DOSSIÊ – Quando o “Outro” é o Antropólogo
Entre Tempos: Ensaio para uma Antropologia Depois da Encruzilhada
Between Times: Essay for an Anthropology After the Crossroad
Entre Tempos: Ensaio para uma Antropologia Depois da Encruzilhada
Mediações - Revista de Ciências Sociais, vol. 27, núm. 3, e46577, 2022
Universidade Estadual de Londrina
Recepção: 08 Agosto 2022
Revised document received: 15 Novembro 2022
Aprovação: 20 Dezembro 2022
Resumo: O curso da história da antropologia está permeado de elaborações que conformam um corpo diversificado de reflexões acerca da prática antropológica, servindo como um referencial para os profissionais da área. No entanto, esse referencial tem sido pensado privilegiando a experiência de um perfil restrito de pesquisadores, em grande parte desconsiderando experiências que, de outro modo, seguem percebidas como episódicas, esparsas e individuais. O presente ensaio propõe o exercício de conectar essas experiências para refletir sobre questões ético-metodológicas que se apresentam tanto na pesquisa de campo quanto na experiência da escrita quando consideramos a produção de conhecimento no contexto da vigência das ações afirmativas.
Palavras-chave: Antropologia, etnografia, reflexividade, confinamento racial, ações afirmativas.
Abstract: The history of Anthropology is permeated with elaborations constituting a diverse body of reflections about the anthropological practice, serving as a reference for professionals in the field. However, this benchmark has been thought of by privileging the experience of a limited profile of researchers, largely disregarding experiences that are otherwise perceived as episodic, sparse, and individual. The present essay proposes the exercise of connecting these experiences in order to reflect on ethical-methodological issues that present themselves both in fieldwork and in the experience of writing when we consider the production of knowledge in the context of the implementation of affirmative actions in Brazilian universities.
Keywords: Anthropology, ethnography, reflexivity, racial inequality, affirmative actions.
Cheguei ao mundo pretendendo descobrir um sentido nas coisas,
minha alma cheia do desejo de estar na origem do mundo,
e eis que me descubro objeto em meio a outros objetos.
Fonte: Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas
Introdução
Este é um esforço de organização de algumas reflexões2 que vêm atravessando a vivência universitária e a produção de conhecimento no contexto da vigência das ações afirmativas, embora parte delas restem ainda eclipsadas. Não há a intenção de estabelecer um regramento, determinar algum propósito único, fixar conceitos ou controlar os rumos da experiência no campo da antropologia. Trata-se mais do exercício de reunir elementos apenas aparentemente esparsos, de modo que ganhem sentido ao compor um quadro de experiências ressonantes. É uma espécie de garrafa ao mar, cujas ideias podem ressoar com outras ventiladas em outras partes e que propiciam, nesse encontro, um tipo de aprendizado sobre as possibilidades trazidas à luz a partir desse momento singular das universidades disparado pelas políticas públicas de ações afirmativas construídas ao longo de décadas, em particular neste campo de produção de conhecimento. Aprendizados que iluminam os caminhos traçados até aqui, mas também aqueles ainda porvir. É uma aposta na potência das experiências em contato, da reativação dos passos dados, dos caminhos construídos na ciência dos conhecimentos acumulados através dos tempos e das marcas do percurso.
Nesse sentido, não implicará em uma revisão teórico-bibliográfica da construção das políticas de ação afirmativa no Brasil e no mundo, tampouco algum apego à narrativa histórica de desenvolvimento das ciências sociais e da antropologia, da universidade, dos debates sobre raça ou do movimento negro. Certamente muitas das ideias aqui colocadas renderiam prolongamentos, em diferentes direções. Mas o movimento é de fazer propagar aquilo que emana de experiências apenas aparentemente isoladas. Um tipo de antídoto às novas-velhas resistências aos esforços de construção de espaços mais plurais, respeitosos e abertos a presenças múltiplas, não-homogêneas. Um arrodeio para lembrar que perceber atravessamentos coletivos tampouco implica em reduzir-se aos constrangimentos que só concebem massas homogêneas e indistintas, destituídas de singularidades.
A Reflexividade Antropológica e a Insistência do Confinamento Racial
Se todo antropólogo em alguma medida se defronta com questões que emergem do trabalho de campo, da relação com seus interlocutores e com o processo de escrita, tais questionamentos não atravessam pesquisadores da mesma maneira. Digo isto não naquilo que se refere à singularidade das experiências vivenciadas por cada indivíduo ou mesmo a cada etapa do processo de produção acadêmica. Explico: o curso da história da antropologia está permeado de elaborações que conformam um corpo diversificado de reflexões acerca da prática antropológica, servindo como um referencial para os profissionais da área. No entanto, a entrada mais consistente e numerosa de antropólogas e antropólogos não-brancos nas universidades levanta – ou talvez apenas evidencie – questões que antes restavam eclipsadas. A antropologia em grande parte sustentou, de um modo ou de outro, que a subjetividade de seus praticantes poderia ser usada como instrumento de conhecimento, pelo menos enquanto essa subjetividade nada neutra era masculina, branca, europeia e o que mais se possa dizer nesse sentido. Evidencia-se assim a parcialidade, ainda que não declarada, que constitui e contém essa concepção. “Contém”, inclusive e sobretudo, no sentido de impedir suas propagações para além de experiências muito restritas.
Os mecanismos que podemos chamar de “confinamento racial” (CARVALHO, 2006), “epistemic closure” (GORDON apud RABAKA, 2010) ou “apartheid epistemológico” (RABAKA, 2010) não são nada novos, servindo sobretudo como atualização das engrenagens que mantêm a máquina racista em funcionamento (CRUZ; SILVA, 2017). Já há muito são objeto de reflexão e enfrentamento por parte da intelectualidade negra (CARDOSO, 1988; CARNEIRO, 2003, 2004, 2006; NASCIMENTO, 1968, 1982; NASCIMENTO, 2006; OLIVEIRA, 1976, 2001), como escrevemos em outra parte (NASCIMENTO; CRUZ, 2017).
Sendo assim, não estou sozinha nas reflexões que ora buscam alguma organização em formato acadêmico. Obviamente, trato aqui da minha percepção, mas se é certo que ela emana das minhas próprias observações acerca das dinâmicas da universidade, estão também profundamente inspiradas nos exercícios coletivos de pensamento. Seja nos corredores, em seminários, salas de aula ou em escritos, vários colegas, em particular companheiros e companheiras negros e indígenas, inevitavelmente se defrontam em alguma medida com a necessidade de elaborar tais questões, seja para abrir um caminho que não está dado ou amparado em um corpo de conhecimento amadurecido ao longo do tempo, seja para eventualmente responder aos muitos movimentos de esvaziamento ou desconsideração em relação à sua produção acadêmica.
Quero dizer é que determinados sujeitos são muito frequentemente questionados em suas intenções, na qualidade de seu trabalho, nas razões de suas escolhas de campo ou de arcabouço teórico, ou mesmo na relação com colegas e professores, de um modo muito diferente daquele que acontece com colegas brancos. “Acusações” de “militância”, a insinuação constante de que as escolhas passam ao largo de parâmetros acadêmicos ou profissionais ou que as iniciativas são com certeza fruto de alguma relação de subserviência, um rigor desmedido ou – seu oposto igualmente equivocado – uma certa condescendência que impede críticas construtivas e avaliações necessárias para a formação e desenvolvimento das habilidades caras à atividade acadêmica. Algumas entre tantas outras atitudes com que nos deparamos dentro e fora da sala de aula e que fazem com que, de um jeito ou de outro, sejamos sempre instados a ter uma resposta na ponta da língua para sustentar a validade de um trabalho ou a legitimidade de uma escolha.
Tudo isso de algum modo põe em xeque a seriedade e legitimidade das ideias e dos procedimentos dessa presença incontornavelmente racializada, que coloca e provoca reações antes mesmo de enunciar o que quer que seja. Esse tipo de “questionamento” ignora – ou, melhor, faz uso – do fato de que, como em outra parte escreveu Anjos (2017, p. 1), “os protocolos de cientificidade são acalentados pela credibilidade previamente acumulada de seus anunciadores”. Desautorizar as produções não-brancas é, assim, etapa de um processo mais amplo de invisibilização e filtragem daquilo que é digno de ser tido como “Ciência” ou, como afirmou Ratts (2006, p. 31), “a dificuldade do reconhecimento do sujeito negro, mulher ou homem, como produtor de pensamento por parte de setores hegemônicos da academia brasileira, permeáveis, portanto, aos mecanismos da ‘invisibilidade negra’ semelhantes em outros âmbitos sociais”.
Não digo nada disso em um tom de mera denúncia, mas porque todas essas confrontações servem como instrumento, obstáculo e, eventualmente, mesmo impedimento para o que enfoco nesta ocasião, e diz respeito sobretudo a enfrentar os processos de discriminação internos às instituições e universidades de maneira geral e à prática antropológica de maneira específica.
Porque é mais do que evidente que a antropologia carrega em seu histórico enquanto disciplina as marcas do colonialismo e das associações com empreendimentos e consequências devastadoras para diversos povos e comunidades. Exemplos de seus maus frutos não são escassos. Mas, como quase tudo no mundo, é composta tanto de linhas mortíferas quanto de potências criativas, vivas. A diferença reside nas conexões que se estabelecem – e em certa centralidade da responsabilidade incutida nessas conexões. A linha de força destacada aqui, investimento desta autora e provável aposta de muitas das presenças minoritárias atuantes nesse campo de saberes, é justamente em sua potência de criação. Talvez possa ser transitoriamente expressa como uma certa “ciência do encontro”: aquela que produz consequências nefastas se envolve disposições colonizadoras, hierarquizantes, violentas; mas que pode produzir e mediar conexões e bons encontros se envolve disposições voltadas para uma convivência respeitosa das diferenças. Uma antropologia tomada enquanto prática intercessora que aposta em estabelecer conexões transversais3. Para que tenha chance de seguir nessa direção, não pode se furtar a encarar as marcas que a constituem, seus capítulos trágicos, as críticas passadas e atuais, nem se blindar à necessidade de um constante movimento no sentido das experiências férteis, situadas e cientes dos riscos e das consequências que engendra. Assim pode ter chance de se fazer mediadora de encontros potentes, retomadas e ressonâncias interessantes.
Se a subjetividade de antropólogas e antropólogos pode ser instrumento metodológico, me pergunto que tipo de reflexão nesse campo de saberes poderia ser levada a efeito ignorando todos esses fatores e as considerações de antropólogos não-brancos, aquelas pessoas que até muito recentemente estavam confinadas em grande parte à categoria de objeto, mas que hoje ocupam as cadeiras de pesquisadores. Longe de serem tomadas como elementos a serem levados em conta para uma teoria antropológica, muito comumente são relegadas a um plano episódico sem grande importância para as ciências sociais ou para a produção de conhecimento de maneira ampla.
Entre Tempos
Em um evento no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, ocorrido há alguns anos, ouvi a colega Caroline Amanda Borges apresentar uma reflexão sobre os efeitos e as diferenças de tempo na experiência acadêmica. Se as trajetórias profissionais dos nossos colegas brancos costumam encontrar resultados mais rápidos, caminhos mais livres que, por conseguinte, permitem que as pessoas avancem academicamente em um ritmo muito veloz, isso paradoxalmente se deve a uma certa calma, à possibilidade de hesitar, experimentar, amadurecer, refletir calmamente sem as exigências de respostas prontas a todo tempo, dentro e fora do ambiente acadêmico. Por outro lado, é comum ouvir que estudantes negros fazem duas pós-graduações: uma, aquela em que oficialmente estão inscritos; a outra, que mobiliza toda a energia despendida na leitura e elaboração de um outro corpo de conhecimento que forneça bases para lidar com esses constantes questionamentos e exigências de tomada de posição de um modo incontornavelmente referenciado nas subjetividades brancas ao redor. Mais ainda, é preciso dar conta de outras demandas e das contingências que atravessam desigualmente, incluindo a particularidade de uma maioria que precisa desbravar os meandros da vivência universitária sem o acúmulo de uma bagagem adquirida por outros familiares. Escreveu Neusa Santos (1991, p. 17–18): “saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas expectativas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas”. Duas, pensando bem, parece mesmo uma simplificação.
Temos sempre urgências, em muitos sentidos.
Pois bem, o que proponho aqui é justamente tomar tempo e se permitir pensar tomando por base outras referências, pensar afastando a mediação e a centralidade das subjetividades brancas. Quero dizer que aquelas experiências que em geral ficam restritas a um isolamento e que precisam vencer as barreiras das resistências e reações das perspectivas hegemônicas para ganhar algum tipo de corpo, podem ser aproximadas, postas em contato, contrastadas para ver o que pode emergir daí, sem qualquer pretensão, nem a curto nem a longo prazo, de chegar a alguma resposta fechada. Trata-se mais de pensar outros modos de colocar as questões. Enquanto de maneira geral pensar as questões pelas quais os antropólogos brancos são atravessados durante a prática antropológica é pensar a própria antropologia, seus limites e possibilidades, o modo de encaminhar as coisas não tem levado em conta as múltiplas experiências que de outra parte são colocadas sempre como pontuais, dissonantes ou mesmo alheias ao que um antropólogo “sério” precisa encarar. Proponho então que pensemos não sobre que tipo de antropologia é possível fazer na presença daquelas pessoas que dela foram via de regra objetos apartados – o que tem sido feito em outros espaços e que também importa aqui –, mas que tipo de antropologia é possível fazer a partir dessas presenças nas universidades. Um tipo de presença que de diversos modos corporaliza a escrita e subverte aquilo que Anjos (2017, p. 1-2) descreveu como uma característica dos cientistas sociais de escreverem “como se estivessem sob uma temporalidade diferente daquela do trabalho de campo. Escrevem como se desprovidos de corpos no momento da escrita”. É possível continuar a sustentar esse mesmo tipo de relação com a escrita e com a prática antropológica de maneira mais ampla quando inevitavelmente – e por vezes, violentamente – “esbarramos em nossas corporalidades”?
Em um seminário, a antropóloga indígena Nelly Duarte discorreu acerca de sua percepção dos antropólogos como um meio pelo qual passam agenciamentos em direção à etnografia, como um tipo específico de organização de ideias: o povo marubo através dela; o terecô por meu intermédio. Um fluxo de conhecimento explicitamente marcado pelo percurso das experiências às quais a pesquisadora se lança, ao mesmo tempo em que centrado nos aprendizados que experimenta. Isso tem muito pouco a ver com alguma conclusão apressada sobre os desdobramentos de cada agenciamento em particular. Em outros termos, como propôs a também antropóloga indígena Sandra Benites, poderíamos pensar a antropologia enquanto um território de encontro de tekos, de modos de ser e viver4. Essas relações, portanto, são inevitavelmente atravessadas por um sem–número de fatores que não se restringem às características fenotípicas. Se as características que atravessam praticantes de antropologia não deveriam ser tomadas de saída como determinantes dos resultados de tais agenciamentos, quer dizer, mais do que uma preocupação com um tipo de identidade estática ou um lugar engessado de onde são enunciadas as ideias em alguma fórmula superficial que considera que determinados marcadores resultam em respostas já conhecidas de antemão, trata-se mais de considerar as condições de realização do trabalho de campo e da escrita, que de um modo ou de outro refletem as formas de relação estabelecidas no processo.
Evidentemente há dimensões de afeto nas escolhas acadêmicas, mas quando é que não há? Seja antes ou em decorrência do trabalho de campo, alguém vive durante meses ou anos no seio de uma comunidade e não estabelece nenhum tipo de vínculo de ordem não-acadêmica? E mesmo o exercício da escrita sobre “o outro” produz efeitos, tanto na ordem dos vínculos quanto na das consequências que se sucedem ao que é enunciado. Seja como for, tudo isso parece gerar desdobramentos sobre o que se produz e ignorá–lo soa como uma falha tanto ética quanto metodológica.
Assim, é certo que o fato de ser uma antropóloga negra inflete a minha abordagem sobre o terecô, as religiões de matriz africana, o sincretismo, a mestiçagem, a raça, as ideologias nacionais. Mas, se as minhas reflexões sem dúvida nenhuma estarão atravessadas pela corporalidade – inevitavelmente racializada e generificada –, creio que as conclusões clássicas sobre esses debates também o são. Porque apenas uma escrita também marcada por um corpo a mediá–la – ainda que o negue – poderia se arvorar a um pretenso distanciamento que nada mais faz do que produzir consequências muito próximas. A diferença está em que os desdobramentos de uma escrita declaradamente corporalizada podem ser tidos como emocionais, parciais, interessados, políticos no baixo sentido do termo, enquanto essas outras escritas, supostamente sem corpo ou temporalidade, são tidas como neutras, racionais e imparciais. Não à toa, são esses corpos–autores, e não outros, os canônicos, os informadores da mitologia nacional, as fontes de embasamento para políticas públicas ou aqueles que ocupam os cargos de prestígio, incluindo aqueles de docência nas universidades públicas. Ainda que muitas vezes ignorem a chave excludente em que se amparam, os efeitos dessas teses produzem consequências muito palpáveis e nada distantes. Reificam espaços de poder em detrimento de outros territórios existenciais. Materializam-se e corporalizam violentamente.
Nas palavras de Bastide (1974, p. 7), “o estudioso mais sincero, apesar da sua vontade de objetividade, não se deixará influenciar contra sua própria vontade, por certas postulações de seu meio de origem, tanto mais perigosas na medida em que permanecem para ele inconscientes?”. Tal inconsciência poderia ser traduzida pelo que Haraway (1995, p. 22) nomeia de “postulados de conhecimento não localizáveis e, portanto, irresponsáveis”, incapazes de serem chamados a prestar contas. Ou seja, alçando-se a uma posição pretensamente neutra, supostamente capaz de olhar para o mundo de uma posição desconectada, ignora os vínculos, desdobramentos e consequências de suas enunciações; não estão em lugar nenhum ao mesmo tempo em que alegam tudo ver. Àquela a autora contrapõe uma produção de conhecimento que se perceba situada, corporificada, localizada: ciente de que “há apenas possibilidades visuais altamente específicas, cada uma com um modo maravilhosamente detalhado, ativo e parcial de organizar mundos” (HARAWAY, 1995, p. 22). Essa localização não se apresenta como uma limitação, mas uma postura científica ciente da “elaborada especificidade e diferença e do amoroso cuidado que as pessoas têm de ter ao aprender como ver” (HARAWAY, 1995, p. 22), atenta aos procedimentos ético-metodológicos que implicarão na forma de conduzir uma investigação. Escapando do distanciamento alienante, permite-se uma objetividade situada que demandará procedimentos específicos, atentos à necessidade de “aprender como ver” – centralidade da responsabilidade, então.
Nesse sentido, faz-se necessária uma série de cuidados não meramente para se livrar dos riscos de alguma acusação ou do peso das palavras, mas para seriamente considerar o impacto ético, político e filosófico da prática antropológica. E o exercício ora em jogo tem muito a ver com pensar que cuidados são esses se relações que antes não estavam colocadas agora se veem desafiadas nesse campo do conhecimento. Como escrevemos em outra parte (NASCIMENTO; CRUZ, 2017, p. 9), “É preciso questionar por que estes campos têm permanecido, salvo algumas exceções, impermeáveis à presença e à produção intelectual desses sujeitos que lhes servem de ‘objeto’ de estudo”. Naquela ocasião, enfocamos a Quinzena do Negro na USP5 ocorrida em 1977 e um certo tensionamento que aqueles expoentes da intelectualidade negra fizeram às noções de autoridade discursiva “não somente pelo escopo do ‘eu estive lá’ como também do ‘eu sou o lá’”. Prolongando a questão – o que se faz possível por conta das transformações ocorridas nas universidades e do acúmulo de experiências que agora podem se iluminar mais substancialmente –, fato é que “ser o lá”, mais do que um passe livre ou garantia de um trabalho mais ético ou acurado do que os demais, requer cuidados específicos.
Isso implica, portanto, que a proposição não se coloque como um encerramento, ponto de chegada ou aval para que qualquer enunciação a partir daí ganhe sentido por si só. Mais interessante parece enxergá-la como um ponto de partida para pensar caminhos possíveis de produção a partir das universidades sem ser na chave de mero objeto, questão já há muito colocada, em particular no campo das ciências sociais6. Sendo assim, longe de encerrar a questão, promove uma virada na clássica dicotomia sujeito-objeto. Não para necessariamente abolir o espaço entre o que/quem observa e o que/quem é observado, abolição total da dicotomia sujeito–objeto, o que paradoxalmente parece engendrar perigos tão graves quanto uma polarização estática, distanciada e pretensamente neutra. Tanto uma quanto a outra – separação total sujeito–objeto ou sua abolição total – incorre nos riscos daquilo que guarda mais potencial de gerar desdobramentos nefastos para aqueles com quem trabalhamos, e no limite para nós mesmos, justamente porque não parece possível realmente considerar que a relação de antropólogos com suas pesquisas seja levada a efeito ignorando os variados níveis de conexões estabelecidas, bem como os desdobramentos e consequências que implica. O ponto de apoio entre os dois polos de tal “oposição” entre uma superfície de determinações não ligadas e uma totalizante escuridão indiferenciada de categorias (como afirmou meu colega Luis Reyes Escate em um debate) emerge justamente como uma certa desvinculação das consequências, postulados de conhecimento irresponsáveis, nos termos de Haraway.
Se, muito frequentemente, exercícios de observação e “auto-observação” por parte daqueles considerados como “verdadeiros cientistas” de distintos campos de conhecimento puderam ser considerados procedimentos levados a sério, a legitimidade das análises não é estendida da mesma maneira a qualquer pesquisador. Se quem observa está na categoria daqueles que carregam em si uma ontologia objetificada – objeto entre objetos, como escreveu Fanon (2008, p. 103) – de saída já são desconsiderados pelos “protocolos de cientificidade”. Uma espécie de dissonância cognitiva. Mesmo naquilo que implicaria uma certa reflexividade sobre a prática do pesquisador, atribui-se de modo diferente aos sujeitos que escapam ao imaginário do que seja um cientista. Se para o primeiro é exercício que compõe a própria prática, sujeito reflexivo, para os outros é movimento lido como objeto interessado em si mesmo e cujas elaborações, nesse sentido, só poderiam interessar a si próprio... não universais e, portanto, nada científicos. Pode um objeto fazer ciência?
Claro, porque como abstrair a denotação de palavras que serviram a efetivamente categorizar seres humanos em seus graus de humanidade, a ponto de fazer de alguns – ou quase todos – “indignos” dessa nomeação? Reduzidos a propriedades, sujeitos objetificados, objetos sujeitos a todo tipo de exploração e violência? Não se trata de mera figura retórica. Como escreveu Spillers (2021, p. 37), fazendo referência às pesquisas médicas sobre a população submetida à escravização:
Essa lucrativa “atomização” do corpo cativo fornece outro ponto de vista sobre a carne dividida: perdemos qualquer indício ou sugestão de uma dimensão ética, de relação entre a personalidade humana e outra, entre a personalidade humana e as instituições culturais. Nessa medida, os procedimentos adotados para a carne cativa demarcam uma objetificação total, pois toda a comunidade cativa torna-se um laboratório vivo.
Há que se ficar com a questão. “Eu sou o lá”, portanto sigo atravessada pelas consequências dessa desvinculação generalizada e violenta, capaz de produzir atrocidades protegidas pelo uso de um jaleco, uma capa de etnólogo, pela ausência de temporalidade, corpo ou localização. É essa também a “autoridade da consciência subalterna” de que falamos (NASCIMENTO; CRUZ, 2017, p. 12): ciente das consequências do esgarçamento ético, das desconexões entre as dimensões da existência, dos violentos processos de negação e aniquilamento existencial. Não inocente nem blindada às experiências ou aos riscos, pois não se fecha em si mesma. É a proposição de um exercício de alteridade que permita uma criação consciente das vinculações e responsabilidades que engendra. Daí emanam tanto sua legitimidade quanto a potência de propagação que possa conectar, ressoar e informar outras experiências.
Mas não é difícil entrever que a palavra “antropólogo” remete de maneira geral a um imaginário específico, que, de um jeito ou de outro, remete primordialmente a homens brancos, imaginário esse referenciado em experiências hegemônicas; parciais e, no entanto, frequentemente apresentadas como universais. Sendo assim, que tipo de ideias e possibilidades de relação acionam a presença, a produção e a escrita de antropólogos e antropólogas não-brancos? Presenças em campo que são/podem ser percebidas de que forma? Que tipo de questões experienciais, teóricas, epistemológicas e éticas passam a estar implicadas? Ou talvez apenas mais explicitadas? Novas perguntas ou novas formas de colocar questões antes dispostas de modos muito restritos. Quando a consideração do corpo na experiência antropológica evidencia os processos de racialização e generificação, para usar os termos de Castro (2022, p. 4), revela também os “problemas da desracialização das reflexões sobre o trabalho etnográfico e suas implicações sobre dilemas éticos que podem emergir em campo”. A questão, como se vê, não fica adstrita às perspectivas destoantes do que seria uma norma7, mas se estende e lança novas luzes para a prática antropológica como um todo. É nesse sentido que, na esteira da autora (CASTRO, 2022, p. 20), diz respeito a “contribuições teórico–analíticas de teor ético, pois ao tensionarem posicionamentos naturalizados entre antropólogos e interlocutores, simultaneamente questionam os caminhos desenhados e projetados para a antropologia e lançam propostas transformadoras de futuro”.
Depois e Antes da Encruzilhada
“Um velho igbo da Nigéria, usando palavras diferentes, poderia ter dito exatamente a mesma coisa ao jovem: “Se você não sabe onde a chuva começou a te molhar, não vai saber onde o sol já te secou”.
Chinua Achebe, Dizendo nosso verdadeiro nome“[...] quem nunca passou por uma encruzilhada não sabe escolher caminhos [...]”: essa é uma lição recorrentemente enunciada por Antônio Bispo dos Santos (BISPO DOS SANTOS, 2021a). Seguindo o argumento do mestre quilombola, a “encruzilhada” é tomada aqui não enquanto algum tipo de conceito ou de território estático onde seria possível – ou mesmo desejável – permanecer, mas sim como “palavra germinante” (BISPO DOS SANTOS, 2021b). Quer dizer, tomada como espaço pleno de possíveis de todos os tipos, onde há múltiplas possibilidades de movimentos e articulações – pura potência de conexão, com todos os seus riscos. Por isso mesmo, trata-se de um território por onde passamos nas trajetórias individuais e coletivas, que exorta a fazer escolhas e enfrentar consequências. A noção é, pois, evocada aqui nesse sentido vivo, articulado com as experiências práticas de lutas coletivas e enfrentamentos que culminaram nas atuais políticas de ações afirmativas e na presença de grupos minoritários em espaços eminentemente excludentes. Nesse sentido, não há qualquer pressuposição de algo que tome a caminhada por encerrada; pelo contrário, o percurso segue, provavelmente fazendo com que nos deparemos com outros tantos desafios, infinitos riscos, potências, escolhas e apostas a serem manejados. Trajetórias articuladas onde cada escolha feita produz marcas e efeitos no caminho – e também coloca constantemente novas questões.
Se considerações sobre ética, métodos, desafios de pesquisa estão há muito tempo em jogo, deparamo-nos com uma série de experiências de colegas não-brancos que se veem sem parâmetro de reflexão para pensar seus próprios desafios. E isso não porque sejam maus profissionais ou pesquisadores, mas justamente pelo que disse mais acima: pensar os desafios da antropologia tem sido basicamente pensar as questões dos antropólogos e antropólogas brancos. Nesse sentido, essas presenças não-brancas são instadas a olhar para seus desafios muitas vezes atravessadas por uma sensação de solidão profissional e acadêmica, ao mesmo tempo em que enfrentam todas as inquietações de habitar um espaço e exercer uma função atravessada por um acúmulo de incoerências, opressões e violências, e no mesmo passo em que lidam com todas as objeções dos outros mundos que habitamos, como se cada um desses enfrentamentos fosse um acontecimento isolado.
Nesse sentido, é como se a gramática que nomeia as experiências não desse conta das experiências não-hegemônicas, embora se apresente como se o fizesse. Atribui, assim, a carga dessa falta aos indivíduos, como se fossem estes os incapazes de aderir às luzes da disciplina. Gera, portanto, e tomo de empréstimo uma noção desenvolvida no bojo da psicanálise, a sensação de um desamparo discursivo8, indubitavelmente relacionado a todos os outros processos violentos que impõem lógicas opressivas e desiguais, mas cujos efeitos específicos valem ser destacados, visto que nem a própria nomeação das experiências parece encontrar lugar de legitimação. Quer dizer, verifica-se tanto uma falta de escuta e espaço, quanto de instrumentos de elaboração das próprias experiências em alguma chave que não as reduza e submeta àquilo que já estava dado. Temos sido falados, como afirmou Lélia Gonzalez (1984, p. 225).
Há algo que espreita e acirra essa sensação de solidão, que sobre ela se acumula. Não há isolamento em relação ao que acontece “lá fora”, como se a universidade realizasse uma espécie de suspensão do espaço–tempo e pairasse alheia e protegida dos acontecimentos que marcam as sociedades em que se insere, isenta das disposições de aniquilação existencial que têm assombrado as populações não-brancas há séculos. Impõe-se aqui uma implicação específica a ser destacada. Pensar os percursos de pessoas negras dentro das universidades é compreendê–los em sua relação ao acontecimento. Se é possível rememorar a presença de figuras negras eminentes que, a despeito dos mecanismos de apagamento, deixaram um legado consistente que vem sendo retomado em sua profundidade, por outro lado é impossível – ou deveria ser – ignorar que as trajetórias de muitas dessas figuras foram interrompidas demasiadamente cedo, muitas vezes de formas violentas, em processos que não estão apartados do que se passa intramuros. E se ainda assim puderam produzir trabalhos substanciais e incontornáveis e promover mudanças e rupturas determinantes para o que viria a seguir, isso não implica em que tenham tido tempo para inscrever tudo aquilo que tinham de potencial. Afinal, faz parte do próprio exercício do pensamento revisar, olhar para trás, olhar com novas luzes, com outras lentes, em contato com novas proposições, com o amadurecimento das ideias viabilizado pelo passar do tempo e do acúmulo de experiências. Fica em aberto que ideias manteriam, repensariam, amadureceriam, sustentariam em outras bases, fariam outras conexões com que coisas, se transformariam nas possibilidades de encontro, se tivessem tido mais tempo e espaço de nutrir e florescer. E se?
Por outro lado, há muito de um projeto coletivo, cultivado por décadas, séculos mesmo, empreendido a contrapelo, movendo-se em meio às urgências, capaz de nos trazer a esse momento em que as portas das universidades testemunharam, não sem resistência, a entrada mais substancial de uma população discente negra e indígena. Mas se é verdade que vivemos circunstâncias desalentadoras no que se refere ao cenário atual e que não há como perder de vista os mecanismos de atualização do confinamento racial que renovam e recriam barreiras aos avanços nas carreiras acadêmicas e na própria vivência universitária, por outro lado nos foi dado vivenciar um período sem precedentes na história das instituições brasileiras. Políticas gestadas há décadas – basta lembrar que a I Convenção Nacional do Negro realizada em 1945 já preconizava a abertura das portas de todas as instâncias de ensino do país àqueles que seguiam excluídos9, ou seja, há mais de oitenta anos as propostas que culminaram nas políticas atuais de ações afirmativas já se faziam presentes. Foram efetivadas, é preciso lembrar, pela insistência e luta contínua de muitos que não viveram para vê-las implementadas. Que apostaram que alguém poderia fazê-lo. Em certa medida ainda recente, mas indubitavelmente potente, permite-nos vivenciar um tempo em que é (mais) possível produzir arcabouços teórico-práticos-ético-metodológicos lastreados na força da experiência coletiva e múltipla, que nas últimas duas décadas permitiu um tipo de experiência universitária menos isolada, que abre mais espaço para a multiplicidade, a divergência e a experimentação. O acontecimento genocida segue à espreita; a urgência permanece. Mas se a pressa é paralisante, a urgência impõe a necessidade do movimento, de agir diante das circunstâncias.
Por isso mesmo, é notória a proliferação de coletivos estudantis negros e indígenas nas universidades. Não à toa, em particular no caso do alunado negro, percebe-se uma certa tradição de homenagem a figuras negras que marcaram os campos específicos de produção do conhecimento em que se encontram: Virgínia Bicudo, Lélia Gonzalez, Guerreiro Ramos, Luiz Gama, Carolina de Jesus, Beatriz Nascimento, Marlene Cunha... Tanto há um sentido de homenagem, como também de lembrança do percurso coletivo trilhado para que as experiências atuais sejam possíveis. Nessa esteira, abrem espaço para a retomada da produção daquela intelectualidade negra, não apenas no que se refere a rememorar suas trajetórias, mas possibilitando um mergulho na profundidade do pensamento desses autores, expandindo as possibilidades nos sentidos que não estão dados – não há, evidentemente, uma identificação total necessária de pensamentos. Por isso mesmo, trata-se de adentrar as proposições em sua inteireza e complexidade, dando lugar para as lacunas, abraçando não apenas o que acalanta, mas também o que discorda, o que tensiona, o que atrita e, por isso mesmo, acende a fagulha da inquietude. Espaço de continuidade no exercício humano da criação.
Os coletivos operam, portanto, como dispositivos de contrassolidão, o que permite pensar a vivência universitária não em termos de problemas individuais ou acidentes de percurso, mas percebê-las em contraste, ressonantes, parte de algo que extrapola individualizações. Atuam como aquilo que libera “do trampolim constituído pela resistência dos outros, ferindo na própria carne para encontrar um sentido para si” (FANON, 2008, p. 27). O exercício de contrastar e articular experiências permite atribuir sentido para aquilo que de outro modo ficaria reduzido a uma dimensão anedótica, pontual e isolada, incapaz de aprender, ensinar ou abrir caminhos de elaboração da própria prática antropológica e de seu desenvolvimento. Essa falta de vocabulário pode ser transformada, assim, no espaço que permite a criação de uma gramática capaz de melhor nomear as próprias experiências fora da chave excludente que tende a capturá-las e invalidá-las de antemão. Como escreveu Spillers (2021, p. 39), “a parte capturadora não só ‘adquire’ o direito de dispor do corpo cativo como bem entender, mas ganha, consequentemente, o direito de nomear e ‘nomeá-lo’”. Nesse caso, trata-se de retomar essa cara habilidade de nomear as próprias questões, assumindo, como sustentou Gonzalez (1984, p. 225) “o ato de falar com todas as implicações”. No caso da antropologia, é oportunidade de compor os avanços da própria disciplina, suas técnicas e horizontes, bem como os parâmetros ético-profissionais de atuação. Perceber, portanto, as ressonâncias e os atravessamentos coletivos de situações diuturnamente colocadas em termos individualizados.
Justamente por isso é que me vejo instada a pensar que urge estabelecer pontes entre as elaborações e potências de realização que emergem daí. Não, como afirmei, para chegar a respostas fechadas ou a regras fixas sobre uma multiplicidade de acontecimentos, mas justamente para construir modos de escapar das armadilhas e dos mecanismos de confinamento racial que vez ou outra acabamos também por introjetar e reproduzir. Sim para dar vazão às potências que surgem dessas rupturas levadas a efeito por “sujeito[s] que eclode[m] nas estratégias de escritura”, como sustentou Anjos (2017): transbordamentos e apostas na direção da chance de sobreviver como multiplicidade de povos.
Coda
Teremos tempo? Como não se deixar tomar pela paralisia? Pela sensação de pressa, da pressão das exigências todas, da ciência dos atravessamentos singulares e coletivos, daquilo que se passa “lá fora”, aquilo que na verdade se impõe, insidioso, em todo canto, do ímpeto de dar conta daquilo que é mesmo inominável? Abrir trincheiras onde só parece haver terra arrasada, fazer caminhos onde a visão é desértica?
Mas o destino aqui neste texto não é a impossibilidade. Esta que parece sempre insistir em todo discurso sobre experiências contrahegemônicas, de um jeito ou de outro. Insuficientemente científicos, insuficientemente militantes, alheios aos protocolos de cientificidade, submissos aos espaços embranquecidos de produção de conhecimento e poder, palavras controladas, acusações de todo tipo, silêncios muitos. Fazendo das proposições interessantes meros acidentes de percurso, como se a nós não pertencesse também a capacidade de pensar, repensar, experimentar, testar ideias, congregar reflexão e prática, aprumar os rumos, fazer proposições que propaguem e fertilizem avanços na experiência humana. Meros corpos andando sem propósito. Repetições ambulantes de palavras de ordem. O vazio da experiência reduzida a anedotas e notas de rodapé. O horror transformado em insistência pueril. As conexões cortadas fazendo débil a existência. A pressa, a pressa, a pressa. Definitivamente não é esse o destino aqui.
Quantos acontecimentos foram disparados para que este corpo negro pudesse, agora, escrever? Que este corpo não se esqueça, então, das marcas que o constituem, dos percursos que o fizeram vir a ser, das possibilidades abertas em meio ao caos. E sendo capaz de lembrar, se faça muito mais do que corpo–objeto, explorável, expropriável, à mercê das suscetibilidades alheias, à disposição das exigências externas. Que se faça meio de passagem de experiências singulares e atravessamentos coletivos sem reduzir-se às ciladas das homogeneidades limitantes. Não seja refém de identidades enrijecidas, mas seja lócus de manifestação da explosão de experiências, incoerências, propósitos, hesitações, apostas, medos, desejos, tudo aquilo que o faz profundamente humano, parte indissociável da experiência humana. Não seja minha nomeação ou definição final, mas me componha, junto com tudo o mais que me compõe, coração, mente, espírito, ação, afeto, memória, presença, relação. Não reduzido a si mesmo, mas sim parte da existência, harmonizado com todas as dimensões do ser. E assim faça eco à prece de Fanon (2008, p. 191) que ora parafraseio: Ô, meu corpo, faça sempre de mim um ser que questiona!
Referências
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Notas
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