Resumo: O presente artigo parte de pesquisas etnográficas que desenvolvi no mestrado e no doutorado, dentre o que intitulei de “parentes-interlocutoras”. Ao participar do processo de tentativas de publicação em revistas acadêmicas uma questão sempre emergia quando eu recebia os pareceres das minhas peças. Eu era interpelada sobre estar fazendo uma autoetnografia e criticada por não estar dialogando com autoras da área. Mas como eu poderia estar fazendo uma autoetnografia se em nenhum momento eu afirmava que estava em diálogo com o campo? Como eu era inscrita em um território que eu (depois de tanto ler) afirmava não ser meu? Como eu e minha pesquisa, por conseguinte, estávamos sendo inscritas em um campo que não almejávamos? Esse artigo possui a intenção de discutir como a inscrição de determinados corpos em determinados lugares é parte do paternalismo acadêmico para com alguns antropólogos (principalmente negros e indígenas).
Palavras-chave: Antropologia, etnografia, autoetnografia, metodologia.
Abstract: The present paper draws from ethnographic research I developed in my master's and doctoral studies, among what I titled "kin-interlocutors". When participating in the process of attempts to publish in academic journals a question always emerged when I received the reviews of my pieces. I was questioned about doing an autoethnography and criticized for not dialoguing with authors in the field. But how could I be doing an autoethnography if at no point did I claim to be in dialogue with the field? How was I inscribed in a territory that I (after reading so much) claimed was not mine? How were I and my research, therefore, being inscribed in a field that we did not aim for? This article intends to discuss how the inscription of certain bodies in certain places is part of the academic paternalism towards some anthropologists (mainly black and indigenous).
Keywords: Anthropology, ethnography, autoethnography, methodology.
DOSSIÊ – Quando o “Outro” é o Antropólogo
Isso Não é Uma Autoetnografia
This is Not an Autoethnography
Recepção: 14 Julho 2022
Revised document received: 21 Setembro 2022
Aprovação: 20 Dezembro 2022
“Quando eles falam, é científico;
quando falamos, não é científico.
Quando eles falam, é universal;
quando falamos, é específico.
Quando eles falam, é objetivo;
quando falamos, é subjetivo.
Quando eles falam, é neutro;
quando falamos, é pessoal.
Quando eles falam, é racional;
quando falamos, é emocional.
Quando eles falam, é imparcial;
quando falamos, é parcial.
Eles têm fatos, nós temos opiniões.
Eles têm conhecimentos, nós temos experiências.
Não estamos lidando com uma ‘coexistência pacífica de palavras’ mas com uma
hierarquia violenta, que define quem pode falar e quem pode produzir conhecimentos”.
Fonte: Grada Kilomba em “Decolonizing Knowledge” (2015, tradução da autora).
Há alguns anos ouvi de um conceituado antropólogo brasileiro, em uma de suas aulas, que ele só conseguia escrever seus trabalhos quando estava distante do próprio campo. Ele considerava essencial a distância para que pudesse olhar para os próprios dados com mais clareza, mais firmeza e cautela. Essa reflexão me acompanhou por um tempo, como se junto com ela viesse certo incômodo. Ao mesmo tenho, eu não sabia dizer o porquê de tal incômodo. Entretanto, o incômodo não precisa ter um nome logo de cara, jeito ou corpo para ganhar espaço nas nossas vidas. Muitas vezes ele fica ali quieto, silencioso, até que um dia, com o contexto correto, ele volta a fazer barulho e sentido.
E o contexto correto foi quando em 2019 me vi fazendo etnografia entre minhas parentes-interlocutoras (DAMÁSIO, 2020). O barulho correto era feito pelas mulheres da minha família materna com quem pesquisei, partilhei vida, afetos, palavras, compreensões sobre nosso fazer família e nossas formas de viver entre Canto do Buriti-PI, Distrito Federal-DF e São Paulo-SP. Por muito tempo em campo e no momento da escrita da dissertação acreditei que precisava me distanciar das minhas parentes-interlocutoras para que eu pudesse compreendê-las (e também compreender o que eu estava fazendo com-na antropologia). Mas Leach (1996) deixou a preciosa lição de que não é a teoria antropológica que atualiza o campo, mas sim o campo que atualiza a teoria vigente e a complexifica. É importante levar em consideração as exigências feitas pelo campo, ao mesmo tempo que nos fragilizamos para repensar o que de fato esse mesmo campo está gritando para nós.
No meu caso etnográfico o chacoalhão foi literal. Em um dia de campo com minha família, mais especificamente com minha mãe, passamos por um imbróglio que mobilizava questões éticas de parentesco e que eram, por conseguinte, etnográficas para o meu contexto de pesquisa. Ela disse de forma veemente enquanto discutíamos sobre um segredo de família (DAMÁSIO, 2021c) que descobri em campo e com o qual não concordei com a divulgação, por parte dela, para toda família: “Você fica falando como se não fosse da família!”. O chamado era para que eu passasse a olhar com o “olho de parente” e não continuar tentando olhar para a vida entre minhas parentes-interlocutoras com o “olho estranho” (DAMÁSIO, 2021b). Era um chamado para que eu me aproximasse e não para que eu me distanciasse. Após esse dia, questões teóricas que tocavam em temáticas relacionadas a distanciamento, neutralidade, cientificidade, objeto de pesquisa, sujeito e afins, ganharam espaço nas minhas reflexões.
Com isso, outro cenário emergiu, o processo editorial e as tentativas de publicação dos meus resultados de pesquisa. Mesmo estando nas duas posições (a de quem emite e recebe parecer), é estranho que eu seja um sujeito sem rosto nesse processo editorial de trocas de ideias, reflexões, aceites e recusas. Enquanto parecerista, quando envio um parecer eu também sou aquela sem rosto para aquele que irá receber meu parecer. Eu sou anônima. Já enquanto autora que recebe um parecer, eu sou aquela que dialoga com alguém sem história, corpo, intenções, raça, gênero e sexualidade. Essa troca entre parecerista e autor é um processo que perpassava tudo o que me tensionava em campo e fora dele (distanciamento, neutralidade, cientificidade, objeto de pesquisa e sujeito). Mais um incômodo ia ganhando lugar (ou espaço). Entretanto, percebi com o tempo que, através do meu texto e da minha posicionalidade no meu texto como uma mulher negra de pele clara, filha de proletariados e migrantes nordestinos, como primeira universitária da família, como aquela que um dia receberá o título de “doutora”, eu era lida, vista e posicionada conscientemente (ou não) pelos pareceristas (por mais que meu nome não ali estivesse e tampouco meu rosto).
Narrar sobre minhas parentes-interlocutoras exigia que eu me posicionasse, mas o que os pareceristas achariam disso? Esse artigo talvez nasça desse processo editorial onde tive que formular longas respostas ao longo dos últimos anos para uma exigência que sempre me era feita nos pareceres que eu recebia: “O que você faz é uma autoetnografia!”. Pelo rápido cenário que apresentei (e apresentarei mais abaixo), eu era o tempo todo inscrita na caixa da “autoetnografia”, por mais que eu não ambicionasse essa posição. Havia mais, pois eu conhecia a literatura sobre a autoetnografia (como apresentarei também mais a frente) e decidi que mesmo ao lidar com um nível de alteridade muito próxima ao pesquisar minhas parentes-interlocutoras, eu afirmava, através de diálogos, ferramentas metodológicas e reflexões, que eu estava fazendo uma etnografia. Entretanto, nada disso soava suficiente para os pareceristas. O que seria então?
Esse artigo tem a intenção de refletir sobre as condições e demandas contemporâneas dentro do processo editorial, fazendo com que pensemos a partir de uma etnografia da aproximação (DAMÁSIO, 2021a). Ao mesmo tempo, procuro mostrar que o processo editorial, o diálogo com pareceristas e as respostas que formulamos, podem trazer reflexões não apenas sobre nossa pesquisa, mas também sobre como somos inscritas em determinados campos pelos nossos pares. Também é minha intenção esgarçar os sentidos do processo de produção do conhecimento antropológico, levando em conta suas limitações e lógicas de funcionamento.
Esse artigo nasce de um diálogo íntimo com o ensaio de Zora Hurston (2019, p. 106-107) intitulado “O que os editores brancos não publicarão”. Nele, a autora considera o mundo editorial de forma particular. Peço paciência ao leitor e trago uma reflexão da autora para dar o pontapé inicial e o tom que esse artigo terá. É importante, ainda, que fiquemos com essa história da Zora:
Um Negro escolarizado ainda não é uma pessoa como qualquer outra, mas apenas um problema mais ou menos interessante. Isso lembra uma história do tempo da escravidão. Nesta história, um mestre com mais curiosidade intelectual do que o habitual, começou a ver o quanto ele poderia ensinar a um escravo particularmente brilhante. Quando o levou a compreender a matemática e a adquirir fluência em latim, ele chamou um vizinho para mostrar seu brilhante escravo, e para argumentar que os Negros tinham cérebros, assim como os proprietários de escravos. Dadas as mesmas oportunidades, seriam iguais. O vizinho olhou e escutou, tentou pregar uma peça no escravo letrado em álgebra e latim, mas sem sucesso. Contrariado, disse: “Sim, ele certamente conhece matemática, e ele pode ler latim melhor do que muitos homens brancos que eu conheço, mas não consigo acreditar que entenda qualquer coisa do que ele está́ fazendo. É tudo uma imitação da nossa cultura. Tudo está́ fora (de lugar). No mínimo, você é louco se acha que isso o mudou por dentro. Solte-o e ele voltará imediatamente para a selva. Ele ainda é um selvagem, e nenhuma quantidade de traduções de Virgílio e Ovídio mudarão quem ele é. Na verdade, tudo o que você̂ tem feito é transformar um selvagem útil em uma fera perigosa.”
(HURSTON, 2019, p. 106, grifo da autora).A partir desse cenário apresentado por Zora, dei ênfase a parte em que um homem branco afirma que: “Não consigo acreditar que ele entenda qualquer coisa do que ele está fazendo”. Peço mais uma vez paciência ao leitor para entender minha perspectiva e não tirar apressadas conclusões. Com isso, será possível vislumbrar que na parte II desse artigo reconsiderarei a perspectiva que estabelece um aproximar-se e distanciar-se do fazer antropológico, ao mesmo tempo que pondero a estruturação do atual modelo de organização acadêmico. Já na parte III passo a questionar as ferramentas acadêmicas de inscrever determinados corpos-pesquisas em determinados lugares (muitas vezes sem considerar o que esses corpos-pesquisas querem). Por último, na parte IV, refletirei sobre o que foi necessário estabelecer enquanto prioridade para realizar uma etnografia entre parentes-interlocutoras.
Ao pensarmos no símbolo que ainda marca a forma ideal de construir, fazer trabalho de campo e etnografia, aqui me refiro a Malinowski (1978), podemos ter constantemente a impressão de que o antropólogo se distancia do seu país, continente e idioma para realizar sua pesquisa. E essa impressão não está errada. Há realmente distanciamentos geográficos, linguísticos e epistemológicos que produzem algumas pesquisas. Em muitos sentidos, para alguns teóricos, as distâncias são constituintes das clássicas etnografias (PEIRANO, 2014). Mas há um outro caminho para considerar essa dinâmica e a construção dessa distância. Com outras lentes, podemos ponderar que no lugar de se distanciar, Malinowski na verdade se aproxima para poder produzir, fazer campo, escrever e entender. O antropólogo vai até o campo para compreender, se aproxima das pessoas para conhecer e escreve com os dados que foram construídos através das relações. Essas últimas, estruturadas através das pessoas que também se aproximaram. Afinal, construímos dados com quem, por alguma razão, se aproxima da gente e possui a intenção de colaborar com nossa pesquisa. E essa é a lente que aqui será usada para ponderar como o trabalho de campo, a etnografia e antropologia num sentido mais amplo do termo, são marcadas não por distanciamentos, mas sim por aproximações (em diferentes níveis e com diferentes ênfases).
A base do pensamento cartesiano assentou a operacionalização e atuação da ciência moderna. Como Descartes (1999) apontava, os sentidos enganam, não há garantia do que se sente, há que se duvidar das impressões que o mundo causa. O único conhecimento verdadeiro vem através do método e da razão. Nessa perspectiva, consideramos então que necessitamos nos distanciar do mesmo mundo que pretendemos conhecer, para conhecê-lo efetivamente. A Antropologia, apesar de ser uma disciplina nova, em comparação com outras, como a Matemática, foi fundada ainda sob a concepção de que a distância forneceria uma fonte segura para conhecer. Como vimos com Lévi-Strauss (2003) no clássico texto, “Introdução à obra de Marcel Mauss”, uma das suas principais críticas a Mauss foi a de que ele teria incorrido em um erro metodológico, o de ter-se deixado mistificar pelo pensamento indígena.
Sabemos contemporaneamente, principalmente depois das críticas postas na virada ontológica, que devemos enquanto antropólogos levar os interlocutores à sério (INGOLD, 2019). Contudo, como levar a sério o que está distante ou considera-se necessário manter a distância para que o “verdadeiro” conhecimento emerja? Para conhecer é preciso em algum nível tornar o “estranho” em “familiar” e familiarizar-se com o estranho (VELHO, 1978). Só assim o processo cognitivo de compreender o “Outro” se torna possível. Ao mesmo tempo, criar um “Outro” artificial é um artifício colonial para compreender aquilo que é entendido enquanto estranho e distante (LAPLATINE, 1998).
Vamos voltar agora um pouco a afirmação feita pelo conceituado antropólogo que ouvi e que foi citado no início desse artigo. Ao realizar sua pesquisa no Brasil, quando a mesma terminava, ele se retirava para os Estados Unidos para escrever. No meu caso, que realizava etnografia entre minhas parentes-interlocutoras no interior do Piauí, não era possível sair de perto delas para escrever, pensar e viver. Meu curso de vida era entremeado, perpassado e moldado pelas mulheres que me compuseram enquanto pessoa. Essa é a realidade também de antropólogos indígenas, negros, campesinos, quilombolas e ciganos que muitas vezes saem dos seus respectivos territórios para estudar, mas voltam para esses mesmos territórios para escrever, pesquisar, fotografar e etnografar. Não há uma saída, um distanciamento para compreender, mas sim uma aproximação radical do próprio território, povo, parentes e vida, para produzir conhecimento.
De acordo com José Jorge Carvalho et al. (2020, p. 138) o modelo de “organização do saber acadêmico, consolidado no século XIX europeu e reproduzido no Brasil até o início do século XXI, padece de três dualismos ou parcialidades colonizantes”. E esse dualismo ou parcialidades podem ser circunscritos em:
i) o monologismo epistêmico, que decreta como único conhecimento válido aquele gerado após a revolução científica europeia, enquanto as epistemologias indígenas, afro-brasileiras, das culturas populares e dos demais povos tradicionais ficaram excluídas de nossas universidades como não científicas;
ii) o dualismo da organização do saber no interior dessa episteme ocidental excludente, que separou as ciências sociais e as humanidades das ciências exatas; e
iii) o dualismo da objetificação, que separa radicalmente o sujeito conhecedor do sujeito a ser conhecido (chamado de objeto das ciências sociais), e que indiretamente retirou a instituição acadêmica do olhar inquiridor dos acadêmicos
(CARVALHO et al., 2020, p. 138).O monologismo epistêmico vem sendo aos poucos abalado. Isso se deu principalmente por alguns fatores como: a expansão universitária das últimas décadas2; com a implementação e aplicação das ações afirmativas3; com propostas que tentam trazer outras epistemologias para dentro das universidades como, por exemplo, o Encontro Dos Saberes (CARVALHO; VIANNA, 2020). Nas duas últimas décadas temos então de forma efetiva e prática, mecanismos que tentam fraturar esse monologismo.
Da mesma forma, essa separação entre ciências humanas e exatas é abalada não apenas pelos mestres de saberes que passam a ocupar a universidade através dos Encontros Dos Saberes (CARVALHO; VIANNA, 2020), mas também pela entrada de alunos indígenas, de terreiros, quilombolas, ciganos, classe trabalhadora, que não ingressam no espaço universitário e acadêmico apenas absorver conhecimento, mas para em muitos sentidos, tencioná-lo. Esses mesmos alunos passam a questionar a separação dos conhecimentos e mais, através dos próprios trabalhos fornecem desobediências epistêmicas e contribuem para a não formação e conformação de uma história acadêmica única (ADICHIE, 2019). E questionamos como, por exemplo, não é possível fazer ciência sem o próprio corpo! Sabemos que não é possível fazer ciência sem posição. Percebemos o mundo, mas também somos percebidos. A ciência é feita com inúmeros marcadores sociais das diferenças, assim como nossos textos, escolhas teóricas e metodológicas. A ciência tem classe, endereço, gênero, raça e sexualidade. Não podemos lidar como se nossos textos, vidas e produções fossem “arracializadas”, por exemplo (VENANCIO; SILVA, 2021).
Por último, esse dualismo fornece a objetificação, a divisão entre o sujeito que conhece e o sujeito que está lá para ser conhecido. Essa divisão é impossível de ocorrer quando o “Outro” sou eu, por isso a etnografia entre parentes-interlocutoras fornece outras concepções de como a etnografia pode ser operacionalizada, como ela pode e deve ser realizada. Não há como separar sujeito conhecedor, do sujeito a ser conhecido - o “Outro” sou Eu. É justamente por isso que frequentemente sou questionada acerca da “objetividade” com a qual realizei minha etnografia. Afinal, não é possível conhecer de forma “verdadeira” um campo no qual você está muito imerso, mas a imersão no campo não é uma prerrogativa para a execução de uma boa etnografia? Você é o nativo daquilo que vive, você precisa que um “Outro” de fora te conheça de forma objetiva. O poder de escrever sobre o “Outro”, é também o poder de inscrever o “Outro” (ASAD, 1973; CLIFFORD, 1986). Ao mesmo tempo, como coloca Grada Kilomba (2020, p. 80), “toda vez que sou colocada como ‘Outra’, estou experienciando o racimo, porque eu não sou a ‘Outra’. Eu sou eu mesma”.
Volto então para a discussão que toca na inscrição do “Outro”. Esse é o momento em que ao pesquisar minhas parentes-interlocutoras sou colocada em novas classificações ao tentar dialogar com a academia. Aqui irei me referir especificamente as reflexões que obtive com as interlocuções travadas com pareceristas em submissões que realizei ao longo de 2020 e 2021 em revistas acadêmicas de antropologia. Mas antes é preciso voltar um pouco mais no tempo para circunscrever o pano de fundo que gerou o trânsito de diálogos que travo aqui.
Pois bem, ao longo do mestrado resolvi compreender questões que perpassavam curso de vida, gênero e geração em Canto do Buriti-PI (DAMÁSIO, 2020). Entretanto, o diálogo de toda etnografia deu-se com-entre minhas parentes-interlocutoras, como já apontei anteriormente. Essas, eram circunscritas principalmente por minha mãe, tias maternas, avó materna, tia-avó materna e bisavó materna. Foi nesse cenário que tentei pensar em uma etnografia com aproximações, já que eu estava imersa nas relações de trocas, direitos, deveres e obrigações estabelecidas pelas relações de parentesco e familiares. Mas isso se converteria automaticamente em uma autoetnografia?
Constantemente era-me imputado, por parte dos pareceristas, que meu trabalho era uma autoetnografia, por mais que em nenhum momento eu dissesse que realizava uma autoetnografia. Me era cobrado o diálogo com essa bibliografia, por mais que eu não quisesse fazer. “Onde está a autoetnografia?”, me era posto. Bom, mas em nenhum momento coloquei nos meus textos que pretendia dialogar com o conceito de “autoetnografia” em suas mais diversas inflexões4. Para fazer uma autoetnografia é preciso que o pesquisador possua a intenção de usar a mesma como método de pesquisa e/ou ferramenta analítica. Não era meu caso. Então de onde vinha a intenção de me colocar ao lado da “autoetnografia”? Minha questão-problema jamais foi com a autoetnografia. Se um dia fosse preciso utilizá-la como ferramenta de pesquisa e fizesse sentido para mim, era óbvio que eu recorreria a esse diálogo, mas não fazia sentido para minha perspectiva e eu afirmava que mesclava a compreensão da etnografia enquanto “descrição densa” (GEERTZ, 2008) e “teoria vivida” (PEIRANO, 2014) para efetuar minha pesquisa. Ainda era insuficiente para alguns pareceristas.
A autoetnografia enquanto método surge com uma potencialidade incrível para o desenvolvimento de pesquisas. Vemos isso, por exemplo, com Iêda Figueiró (2021) que realizou uma autoetnografia em que buscou refletir sobre a própria trajetória enquanto travesti. Sua argumentação seguia um pêndulo riquíssimo que passava do nível individual e subjetivo, ao coletivo. Fabiene Gama (2020) também utilizou a autoetnografia para analisar as próprias experiências enquanto pessoa diagnosticada com esclerose múltipla e paciente ativa, testando então os limites intelectuais e afetivos da produção de conhecimento. Contudo, essa nunca foi a minha intenção, mas minha intenção valia algo nessa relação de submissão com alguém (parecerista) sem rosto?
Outra questão surge nesse momento, eu tinha um rosto no meu texto. Era um rosto compartilhado. Rosto de parentes pretas e negras de pele clara. Estava lá também a nossa origem piauiense e a trajetória delas enquanto empregadas domésticas e lavradoras. Apesar de eu não ver os rostos dos pareceristas, eles me viam, classificavam, racializavam e em algum momento associavam o fato de eu falar sobre minhas parentes-interlocutoras a autoetnografia. O que tem a ver uma coisa com a outra? Por que eclodia comentários como: “Recomendo fortemente algumas referências importantes para um mergulho mais profundo na autoetnografia”; ou então, “Parece que o artigo é essencialmente um ensaio autoetnográfico, e não tanto etnográfico. Num ensaio autoetnográfico é perfeitamente aceitável a deambulação da autora pelos processos de consciência”.5 Eles sabiam do meu texto, da minha intenção e do que eu precisava, mais do que eu mesma. Incrível! Ou supunham fortemente saber qual caminho eu deveria seguir e com qual teoria eu deveria dialogar.
A autoetnografia, nessa situação específica, serve para inscrever determinados corpos, pesquisas e temáticas em determinados espaços, por mais que esses mesmos corpos não queiram estar ali. E essa inscrição pode ser extremamente violenta, pois inscreve de forma sutil que nós (indígenas, negros, ciganos, quilombolas) somos “quase da família” (DIAS, 2019) para a antropologia, somos quase antropólogos, somos contaminados demais por aquilo que pesquisamos e assim não poderíamos verdadeiramente conhecer – ou saber o que estamos fazendo, com quem estamos dialogando, quais caminhos queremos seguir com nossas próprias pesquisas. Esse processo me remete diretamente ao que Beatriz Nascimento (RATTS, 2006) apontou sobre uma das violências mais duras que sofreu ao longo da sua vida e que elucida como a racismo se especializa e se atualiza em todos os espaços da sociedade brasileira:
Uma das piores agressões que sofri neste nível foi por parte de um intelectual branco. Disse-me ele que era mais preto do que eu por ter escrito um trabalho sobre religião afro-brasileira, enquanto que eu não usava cabelo afro nem frequentava candomblé. Foi uma das constatações mais difíceis de situar, uma das mais sutis sobre o preconceito racial existente no Brasil. Sofremos agressões sutilíssimas, na rua, na escola, no trabalho, até mesmo na família. Mas esta foi verdadeiramente a mais violenta. Não sei a que corrente pertence. Acredito que ela faça parte da mais nova mistificação em termos de preconceito contra o negro
(RATTS, 2006, p. 95).É importante ponderar aqui como Gilberto Velho (2012) pesquisava no próprio condomínio e com histórias sobre as empregadas domésticas que passaram por sua casa. A maioria das empregadas citadas pelo autor eram negras e derivavam de contexto nordestino, mas a empregada que mais tempo ficou em sua casa era justamente uma que não tinha filhos e tampouco marido. Deja, como era chamada, trabalhou durante 35 anos em sua casa e era considerada uma “cozinheira de forno e fogão”. Entretanto, ao Deja envelhecer, se aposentou pelo INSS6 e nas palavras do autor “retirou-se do serviço cansada e com problemas de saúde”. Em seguida o autor narrou os desafios em encontrar uma nova empregada doméstica.
Mesmo dentro dessa especificidade de pesquisa do autor de dentro de casa, da varanda, com a empregada doméstica que fazia parte do seu cotidiano próximo, seu trabalho não é qualificado como “autoetnografia”. Muito pelo contrário! O mesmo é posto como um dos maiores nomes da antropologia brasileira. Suas proposições foram – e ainda são – compreendidas como uma das descrições mais reais e fidedignas do Brasil. Laura Nader (2020) conclama, em seu riquíssimo artigo intitulado “Para cima, Antropólogos”, com intuito de indicar que os antropólogos devem estudar também as elites. E ela indica ali a necessidade de antropólogos ricos da elite aproveitarem seu acesso ao campo para realizar essas pesquisas. Isso seria autoetnografia? Minha intenção não é resolver essa questão, mas apontar no momento como alguém “de baixo” experimenta essa inscrição não desejada. Dentro do que foi posto até aqui, fica visível que a autoetnografia pode ser utilizada como argumento, dispositivo e ferramenta para localizar o “Outro” que pesquisa o “Outro”, ou para aquele que está próximo demais daquele com quem pesquisa e etnografa.
Ao mesmo tempo, é colocado que esse “Outro” não pode ter autonomia suficiente para saber como travar o próprio caminho intelectual, conexões e escolhas. O que esses mesmos pareceristas parecem esquecer, é que os dados etnográficos não existem ou estão dados na realidade, eles ocorrem na-com a relação entre pesquisador e aquilo que pretende conhecer (pesquisado). Assim, quem determina o que é autoetnografia ou etnografia, é o antropólogo-etnógrafo-pesquisador e não o contrário.
Estaríamos nós, antropólogos-etnógrafos-pesquisadores que pesquisamos-dialogamos-etnografamos nossas próprias famílias, aldeias, comunidades, mistificados por nós mesmos? Essa é uma pergunta que não será respondida por mim aqui, pois ela não poderia ser considerada sem colocar a elite intelectual branca da antropologia também em perspectiva. Estariam esses intelectuais mistificados ainda pelos pressupostos (mesmo que inconscientes) de que é a distância que constrói conhecimento? Ou é puro racismo epistêmico que delimita quem são os “verdadeiros” produtores de conhecimento e os reprodutores de experiências? Como Grada Kilomba (2015) abriu o presente artigo, não vivemos na antropologia brasileira uma “coexistência pacífica de palavras”, muito pelo contrário. Ainda lidamos com uma “hierarquia violenta, que define quem pode falar e quem pode produzir conhecimentos” e como ele pode-deve ser produzido. Como pondera Abdias Nascimento em entrevista ao site Desinformemonos (MONCAU; PIMENTEL 2010), costumam descrever o racismo “como sutil, mas isso é um equívoco. Ele não é nada sutil, pelo contrário, para quem não quer se iludir ele fica escancarado ao olhar casual e superficial”.
Hoje eu responderia ao parecerista que me recomendou “um mergulho mais profundo na autoetnografia”, que não preciso desse mergulho, pois já estive nessas águas e não senti que necessitava nelas estar ou permanecer. Ao segundo parecerista que apontou que meu texto era “essencialmente um ensaio autoetnográfico, não tanto etnográfico”; e que, apenas num “ensaio autoetnográfico é perfeitamente aceitável a deambulação da autora pelos processos de consciência”; eu teria que afirmar que discordo dele e aponto os erros de tais colocações. Começo com a segunda colocação, pois a perambulação pela consciência é a base da feitura de todo e qualquer texto etnográfico. Ao mesmo tempo, qual texto etnográfico não é também autoetnográfico? Já deveria ter ficado marcado, com a história da antropologia, que todo texto é criado enquanto verdade parcial (CLIFFORD, 1986), mas o que precisa haver é um reconhecimento de que eles “são também verdades posicionadas” (ABU-LUGHOD, 2018, p. 198). É preciso salientar também que há formas dignas e indignas de construir as “verdades” escritas e que “os processos de alteridade radical são meramente métodos de exclusão e hierarquização por outro caminho” (MOORE, 1996). E como considerou o autor nigeriano Chinua Achebe (2000, p 33), embora toda “ficção seja indubitavelmente fictícia, ela também pode ser verdadeira ou falsa”. Falo também da integridade ao se posicionar e ao ser posicionado academicamente.
É por isso que ao realizar uma etnografia entre parentes-interlocutoras e vê-las apontar que era preciso ver como parente e estar ali como parente para entender como parente, vislumbro hoje que elas me pediam para deixar a distância para lá. Foi preciso entrar na casa da minha avó Anita (74 anos) para conhecer, foi preciso conversar e escutar para compreender, foi preciso me aproximar dos dados, das nossas fotografias de família, dos nossos encontros, da nossa história, para que fosse possível compreender como fazer-família e fazer-etnografia ao mesmo tempo (DAMÁSIO, 2020). E mais, era preciso não viver esses dois processos como separados, mas como prismas que se retroalimentavam e que são separados apenas a nível conceitual para melhor elaboração textual.
Eu estava, definitivamente, seguindo e levando minhas parentes-interlocutoras a sério, como todo antropólogo deveria fazer. Ao mesmo tempo, como pontuei, isso poderia ser encarado pelos meus pares como uma posição perigosa, pouco científica e pouco objetiva para produzir conhecimento antropológico e etnografias. É preciso que os antropólogos acostumados a criar distâncias entendam que é possível (para nós negros, indígenas, quilombolas e ciganos) produzir conhecimento através da proximidade. É preciso que eles façam o exercício de nos levar a sério também quando dizemos o que estamos fazendo.
A antropologia concebida no modo clássico prevê a criação de proximidade, como apontei com Malinowski (1978). A distância pode ser da origem, por um lado, mas também pode ser conceitual por outra. Principalmente quando pode haver a prerrogativa para alguns grupos de antropólogos que partem do seguinte pressuposto: “Vivemos entre eles, mas eles não somos, eles são Outros e nós, nós”. Quando estou partindo da minha família a tomando como locus de pesquisa, estou construindo teoria a partir do que me é próximo, logo, minha “distância” e suposta “neutralidade” são questionadas o tempo todo ao longo de pareceres, conversas e avaliações institucionais. E se o problema for a proximidade com o que pesquiso, que assim continue sendo, pois não são essas estruturas de fazer ciência (neutralidade, distância, “pesquisadora contaminada pelo que vive”) que orientam o meu olhar.
Entretanto, como sinaliza Mariza Peirano (2000), quando estamos falando da antropologia brasileira estamos lidando com um campo de saber onde há diferentes níveis da alteridade sendo produzidos. A autora transita entre a “alteridade radical” (etnologia indígena), “contato com a alteridade” (estudos campesinos e interétnicos), a “alteridade em casa” (estudos urbanizados) e a alteridade mínima (ponderações brasileiras sobre a antropologia). Não irei me delongar nesses diferentes cenários, mas é relevante perceber que a visão da antropologia enquanto etnografia como produto do encontro do antropólogo com o “Outro” deveria cair por terra com a consolidação de uma antropologia que, desde a sua germinação, tem como aspiração ser feita no/do Brasil.
Mas como argumenta Luena Pereira (2020), há uma cilada armada ao tomarmos esses níveis de alteridade que são produzidas nacionalmente. Se lidamos e acreditamos nessa tipologia citada acida acima, estaríamos cristalizando a ideia de que a antropologia brasileira se estabelece e é produzida a partir do que a autora denomina de “Outros internos”. Apesar da antropologia brasileira não lidar com o “Outro exótico” e distante, ela produz seu “Outro” internamente. Em suas palavras:
Ora, ao relativizar a noção de alteridade da antropologia brasileira por meio da categorização de diferentes “nativos” internos, Peirano define, embora não explicitamente, o lugar do antropólogo brasileiro enquanto um não índio, um não negro, um não camponês. Esse lugar aparece através de um “nós” absolutamente naturalizado16. É preciso que se diga que eu me refiro a Mariza Peirano pela sua contínua e importante reflexão sobre o fazer da antropologia, mas este “nós” naturalizado que me refiro aparece há muito tempo em vozes e textos de muitos antropólogos brasileiros17. O que significa que eu considero as reflexões de Peirano como indicando um certo inconsciente do fazer antropológico brasileiro. Então se a antropologia é feita por um “nós” que estuda o “outro” brasileiro, qual seria o lugar dos brasileiros negros, indígenas e camponeses que eventualmente se tornam pesquisadores e estudam universos nos quais eles próprios têm proximidade ou pertencimento?18 Ou, dito de um outro modo, em que nível epistêmico se situa à chamada “alteridade” que torna possível ser feita a antropologia no e do Brasil? Dito de forma mais provocativa, “Nós quem, cara pálida?”
(PEREIRA, 2020, p. 8).Por que uma alteridade tão próxima como a minha se convertia automaticamente em uma autoetnografia? Eu sou uma “Outra interna”. Eu estou muito próxima daquilo que pesquiso. Eu estou contaminada demais para ver e fazer minhas próprias escolhas teóricas e metodológicas. É preciso que eu seja salva e que eu entenda o que eu estou fazendo: “Uma autoetnografia!”. Como falar desse “auto”, se considero que meu-nossos corpos também são territórios (BANIWA, 2015, 2018) e não entidades descoladas dos nossos respectivos grupos, etnias, comunidades e ancestralidades. É impossível, nesse sentido, falar do meu self quando ele não é uma identidade deslocada do coletivo em que fui criada. Ao falar, nunca falo de um “eu”, é sempre “nós”.
Com isso, seguindo o caminho da minha etnografia entre parentes-interlocutoras, executei uma etnografia da aproximação como prerrogativa para produção de conhecimento e não a distância. Com a etnografia da aproximação foi possível pôr-me próximo aquilo que eu pretendia entender; corrigir meu enganos de formas mais efetivas; repassar os materiais e dados produzidos por vários olhares, ouvidos, sentidos e compreensões que também se aproximaram; foi possível avizinhar-me daquelas que são a base das reflexões e teorias antropológicas (e da minha vida); foi exequível fazer-me mais próxima (do que poderia estar distante); possibilitar o acesso a; permitir (contato, proximidade) entre; estabelecer ou restabelecer relações; unir-me. Com essa dinâmica, a antropologia brasileira só tem a ganhar.
Volto aqui a Zora (HURSTON, 2019) e rogo para que não sejamos vistas como aquela que ainda não é uma pessoa, como aquele que não sabe bem o que quer ou o que faz. Que não sejamos vistos apenas como um “Outro interno” (PEREIRA, 2020), como apenas um problema mais ou menos interessante. Que não lidemos e produzamos uma “hierarquia violenta, que define quem pode falar e quem pode produzir conhecimentos” (KILOMBA, 2015). Ao final e ao cabo, para finalizar esse artigo, trago essa colocação de Peirano (2014, p. 42) que deixa um rastro promissor para nós antropólogos:
Antropólogos hoje, assim como nossos antecessores, sempre tivemos/temos que conceber novas maneiras de pesquisar – o que alguns gostam de nominar “novos métodos etnográficos”. Métodos (etnográficos) podem e serão sempre novos, mas sua natureza, derivada de quem e do que se deseja examinar, é antiga. Somos todos inventores, inovadores. A antropologia é resultado de uma permanente recombinação intelectual.