ARTIGOS LIVRES
Comunicação e entretenimento: a mensagem educativa sobre demência na narrativa do game Before I Forget
Comunicação e entretenimento: a mensagem educativa sobre demência na narrativa do game Before I Forget
Comunicação & Educação, vol. 29, no. 1, pp. 259-274, 2024
São Paulo SP: Universidade de São Paulo Escola de Comunicações e Artes Departamento de Comunicações e Artes
Received: 02 January 2024
Accepted: 08 February 2024
Resumo: Neste trabalho, tomamos como objeto empírico o gameBefore I Forget e observamos como um produto de entretenimento pode ser um meio de transmissão para um conteúdo educativo sobre o problema de demência. Por meio de pesquisa bibliográfica e uma observação não-participativa na página do jogo no site Steam – seguindo ideias de Kozinets – buscamos entender como a mensagem do game sobre demência é recebida pelos jogadores ao se colocarem no papel da personagem que sofre da doença em questão. Como principais referenciais teóricos sobre comunicação e educação utilizamos Baccega e Silverstone; em relação à área de jogos e entretenimento, nos valemos de Flanagan e Nissenbaum e Huizinga. Em nossas conclusões, entendemos que jogos como Before I Forget potencialmente apontam estratégias para que um conteúdo da área de saúde tenha enfoque educativo utilizando elementos lúdicos para provocar uma reflexão na audiência.
Palavras-chave: Videogame, demência, comunicação, educação, entretenimento.
Abstract: This study examines the potential of entertainment games as a medium to transmit educational content about dementia using the game Before I Forget as its empirical object of research. By combining bibliographic research and non-participant observation of the Steam page of the game — following the ideas of Kozinets, this study seeks to understand how players receive the message of the game about dementia as they place themselves in the shoes of the character suffering from this condition. The research draws on theoretical frameworks from the fields of communication and education and games and entertainment. This study suggest that games such as Before I Forget can potentially serve as valuable tools for dementia education, using playful elements to provoke reflection and engagement in their audience.
Keywords: Video game, dementia, communication, education, entertainment.
1. INTRODUÇÃO: SOBRE BEFORE I FORGET , JOGOS INDIES E SERIOUS GAMES
O jogo Before I Forget1, de 2020, é uma produção independente criada pelo estúdio inglês 3-Fold Games 2 , formado pelas game designers Chella Ramanan e Claire Morwood. O jogo está disponível nas plataformas Nintendo Switch, Xbox One, Xbox Series X e PC. Before I forget (“Antes que eu esqueça”) coloca os jogadores em primeira pessoa no papel de Sunita, uma mulher indiana que vive um quadro precoce de demência e que, anos atrás, foi uma cientista de renome. No decorrer da narrativa, assumindo o controle da personagem, é possível percorrer o interior de uma casa na qual – a cada cômodo – vão se revelando fragmentos de memória conforme se interage com misteriosos objetos do passado dela, como fotos, partituras de música, cartas, discos e reportagens de revistas. Quanto mais o jogador examina o passado de Sunita, mais lembranças vão surgindo e formando um mosaico tortuoso da vida da cientista.
O jogo pode ser experienciado no intervalo de uma hora – se jogado sem pausa – e foca em uma narrativa densa, construída por meio de um monólogo interior com a voz de Sunita, tratando do tema sensível de uma mulher que está adoecendo e perdendo suas memórias por conta do quadro de demência a que foi acometida. A mecânica do jogo é pautada na exploração da antiga casa e na resolução de enigmas visuais simples, que sempre fornecem como recompensa um relance do passado da personagem. Vale ressaltar que as designers responsáveis pelo jogo relatam – no site do estúdio – que pesquisaram a fundo, junto a médicos, os diferentes sintomas da doença e utilizaram recursos de flashback , distorção visual e auditiva para representar da maneira mais verossímil possível como a demência pode se manifestar em um indivíduo.
Mais do que focar em questões de entretenimento, Before I forget coloca – em uma interface repleta de ludicidade – a discussão sobre um problema de saúde grave para transmitir uma mensagem de conscientização para sua audiência. Para além do fator de diversão, há uma mensagem educativa que as responsáveis pelo jogo atestam ser o principal objetivo da narrativa.
Before I Forget foge de temas já conhecidos do universo dos games , como cenários de fantasia medieval, futuros distópicos cyberpunks , guerras com visão de tiro em primeira pessoa, cenários apocalípticos destroçados por zumbis ou aventuras repletas de cenas de ação. Esse título é um exemplo pertinente do que se convencionou chamar de indie game , ou jogo independente: um tipo de jogo produzido por equipes pequenas e sem as verbas milionárias dos blockbuster do mercado. Como lembra Juul 3 , jogos independentes são inspirados no cinema e na música independentes, criando experiências em novos ambientes com narrativas que comumente não encontramos no mercado mainstream dessas produções.
Juul 4 também pondera que os jogos independentes (ou experimentais) contêm uma característica fundamental: eles abordam temas inusitados, colocam velhos problemas para serem resolvidos de uma nova maneira e nos fazem enxergar os videogames não mais como simples produtos, mas como obras culturais criadas por pessoas que querem transmitir mensagens que fogem da grande indústria. Os indie games possuem aparências que nunca imaginamos que videogames teriam dentro da indústria de entretenimento.
Sendo assim, entendemos que o jogo em análise se enquadra como uma produção indie e nos chama atenção pela temática incomum abordada: discutir o processo de adoecimento por demência e as agruras envolvidas pela personagem nessa situação. Mais do que simplesmente apresentar o problema, Before I Forget convida os jogadores envolvidos na experiência proposta a fazerem uma reflexão sobre um problema de saúde que aflige milhões de pessoas no mundo e tenta transmitir uma mensagem de valor educacional séria por meio de uma interface de entretenimento.

Além de ser categorizado como indie , a questão central de como Before I Forget promove valores relacionados ao entendimento de uma doença como demência coloca este jogo – potencialmente – em uma segunda categoria, denominada serious game ; ideia que pode ser entendida como um jogo com uso profissional, educacional ou pedagógico – uma espécie de produto de entretenimento que mistura narrativas com diferentes mecânicas para transmitir uma mensagem séria aos jogadores envolvidos no processo 7 .
Já nas palavras de Kankaanranta e Neittaanmäki 8 , podemos definir jogos sérios como aqueles que envolvem o usuário e contribuem para a realização de um propósito definido que não seja o puro entretenimento (esteja o usuário conscientemente disso ou não). Sendo assim, o objetivo de um jogo sério pode ser alcançado por meio de um espectro que vai desde a sua utilização para fins de entretenimento até o desenvolvimento de jogos projetados especificamente para fins de não-entretenimento. No contexto aqui apresentado, entendemos Before I Forget como um game que transita entre estes dois mundos: por meio de seus enigmas e recursos audiovisuais, oferece ludicidade e um desafio mecânico típico do universo dos games , mas – em sua narrativa – é carregado de elementos de um tema sensível e que não se encontra comumente em videogames e possui o objetivo de educar sobre um problema real de saúde que não é tão incomum no mundo.
Uma vez apresentado nosso objeto empírico e como ele se enquadra como um serious game independente, vamos discutir aspectos do binômio comunicação-educação e como ele se integra às questões de entretenimento presentes na interface do jogo Before I Forget .
2. COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E ENTRETENIMENTO
Em seu discurso para a turma de formandos da Universidade de Linden de 1933, na Holanda, o historiador Johan Huizinga (tradução nossa) 9 apresentou a ideia de que
Durante um tempo determinado e em um lugar concreto, o jogo cria dentro do mundo ordinário outro universo próprio, extraordinário e delimitado no qual os jogadores se movem de acordo com uma lei especial e imperiosa. O jogo encanta, por assim dizer, emite uma palavra mágica que estimula. O jogo cativa e captura em um mundo específico, em sentido figurado.
As ideias desse discurso de Huizinga viriam a fazer parte de sua obra Homo Ludens , cinco anos depois – relacionando a importância do jogo enquanto elemento cultural e basilar na evolução humana.
Na fala de Huizinga, encontramos ecos do que trabalhamos neste texto: a partir do momento que um jogo cativa a atenção da audiência e a coloca em uma situação na qual o entretenimento é experienciado com prazer, oportunamente, há a possibilidade de transmitirmos uma mensagem que pode ter um cunho sério, mesmo no ambiente lúdico de um videogame.
Sendo assim, a função do jogo, nas formas mais elevadas que aqui nos interessam, pode de maneira geral ser definida pelos dois aspectos fundamentais que nele encontramos: uma luta por alguma coisa ou a representação de algo, segundo Huizinga 10 . Nesse ponto, vemos claramente a noção de que o jogo possui significado e gera experiências para aqueles que estão imersos em seu contexto. No videogame analisado, por exemplo, o jogador se coloca no papel de uma mulher que sofre de demência e traduz os desafios da doença para a audiência utilizando recursos lúdicos. Nesse caso, temos uma função significante forte e que transforma a experiência de jogar em algo – eventualmente – imersivo e relevante ao jogador.
Huizinga 11 , em sua obra Homo Ludens , também apresenta a noção de “círculo mágico”, em que demonstra que quando se participa de algum tipo de atividade de entretenimento entra-se em um outro espaço, abandonando os problemas, preocupações e aflições do cotidiano, mergulhando em um outro ambiente. Segundo o autor, dentro desse local dito “mágico”, as leis, regras e costumes da vida cotidiana perdem validade. Apesar de ser um espaço diferente do cotidiano, as ações realizadas dentro do círculo mágico representam/significam algo para aqueles que participaram desta experiência. Mesmo tratando de um tema delicado, Before I Forget utiliza estrategicamente recursos audiovisuais e mecânicas de resolução de enigmas para encantar e sensibilizar a audiência envolvida, educando-a, de certa maneira, por meio de uma maneira não-trivial.
Partindo das ideias centrais de Huizinga e avançando alguns anos no tempo, Mello e Mastrocola 12 apontam que os videogames foram reconfigurados e há tempos deixaram de ser uma brincadeira de criança para se transformarem em elementos culturais e midiáticos bastante representativos no ambiente contemporâneo, vindo a formar uma “game cultura”. Estes autores ainda relembram que os videogames extrapolaram as fronteiras do puro entretenimento e iniciaram um processo de enraizamento em áreas diversas, como treinamentos empresariais, campanhas publicitárias e, até mesmo, a área da saúde. Os pesquisadores ainda ressaltam que também é frequente o uso de jogos e elementos lúdicos na área da educação – como no caso do aplicativo Duolingo 13 , que utiliza mecânicas de jogos para ensinar idiomas, ou no caso da escola fundamental novaiorquina Quest to Learn 14 , que estrutura todas as atividades de suas disciplinas baseadas em processos de game design .
Um aspecto fundamental a ser debatido aqui é o fato de que, mais do que produtos da indústria do entretenimento, os videogames se transformaram em mídia, e a esse respeito Silverstone 15 postula que “a mídia agora é parte da textura geral da experiência”. Ainda sobre o tema, Regis 16 disserta que a “importância cultural e econômica dos games cresce na mesma proporção em que seus públicos se expandem e diversificam” e que, portanto, os videogames se transformaram em um poderoso meio de comunicação, relações sociais e interação na contemporaneidade. Pelas falas desses autores, encontramos algumas pistas pelas quais podemos compreender como os videogames alcançam públicos mais amplos e fogem da esfera do puro entretenimento, podendo, até mesmo, tratar de assuntos que não são tão corriqueiros em jogos, como a questão de saúde relacionada ao problema de demência.
É importante destacar também que a mensagem educativa de Before I Forget sobre a doença se torna possível por conta de avanços tecnológicos que permitem às plataformas de videogames articularem animações, gráficos, sons e imagens mais sofisticados – o que propicia uma experiência mais imersiva por parte da audiência que vivencia o título em questão. Sobre esse assunto, Baccega 17 nos lembra que
Os meios de comunicação, graças ao avanço da tecnologia, ocupam lugar de destaque nas sociedades contemporâneas, cumprindo o papel de formadores. Configuram-se através dos discursos constituídos a partir de manifestações dos vários campos semiológicos, sobretudo o verbal. A linguagem verbal, que inclui entre as suas características a condição de “costurar” esses vários campos, manifesta-se como a base fundamental do discurso veiculado por esses meios.
Sendo assim, escapamos de reducionismos que consideram a tecnologia (ou mesmo os videogames) como elementos alienantes e desestruturadores de relações sociais, e notamos caminhos que apontam possibilidades do uso de entretenimento, mídia e linguagem para comunicar e educar sobre um determinado tema. Um produto cultural rico em conteúdo audiovisual como Before I Forget sinaliza caminhos instigantes para refletirmos sobre os diálogos entre comunicação, entretenimento e campo da educação – compreendendo por educação tanto a não formal quanto a formal. Entendemos que, para refletir sobre os cruzamentos desses campos, é importante mergulhar nosso olhar na polifonia de vozes/discursos que se faz presente na cultura contemporânea. É nessa teia comunicacional, onde discursos plurais se refletem, se refratam e se ressignificam, que encontramos os diversos discursos advindos de produtos midiáticos, como o jogo que serve de objeto empírico para este trabalho.
Baccega 18 também ensina que a forte presença da mídia na cultura contemporânea permite afirmar que a discussão tradicional, formulada na questão: “Devemos ou não usar os meios no processo educacional ou procurar estratégias de educação para os meios?”, já não é mais válida; afinal de contas, hoje, a escola não é mais “o único lugar do saber” e, por isso, faz-se necessário nos relacionarmos com a mídia e os produtos midiáticos – pois estes também podem educar, transmitir mensagens e incitar conhecimento. A autora ainda ressalta que, por conta disso, o binômio comunicação-educação tem, sobretudo, o objetivo de
construir a cidadania, a partir do mundo editado devidamente conhecido e criticado. Nesse campo cabem: do território digital à arte‑educação, do meio ambiente à educação a distância, entre muitos outros tópicos, sem esquecer os vários suportes, as várias linguagens – televisão, rádio, teatro, cinema, jornal, cibercultura etc. Tudo percorrido com olhos de congregação das agências de formação: a escola e os meios, voltados sempre para a construção de uma nova variável histórica 19 .
Apesar de não citar especificamente os videogames nessa fala, entendemos que eles se encaixam perfeitamente no contexto proposto pela autora. Ou seja, podemos sim utilizar um jogo como Before I Forget para educar sobre a demência, bem como para conscientizar sobre um problema grave por meio de metáforas de um produto audiovisual que utiliza enigmas em sua interface e se vale de uma atmosfera repleta de ludicidade. Afinal, entendendo um videogame como mídia e, parafraseando Silverstone 20 , que diz que uma mídia possui poder de criar e sustentar significados, de persuadir, endossar e reforçar ideias – há sentido em buscar entender o potencial impacto educativo que um título como Before I Forget causa em determinados indivíduos.
Especificamente sobre a questão de como os jogos podem educar, Flanagan e Nissenbaum 21 discutem que, na contemporaneidade, os videogames evoluíram e podem ser entendidos como plataformas midiáticas com potencial de transmissão de mensagens de diversas naturezas. As autoras ainda dissertam que, dos anos 1970 para hoje, a evolução de recursos audiovisuais, possibilidade de conexão on-line e expansão de aparatos pelos quais se pode experienciar um videogame permitiu que, inclusive, os temas e narrativas variassem significativamente neste contexto.
Afinal de contas, em dezembro de 2023 o mercado mundial de videogames era composto por 3,4 bilhões de pessoas jogando algum tipo de jogo digital e possuía um faturamento de 184 bilhões de dólares. Os dados são da consultoria holandesa Newzoo, que projeta que o valor desse mercado, em 2026, irá ultrapassar 205 bilhões de dólares 22 .
A significativa expansão do número de indivíduos jogando algum tipo de videogame revelada neste estudo vem ao encontro do objeto desta discussão. Com tamanha audiência, uma consequência natural dessa indústria foi diversificar os tipos de temáticas e narrativas que certos produtos carregam em si . Before I Forget é um de muitos exemplos de videogames que carregam um teor educativo em sua experiência, mas há muitos outros. Apenas a título de contextualização, o jogo That dragon cancer23 mostra, de maneira metafórica e poética, a luta de Joel Green – uma criança de 4 anos de idade – contra um câncer. Similar ao objeto empírico deste trabalho, em Heal24 os players personificam um homem idoso lidando com debilidades motoras, perda de memória e de visão enquanto vão solucionando enigmas que trazem lembranças de um amor do passado. Já em Hands of Timber25 , título brasileiro, a protagonista é uma boneca de madeira que percorre memórias degradadas por conta do mal de Alzheimer na mente do marceneiro que a esculpiu.
Vale também mencionar alguns outros estudos experimentais sobre educação e saúde utilizando games no território brasileiro, como o jogo digital Quem deixou isso aqui?!26, concebido e desenvolvido na Fundação Oswaldo Cruz. Focado na área de comunicação em saúde, esse título busca conscientizar pais e responsáveis sobre os riscos de intoxicações domésticas em crianças por meio de uma interface repleta de ludicidade para apresentar conteúdo sério.
Outro exemplo relevante que busca educar sobre saúde é o game brasileiro Super SUS27 disponível para smartphones e navegador web que, conforme descrito por Farias et al. 28 , é um serious game que mostra a construção da história do Sistema Único de Saúde (SUS) e tem treze minijogos que tratam acerca do direito à saúde, políticas dos programas de saúde e dos serviços ofertados pela instituição, visando facilitar a abordagem dos temas que envolvem o SUS junto aos jovens de ensino fundamental.
Estes exemplos revelam que, mais do que oferecer entretenimento, os videogames também podem transmitir valores educacionais e mensagens de cunho sério em suas interfaces. Flanagan e Nissenbaum 29 , inclusive, defendem que há três razões importantes para se estudar os valores educacionais e mensagens sérias como nos jogos mencionados:
primeiro, o estudo dos jogos enriquece nossa compreensão de como os padrões socioculturais profundamente arraigados são refletidos nas normas de participação, jogo e comunicação. Segundo, o crescimento dos meios digitais e a expansão do significado cultural dos jogos constituem ao mesmo tempo uma oportunidade e uma responsabilidade para a comunidade de design de refletir sobre os valores que são expressos nos jogos. Terceiro, os jogos têm surgido como o paradigma da mídia do século XXI, ultrapassando os filmes e a televisão em popularidade; eles têm o poder de moldar trabalho, aprendizado, cuidados com a saúde e muito mais.
Com base nas ideias das autoras, entendemos que o jogo Before I Forget explora, ainda que de maneira lúdica, a demência, que é um problema social e da área de saúde. Por meio da exploração do cenário, os jogadores vão, pouco a pouco, vivenciando e se conscientizando sobre como a doença em questão pode afetar uma pessoa (no caso a personagem Sunita) e aqueles que estão ao redor.
Cabe destacar que o tema sensível que é trabalhado em Before I Forget não é uma inovação em produtos de entretenimento. Diversas obras de literatura e cinema, apenas para citar dois campos, já trabalham tais questões há muito tempo. No entanto, nos videogames há a possibilidade de tratar o tema sensível de maneira interativa. Conforme ensinam Dille e Platten 30 , há um leque de opções em termos de elementos audiovisuais (voz, efeitos de som, música, texto, gráficos, comandos interativos etc.) para contar a história de um jogo; os autores ainda dizem que é importante entender tais elementos como componentes da narrativa – que é um dos itens fundamentais em termos de imersão em determinados jogos. Vale ressaltar que não estamos afirmando que o jogo em questão é melhor que um filme ou livro, mas que oferece recursos narrativos alternativos para transmitir um certo conteúdo.
Dille e Platten também lembram que a narrativa de um game não é feita apenas de personagens e diálogos; no caso de jogos, um elemento de interface, um detalhe sonoro ou uma solução de um enigma podem ser mecanismos para conectar emocionalmente o player com a história apresentada. Em Before I Forget , a experiência é moldada na interação com elementos do cenário que vão trazendo memórias (muitas vezes confusas) sobre fatos do passado. A casa, que serve como cenário, troca os cômodos de lugar para incutir um sentimento de desorientação e sons chegam abafados pelo caminho, buscando causar sensações incômodas no público jogador.
Já Lantz 31 lembra que jogos como o do nosso objeto de estudo têm a capacidade de explorar o mundo complicado e ambíguo dos valores educacionais (no caso valores da área da saúde) porque são “modelos, simulações e espaços imaginários dinâmicos e também porque funcionam como formas estilizadas de interação social”. Tais jogos envolvem determinados indivíduos em questões por meio de um complexo entrelaçamento entre um sistema dinâmico e os aspectos do mundo que ele destaca e reflete. No caso de Before I Forget , a ideia de “explorar um mundo” mencionada por Lantz também se materializa no funcionamento do jogo: o cenário permite que o player se desloque pela casa sem um caminho predeterminado. A resolução dos enigmas, inclusive, não segue uma ordem certa, o que colabora para uma experiência mais livre e que ajuda a instigar a ideia de resgatar as memórias perdidas em função da demência.
Portanto, entendemos que Before I Forget foi concedido pela dupla de designers do estúdio 3-Fold como uma experiência repleta de reflexão sobre valores relacionados ao universo de pacientes que são acometidos de demência, mas que não desiste de mostrar tal situação em uma interface de entretenimento para intensificar a maneira como a mensagem educativa da experiência vai ser transmitida. Como afirma Belman 32
Os jogos incorporam convicções de um tempo e lugar, nos dão uma amostra do que é importante para um grupo particular de desenvolvedores e jogadores e nos oferecem um meio de entender que ideias e significados têm valor. Essas convicções podem ser investigadas como parte do sistema no qual um jogo opera - por meio de suas regras, itens personalizáveis, opções para o jogador e outros. Em resumo, há muitos elementos em um jogo, e cada um afeta como os jogos abordam, representam e promovem valores particulares.
Essa ideia nos ajuda a pensar os jogos para além do entretenimento. Acende uma fagulha de como é possível pensar estrategicamente um jogo para educar sobre algo, mesmo que não seja possível tratar um assunto em sua totalidade.
Com base nisso, partimos para a terceira parte deste texto, que busca pistas sobre como uma parcela da audiência recebe a mensagem educativa sobre demência proposta por Before I Forget . Tentando encontrar algumas respostas para este ponto, realizamos uma observação não-participativa com base nos comentários de jogadores publicados na página da loja virtual Steam.
3. UMA OBSERVAÇÃO NÃO-PARTICIPATIVA EM BUSCA DE RESPOSTAS SOBRE A PROPOSTA EDUCATIVA DE BEFORE I FORGET
Até aqui, entendemos que um jogo como Before I Forget possui um potencial educativo em sua mensagem sobre demência. No entanto, uma inquietação moveu a realização deste tópico: como determinados jogadores experienciaram na prática a proposta educativa do game ? Iniciamos esta reflexão com o pensamento de Hine 33 , que propõe que a pesquisa em ambientes virtuais pode ser utilizada como ferramenta para verificar determinadas maneiras como certos indivíduos se comunicam e interpretam (e reinterpretam) informações, por meio de plataformas de comunicação digital.
Com base nessa ideia inicial e buscando compreender parcialmente como se deu a recepção do conteúdo do game , nos baseamos nos princípios de Kozinets 34 e suas ideias sobre metodologias de pesquisa on-line, sendo que a observação não-participativa (método escolhido) pressupõe que o pesquisador não interfere e nem interage diretamente com os objetos de estudo, limitando-se a observar e registrar as informações disponíveis em uma plataforma digital.
Neste caso, diferentemente de outras abordagens de pesquisa, como entrevistas em profundidade ou estudos de caso, a observação não-participativa não envolve a interação direta do pesquisador com os objetos de estudo. Em vez disso, o foco está na análise de informações disponíveis publicamente, permitindo a obtenção de insights e conclusões por meio da observação dos materiais pesquisados.
Apesar de ser um método de pesquisa valioso, é importante ressaltar que a observação não-participativa apresenta algumas limitações que devem ser consideradas no contexto aqui apresentado. Pelo fato de o observador/pesquisador não se envolver diretamente com o grupo ou contexto em estudo, a perspectiva pode ser nublada – levando a uma visão superficial do fenômeno em estudo. Outra limitação que podemos citar é a dificuldade de observação de comportamentos espontâneos e autênticos por parte da audiência analisada, assim como uma falta de acesso a informações privilegiadas ou que não são compartilhadas abertamente pelo grupo. Também é fundamental ressaltar que neste método pode haver dificuldade na interpretação dos dados, já que o material coletado pode estar fragmentado e descontextualizado, dificultando a percepção do observador.
Logo, entendemos que, neste artigo, a observação não-participativa é valiosa para a coleta de dados sobre comportamentos observáveis, no sentido de obter uma visão geral do contexto em estudo e identificar pontos de partida para pesquisas mais aprofundadas. Por isso, combinamos esta prática metodológica com a pesquisa bibliográfica de autores relevantes, para garantir a validade e a abrangência da investigação.
Para realizar a observação não-participativa, escolhemos a página do jogo Before I Forget disponível na plataforma Steam, da empresa Valve 35 . Na página, além das informações sobre o jogo, loja virtual para sua compra/ download , trailer e imagens da produção, há uma área específica para análises de usuários – na qual pessoas que adquiriram o game podem opinar com uma análise positiva ou negativa sobre o produto.
No dia 2 de janeiro de 2024, quando esta observação não-participativa foi realizada, o jogo Before I Forget contava com 139 análises de usuários, sendo que 126 eram positivas (destas, 123 consideradas “muito positivas”) e 13 negativas, conforme podemos ver a seguir na Figura 2 . Percentualmente, 90% de análises são consideradas positivas por quem comprou e opinou sobre o game .

Esse é o ponto de partida para nossa observação. Em seguida, utilizando o recurso de “traduzir idioma” do navegador de internet Google Chrome, colocamos todos os comentários em português para agrupá-los em categorias distintas. Vale ressaltar aqui que, na página, há comentários em sueco, polonês, mandarim e outros idiomas que inviabilizariam o agrupamento total do conteúdo. Portanto, por uma finalidade prática, optamos por utilizar o recurso de tradução disponível.
A leitura atenta das análises positivas a respeito de Before I Forget revela que é possível agrupar os comentários de jogadores em quatro categorias distintas: (1) usuários que apreciaram os aspectos técnicos do jogo (dublagem, trilha sonora, gráficos etc.), mas não mencionam nada a respeito da mensagem educativa sobre demência; (2) usuários que foram impactados de maneira mínima pela mensagem do jogo e acharam a experiência de jogabilidade/narrativa interessante; (3) usuários que foram impactados profundamente pela mensagem do jogo por já terem vivido algo semelhante com um familiar ou alguém próximo; (4) usuários que fazem uma descrição detalhada sobre aspectos narrativos e mecânicos do jogo em tom informacional, sem expressar nenhuma opinião a respeito da mensagem sobre a doença apresentada.
Vale frisar que algumas análises de usuários transitam entre uma ou mais categorias. No entanto, por questões metodológicas, optamos por encontrar uma categoria mais evidente em cada postagem para evitar complexidades de porcentagem para as conclusões deste trabalho – tal escolha vale também para as análises que possuem opiniões negativas que iremos apresentar a seguir.
A partir dessa categorização, elaboramos a Tabela 1 a seguir com as porcentagens sobre cada um dos itens e exemplos de como eles aparecem na página do jogo no site Steam, com os nomes de usuários utilizados. Esta tabela, de maneira sintética e objetiva, nos ajuda a visualizar o impacto da mensagem educativa de Before I Forget e como o jogo, de certa maneira, cumpre o objetivo proposto por suas desenvolvedoras de conscientizar sobre o grave problema de demência.
Os comentários de usuários que foram impactados profundamente pela mensagem do jogo por já terem vivido algo semelhante com um familiar ou alguém próximo somam um total de 46% na página, seguido de 30% de usuários que foram impactados de maneira mínima pela mensagem do jogo e acharam a experiência de jogabilidade interessantes. Iremos discutir mais sobre esse ponto em nossas considerações finais, mas o alto número de impactos que a mensagem sobre demência apresenta sinaliza algo positivo sobre a utilização de um videogame para comunicar e educar sobre um tema sério.
Em relação às análises negativas do jogo, se dividem em duas categorias principais: (1) usuários que acharam o jogo repleto de clichês e com uma mensagem extremamente previsível; (2) usuários que acharam o game curto demais e questionam o preço do produto em relação ao tempo breve de experiência que oferece. A seguir, apresentamos a Tabela 2 com os resultados e porcentagens desse tipo de análise dos usuários. Vale destacar que, proporcionalmente, o número de comentários com opiniões negativas é bastante inferior aos positivos.


Por esta observação não-participativa e com este breve sobrevoo pelas análises de usuários do game , entendemos que o saldo é positivo se considerarmos o objetivo de transmitir a mensagem educativa sobre demência. A quantidade de análises negativas é relativamente baixa e aponta questões que surgem frequentemente em algumas páginas de review de jogos na internet.
Com base no conteúdo abordado sobre comunicação, educação e entretenimento, junto à nossa observação não-participativa, partimos para as considerações finais deste texto.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As inquietações em relação ao universo dos games e as intricadas relações que estes possuem com a possibilidade de comunicar e educar por meio do entretenimento foram os motivadores principais deste texto. Aparentemente, o crescente número de pessoas que consomem videogames, conforme vimos nos dados da pesquisa do instituto Newzoo, está gerando reconfigurações drásticas quando tratamos da interface entre comunicação, mídia, educação, entretenimento e tecnologia. Vasconcellos et al. 38 apontam que jogos digitais “estão cada vez mais presentes no mundo, atingindo diferentes faixas etárias e camadas socioeconômicas, impactando a indústria de entretenimento e criando novas formas de diversão, aprendizado e até trabalho”.
Em sintonia com essa ideia, o jogo Before I Forget oferece uma experiência com recursos interativos e audiovisuais que, mesmo não sendo uma “aula” sobre o problema de demência, ajuda sua audiência a ter contato com o tema e, possivelmente, se interessar por pesquisar mais sobre o assunto, colaborar com algum órgão que pesquise a doença em questão ou, simplesmente, apresentar a existência deste problema de saúde para pessoas que talvez não conheçam sobre ele.
Por meio do estudo não-participativo realizado no site Steam, percebemos que há um número significativo de indivíduos que afirmam terem sido impactados de maneira positiva pela mensagem do jogo. O que nos leva também a considerar a importância de estudarmos academicamente a interface comunicação-entretenimento-educação, mobilizando mais material a ser discutido sobre o tema. Hoje, já existem vários exemplos de estudos na área, como a tese de Nakamura 39 que versa sobre o uso de jogos como apoio no tratamento de pacientes diagnosticados com demência apresentando considerações relevantes sobre como o entretenimento e os jogos podem permear áreas que não somente do puro entretenimento.
A utilização de jogos, sejam eles digitais ou analógicos, para fins que não são ligados diretamente a aspectos de divertimento sinaliza uma característica da contemporaneidade que é a busca de narrativas que tragam os games como mídia e potenciais transmissores de mensagens educativas consideradas “sérias”, como vimos nos exemplos de jogos internacionais e nacionais mencionados no Tópico 2.
Sendo assim, vale dizer que outras discussões estão se ampliando para além da academia, e festivais internacionais relevantes, como o Games for Change40 , também estão sinalizando o protagonismo que jogos que tratam de temas sérios operam atualmente. O evento, realizado em diferentes países e com uma edição especial para a América Latina, tem uma categoria para discutir o uso de games com fins que não se esgotam apenas em entretenimento.
Entendemos, por meio deste estudo utilizando Before I Forget , que há um campo amplo a ser explorado na utilização de games para transmissão, conscientização e educação de assuntos sérios. Nossa observação não-participativa revela que as possibilidades de educar com um game sobre um determinado tema é real e pode atingir positivamente uma grande audiência. Concluímos que Before I forget é um exemplo genuíno de produto midiático que é fruto das mudanças ocorridas no campo da comunicação e nos seus múltiplos nexos com a educação, as relações sociais e culturais etc. Indo além, nosso objeto empírico mostra na prática as possíveis reconfigurações no processo de ensino-aprendizagem na transição das mídias – do analógico ao digital.
Por fim, com este trabalho, esperamos colaborar com os estudos da área de jogos, comunicação e educação. Aguardamos novas oportunidades para discussões sobre o tema em ocasiões vindouras.
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