenário da pandemia, com aulas a distância, o estudo “A situação dos professores no Brasil durante a pandemia”, realizado em maio de 2020 pela Nova Escola, revela que 51,1% 18 dos professores respondentes não receberam formação de suas redes para atuar no ensino remoto. Os dados são reforçados pela pesquisa “Sentimento e percepção dos professores brasileiros nos diferentes estágios do coronavírus no Brasil”, também realizada em maio de 2020 pelo Instituto Península: “Além de estarem preocupados e não se sentirem preparados para o ensino virtual/online, a maioria dos professores declara que até o momento não recebeu apoio emocional nem treinamento para ensinar à distância” 19 .
Do distanciamento social, emergiram novos desafios 20 e as desigualdades sociais, econômicas e de aprendizagem se intensificaram. Em junho de 2020, um estudo 21 sobre acesso à educação no Brasil evidenciou disparidades que tendem a se apresentar ainda mais agravadas, considerando que três meses após o levantamento, escolas permaneceram fechadas. A pesquisa identificou que no período de 3 meses de suspensão das aulas, 74% dos estudantes das redes municipais e estaduais receberam alguma atividade para fazer em casa, mas conteúdos e atividades pedagógicas por intermédio de um equipamento tecnológico como celular ou computador, TV ou rádio chegaram a apenas 37% dos respondentes. O uso misto de instrumentos tecnológicos e material impresso chegou à 34%, e 3% acessaram apenas material impresso. Do total de respondentes, quase um quarto (24%) não receberam nenhum tipo de atividade não presencial. Essas crianças e adolescentes são, na maioria, moradores de favelas ou comunidades (57%), estudam em escolas municipais (67%), cursam o Ensino Fundamental (90%) e são negras (60%).
Acreditamos na construção de uma educação significativa que observe a fundo as necessidades humanas, que leve em conta a empatia, que conecte cada vez mais a escola com o que acontece fora dela. Lembramos aqui do já conhecido conceito de “prática da liberdade” 22 na educação: hooks 23 defende que educar para a liberdade consiste em engajamento; em desafio; em mudar a maneira como educadores e estudantes pensam, entendem e executam os processos pedagógicos, em uma perspectiva dialógica, na qual não se tem o conhecimento como forma de opressão ou de demonstração de poder e dominação, mas de valorização das experiências. O falar, o ouvir, o se reconhecer e o reconhecer o outro são essenciais. E observamos que o jornalismo e o trabalho interdisciplinar apresentado neste relato propuseram-se a seguir nessa direção.
Levamos em conta ainda o momento atual, em que a educação tem a missão de contribuir e se comprometer com “a construção de uma civilização planetária” 24 que convive com uma perspectiva de “aceleração social do tempo” 25 , a qual impõe uma constante sensação de ansiedade pela obtenção de informações e conhecimentos, os quais acabam por ser rasos e por não viabilizar o desenvolvimento da criticidade necessária para se refletir sobre as informações.
[…] o que se estuda na escola deve fazer sentido para a vida fora dela. A leitura e discussão sistemática dos fatos a partir de notícias, reportagens, entrevistas e outros gêneros da esfera jornalística dão a oportunidade de estabelecer relações entre os conteúdos das várias disciplinas, integrando-os, e levam o aluno a refletir sobre o que acontece no Brasil e no mundo, posicionando-se frente aos acontecimentos 26 .
Entendendo escola e mídia 27 como duas “agências de socialização”, partimos do princípio de que também podem ser espaços para uma compreensão mais aprofundada do mundo, onde existe a possibilidade de explorar temáticas e suscitar discussões que levem os sujeitos à compreensão do outro e à redução de conflitos.
É desse lugar, o qual procura colocar em sintonia mídia e escola, aceitando que a escola já não é mais o único lugar do saber, que devemos relacionar-nos com os meios. E é esse o lugar em que temos de esclarecer que modalidade de programação da mídia queremos para pavimentar as mudanças sociais no sentido da construção da efetiva cidadania 28 .
As relações entre comunicação e educação contribuem para a formação crítica do cidadão e, conforme inferido por Baccega 29 , o conceito de cidadania é a outra face do consumo. Somos o que consumimos, e os campos da comunicação e educação também são partes integrantes da construção de sentidos sociais e valores da vida cotidiana na sociedade do consumo.
Em meio às interações sociais e ao consumo que mídia e escola promovem e, nelas, o encontro de diferentes culturas e hábitos, por meio do jornalismo, como no caso deste relato, lançamos nosso olhar às possibilidades que tais agências proporcionam aos educadores. Ao voltarem seu trabalho de sala de aula não apenas para o conteúdo didático proposto nos livros e currículos, mas também para a compreensão do consumo midiático e como ele reflete e estabelece aspectos culturais e identitários, tanto locais como globais da sociedade, em que estamos inseridos, abre-se a possibilidade para uma aprendizagem que reconhece e desenvolve cidadãos. A pesquisa da Cátedra Maria Aparecida Baccega constatou que esse processo precisa ainda ser restabelecido:
Os professores demonstraram conhecimento de que a mídia, utilizada de maneira consciente e crítica, pode qualificar o processo de ensino-aprendizagem, visando a formação de alunos/cidadãos mais responsáveis pelos conteúdos que produzem e compartilham no ambiente digital. Por outro lado, consideram um desafio aplicar a teoria na prática, principalmente pela dificuldade dos estudantes na busca de informações, bem como na sua contextualização no cenário social, político, econômico e cultural mais amplo 30 .
As ponderações dos educadores na pesquisa anteriormente citada se deram em um contexto anterior ao da pandemia. Como observamos no relato do projeto interdisciplinar que utilizou o jornal Joca como ponto de interseção, o desenvolvimento de atividades escolares em ensino remoto trouxe outras implicações que envolvem desafios didáticos como, por exemplo, a necessidade de atrair e manter o estudante na aula – se possível, participando – com câmeras e microfones abertos, atentos ao professor.
No geral, os estudantes já estão menos tempo imersos no ambiente escolar (na pandemia, ambiente majoritariamente digital) e nos conteúdos das aulas 31 . Ainda assim, há um currículo a ser cumprido. Para tanto, o trabalho interdisciplinar como o proposto neste relato – especialmente com temáticas que refletem os interesses dos estudantes, utilizando mídias, plataformas e/ou ferramentas com os quais estão familiarizados – emerge como alternativa para ampliarem habilidades e competências instrumentais e informacionais 32 da mídia digital, e os recursos jornalísticos – neste caso, especialmente com a abordagem infantojuvenil da publicação utilizada para o projeto – despontam como um apoio possível e estratégico, uma vez que suas abordagens trazem elementos do cotidiano dos estudantes e podem abranger o escopo de diversas disciplinas em uma única reportagem, em diferentes formatos, em diversas plataformas.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do relato de experiência e dos autores com os quais dialogamos, consideramos que o desafio, portanto, está em como consumir o mundo editado pelas mídias, presente no cotidiano, que penetra ardilosamente em nossas decisões e que, pela persuasão, se caracteriza e se coloca, muitas vezes, como “verdade” única.
As estratégicas pedagógicas do projeto didático liderado pelos professores Renata Aguilar e Fabiano Kirschener, baseado na reportagem “Luz e água para a África” , do jornal Joca , mesmo sendo realizadas a distância, conseguiram mobilizar diferentes níveis de aproveitamento entre os diversos grupos de alunos. A professora Renata comenta que o resultado foi positivo, considerando o empenho dos educadores, os quais, a partir das temáticas suscitadas pela reportagem, fizeram interferências e esclareceram dúvidas referentes aos conteúdos programáticos de suas disciplinas. Neste projeto, o consumo midiático por parte dos estudantes foi significativo, já que consumiram informações de diversas mídias, em vários formatos para auxiliar na realização das atividades propostas.
Desenvolvido com estudantes dos anos finais do Ensino Fundamental, o projeto demonstra que o trabalho com mídias na escola transcende as práticas impostas pela pandemia. Elas podem apoiar o trabalho do professor desde o planejamento de aula, quando – como neste caso – é local de busca de informações e pode também, na perspectiva dos processos de aprendizagem, encurtar distâncias entre escola e sociedade.
Ao mesmo tempo em que a mídia amplia possibilidades de trabalho, entendemos ser emergencial o desenvolvimento de competências para produzir leituras críticas acerca de seus conteúdos e, a partir delas, realizar outras leituras e estabelecer relações para além daquelas presentes no texto midiático trabalhado. Acreditamos na importância de instrumentalizar professores e estudantes para consumir criticamente as mídias – como parte do consumo crítico do mundo em que estão inseridos –, de modo que possam se aproximar, conhecer e se apropriar de discursos. Ou seja, que possam reconhecer estratégias discursivas e as relações de poder ali presentes e, nesta direção, construir conhecimento para avaliar e assumir conduta cidadã. Se o consumo midiático faz parte da cultura contemporânea, conforme Baccega, consumir “revela a inserção numa cultura, num sistema de valores e símbolos culturais” 33 .
No contexto da pandemia, a escola foi convocada, às pressas, a alterar suas práticas. Ressignificada, é chamada para, no bojo dessa realidade, apontar caminhos possíveis para se comunicar, estabelecer conexões, promover aprendizados, manter vínculos, acalmar, conscientizar, acolher e promover a cidadania. E um dos caminhos encontrados – senão o principal caminho – foi essa nova estrada virtual entre educadores e estudantes alicerçada pelas mídias. Nos encontros e nos conflitos estabelecidos entre mídia, escola e família não há ganhadores ou perdedores. “Evidencia-se, cada vez mais, um intercâmbio das agências de socialização na construção da cidadania” 34 .
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Notas
Autor notes
E-mail: egle.spinelli@espm.br E-mail: sabrinagenerali@gmail.com E-mail: thoff@espm.br