Resumo : O objetivo do ensaio é revisar a semiose do poder colonial que, ao optar por uma perspectiva única de narrativa histórica, omitiu o protagonismo de dois grupos que também atuaram na construção da nação: os povos indígenas e os afrodiaspóricos. O objeto de estudo centra-se na metalinguagem crítica da historiografia que se moveu em direção à noção de quilombo como um ponto de virada histórica. Assim, a hipótese principal do ensaio é a ideia do espaço quilombo e de terreiro como contra-espaços que nasceram no interior do projeto colonial para serem espaços livres. Da análise dos filmes: Orixá Ninú Ilê (1978) e Ôrí (1989), infere-se que o quilombo, no qual se desenvolveu o terreiro, se converteu em um espaço existencial.
Palavras-chave: Historiografia, diáspora, quilombo, contra-espaço, projeto colonial.
Abstract: This essay aims to review the semiosis of the colonial power that, by choosing a single perspective of the historical narrative, has omitted two of the nation builders: Indigenous and Afrodiasporic peoples. This study focuses on the critical metalanguage of historiography that has moved toward the notion of the quilombo as a historical turning point. So, the main hypothesis of the essay is the idea of the quilombo and of terreiro as a counterspace born inside the colonial project to be a free. By analyzing the films Orixá Ninú Ilê (1978) and Ôrí (1989), this study arrive at the idea that the quilombo has become an existential space.
Keywords: Historiography, diaspora, quilombo, counterspace, colonial project.
DOSSIÊ DO ANALÓGICO À INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: 30 ANOS DE COMUNICAÇÃO E EDUCAÇÃO
Modelização semiótica do espaço quilombo: a historiografia recodificada pelo cinema
Received: 30 November 2023
Accepted: 04 April 2024
Para uma historiografia ocupada em recuperar o passado orientando-se pelo relato de fontes primárias que, no século XVIII, consagrou a forma narrativa dos fatos “como eles realmente aconteceram” 1 , há muito a ser revisado quando o foco incide sobre relatos da historiografia brasileira sobre o período colonial. A começar pelo ponto de vista de onde tal focalização foi construída, isto é, os interesses específicos de colonizadores comprometidos com uma interpretação muito bem determinada e autoproclamada como fonte única. Assim, ignora-se todas as demais interpretações possíveis, julgando impedir a importância de outras significações e de metalinguagens críticas 2 baseadas em outras fontes.
O grande problema de uma historiografia assim construída reside na crença de que os fatos históricos detêm um único significado e, portanto, uma única verdade. No caso da historiografia brasileira, naturalizou-se a interpretação dos colonizadores portugueses, que ocultou a significação do protagonismo dos povos originários e dos povos afro-diaspóricos no processo de formação histórica da nação. Ambos entraram para a história apenas como mão de obra para o trabalho escravo.
Que interpretações seriam capazes de alcançar outros pontos de vista para redimensionar “os fatos como eles realmente aconteceram”?
A crescente produção bibliográfica resultante de investigações deslocadas para o ponto de vista dos agentes históricos escravizados – e que nunca foram considerados sujeitos históricos – contribui para a mudança do quadro monológico da historiografia dos conquistadores. Motivados por questionamentos das significações convencionais e cristalizadas, vemos surgir novas gerações de historiadores comprometidas com o resgate dos pontos de vista dos afrodescendentes que são não apenas testemunhos e guardiões de memórias, mas também autores de discursos da pesquisa histórica realizada.
Não apenas se delineia uma outra história, mas também outros significados que divergem e questionam a hegemonia da verdade única, desvelando a parcialidade da narrativa forjada pela “semiose do poder colonial” 3 . É para esta narrativa que se encaminha o anseio do presente estudo, que vê no confronto de metalinguagens críticas a possibilidade de recuperar os significados ocultos de nossa história, aqueles considerados apagados. Para isso, o estudo orienta-se pela historiografia em curso, até onde podemos acompanhar. Ao problematizar e atualizar significados de eventos históricos, as novas interpretações não apenas resgatam discursos questionadores da semiose apregoada pelo poder colonial, mas também redimensionam espaços vivenciais ignorados 4 pelo não reconhecimento das pessoas que nele atuam, segundo suas tradições, culturas, memórias e legados de civilizações.
Isto posto, é objetivo fundamental do presente ensaio redimensionar discursos e significações que historiadores colocam em circulação, reposicionando sujeitos históricos afro-diaspóricos, seus espaços vivenciais e suas tradições culturais tema do livro de Beatriz Nascimento 5 . Por isso, o objeto do estudo orienta-se pela metalinguagem crítica da história do Brasil, recodificada em produções audiovisuais assumidas, preferencialmente, por pessoas pretas 6 . Trata-se de uma opção discursiva de acolhimento a vozes de sujeitos alijados da história oficial. Não se trata, pois, de preconizar uma forma de exclusão, mas de enfatizar o fato de que as novas gerações de descendentes de escravizados assumem o protagonismo da história a partir de formação intelectual e de desenvolvimento de capacidades estéticas que foram legalmente negados aos antepassados.
Mediante tal contexto, conquista-se o exercício de construção de seu próprio discurso, temas, problemas e interpretações das experiências nas tradições culturais. Evidencia-se, ainda, uma conquista cujos efeitos discursivos no cinema provocam mudanças estruturais, eliminando a intermediação de um que fala em nome de outros. É esta conquista que está em foco no ensaio, não a eliminação de pessoas brancas. Se assim fosse, os dois filmes do estudo, Orixá Ninú Ilê ( 1978 ), de Juana Elbein dos Santos, e Ôrí (1998), de Raquel Gerber e Beatriz Nascimento, não seriam possíveis aqui e perderíamos a possibilidade de dialogar com ideias fundamentais da historiografia de problematização cultural. Em ambos os sujeitos discursivos são descendentes da travessia afro-atlântica, que recuperam o quilombo como espaço do interior do regime colonial, responsável pela construção de comunidades em que se tornou possível aos escravizados libertarem-se de sua condição de propriedade.
O espaço quilombo não existia no projeto colonial: foi criado pela inteligência dos escravizados que idealizaram uma terra livre e nela construíram a comunidade de Palmares, abrigando 20 mil pessoas durante seus quase cem anos de existência (1597 a 1694). Porém, supostamente exterminado pelos portugueses, deixou de existir na história do Brasil.
Quando os sistemas informáticos e as tecnologias digitais se tornam socialmente dominantes, os estudos do espaço foram desafiados a compreender o caráter da virtualidade, diante do que se anunciava como “virada espacial” nos processos de comunicação social. Acreditava-se que as redes digitais consagrariam a aldeia global, introduzindo a noção de uso do espaço numa esfera de interação muito distante da atuação e da presença in loco .
Ao se dirigir ao espaço virtual, o salto tecnológico avançou, acelerando o tempo. O que não se colocou de imediato foi a possibilidade de operar a segmentação de temporalidades como, por exemplo, empregar tais dispositivos para investigar acontecimentos históricos pela disseminação de arquivos digitais, de banco de dados, de publicações periódicas de épocas distantes depositadas em diferentes lugares do mundo. Tal acessibilidade muito contribuiu para que uma possível virada histórico-espacial abrisse os arquivos do tempo e nos permitisse uma aproximação mais efetiva com o período colonial brasileiro. Com a digitalização de documentos impressos por meio de informação visual de mapas, gráficos, desenhos e infográficos, muitos acontecimentos podem ser examinados e promover a recodificação 7 de fontes de informação. Reforçam essa lista filmes que também se prestam a construir relatos históricos, por exemplo, filmes ficcionalizados que, embora ressaltem o caráter heroico de conquistadores, sejam focados nos colonizadores ou nos escravos fugidos 8 , por abrirem brechas para o que deles se omite e para a tipificação de estereótipos.
Na historiografia recente, porém, outros acontecimentos são flagrados pelas lentes de cineastas interessados em interpretar não-ditos. Filmes produzidos a partir dos anos de 1960 resgataram, cada um a seu modo, a história de Palmares, que mostra o quilombo como um espaço de (re)existência, não limitado apenas à resistência, mas, pelo contrário, mostra-se como um contra-espaço, aqui formulado no sentido discursivo de contra-argumentação ao projeto colonial de disputas que negou aos escravizados o direito de habitar a terra como cidadãos. O cinema tem sido um forte aliado no registro e divulgação dessas disputas pelo direito à terra, como propõe a hipótese elementar do presente ensaio com base em filmes que ampliam o escopo de suas lutas 9 .
Se, por um lado, permite o entendimento de um espaço transgressor, concebido no contexto de um regime político monocrático que sequer cogitara a possibilidade de tal tipo de construção, por outro, estabelece um contracampo discursivo à narrativa histórica oficial, quebrando a unilateralidade monológica de sua interpretação.
Evidencia-se, assim, a hipótese segundo a qual admitir a inteligência do espaço quilombo significa conferir visibilidade às contradições internas que sustentaram o regime colonial e garantiram a sobrevida de seu legado. É por essa perspectiva que a historiografia construída na visão dos afrodescendentes se constitui como dissenso, servindo-se de uma estratégia discursiva inerente à civilização ocidental: o exercício da interpretação para a tomada de consciência. Para Muniz Sodré,
Interpretar é, assim, a operação básica de “leitura” do real, de atribuir-lhe nome e significações a partir de “grades” ou modelos de entendimento que se interpõem entre o intérprete-observador e o real. Lê-se, interpreta-se, a partir de uma modelização representativa, isto é, por uma duplicação imaginária do real. Ou seja, interpreta-se sempre uma interpretação já dada 10
(grifo nosso).A interpretação viabiliza a revisão histórica e, consequentemente, desmascara a semiose do poder colonial, redimensionando o quilombo e a inteligência de sua construção.
Resta elucidar que o conceito semiótico de modelização não significa seguir modelos, mas sim habilitar a capacidade criadora de linguagens a partir da elaboração de códigos culturais qualificados para a leitura garantindo a inteligibilidade das interpretações sócio-interativas de seus textos culturais 11 .
É desse lugar de pensamento que partimos para incluir neste ensaio a análise do processo de modelização do espaço quilombo que, por meio do cinema, recodifica os acontecimentos históricos segundo códigos culturais e interpretações dos cineastas negros e de todos que se realinharam com a perspectiva da reparação.
Servimo-nos do conceito de inteligência como mecanismo semiótico da cultura, gerador de informação nova 12 para tratar do quilombo como a invenção de um espaço que, além de não ser cogitado pelo projeto colonial, configurou-se como um contra-espaço formador de um texto cultural que sobreviveu ao desmanche de sua primeira experiência. Como toda informação nova da cultura, foi um acontecimento imprevisível, que tampouco reproduzia, no Brasil, as habitações de Angola, como examinou Beatriz Nascimento 13 . Inventou, contudo, um espaço de sentido comunitário, ou melhor, em que as pessoas pretas puderam recuperar o sentido de comunidade dissipado pela diáspora. Assim foi o trabalho de Antonio Bispo dos Santos (1959-2023) ou, simplesmente, Nego Bispo, que, com sua atividade intelectual de líder comunitário quilombola, poeta e filósofo, foi ativista e autor de textos cujas contribuições foram fundamentais para a noção de contra-espaço no contexto do pensamento contracolonial, como ele formulou em seus estudos. Vejamos.
Nascido no Vale do Rio Berlengas, no estado do Piauí, completou sua formação seguindo os ensinamentos de mestras e mestres de ofício do quilombo Saco-Curtume, município de São João do Piauí. Ao completar o ensino fundamental, tornou-se o primeiro de sua família a ter acesso à alfabetização, abrindo esse caminho para outros membros de sua comunidade.
Bispo foi mais longe ao conceber o espaço quilombo como contracolonial, uma vez que nele os povos negros, e indígenas, nunca se renderam à colonização, nunca foram colonizados. Seu pensamento orienta-se pela própria contradição no espaço em que viveu. Vale lembrar que o estado do Piauí foi forjado pela colônia portuguesa seguindo os preceitos de expansionista do território conquistado pelos colonizadores. Teresina, capital do estado, foi assim denominado em homenagem à esposa de Dom Pedro II, Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicílias. Como região periférica, marginalizada, a luta, os pensamentos e ações que nela se desenvolvem se investem de uma potência de importância e de pioneirismo como ação política e legado de emancipação de consciências.
Para ele, além de nunca ter sido escravizado, seu povo “nunca […] teve sua memória apagada como intencionavam e intencionam até hoje os eurocristãos colonialistas” 15 que, orientados pelo monoteísmo católico, ainda segundo Bispo, servem-se dos “textos bíblicos como fundamento ideológico para a tragédia da escravidão” 16 . Ainda segundo o autor, o quilombo com suas religiões de matrizes africanas cria um espaço orientado pela cosmovisão politeísta fazendo emergir um discurso contracolonial, em cuja arena se defrontam visões de mundo de inquestionável radicalidade imprevisível. Até onde é lícito supor, a noção de contracolonialidade como lugar de existência em que pessoas pretas vivenciam suas experiências e práticas livremente abre um capítulo fundamental da ontologia da pretitude em curso nos Estudos da Pretitude – campo em formação com as pesquisas em desenvolvimento (relatadas na nota 6 deste ensaio).
A força da noção de contracolonialidade também redimensiona a temporalidade de sua construção acontecida num espaço rigorosamente controlado da travessia, da fazenda, da plantação e da senzala, ou seja, dos momentos históricos que, na narrativa dos colonizadores, seguia sua marcha de previsibilidade 17 . A necessidade de entender esse espaço, aprender sua história, seu legado e o pensamento transgressivo nele construído justifica muito dos filmes de nosso estudo – que também seguem à margem das produções de mero entretenimento.
Por conseguinte, vale também lembrar que, muito antes de a câmera de vídeo permitir “escrever a história de nosso tempo”, como afirma Marc Ferro 18 , graças à gravação audiovisual de testemunhos orais in loco , cineastas deslocaram-se no tempo e recriaram como set de filmagem lugares de difícil acesso ou já inexistentes, como foi o caso dos cineastas que contribuíram desde os anos 1950 para divulgar imagens que recodificaram o espaço quilombo 19 de Palmares, acompanhando a saga dos homens livres. Seja em filmes ou na teledramaturgia, em que personagens pretos não se livraram da banalização com papéis de pessoas servis 20 , os meios de comunicação contribuíram para a formação de um imaginário sobre espaços, seus habitantes e seus hábitos. Muitas das encenações das lutas políticas serviram apenas como pano-de-fundo e o quilombo não ganhou protagonismo na história da nação brasileira.
Até as pinturas de viajantes e muitos desenhos ( Figura 2 ) forneceram os traços cênicos fundamentais para a modelização do espaço quilombo em filmes ( Figura 3 ). Filmes realizados a partir dos anos 1960 voltaram suas lentes para cenários que permitissem reconstituir lugares e vivências que muito contribuíram para a formação de um imaginário do espaço quilombo. Mais do que um lugar isolado e de difícil acesso, o quilombo é terra produtiva com roçados ladeados pela densa mata e terrenos cortados por rios sem os quais as celebrações não acontecem. Assim, se constituíram os grafemas elementares da cenografia audiovisual na recomposição estética da paisagem, a partir da qual muitas reformulações e recodificações foram surgindo em diferentes épocas ( Figuras 4e 5 ), mantendo o repertório gráfico elementar, como se pode ver nas figuras que se seguem.



Preservado o repertório gráfico elementar – ao situar suas câmeras para lugares com tais configurações –, a encenação de uma outra história se projeta à revelia de toda a história oficial. O não-dito se torna porta-voz de uma enunciação velada, potencialmente prestes a irromper, cujos protagonistas são pessoas pretas que protestam contra o anonimato de coadjuvantes na cena na história.
O cinema abre espaço para pessoas interrogantes que discutem problemas da experiência humana e histórica, introduzindo uma dinâmica dialógico-interacional nos fatos da chamada história factual.
No caso do cinema negro, a realização e a atuação de afrodescendentes abrem espaço para que vozes coletivas entrem para a enunciação, em oposição às vozes de indivíduos. Sem dúvida, esta é uma inovação no campo cinematográfico da qual se ocupou César Guimarães 23 ao afirmar: “podemos perguntar pelas novas modalidades de figuração possíveis atualmente, quando as comunidades tradicionais afrodescendentes se tornam protagonistas dos discursos de emancipação e assumem, sob diversas formas, sua auto-representação”. Quando os profissionais de cinema e televisão assumem a realização das obras audiovisuais, são os códigos culturais do cinema, convencionalizados por uma “institucionalidade branca”, como define Guimarães, que se transformam mediante o mecanismo de “reformulação ou recodificação” simbólica 24 .
O contexto desse debate recebeu de Jean-Claude Bernardet uma formulação que se tornou emblemática ao afirmar:
[…] para que se erga a “voz do outro” que passa de objeto a sujeito, para que a “voz do dono” não abafe a “voz do outro”. É uma complexa evolução que envolve não apenas o documentário e o cinema, mas a estrutura global da sociedade e, dentro dela, a função política do saber 25 .
Ao comentar a formulação de Bernardet, Ismail Xavier sintetiza num raciocínio não menos significativo ao afirmar distinguir
‘discurso sobre ’ – entendido como um discurso que, de fora, alguém faz sobre uma determinada comunidade ou grupo social – e ‘discurso de ’– entendido como uma fala que emana do próprio grupo focalizado e, portanto, expressa sua forma de encarar a própria experiência, sua visão de si mesmo e dos outros 26 .
Como se pode observar, quando pessoas subalternizadas – neste caso as do cinema negro – assumem a enunciação fílmica, formas discursivas disruptivas emergem como contraponto. Por um lado, como contradiscurso em relação ao discurso dominante – observado nos contra-espaços do quilombo; por outro, como “contra-história” 27 em relação à história factual. Em ambos os casos, a metalinguagem crítica da própria história perde a unilateralidade da verdade única.
O que se acaba de afirmar não é regra em filmes sobre quilombo. Contudo, as mudanças nas formas enunciativas se constituíram em critérios fundamentais para a seleção de filmes sobre o espaço quilombo, como se espera examinar nos próximos segmentos.
O filme Orixá Ninú Ilê28 examina não apenas como a(s) cultura(s) engendra(m) novos significados, mas também como torna(m) possível entender a inteligibilidade de diferentes linguagens e culturas recodificadas pelo cinema. Para isso, a câmera acompanha como o espaço do quilombo está integrado à cosmologia de seus povos e como dispõe de suas habitações e lugares de convívio. Servindo-se da “linguagem de terreiro”, como enuncia a voz do narrador, o espaço encontra-se organizado tal como as comunidades 29 entendem ser necessário para o exercício de atividades sociais, estéticas, religiosas, políticas e, também, de trabalho.
Os enquadramentos descrevem o arranjo arquitetônico tal como a codificação convencionada para abrigar construções para a vida privada no macro espaço comunitário, também codificado segundo as atividades nele desenvolvidas, cada uma com sua singularidade. Ao nomear os espaços a partir das atividades, sejam elas trabalho, culto, festividades, assembleias comunitárias, dentre outras, o código cultural que rege as condutas da comunidade orienta comportamentos a serem respeitados em cada um deles, indicando os lugares sagrados que não podem ser visitados. Equaciona-se, assim, “a relação entre os procedimentos expressivos do filme e a alteridade própria do sagrado” 30 que, como sabemos, não se deixa fotografar nem filmar, como é o caso dos rituais do candomblé.
O filme convida ao adentramento já em sua frase título: Orixá Ninú Ilê31 que, em português, é traduzida por “Dentro da casa da divindade” ou simplesmente “Na casa de Orixá”. Considerando a enunciação do “discurso com” – ou seja, o discurso dos próprios agentes, no caso, da comunidade quilombola –, a voz narrativa orienta tanto o percurso da câmera quanto o direcionamento do olhar do espectador. Cumpre-se, assim, a dialogia de um sujeito que enuncia diretamente seu discurso. Em última análise, trata-se de uma voz poética, tal como um griot – cantor, narrador, conselheiro que, no filme, conta com a atuação de Mestre Didi 32 para entoar o oriki da abertura, ou seja, o canto ou a reza de louvor em iorubá. Na tela, os créditos correm sobrepostos à fotografia de um xaxará ( Figura 6 ), instrumento confeccionado com búzios, sementes, palha pelo Assobá – sacerdote máximo que no filme Mestre Didi 33 – e, assim, compõe o emblema de Obaluaiê – senhor da terra e dos espíritos em iorubá.
A presença da voz na entoação do oriki em língua iorubá introduz uma nova prática na condução discursiva do filme, que se repete nas narrações em língua portuguesa: a enunciação pela voz de um membro da comunidade que se assume como sujeito de seu próprio discurso, sem intermediação. Essa presença consagra vozes dificilmente ouvidas, o que relativiza o fato de o filme servir-se do clássico procedimento de voz off comum no documentário 35 . É também esta voz que acompanha a câmera para traduzir a constituição e a dinâmica construtiva do espaço. Aquilo que poderia ser uma fria descrição de lugares e objetos, na prática, evoca a voz do saber ancestral a revelar denominações e significados, orientando a conduta segundo os preceitos da cultura nagô e suas ancestralidades, ou, como entende Bispo 36 , segundo a cosmologia politeísta. Com isso, a linguagem fílmica constrói um discurso audiovisual modelizado pela “linguagem do terreiro” – conforme nos informa a voz do griot . É a voz deste saber que orienta o percurso da exposição sobre a disposição das construções no terreiro ladeado pela mata, distinguindo o espaço-urbano do espaço-mato que, interligados, criam a organicidade da vida do terreiro.
Acompanhada pelos tambores, a voz off inicia a descrição do espaço enquanto a câmera adentra o portão:
Os descendentes de Nagô no Brasil agrupavam-se em torno de instituições que, com o tempo, se converteram em comunidades. As comunidades tradicionais, igbé em iorubá. Pelas práticas religiosas reelaboram a herança cultural dos africanos que ajudaram a fundar e a singularizar a sociedade brasileira. Acham-se instalados num espaço conhecido como roça ou terreiro. Mais do que a origem étnica, hoje é a estrutura específica que define os membros do igbé como pertencente a uma comunidade nagô.
(Transcrição nossa) 37.Inicia-se, assim, a tradução do espaço pelos códigos da cultura nagô que o delimitam para constituir a “linguagem do terreiro” que, assim, nomeia os lugares segundo os seus signos culturais religiosos. Abre-se a sequência com a bandeira branca ( Figura 7 ) situada na entrada do terreiro, significando que ali é um lugar de axé – lugar de poder e de interação de espaços: urbano, mato e sagrado. A câmera segue seu caminho e, em close , centraliza o emblema de Xangô, “ patrono da comunidade ”, em cujo “ templo são cultuados os orixás do panteão do fogo ” ( Figura 8 ). Deslocando-se para a direita, percorre o espaço urbano “ das moradias dos membros da comunidade, das construções de uso coletivo, dos ilês dos orixás agrupados em panteões, e do ilê ibo ” – apresentada como “casa de adoração dedicada aos mortos” que se situa num local afastado por uma cerca de vegetais ( Figura 9 ). O enquadramento aqui constrói o distanciamento dessa moradia com um movimento de zoom-in até fechar na paisagem, como se seguem nos fotogramas.
Abrindo o enquadramento, chega-se ao templo dedicado a Exu ( Figura 10 ), patrono do princípio dinâmico e orixá da comunicação. É Ele o guardião da porteira de entrada no “ Ilê Exu ” 38 . A construção é adornada por dois ramos de palmeira e, como continua a câmera e a voz do narrador, se volta para as folhas, visto que, “ Sem folha não há orixá ”.
Ao mistério das árvores dedica-se o orixá Ogum ( Figura 11 ), cuja morada encontra-se rodeada pela planta peregum . Sendo princípio dos desbravamentos, é ele quem abre caminhos. Após um corte seco, a câmera opera um deslocamento para a direita, encontrando a casa de Oxóssi, irmão de Ogum ( Figura 12 ).





O mandacaru enorme situa-se na entrada do Ilê de Obaluaiê, “ onde estão assentados Nanã e seus dois filhos míticos: Obaluaiê e Oxumarê ” ( Figura 13 ). Nanã é protetora das águas paradas e da lama, é considerada “ patrona de tudo que nasce ”. Prolongando-se na linha longitudinal do terreno, está o Barracão ( Figura 14 ) no qual noviças, ou iaôs , se recolhem para o período de iniciação. O movimento abre para o grande terreiro, da vida comunitária e com o salão de reunião ao fundo ( Figura 15 ).


Após situar as construções do espaço urbano, a câmera focaliza o mato que circunda o terreiro. Definido como um espaço tão “ perigoso, incontrolável, selvagem ” quanto fértil, “ habitado por espíritos e entidades sobrenaturais, ele reproduz o significado da floresta sagrada africana ” – nos informa o narrador. Com a diversidade exuberante de espécies em sua vegetação, o espaço mato constitui a esfera da integração orgânica do terreiro que, na cultura nagô, é signo maior da existência do espaço e dos viventes que nele habitam. Desse espaço são retirados os insumos da construção dos objetos estéticos que adornam os corpos e as vestes dos orixás.
Ao som de canto em coro de vozes em iorubá e de tambores, a câmera se desloca para o interior de uma construção onde Mestre Didi confecciona ( Figuras 16e 17 ) os objetos rituais com aquilo que foi colhido nos rios e na mata: búzios, sementes e nervuras transformadas em fios de palhas compõem formas com texturas e cores.


Após percorrer o terreiro, a câmera e o narrador deslocam-se para a mata circundante que abriga o sagrado. Ao vincular as instâncias constitutivas do espaço físico ao sagrado, a montagem transforma a sequência justaposta de planos em articulações de complexidade. Se, por um lado, explicita a interdependência entre o espaço urbano e o espaço mato que configura organicamente os elos entre os elementos da natureza e suas recriações culturais, por outro, redimensiona a dimensão cósmica recriada esteticamente na arte africana, que revela uma concepção de estética na qual a beleza é manifestação do sagrado. A montagem dos planos nas sequências transcende a descrição ao conferir legibilidade ao que não se apresenta para a visibilidade do olhar por meio de índices estéticos e vegetais. Não podemos ver os rituais, mas podemos ler sua presença nos objetos estéticos indicializados nas construções, nas atividades e nas relações ancestrais de diferentes cosmologias.
Tudo isso movimenta a inteligência traduzida em astúcia, que continua a cultivar a sabedoria e a traduzi-la nos códigos culturais de cada temporalidade pela qual escoa e se transforma.
O filme Ôrí 43 desloca sua abordagem para o espaço quilombo fora da modelização do espaço pelo terreiro, embora não deixe de situar as fronteiras de tradições e ancestralidades nas comunidades, celebrações e festas retratadas. A dimensão cosmológica não deixa de presidir a construção poética das imagens audiovisuais a partir das fronteiras hemisféricas da travessia transatlântica, tal como examinadas na sequência.
Além dos atributos espirituais, materiais e sociais, em Ôrí o ritual se realiza enfatizando celebração estética com a criação ética, sem ignorar o papel do sagrado. A historiadora 44 Beatriz Nascimento imprimiu a dimensão do sagrado na palavra oral com a qual entoa o poema celebrando o nascimento da civilização hemisférica gestada na travessia transatlântica. No oriki gráfico da abertura do filme, a audiovisualidade recria o evento desse nascimento na constituição da palavra título, por meio das projeções de luz e sombras. Trata-se de um trabalho gráfico com a palavra Ôrí, que insinua algo que nasce da luz na sequência de apresentação dos créditos. Surge de um pequeno foco que vai se ampliando à medida que o movimento em zoom-out dilata as dimensões da palavra e das luzes coloridas dos signos gráficos até ocuparem toda a tela ( Figuras 17 , 18 , 19 e 20 ) para, no final, desaparecer, como se pode ver nos fotogramas que se seguem.



Da cena gráfica surge uma cena cósmica, agora com a explosão da vibração luminosa, seguida pelo ressoar de sons muito suaves produzidos pelas cordas de um berimbau combinados com sopros de sonoridades a evocar o cosmos. A voz de Beatriz se junta a esse evento sonoro para declamar seu poema de louvação ao planeta Terra visto do espaço, que agora ocupa toda a superfície do quadro com suas águas azuladas. Um canto lírico de uma voz feminina acompanha o ato de encantamento. O conjunto poético entoado pelo poema gráfico e pelas sonoridades compõe uma ode, ou um canto de louvor à Terra. Uma ode carregada de imagens líricas de amor ao cosmos que as palavras do poema procuram traduzir
A Terra é redonda
O sol é um disco.
Onde está a dialética?
A dialética está no mar
– o Atlântico – nossa mãe.
46 (Transcrição nossa)

Com essas cenas iniciais, parece inevitável a impressão de que o prólogo é apenas um artifício visual, desconectado do conteúdo de um filme cujo argumento central tematiza as ações do movimento negro que, desde os anos de 1970, assumiu o compromisso de lutar pela revisão da história do país e pelo resgate da efetiva participação dos povos negros que trabalharam para a construção da nação. Contudo, há razões que são desenvolvidas num raciocínio que atravessa o filme, por isso, merecem ser acompanhadas para que não se perca o fio que interliga, organicamente, as cenas.
A indagação: “ Onde está a dialética? ” não é uma pergunta retórica, mas a possibilidade de materializar no movimento das águas o controvertido nascimento da civilização transatlântica, gerada na travessia dos povos afro-diaspóricos. Uma nova sociedade que diferentes etnias produziram no continente americano, semeando aquilo que seria um novo espaço e uma nova civilização transatlântica. Na porção desse espaço conquistado pelos portugueses, nasceria o quilombo – síntese dialética de conjugações de relações hemisféricas e de transmigração das gentes pretas, do oriente para o ocidente. Quilombo aqui se investe da dimensão existencial do cosmos que torna vital a interação entre seres – humanos, vegetais e animais. Tudo que diz respeito a esta dimensão ressoa nesse espaço, o que, no filme, resulta do encadeamento de sequências articuladas sobre lutas, festas, trabalho e celebrações.
Este é o centro do argumento; em sua síntese reside o novo que a própria palavra-título do filme Ôrí designa lexicamente na raiz de “ ori gens”, o que, no filme, implica um significado expandido, como se pode ler na transcrição da fala de Beatriz que se segue:
Ôrí significa uma inserção a um novo estágio da vida, a uma nova vida, um novo encontro. Ele se estabelece enquanto rito e só por aqueles que sabem fazer com que uma cabeça se articule consigo mesma e se complete com o seu passado, com o seu presente, com o seu futuro, com a sua origem e com o seu momento ) 48 .
No quilombo, as pessoas pretas deixam de ser apenas mão de obra para as fazendas e podem exercitar sua inteligência, neutralizando a ideia de esconderijo de escravos fugitivos, como formulado no filme pela voz off de Beatriz.
Então, nesse momento, a utilização do termo quilombo passa ter uma conotação basicamente ideológica, basicamente doutrinária, no sentido de agregação, no sentido de comunidade, no sentido de luta como se reconhecendo homem, como se reconhecendo pessoa que realmente deve lutar por melhores condições de vida, porque merece essas melhores condições de vida porque fazem parte dessa sociedade 49 .
Na última frase, a ideia de “pertencimento” lança a condição para o principal: o reconhecimento político que confere direitos civis igualitários e existenciais que reconhece os povos da diáspora afro-atlântica, como afirma a voz narradora. Protagonistas do encontro dialético de civilizações responsáveis pelo surgimento da civilização hemisférica, fruto da interação entre oriente e ocidente, tendo África como elo, o papel das gentes pretas se modifica: de mão de obra barata se torna semente de uma nova civilização. O próprio significado do espaço quilombo também se altera e se torna lugar do encontro de um outro modo de vida num espaço de fronteira 50 , que implica não só enfrentamento como também convívio com as contradições internas de um espaço geopolítico dentro da geografia colonial.
Seguindo a linha desse raciocínio, o espaço quilombo é entendido como “território existencial” – “o lugar onde os negros pudessem existir como pessoas” – como definiu Nascimento 51 . Existir para exercitar atividades livremente, movimentar a cultura nos rituais, movimentos populares e festividades como carnaval e bailes de música negra, muito bem situados em Ôrí. Aquilo que chamamos de espaço quilombo é redimensionado nas extensões de sua pluralidade.
Após esse percurso, nas cenas finais do filme, o pensamento iniciado no poema se completa. A câmera acompanha o percurso de um rio, ladeado por uma mata abundante, e um outro poema é declamado pela narradora. O som das águas e o canto se juntam em prece à voz que saúda os Orixás e, em seguida, a voz de Marianno Carneiro da Cunha continua o culto às entidades, repetindo aqui a mesma noção de ancestralidade derivada da continuidade entre vida-morte-vida, que garante a preservação da vida na Terra. A voz off retorna e, ao ritmo suave do canto Nanã, saúda o orixá do som primordial da própria Terra.
No início, a dialética estava no encontro das águas do mar com a terra e as plantas; no final, estava na luz e no interior da escuridão silenciosa da Terra. Se da terra, e somente nela, é gerada a vida, o grito primordial, a energia ancestral, dela também se nutre a existência. Romper o vínculo com a terra é o mesmo que interromper a continuidade da existência – mais um argumento do caráter ideológico do quilombo segundo a cosmovisão politeísta.
A terra reivindicada não visa a ocupação do território, nem para explorar e comercializar suas riquezas naturais, nem para expandir domínios geopolíticos de propriedades e de poder. A luta pela terra reivindicada pelos escravizados e descendentes tem como finalidade: o cultivo e o culto à Terra e a todos os elementos naturais que nela se formaram e nela garantem a permanência e continuidade do ciclo da vida. É no contexto desse pensamento religioso, filosófico e político que Beatriz Nascimento 52 introduz o papel do quilombo como espaço de existencial – um lugar em que as atividades de sobrevivência material se encontram vinculadas às atividades espirituais, religiosas e estéticas. Estética em que o belo “formaliza a dimensão do sagrado”. Assim concebida, a dimensão existencial do quilombo reflete aquilo que se desenha como cosmopolítica – uma política de revisão da modernidade e, sobretudo, dos seres que dela foram excluídos, tanto do espaço da política quanto do próprio mundo, o que não deixa de ser, no mínimo, paradoxal.
Quando afirma num outro poema de Ôrí, “ A Terra é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou ”, ela não está tratando do terreiro, mas quando insere sua presença numa das sequências do filme, ela está tratando quilombo-terreiro e rua de desfile da escola de samba como células de sua Terra e, portanto, seu quilombo no sentido existencial.
Nesse sentido, os versos em que identifica o espaço existencial do quilombo com seu ser, sua existência, se estendem à concepção deste como território, ou melhor, como a terra na qual habitam gerações contemporâneas de descendentes afro-diaspóricos na linhagem de suas cosmovisões politeístas e ancestralidades. Todos num só ecossistema da Terra. A noção de território é a que foi adotada oficialmente no Brasil, amparando a luta das populações quilombolas existentes em todas as regiões do país 53 .
Com isso, Beatriz assume uma concepção cosmológica e define a própria ontologia do ser negro, tantas vezes negada. Nesse espaço existencial encontram-se unidos num só corpo cosmologia e ação política segundo um comportamento ético, capaz de manifestar articulações de uma estética da pretitude distanciada da noção dominante, aquela que define o ser negro “como símbolo ontológico da opressão de classe e etnia”, como afirma Muniz Sodré 54 .
Sem perder do horizonte o objetivo fundamental de redimensionar significações e discursos históricos, as análises fílmicas apresentadas no ensaio submeteram à metalinguagem crítica a historiografia que sustentou durante séculos a semiose do poder colonial como a única possível.
Tomadas como pontos de inflexão, as imagens audiovisuais que modelizaram na tela o espaço quilombo apenas introduziram a possibilidade de ampliar significados e discursos de modo a refazer caminhos interpretativos. Resistência, luta, convívio, dignidade, liberdade, comunidade, direitos, espiritualidade, ancestralidade, confluência, contracolonialidade e existência são apenas alguns dos significados de um campo lexical que abriga um vasto repertório crítico com metalinguagens críticas 55 , e que se serve da língua do colonizador para dela divergir, deixando que a implosão da hegemonia de significados monológicos cultive o terreno para o florescimento de outras significações, vide os trabalhos de Nego Bispo citados aqui.
Em tempos de ampliação do espaço reflexivo, com considerável participação de sujeitos históricos comprometidos com a virada ontológica e epistemológica provocada pelos confrontos civilizacionais, é imperativo reconhecer as redes e tramas de diferentes campos de pensamento crítico a problematizar o conhecimento tido como único. Impulsionada por demandas históricas – como por exemplo, direitos civis – e pela consciência dos paradoxos da geopolítica imperialista do projeto colonial, a rede dialógica tece metalinguagens e alcança interpretações em expansão.
Cenários de uma micropolítica emergem de acontecimentos e lutas que nunca se acomodaram ante o regime de servidão imposto aos afrodescendentes, escravizados e aqueles lançados à sua própria sorte. Com base nesse cenário, as imagens audiovisuais do espaço quilombo, produzidos tanto por Juana Elbein dos Santos quanto por Rachel Gerber e Beatriz Nascimento, evidenciam quadros reversos ou contra-espaços como formulados em análises. Neles são as ações de pessoas, os relacionamentos e as decisões que se tornam sementes de campos abertos para o nascimento de possibilidades e do imprevisível.
Esse parece ter sido o movimento das interpretações de fontes documentais realizadas por historiadores que, desde a segunda metade do século XX, se dedicam a interpretar eventos nem sempre visualizados no tamanho de sua importância histórica. Este é o caso de ocorrências alcançadas por Clovis Moura 56 ao ver nos escravizados não seres mudos e passivos, sem voz e sem consciência, mas pessoas destemidas e transgressoras, responsáveis por lutas e levantes de sujeitos históricos críticos do projeto político autocrático de servidão.
Entendemos, então, que a natureza contra-colonial do espaço quilombo e dos seres livres que nela habitam foi gerada no interior do terreno colonial e das lutas e rebeliões nos espaços dos porões e das senzalas. O espaço quilombo – usado aqui no singular – configura multidimensionalidades ou, como formulado por Moura, “O quilombo aparecia onde quer que a escravidão surgisse. Não era simples manifestação tópica” 57 . A estratificação de sua constituição resume a mobilidade 58 e disposição dos escravizados para a luta, o que impulsionou o surgimento de guerrilhas 59 em nome de liberdade.
Hoje estamos diante de diferentes guerrilhas, pois, ao mesmo tempo em que o espaço quilombo em suas diferentes configurações continua a luta pelo direito de existir; em que cada vez mais pessoas pretas assumem papéis sociais e tornam evidentes as diversidades de visões de mundo, de tradições culturais, reivindicando direitos universais humanitários civilizacionais, o campo de entendimento de sua rede semântica se amplia e desafia os sentidos, provocando reações 60 . Em última análise: o espaço quilombo é tema do debate em circulação social em meios de comunicação para além do cinema 61 .
Nessa arena de focalizações, de contradiscursos em contra-espaços, o espaço quilombo aprimora sua capacidade de reexistir e de subverter como, aliás, é o papel de todo elemento que integra um ecossistema. A subversão em pauta aponta para a ontologia em que o preto é uma cor, ainda que poucas lentes sejam sensíveis ao seu brilho e luminosidade.
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