DOSSIÊ DO ANALÓGICO À INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: 30 ANOS DE COMUNICAÇÃO E EDUCAÇÃO
A práxis e os princípios da educomunicação são decoloniais? Revisando conceitos e aproximações
A práxis e os princípios da educomunicação são decoloniais? Revisando conceitos e aproximações
Comunicação & Educação, vol. 29, no. 1, pp. 183-196, 2024
São Paulo SP: Universidade de São Paulo Escola de Comunicações e Artes Departamento de Comunicações e Artes
Received: 14 July 2023
Accepted: 03 April 2024
Resumo: A Educomunicação tem referências e sustentação no projeto de decolonialidade, por meio da transposição dialógica como medium , que inclui a urgência de uma educação midiática e tecnológica com as realidades e contextos; propõe a (re)construção e o respeito à inclusão das vozes de grupos identitários, secularmente silenciados pela lógica colonialista, como as populações afrodiaspóricas, africanas e indígenas. De metodologia participante e de viés hermenêutico, este artigo analisa sua inserção como uma práxis de intervenção, gênese e imbricamento com os movimentos sociais, culturais e educacionais do campo em emergência.
Palavras-chave: Educomunicação, decolonialidade, transgressão, intervenção social, movimentos sociais, culturais e educacionais.
Abstract: Educommunication has references and support in the decoloniality project, using dialogical transposition as a medium, which includes the urgency of a media and technological education with realities and contexts; proposes the (re)construction and respect for the inclusion of the voices of identity groups, silenced, for centuries, by the colonialist logic, such as Afro-diasporic and African, Indigenous, and developing populations. With a participatory methodology and a hermeneutic bias, this study analyzes its insertion as a praxis of intervention, genesis, and intertwining with the social, cultural, and educational movements of the emerging field.
Keywords: Educommunication, decoloniality, transgression, social intervention, social, cultural and educational movements.
1. INTRODUÇÃO
Este artigo, que se inicia com a pergunta “A práxis e os princípios da educomunicação são decoloniais?”, busca desenvolver algumas reflexões sobre os conceitos norteadores da educomunicação, associando-os aos estudos e às reflexões da decolonialidade e do sistema-mundo, perpassando pelos desafios da atualidade, como, por exemplo: big techs , desinformação, inteligência artificial, educação midiática e tecnológica, entre outros.
Para tanto, propõe não enclausurar os construtos da educomunicação com os meios e os processos comunicacionais – a área em emergência –, mas sim demonstrar que os percursos de sua realização, apesar do imbróglio com as big techs1 , alicerçadas nos princípios das colonialidades do saber, do ser, do poder 2 e da teoria do sistema-mundo 3 , propõem, sistematicamente, transgredir, mediar, dialogar e produzir com/sobre as criações tecnológicas e os ‘nós’ midiáticos elaborados para promover os sentidos e significados das compreensões, que têm como pontos de partida e chegada as identidades, as realidades das pessoas, os contextos e a sociedade.
A educomunicação encontra-se em diferentes contextos (instituições formais, não formais e informais) há mais de duas décadas, realizada de modos distintos, sendo estes transversalizados e/ou incluindo as mídias e tecnologias, demandando e, de certa forma, propondo um dos possíveis percursos para contribuir com uma educação que parte dos discursos e realidades dos grupos, cuja centralidade não está nos aparatos maquínicos 4 , mas sim nos processos de interpretação com o / diante do mundo. Destarte, buscamos compreendê-la como uma experiência em contínua construção, cujos movimentos das ações perpassam o envolvimento e o compromisso dos sujeitos, diante dos fatos/dados/acontecimentos elaborados com os meios comunicacionais.
Tal entendimento parte das pesquisas e projetos que temos realizado ao longo dos anos, nos cursos de Pedagogia e Jornalismo em Multimeios, no Departamento de Ciências Humanas, Campus III da Universidade do Estado da Bahia (DCH III/UNEB), o qual tem, através da sua história e de elaborações com a Educomunicação 5 , um percurso que propõe a contextualização das realidades como base de sustentação dos conhecimentos e ações que emergem dos movimentos sociais, da cultura popular e contextos educacionais, da escuta dos sujeitos e das realidades, com toda a carga que essas sistematizações possam ter, uma vez que os projetos não têm como escopo, de forma exclusivista, uma educação midiática e tecnológica; esta é parte do processo, uma comunicação que em sua gênese de compartilhamento e diálogo provoca as educações 6 , 7 . Para compreender tais processos, serão analisados três conceitos centrais: a educomunicação, a colonialidade e seus efeitos, e a decolonialidade. Este último, visto como base de construção do primeiro.
2. CONCEITUANDO EDUCOMUNICAÇÃO
No itinerário de construção do conceito/termo à práxis, a Educomunicação foi fortalecida em 2021, quando foi publicada como verbete pela Academia Brasileira de Letras 8 . Os estudos e proposições em destaque propõem demonstrar como os princípios desse conceito estão presentes em muitas das ações realizadas nos contextos formativos, na realização de diferentes projetos. Nesse sentido, por se tratar de uma área em emergência, a Educomunicação pode ser vista como um campo em consolidação 9 , daí a “tentativa” de afirmação da sua presença, além de poder ser compreendida de forma equivocada, como um termo que delimita e enclausura outra(s) prática(s), por assim dizer, educomunicativa(s).
Destacamos que é preciso ter cuidado com os “rótulos” – nomes dão sentido às ações e significados –, entretanto, tal “onda” de nomear a práxis necessita de mais esclarecimentos nos contextos das formações, uma vez que se faz necessário identificar o(s) lugar(es) em que está(ão) situado(s) no(s) campo(s) de conhecimento(s), ou seja, a Educomunicação, o conceito/termo como um construto maior, que está dentro e/ou fora de um projeto decolonial.
Dessa forma, é preciso compreender as bases epistemológicas de criação, bem como os lugares e abordagens que a sustentam, de qual paradigma busca interpretar os percursos que se estendem dos referenciais às metodologias que efetivamente sistematiza. Nesse sentido, é consenso que o entendimento discursivo e praxiológico do paradigma sistêmico contemporâneo orienta os modos de compreensão sobre as escolhas realizadas.
Assim, embora não seja definido como pós-moderno, pois ainda não consideramos um conceito/tempo/espaço acabado e/ou superado de modernidade, é desse lugar que afirmamos tal elaboração e emergência, uma vez que os modos de realizar os projetos que têm sua gênese nos entendimentos aqui relacionados demandam a participação social, os movimentos de reivindicação de base democrática comunicacionais e educacionais de direito 10 .
Observa-se que, mesmo inserida nesse tempo e espaço, a educomunicação tem um perfil de se contrapor à ordem estabelecida, como, por exemplo, os acessos à internet e a apropriação das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), ao propor a sua democratização com jovens de escolas públicas.
Desse modo, é possível afirmar que as relações e/ou imbricamentos postos nos discursos mais atuais de entendimentos com a realidade 11 , do “encontro”, por enquanto serão chamados de Educomunicação, mas também da educação midiática , da educação contextualizada , da comunidade de investigação de projetos construídos e pautados nas experiências, com arcabouço e referenciais que convergem durante suas construções nos contextos, os quais priorizam a escuta e as realidades dos participantes e protagonistas. Entretanto, questionamos: todas essas proposições seriam Educomunicação? Ou poderíamos afirmar que teriam princípios educomunicativos em muitas dessas práticas?
A investigação se faz necessária, a partir da delimitação com compreensão do lugar de emergência e direções que fortalecem a área e, consequentemente, a sua construção como campo de conhecimento. Pois, muitas vezes, observamos e/ou interagimos com projetos que denotam uma práxis educomunicativa, entretanto, ao analisar as bases conceituais, estas são referidas em outra compreensão e definição, o que confunde os modos de realização dos projetos construídos na interface, a partir das demandas sociais. De qual área e/ou projetos estamos a referir?
Nesses contextos, optamos por situar as convergências epistemológicas, uma vez que é necessário compreender as diferentes áreas e propostas que, no departamento (DCH III/UNEB), se encontram entre um projeto de educação contextualizada para a convivência com o semiárido, em diálogo com a educomunicação 12 .
A primeira está relacionada à abordagem do currículo, a segunda, com uma área a ser considerada ao tratar da interface, levando em conta ainda que possuem referenciais comuns, como uma educação libertadora e o imbricamento da comunicação com a educação 13 , a pedagogia popular de Celestin Freinet 14 , de inclusão dos meios comunicacionais em projetos mais contextualizados, por exemplo. Nesse processo de tentativas na realização de práxis contextualizadas e educomunicativas com os currículos das graduações de Pedagogia e Jornalismo em Multimeios (DCH III/UNEB), é possível destacar que:
Considerando a autonomia necessária de criação em cada um dos currículos, vale salientar algumas das proposições teórico-metodológicas que emergem nas ações construídas na/com a experiência, como, por exemplo, a EDUCOM (SOARES, 2011 ), a educação contextualizada (REIS, 2011), Comunidade de investigação (SHARP, 1996; GARZA, 1996, SANTI, 2005), a pedagogia de projetos (HERNANDEZ, 1998) e a teoria da aprendizagem apresentada por Kolb (2015), entre outros, como reflexão, crítica, percursos e resultados em acréscimo à possível conquista de estreitamento entre teoria e prática, abstração e concreto, afetivo e cognitivo 15 .
Com isso, afirmamos que as experiências com os projetos educomunicativos em ambos os currículos, ao sair dos limites da universidade e partir da escuta e demandas dos sujeitos com as realidades que constroem e se imbricam, abrem-se às possibilidades nem sempre previstas e planejadas, construindo os percursos (movimentos contínuos) de ressignificação da epistemologia e da práxis no campo. Elas se encontram em outras sistematizações, abordagens, modos de realização e de convergências, como na educação contextualizada para a convivência com o semiárido, o que exige a delimitação do campo, para compreender nas fronteiras dos conhecimentos, as interpretações e discursos expressos dos tempos, espaços e lugares de onde emergem, sem, contudo, referir-se à “mesma coisa”. Tal diferenciação é uma tentativa de contribuição com a consolidação da educomunicação como campo em emergência, construída no diálogo com outras áreas e/ou abordagens.
Ao refletirmos sobre o projeto de decolonialidade e seus princípios norteadores, o fazemos associando-o, pelo menos, ao contexto político, geográfico e educacional local: fala-se da região do semiárido nordestino, onde percebemos o quanto o (re)conhecimento da decolonialidade é urgente, pois é aqui, em meio à caatinga brasileira, da falta histórica e intencional de políticas públicas para a convivência com o semiárido, que nos deparamos, ainda hoje, com cenários cruéis da colonização, muito vivos, pulsantes e difíceis de serem identificados somente como “remanescentes”.
Aqui, as populações negras e indígenas não existem nos livros , nos quais nem são citadas e só passaram a ser estudadas recentemente. Esses povos não têm memória ou passado registrado 16 . As mulheres? Muitas ainda vivem na lógica do coronelismo e patriarcado. E outras cantam a música do baiano Raimundo Sodré 17 , lançada em 1980, “No cabo da minha enxada não conheço coroné”.
Nesta breve contextualização, não podemos deixar de colocar mais um ingrediente amargo, o do acesso e apropriação das TICs pela juventude nordestina. Em 2021, o número de crianças e adolescentes do país, com idade entre 9 e 17 anos, com acesso à internet, cresceu 4% em relação a 2019, ficando em 93%, segundo dados da pesquisa TIC Kids Online Brasil 18 , desenvolvida pelo Comitê Gestor da internet no Brasil e pelo Centro Regional de Estudos para o desenvolvimento da Sociedade da Informação, do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br).
Desse total, a juventude nordestina também registrou crescimento: passou de 79%, em 2019, para 92%, em 2021. Um salto de 13%. O desempenho ainda mais positivo ocorreu nas áreas rurais: passou de 75% para 90%, no mesmo período. Já dados do Plano Nacional de Amostra domiciliar (PNAD) do Instituto Brasileiro e Geográfico (IBGE), de 2016 e 2017 19 , informam que o acesso à internet no país, por jovens entre 14 e 17 anos, foi de 82,5% e 84,9%, respectivamente. Também cresceu entre crianças de 9 a 10 anos: de 79% para 92%.
Nesse afã de “boas notícias”, as informações do PNAD/IBGE de 2021 são animadoras. Revelam que 95% dos estudantes no país utilizam a internet, primeiro para assistir a programas, filmes e séries. Em segundo lugar, para conversas por chamadas de voz ou vídeo (94,6%); e, em terceiro e quarto lugares, respectivamente, enviar ou receber mensagens de texto, voz ou imagem (93,9%) e enviar ou receber e-mail (64,3%). O uso da internet para pesquisa escolar não aparece nesse ranking. Daí, a pergunta: e no ambiente escolar, como está o acesso e apropriação das TICs pela juventude nordestina?
Se formos falar da conectividade e da internet, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) informou que, no final de 2022, 3,4 mil escolas (públicas e nos âmbitos municipal, estadual e federal) no país (2,5%) não tinham acesso à energia elétrica. Além disso, 9,5 mil (6,8%) não tinham acesso à internet e 46,1 mil (33,2%) não ofertavam laboratórios de informática. Os números disponíveis no Painel Conectividade nas Escolas 20 da Anatel, disponível no Portal da Agência, também apontam para o seguinte: a Bahia ocupa o 2º lugar em número de escolas, 13.339. Só perde para São Paulo, com 19.006. Mas na lista nacional de número de escolas sem internet, ocupa o incômodo 8º lugar, com 3,9%. Trazemos os dados para ilustrar o cenário no qual são pensados e realizados os projetos de Educomunicação no ambiente escolar no semiárido.
Um dos principais problemas é a falta de materiais e de equipamentos para a realização dos projetos, como laboratórios nas escolas e orientações quanto aos seus usos. Há ainda um grande desconhecimento quando nos referimos à educação midiática e/ou projetos de educomunicação. Os(As) professores(as) precisam de formação inicial e continuada, por isso as universidades da região, assim como o estado, não podem isentar-se dessa lacuna de entendimento na elaboração de políticas e de ações.
Corroborando os dados apresentados, é de total reconhecimento nos ambientes da educação formal confusões quanto ao uso dos dispositivos eletrônicos e as mídias nos currículos e formações, que ficam entre a proibição e o acesso irrestrito até durante as aulas 21 , com um agravamento das relações e atendimentos aos estudos no espaço público, pois tais políticas e orientações de usos são mais frequentes nos espaços privados, enquanto em muitas escolas públicas isso não está claro para docentes e discentes.
O que fazer? Projetos construídos com a participação ativa de estudantes e professores e com mídias e tecnologias, do ponto de vista da reflexão à ação (e vice-versa), com criticidade à produção que faz, cuja atenção também deve ser direcionada à metacognição necessária diante da própria construção de conhecimentos e à relevância de tais atividades nas interações de formação. Portanto, sugerimos um projeto educomunicativo claro quanto aos modos de realização, com constância e compromisso contínuo com os adolescentes e jovens, das interpretações às compreensões do que usam e produzem nos diversos contextos da sociedade.
Esse recorte contribuiu para mostrar a existência de “brechas” digitais na juventude brasileira, que são/deveriam ser protagonistas no enfrentamento dessas lacunas via práxis educomunicativas que as(os) aproximariam de uma proposta de democratização das mídias, da apropriação com as TICs, em um projeto de decolonialidade. É nessa apropriação que vamos encontrar um terreno fértil para falarmos de descolonização, visando a superação do colonialismo e compreensão da decolonialidade, como possibilidade de transcendência da colonialidade.
Ainda como cenário do semiárido, a pesquisa Pnad Contínua Educação 2019, desenvolvida pelo IBGE 22 , divulgou a queda do analfabetismo em quatro das cinco grandes regiões do país. Os melhores desempenhos ficaram com o Sudeste (de 3,5% para 3,3%) e no Sul (de 3,6% para 3,3%). Já no Nordeste, região que concentra 50% dos analfabetos do país, a taxa ficou praticamente estagnada em 13,87%. Sendo que o maior número de pessoas nessa condição tem idade acima de 60 anos.
Essa contextualização regional já concedeu várias pistas do modelo de realidade histórica vivida no sertão nordestino. Diante disso, além de um projeto decolonial, é urgente uma política e ação de alfabetização mais pontual e efetiva, desafio local, regional e nacional. Pode a Educomunicação potencializar esse processo de aquisição da leitura e escrita? Acreditamos que sim, entretanto, temos aqui um outro viés da pesquisa e ação a ser desenvolvido.
3. EFEITOS DA COLONIALIDADE
Maldonado-Torres 23 explica que, enquanto a descolonização se relaciona a momentos históricos em que os povos subjugados insurgiram contra os ex-impérios, numa luta por liberdade e independência, “[…] a decolonialidade está voltada à luta contra a lógica da colonialidade e seus efeitos materiais, epistêmicos e simbólicos”. Nessa intenção de rompimento com a ordem mundial eurocêntrica, torna-se viável, o (re)florescimento de vozes e olhares silenciados e subalternizados pela colonialidade.
A proposta de rompimento com as colonialidades do poder, do ser e do saber, por exemplo, conduz a um apelo ao desprendimento do pensamento único, de mão única, aquele modelo tão bem desenhado na crítica de Adichie 24 . Incita a possibilidade de coexistirem diferentes compreensões de mundo, de tempo, espaço e subjetividades. Decolonialidade é, na verdade, um projeto político-acadêmico resultado de séculos de resistências de povos subalternizados.
Nessa construção, Quijano 25 destaca três linhas distintas, porém globalizadas, da ideia de colonialidade do poder: trabalho, raça e gênero. É dessa vinculação que o autor reafirma a ideia de classificação social. Ou seja, considera-as como categorias estruturantes do pensar e agir colonial que, por sua vez, articulam-se com dois eixos centrais: (1) o controle de produção de recursos de sobrevivência social e, (2) o controle da reprodução biológica da espécie.
Enquanto controle da produção dos recursos e do trabalho incluem-se desde os recursos naturais até a sua institucionalização como propriedade; o segundo eixo diz respeito ao controle do sexo e dos seus produtos (prazer e descendência), em função da propriedade. Já a “[…] categoria raça foi incorporada ao capitalismo eurocentrado em função de ambos os eixos. E o controle da autoridade organiza-se para garantir as relações de poder assim configuradas” 26 .
O percurso interpretativo dessa lógica é justificar as ações de dominação e hierarquização humana a partir de uma leitura vertical, na qual alguns grupos foram considerados superiores e, para isso, outros foram inferiorizados, silenciados e subalternizados. Dentro e fora das Américas. Essa política de dominação dos corpos, tão vivenciada na época do tráfico de africanos(as), é a base das reflexões sobre a decolonialidade do ser. Ressaltamos que Maldonado-Torres 27 é crítico em relação à identidade moderna, pois, para ele, ela permaneceu ligada ao capitalismo global e ao seu sistema de dominação, estruturado na ideia de raça.
Dessa forma, Maldonado-Torres 28 continua afirmando que “[…] a modernidade como discurso e prática não seria possível sem a colonialidade, e a colonialidade que constitui uma dimensão inescapável dos discursos modernos”. Já Alcoff 29 identifica em Mignolo, na elaboração da proposta da colonialidade do poder, a voracidade dos colonizadores em submeter os povos subalternizados à exploração, não só de seus bens, mas também a uma hegemonia de sistemas de conhecimento eurocêntricos.
O colonialismo é constitutivo da modernidade, de suas macronarrativas teleológicas do progresso humano e da base material necessária para fornecer tanto o excedente como a autorrepresentação necessária para imaginar a Europa como a vanguarda da raça humana. Em outras palavras, o colonialismo é constitutivo da base e da superestrutura da modernidade 30 .
Sendo assim, a decolonialidade não corrobora a modernidade/colonialidade, pois foi a partir dos conflitos gerados por esta, que foram negadas as experiências latino-americanas, fazendo, de acordo com Quijano 31 , um palco de desencontros entre essas experiências, conhecimento e memórias históricas.
Os descompassos provocados e mantidos ainda hoje dentro de lógicas hierarquizadoras e de negação do outro, quando inseridos na paisagem do semiárido nordestino, contribuem para um entendimento da antiga e atual paisagem de carência de políticas públicas nas mais diferentes áreas da vida humana. Entretanto, ao mesmo tempo, serve como um tempo-espaço de investigação e de contraponto às propostas que sejam mais inclusivas e decoloniais, cujas práxis são elaboradas e instituídas nos campos como de uma educação contextualizada para a convivência com a(s) realidade(s) e, propomos, em diálogo com a educomunicação.
4. O QUE APROXIMA A EDUCOMUNICAÇÃO DA DECOLONIALIDADE?
Ao observar a interface da Educomunicação com o pensamento decolonial, afirmamos que é preciso, no diálogo e no imbricamento entre as fronteiras dos conhecimentos, ouvir as “outras vozes”, as quais estão inseridas, modulam e/ou constituem as relações. Logo, a inclusão dos/nos contextos periféricos questiona e potencializa a identificação de novas/outras aproximações. Exatamente porque são diferentes, em uma lógica que se propõe como comunicativa 32 , 33 . Portanto, uma compreensão, intencionalmente construída, de que os discursos estão presentes e tensionam os meios, uma vez que é a disposição para a escuta das intersubjetividades, de um agir de acordo com o imbricamento dos campos que nos tiram do lugar assentado, para uma sistematização ainda em aberto, mas necessária para a presença e permanência do(s)/com o(s) outro(s).
Prandini 34 compreende a “[…] educomunicação como uma práxis genuinamente decolonial e decolonizadora, enquanto premissa essencial. Juntamente com ela pode existir um caminhar transversal para as trocas favorecidas por encontros educomunicativos”. É ao que as bases da(s) proposta(s) remetem, para valores e construções democráticas encontradas nos princípios da decolonialidade. Moreira 35 compreende seu papel inovador “[…] na formação das novas gerações de sertanejos. Apresenta-se como projeto potencial, que aproveita as brechas midiáticas e tecnológicas para ultrapassar os antigos limites dos”desertões”, de suas escolhas e escolas.
Moreira 36 chama atenção, ainda, para a conexão da nova escola sertaneja com o mundo e também com “[…] o território onde está inserida”. Propõe a educomunicação de raiz “[…] como um fazer educomunicativo que valoriza os vínculos com a terra e as matrizes sertanejas na geração de espaços e produtos comunicativos críticos e contextualizados”. Sobre essa proposta, denomina de “escolas decoloniais”,
[…] entende-se o ambiente de ensino-aprendizagem que constitui território pedagógico vivo e ativo na transformação e na construção de uma nova história nos sertões, buscando constantemente fomentar rupturas com os modelos pedagógicos conservadores; que se compromete com a valorização das lutas e saberes dos povos tradicionais; e que tem currículo permeado pela leitura crítica do mundo e por práticas de solidariedade e diálogo com a realidade local. Nesse projeto, a educomunicação de raiz nasce como um desejo, uma utopia, que, dentro da práxis educacional, situa-se como projeto de poder em disputa e busca radicalizar o modelo político-pedagógico nas escolas e as políticas públicas na área 37 .
Tanto a educomunicação quanto o projeto de decolonialidade vivenciam o mesmo problema, gerado pelos modismos acadêmicos: agora tudo é Educom, tudo é decolonial, sem os cuidados e estudos necessários para que sejam respeitados os princípios básicos norteadores de cada proposta. Sobre esse risco, inclusive, Bernardino-Costa, Maldonado-Torres e Grosfoguel 38 chamam atenção para o que consideram como “uma traição à própria decolonialidade”. Corroboramos com tal afirmação também para a interface Educação e comunicação, o que pode ser definido como Educomunicação?
Esse é um risco que visualizamos quando diversos acadêmicos brasileiros começam a utilizar o título decolonialidade nos seus trabalhos acadêmicos e, no entanto, não citam qualquer autor negro ou indígena, ou sequer têm qualquer relação como os movimentos sociais, limitando-se a dialogar com os membros da rede de investigação modernidade/colonialidade e com outros teóricos latino-americanos que falam a partir de uma perspectiva da população branca. Em outras palavras, a decolonialidade se torna mais uma moda acadêmica e menos um projeto de intervenção sobre a realidade. Nem tudo que brilha é ouro, por isso há necessidade de se ter clareza sobre o que está em jogo para ir além dos rótulos 39 .
Sustentamos os discursos e as práticas nos referenciais que fazem parte de nossas formações centradas na colonialidade. Apesar disso, os projetos de Educomunicação são desafiadores por serem construídos paulatinamente no cotidiano das práticas elaboradas com os protagonistas, em seus contextos e realidades. Tal fazer educativo/comunicativo ainda é um processo difícil para os que se propõem a realizá-lo, em especial para as instituições secularmente reconhecidas, como, por exemplo, a escola, que desconsidera proposições decolonizadoras em seus contextos e currículos.
No âmbito do departamento e dos cursos de graduação que incluem a educomunicação como campo em emergência, epistemologia e práxis para (re)definir os modos de interações, as construções na interface aqui referidas também encontram nos contextos de realização críticas e dúvidas que dificultam sua (de)limitação e, consequentemente, efetivação e presença nos currículos, formações e práticas profissionais. Por isso, a necessária sistematização que parte do conceito/termo às práticas, para possibilitar a compreensão dos princípios que a definem, bem como a dialogicidade que faz parte de sua gênese epistemológica e praxiológica, que está relacionada com um cenário paradigmático de transgressão e intervenção social (edu)comunicativa.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É importante salientar que, quando identificamos aproximações com outras áreas e/ou abordagens, essas se dão por conta do arcabouço teórico-metodológico (in)comum que as sustentam, cujos discursos são considerados nas propostas a serem elaboradas e efetivadas, daí sua complexidade difícil de ser (de)nominada.
Pode-se nominalmente referir, entretanto tenhamos o cuidado de, na busca pelo entendimento do estado da “arte”, para não confundir ou diminuir seu potencial, pela ausência de compreensões que a sustentem, sem subjugar ou silenciar outras proposições. Pois a educomunicação, quando proposta com cuidado na escuta e na construção dos sujeitos no diálogo conflituoso e respeitoso com o(s) outro(s), constrói uma profundidade com os meios e os processos comunicacionais, que outras áreas não o fazem, delimitando, portanto, seu lugar de atuação.
Neste estudo, refletimos sobre as bases que aproximam a educomunicação e o projeto de decolonialidade, observando suas semelhanças, quando notada a preocupação em transgredir a atual ordem neoliberal que mantém processos de exclusões históricos, sejam de ordem racial, de gênero e/ou de classe. E, ao propor a reversão dessa realidade, a decolonialidade pode recorrer a ações educomunicativas, porque elas têm uma marca em comum, que é a democratização das mídias, das TICs, do acesso e da apropriação da internet. Por isso, concluímos que a educomunicação é decolonial, pelos princípios que defende, pela práxis que propõe e realiza, como uma proposta viável em um projeto de decolonialidade.
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