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Notas Sobre o Materialismo das Formas Socioeconômicas de Karl Marx
Notes on Karl Marx’s Materialism of Socioeconomic Forms
Mediações - Revista de Ciências Sociais, vol. 27, núm. 3, e45633, 2022
Universidade Estadual de Londrina

ARTIGOS


Recepção: 06 Março 2022

Revised document received: 26 Maio 2022

Aprovação: 03 Novembro 2022

DOI: https://doi.org/10.5433/2176-6665.2022v27n3e45633

Resumo: Busco realizar uma síntese e precisão de uma interpretação da crítica da economia política de Karl Marx que privilegia a forma como elemento teórico-crítico fundamental. A partir do tratamento de noções-chave como “relação social de produção”, “categoria econômica”, “imanência” e “reconstrução”, discuto o papel fundante das formas socioeconômicas mercadoria e dinheiro e do conceito de capital, bem como seu estatuto teórico-crítico. Com isso, tento pôr em questão a instrumentalização de O Capital como repositório de categorias descritivas em favor de sua condição crítica.

Palavras-chave: Karl Marx (1818-1883, O Capital, forma, dialética.

Abstract: I seek to carry out a synthesis and precision of an interpretation of Marx’s critique of political economy which privileges form as a fundamental theoretical-critical element.  From the account of key notions such as “social relationship of production”, “economic category”, “immanence” and “reconstruction”, I discuss the founding role of the socioeconomic forms of merchandise and Money and the concept of capital, as well as its theoretical-critical status. I try to question the instrumentalization of Capital as a repository of descriptive categories in favor of its critical condition.

Keywords: Karl Marx (1818-1883), Capital, form, dialectic.

Introdução

Pretendo delinear aqui algumas questões apresentadas em minha tese (PINHEIRO, 2020), que versam sobre o sentido de forma na crítica da economia política de Karl Marx, notadamente, sobre o modo pelo qual, a partir dela, se apresenta criticamente a realidade social que se submete ao escrutínio da ciência econômica de sua época e que, assim, constitui o seu objeto de análise. Tal delineamento visa apresentar uma interpretação possível do estatuto teórico-crítico das formas socioeconômicas desenvolvidas na primeira seção do livro I de O Capital (a saber, mercadoria, valor e dinheiro), bem como do conceito de capital que emerge a partir delas na sua segunda seção.

Primeiro serão discutidas, sempre no âmbito dos escritos marxianos de crítica à economia política, as noções de “relação social de produção” e de “categoria econômica”, a fim de afirmar o caráter, ao mesmo tempo, descritivo e normativo da relação entre ambas. Em seguida, serão abordados o princípio de imanência da crítica marxiana e o papel da reconstrução categorial no modo de pesquisa do autor. Em terceiro lugar, será tratada a questão da forma socioeconômica e o modo como ela se relaciona com as categorias econômicas, a partir do que se tentará precisar a noção prática de “crítica” exercida nesse projeto. Por fim, será apresentada uma pequena explicação acerca do desenvolvimento da forma do valor em relação às formas da mercadoria e do dinheiro e ao conceito de capital, dando ênfase às peculiaridades da forma equivalente de valor demonstradas por Marx de modo mais explícito na edição de 1867 do livro I de O Capital.

Verifica-se, a partir disso, alguns limites e possibilidades dessa teoria crítica para  a análise social que acabam por deslocá-la de uma condição instrumental - a partir da qual porta o sentido de um desenvolvimento e apresentação de categorias úteis para a descrição “crítica” da sociedade capitalista - para uma condição crítica – a partir da qual apresenta criticamente as categorias fundamentais de uma ciência social e, por meio disso, a estrutura objetiva de um modo histórico de dominação social do trabalho. Desse modo, a crítica marxiana da economia política é situada historicamente como teoria social voltada para a luta de classes em favor da classe trabalhadora, sem que, com isso, se apague nem suas contribuições para a compreensão do modo capitalista de produção nem suas características fundamentalmente críticas, mas antes as coloque em evidência.

Relações Sociais de Produção e Categorias Econômicas

No adendo ao §189 da Filosofia do Direito (1820) de Hegel há uma definição do objeto da economia política em que se destaca o seu caráter geral em oposição à matéria bruta e aleatória oferecida pela observação imediata das relações sociais de produção. A aleatoriedade dessas relações engendraria, por si mesma, certas “determinações gerais” e, nisso, uma “necessidade” de ser, que, por fim, se submeteria à análise da “economia estatal” (Staatsökonomie), a qual buscaria, desse modo, desvendar “leis em uma massa de contingências”. Não se trataria, portanto, de impor subjetivamente uma lógica econômica aos casos contingenciais, mas sim de deduzir uma ordem a partir da interrelação objetiva daqueles, assim como ocorre com o “sistema planetário, que sempre mostra ao olhar apenas movimentos irregulares, mas cujas leis podem certamente ser conhecidas” (HEGEL, 1989a, p. 347).

Nesse sentido, ao delinear o objeto da apresentação de O Capital (1867-1872/1873), Marx não se distancia da definição apresentada por Hegel. Trata-se aqui também das “leis próprias” da produção capitalista, ou seja, das suas “tendências que se impõem e atuam com férrea necessidade”, cujos sujeitos são descritos não a partir de suas possibilidades de desenvolvimento ou de seus perfis psicológicos, mas apenas “na medida em que eles sejam a personificação das categorias econômicas, portadores de determinados relacionamentos e interesses de classe” (MARX, 1962, p. 12, 16). Portanto, as relações sociais de produção não são apresentadas por Marx (e por Hegel) segundo sua “massa de contingências” ou de acordo com a “representação caótica do todo”. Antepõe-se à sua apresentação uma análise pela qual se alcança “abstrações cada vez mais refinadas do concreto representado”, chegando até às suas “determinações mais simples”, para que, depois, se retorne àquelas relações, “não como uma representação caótica do todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e conexões” (MARX, 1976, p. 36). Essa totalidade concebida a partir da análise científica nada mais é que a reconstrução do conteúdo categorial daquela representação caótica inicial mediada pela própria racionalidade (contraditória, vale dizer) do objeto abordado e, nessa qualidade, o próprio objeto da apresentação crítica.

A apreensão e apresentação dessa totalidade são exigidas, em termos objetivos, pelo diagnóstico histórico de Marx segundo o qual as relações sociais capitalistas de produção são “dominadas por um universal que se autoadjudica uma subjetividade pseudoconcreta às expensas da atividade concreta dos indivíduos reais [...].” (MÜLLER, 1982, p. 33).2 O meio pelo qual esse “universal” opera sobre a “atividade concreta dos indivíduos reais” pode ser elucidado pela relação prática e normativa que há, nesse modo de produção, entre relação social de produção e categoria econômica. A historicidade e a efetividade social dessa relação são percebidas tanto pelo aspecto prático-normativo da produção teórica das categorias político-econômicas quanto pelo de sua validade social, de modo que a dimensão empírica das relações sociais de produção aparece para a crítica da economia política ora como dimensão regulada ou determinada (política e epistemologicamente) pela rede categorial dessa ciência, ora como contraponto limítrofe à essa rede e sua normatividade, dimensão essa que atesta tanto a correção da “forma dialética da apresentação” quanto o sentido de seu resultado.3

Em sua crítica da economia política, portanto, Marx não trata do problema epistemológico de referir realisticamente a observação empírica das relações sociais de produção às categorias mais adequadas,4 mas sim de “revelar que o visivelmente imediato é um mediato”, ou seja, de negar a “autossuficiência do imediato” observado, afirmando-o como “mera aparência” de “mediações invisíveis” (HEINRICH, 2014, p. 175). Nesse sentido, a lida marxiana com as categorias político-econômicas visa o acesso crítico, tanto descritivo quanto normativo, às “mediações invisíveis” de uma realidade social particular, a saber, a do modo capitalista de produção. Assim, tais categorias não apenas descrevem, na sua qualidade de “abstrações do entendimento”,5 a aparência das relações sociais capitalistas de produção, mas também (e principalmente) refletem, no seu conjunto, o dever ser dessas relações. Essa possibilidade se baseia tanto na capacidade dessas categorias de refletir - mesmo que de modo parcial - formas de pensamento socialmente válidas (ou politicamente validadas) quanto no conflito político que as consequências lógicas de suas determinações econômicas engendram em face do real – sendo o real o limite imposto a essas determinações (e, portanto, delas constitutivo) pelas condições ambientais, pela luta de classes, pelas formações histórico-sociais de um país etc. (cf. MARX, 1976, p. 41; MARX, 1962, p. 89-90)

Imanência e reconstrução como elementos críticos e balizadores da pesquisa marxiana

Examinar, pois, a racionalidade que ordena essa rede de categorias político-econômicas significa assumir a insuficiência do imediato, seu estatuto de “mera aparência”, e investigar as “mediações invisíveis” que o constituem. Contudo, a investigação dessas mediações não tem outra matéria que o próprio imediato, ou seja, no caso de Marx, as próprias categorias político-econômicas tal como concebidas, apresentadas e praticadas pela economia política clássica.6 Não à toa, desde pelo menos 1844, Marx passa a estudar a economia política com particular zelo e, com maior profundidade, a partir da década de 1850, quando produz vários manuscritos, dentre eles os chamados Cadernos de Londres (1850-1853) e os Grundrisse (1857-1858), os diferentes planos e elaborações de sua crítica da economia política entre os anos 1858-1867, bem como a publicação do livro I de O Capital, suas reelaborações e o desenvolvimento de vários estudos a fim de concluir os livros II e III da obra.7 Apesar das diversas mudanças internas a seu projeto (HEINRICH, 1989), o princípio crítico da imanência apresenta-se nele como um elemento de continuidade. Uma síntese desse princípio pode ser indicada na distinção que Marx faz em 1843 entre a “crítica dogmática” e a “verdadeira crítica filosófica”:

[a] crítica dogmática [...] luta contra seu objeto assim como, antes, por exemplo, se removia o dogma da santa trindade por meio da contradição entre 1 e 3. A verdadeira crítica, ao contrário, mostra a gênese interna da santa trindade no cérebro humano. Descreve seu ato de nascimento. Assim, a verdadeira crítica filosófica [...] exibe não apenas contradições enquanto algo subsistente; ela as explica, conceitua sua gênese, sua necessidade. Apreende-as em seu significado peculiar. No entanto, esse conceituar não consiste em conhecer, novamente e em toda parte, as determinações do conceito lógico, como visa Hegel, mas em apreender a lógica peculiar do objeto peculiar [...]

(MARX, 1982b, p. 100-101, grifo meu)

Esse “apreender a lógica peculiar do objeto peculiar” pode ser interpretado, no projeto marxiano da crítica da economia política, como a apreensão da “lógica peculiar” da relação social de produção chamada capital, ou seja, da lógica daquilo que constitui, no modo capitalista de produção, o “universal que se auto-adjudica uma subjetividade pseudo-concreta”, cujo método consiste em

[...] um procedimento de reconstrução categorial que pressupõe o trabalho prévio de investigação das ciências empíricas e a maturação histórica do objeto para então expor sua lógica interna de acordo com os nexos que a análise apreendeu entre suas determinações

(MÜLLER, 1982, p. 30, grifo meu)8

Ao elevar à consciência aquela “lógica peculiar do objeto peculiar” (ou as “mediações invisíveis” do imediato) por meio dessa reconstrução, o método de Marx enfrenta, sobretudo, o “esquecimento” das mediações que constituem o imediato da economia política, esquecimento sobre o qual “repousa [...] toda sabedoria dos economistas modernos que comprovam a eternidade e a harmonia das relações sociais subsistentes” (MARX, 1976, p. 23). Acaba-se por elaborar, a partir dessas mediações, toda uma atualização das categorias da economia política clássica (quase sempre concebidas originalmente a partir de outros contextos socioeconômicos que não o capitalista industrial), resultando, assim, em uma reconfiguração semântica que as concatena em relação às próprias determinações objetivas das relações sociais contemporâneas de produção.9 Assim posta, a apresentação dessas categorias revela, em seu conjunto, uma estrutura objetiva de dominação social que se realiza, em última instância, na expropriação violenta e legalizada das classes trabalhadoras (a princípio) europeias, estrutura à qual aquelas categorias dão corpo e operacionalidade.

Sobre o Modo de Relação Entre as Categorias e as Formas Econômicas

Na crítica da economia política de Marx, a revelação dessa estrutura objetiva de dominação (isto é, o conceito de capital em sua concretude e historicidade) se configura a partir das relações contraditórias entre as categorias econômicas clássicas, cujas determinações advém não de si mesmas em abstrato, mas do objeto analisado ao qual se submetem. Nesse sentido, as determinações da reflexão elaboradas por Hegel, bem como sua lógica da essência, são de grande valia para Marx tematizar essas “relações fundantes do modo capitalista de produção [;] mas com a relação em processo põe-se em evidência o método dialético enquanto tal, tal como Hegel o desenvolve no fim da Ciência da Lógica sob o título da ideia absoluta como método absoluto.” (ARNDT, 2016, p. 191-192). De fato, é possível notar nos Grundrisse o recurso explícito de Marx a categorias lógicas como identidade (Identität), distinção (Unterschied), oposição (Gegensatz) e contradição (Widerspruch) (cf. MARX, 1976, p. 81), bem como a extensão desse recurso em O Capital pelo uso de categorias “tardias” da lógica da essência, como “fundamento” e “forma” (THEUNISSEN, 1975, p. 325). Esse recurso teórico viabiliza a apresentação da “peculiaridade histórica” da dominação social no modo capitalista de produção, isto é, a peculiaridade de ser mediada, “[...] mediada precisamente no sentido de relações refletidas em si” (THEUNISSEN, 1975, p. 324), ou seja, relações sociais de produção cujos conteúdos refletem em si a totalidade dessas próprias relações, imputando a elas funções configuradas a partir desse todo, funções que, ao mesmo tempo, negam as peculiaridades imediatamente sensíveis dessas relações de produção e as conservam em um outro registro semântico, a saber, sistêmico e funcional. A especificidade dessas relações se desloca, assim, da sua existência histórico-fenomênica para sua função sistêmico-conceitual contemporânea.

Essa reflexividade diz respeito “[...] não apenas [a] determinações do conceito, mas também [à] dialética das relações reais” (ARNDT, 2016, p. 191). Dito de outro modo, ela indica o entrelaçamento e a interdependência necessária das várias atividades produtivas, comerciais e financeiras no modo capitalista de produção, de modo que a racionalidade das atividades singulares deve ser encontrada não imediatamente em si mesmas, mas em sua participação no geral, isto é, na sua qualidade de particular. Uma vez que esse singular possui um ser aí e um dever ser não necessariamente coincidentes (aliás, quase sempre discordantes) - o que aparentemente comprometeria sua condição de particularidade e a consistência harmônica de sua racionalidade -, temos que: “o efetivo tem de ter sua racionalidade essencial [...] unicamente na contradição do todo racional e, com isso, no caráter do existente, instável e direcionado contra si mesmo.” (FULDA, 2017, p. 113). Nesse sentido, as categorias da economia política (ou abstrações das relações sociais de produção, vale lembrar)10 são efetivas na medida em que se relacionam entre si de modo contraditório segundo a lógica peculiar e contraditória do conceito de capital.

Se em Hegel a contradição é suprimida e conservada no fundamento (MÜLLER, 2019, p. 148-149), em Marx ela é “resolvida” na forma. A respeito do processo de troca, Marx afirma:

Viu-se que o processo de troca das mercadorias compreende relações (Beziehungen) contraditórias e mutuamente excludentes.11O desenvolvimento da mercadoria não suspende essas contradições, mas engendra a forma dentro da qual elas podem se mover. Esse é, em geral, o método pelo qual as contradições efetivas se resolvem

(MARX, 1962, p. 118, grifo meu).

As formas econômicas são, assim, a condição de existência teórico-prática e de especificação histórica das contradições que constituem as relações sociais de produção em questão. Isso implica dizer que, fora dos limites dessas formas, tais relações sociais abnegam tanto a historicidade de sua constituição quanto a historicidade da sua interação com as outras de si, de modo que passam a inexistir em sua especificidade capitalista, restando a elas uma existência abstrata e disfuncional, à margem do processo (re)produtivo do capital – o que não significa, de modo algum, sua inexistência material. Não à toa, Marx sublinha que a economia política trata da “determinação da forma”, cujas contradições, gênese e necessidade a crítica deve apreender, de modo que a forma acabe por se tornar uma chave analítica central para seu projeto.12 Ressalto que tais formas são objetivas, históricas e reais, e não apenas um recurso metodológico para reconstruir a rede categorial da economia política. Como fica claro na introdução aos Grundrisse e mesmo em passagens das Teorias sobre o Mais-Valor, as formas econômicas configuram o modo histórico e específico pelo qual as relações sociais de produção se constituem e devem se conectar entre si a fim de garantir a reprodução do capital industrial.13

Do ponto de vista dessa reprodução, o capital aparece como o “universal”, cuja “pseudossubjetividade” é negada pelo exercício crítico da sua apresentação dialética, ou seja, pela demonstração do desenvolvimento contraditório e objetivo das formas que o constitui. Tal demonstração redunda no conhecimento específico da essência do capital industrial, de sua gênese conceitual ou seu vir-a-ser, no conhecimento do conjunto de princípios que determina a estrutura reprodutiva desse modo histórico de produzir, suas possibilidades e seus limites. Essa essência é constituída, subjetivamente, pelas interrelações dialéticas daquelas categorias econômicas que, assim, espelham objetivamente “a vida da matéria de modo ideal”. Dessa maneira, ao “se distinguir formalmente o modo de apresentação do modo de pesquisa”, percebe-se que a apresentação conceitual (pelo menos aquela que entendo haver em O Capital, isto é, a realização do método dialético aludido por Marx no posfácio de 1873) não diz respeito a uma “construção a priori”, mas sim ao resultado de uma reconstrução categorial dialética de uma totalidade (MARX, 1962, p. 27).

Um parêntese. Marx afirma textualmente que a grande herança hegeliana presente em sua crítica da economia política é a dialética ou o método dialético (MARX, 1962, p. 27-28). Fineschi (2007), cioso por especificar o que significaria a dialética para Marx, põe a tônica sobre a proximidade entre o seu modo de apresentação e o de Hegel. Isso não significa que não possa haver aí outros pontos de contato, como uma teoria da alienação relacionada aos desenvolvimentos teóricos de Hegel em torno das articulações entre Entäußerung, Entfremdung e Veräußerung, mas sim que o traço hegeliano mais evidente na estruturação da crítica da economia política seja sua apresentação:

Como Hegel afirma várias vezes, trata-se [...] da autoexplicação das categorias em virtude da necessidade intrínseca que habita nelas, partindo do elemento básico que, no início, aparece pressuposto, mas que então vem posto como resultado do complexo mesmo da exposição. Isto é, o autor não faz nada além de repercorrer a necessidade interna da coisa mesma, é guiado pela Auslegung der Sache selbst [exegese da coisa mesma], pelo desenvolvimento da coisa mesma. E aos poucos Marx faz essa alusão à necessidade interna das coisas, à dialética mesma do problema enfrentado

(FINESCHI, 2007, p. 183).

Fulda (2017) aproxima-se também dessa posição, enfatizando a importância das ciências particulares para a tangibilidade da “coisa mesma”.14 A importância dessas ciências acabou por orientar uma série de pesquisas significativas sobre o modo marxiano de fazer pesquisa, cujos resultados podem ser conferidos, por exemplo, em Jahn e Nietzold (1978), Krätke (2005) e Bluhm e Rüdiger (2018).

Realizar a crítica de uma ciência social como a economia política não significa criticar apenas as categorias fundamentais do discurso econômico então vigente. Trata-se também de apreender, com isso, o modo pelo qual o pensamento burguês concebe e busca organizar as relações econômicas de seu presente e, por meio disso, demonstrar a indissociabilidade entre esse discurso científico e as práticas sociais nele suspensas (da troca econômica à violência), práticas que são fundamentais para a reprodutibilidade do sistema econômico capitalista. Para tanto, as formas econômicas desempenham papel significativo tanto na organização da racionalidade específica do modo de produção quanto na naturalização (ou imediatização) das normas sociais que coagem os agentes econômicos em suas respectivas classes sociais, pelo que a crítica da economia política (enquanto meio de desnaturalização dessas normas a partir da demonstração das formas) assume feições e funções políticas práticas.

Por buscar demonstrar justamente as mediações de um objeto “que se auto-adjudica uma subjetividade pseudo-concreta” (isto é, o capital), de um objeto que se pretende imediatamente autônomo e, nisso, busca dominar o seu outro (isto é, o trabalho), Marx – que por essa demonstração visa negar de modo determinado a imediatidade da identidade objetivo-subjetiva do capital - não pode abordar o capital por um método que seja, à maneira especulativa, “a forma do automovimento do conteúdo que se expõe, mas um procedimento de reconstrução categorial [...]” (MÜLLER, 1982, p. 30, 33) que demonstre os processos sociais que constituem esse “sujeito automático”. O método dessa demonstração (ou modo de apresentação) confere, por si, uma significativa importância às formas econômicas, uma vez que elas determinam – do ponto de vista da negação determinada da imediatidade do capital - o sentido dos fenômenos observáveis, bem como o seu lugar problemático no complexo reprodutivo desse modo de produção.

A efetividade social das formas econômicas afasta a teorização marxiana de um mero formalismo e as habilita a uma abordagem materialista,15 sobretudo na medida em que elas mediam na prática a relação entre a atividade subjetiva e o objeto natural, evitando, assim, os problemas que a pura empiria, ao visar o sensível e imediato, traz à análise do capital (HEINRICH, 2014, p. 175; FINESCHI, 2008, p.76).

As Formas Mercadoria, Valor e Dinheiro e o Conceito de Capital

Vejamos, agora, alguns elementos do modo pelo qual as formas mercadoria, valor e dinheiro se constituem como espaços lógicos e políticos nos quais se movem as contradições fundamentais do capital produtivo (ou industrial) advindas, historicamente, dos âmbitos mercantis e monetários da economia. Essas formas demonstram, assim, a necessidade problemática da valorização do valor e, portanto, o ímpeto reprodutivo (nem sempre consistente) do próprio capital. A rigor, elas constituem um desenvolvimento dialético que culmina na contradição da fórmula geral do capital. É importante mencionar isso pois tudo o que se dirá a respeito dessas formas já considera a consumação daquele desenvolvimento. Assim, elas já são, desde o início, formas do capital.

A abordagem marxiana da mercadoria começa por apontá-la como uma classificação capitalista ou burguesa da riqueza (cf. HOLLOWAY, 2014), cuja forma elementar é a “mercadoria individual”, a qual é, por fim, submetida à análise. Ela é, a um só tempo, uma coisa útil relacionada qualitativamente com as carências humanas (valor de uso) e uma relação quantitativa entre si e outra de si enquanto mercadorias, ou seja, uma proporção que estabelece uma medida de valor entre objetos úteis distintos postos em uma relação de troca (valor de troca). O elemento comum que serve de medida a ambos os objetos aparece por meio da abstração de suas qualidades corpóreas, abstração essa que decorre de modo prático da própria relação de troca. Nessa relação, os valores de uso qualitativamente distintos se identificam entre si como meros “produtos do trabalho”, como cristais de uma “objetividade fantasmagórica, uma mera gelatina de trabalho humano indistinto, isto é, de dispêndio de força humana de trabalho sem consideração à forma de seu dispêndio”. Nessa identificação, ambos os valores de uso se tornam valores, o que faz do valor da mercadoria o elemento comum e mediador “que se apresenta na relação de troca ou no valor de troca da mercadoria”. (MARX, 1962, p. 49-53)

O modo como a forma desse valor se desenvolve dialeticamente a partir da relação de troca demonstra o processo social pelo qual os produtos do trabalho são reduzidos a valor, assim como os trabalhos concretos realizados na produção de mercadorias (isto é, o dispêndio de força de trabalho do ponto de vista da sua forma determinada, como construção, performance musical, cuidados médicos etc.), reduzidos a “trabalho abstratamente humano”. Destacar esse processo não significa ignorar que, sob o capital industrial, essa abstração do trabalho é materialmente produzida pela divisão social do trabalho estabelecida pela grande indústria que, por sua vez, uniformiza as forças individuais de trabalho a ela submetidas, o que explica, enfim, a determinação da grandeza do valor de uma mercadoria pelo “tempo socialmente necessário de trabalho” para sua produção (MARX, 1962, p. 53-54). Significa, antes, afirmar o caráter historicamente específico desse processo social abstrativo em que o processo de (re)produção da existência do capital industrial articula, em si e para si, as formas da mercadoria, do valor e do dinheiro, pelo que reconfigura o sentido mesmo da massificação da força de trabalho, apresentando sobretudo seu caráter capitalista.16

O desenvolvimento da forma do valor pode ser visto como uma introspecção da forma da mercadoria, já que, na relação de troca ou na relação de valor consigo mesma pela qual realiza a sua determinação de valor de troca, ela reflete a outra de si dentro de si, estabelecendo uma cisão interna a si mesma (fazendo da mercadoria, de um lado, valor de uso e, de outro, valor), bem como dois polos de expressão do valor a partir dos quais aquela relação se processa, a saber, a forma relativa e a forma equivalente de valor (MARX, 1962, p. 63; MARX, 1987, 19, p. 369). A forma relativa de valor é o polo da expressão do valor, polo por meio do qual uma mercadoria A expressa seu valor no corpo de outra mercadoria B, que ocupa, assim, o lugar do polo oposto da expressão e que aparece, então, como forma equivalente da mercadoria A. Por esse processo de expressão e reflexão propiciado pela equação prática da relação de troca, ambos valores de uso passam a ser, ao mesmo tempo, valores e a se apresentar efetivamente como mercadorias.

No que [o linho ou mercadoria A] se iguala, como valor, à outra mercadoria [o casaco ou mercadoria B], ele se refere a si mesmo como valor. No que ele se refere a si mesmo como valor, ele se distingue de si mesmo como valor de uso, simultaneamente. No que ele expressa no casaco sua grandeza de valor (e grandeza de valor é valor em geral e valor quantitativamente mensurável), dá a seu ser-valor uma forma de valor distinta de seu ser-aí imediato. No que ele se apresenta, assim, como um diferenciado dentro de si mesmo, ele se apresenta, pela primeira vez, efetivamente como mercadoria – coisa útil que é, ao mesmo tempo, valor

(MARX, 1983, p. 29)

Nessa relação, a mercadoria B “vige para a outra mercadoria como figura de valor, corpo na forma imediatamente trocável”, de modo que “[...] o caráter de fetiche emerge de modo mais impressionante na forma equivalente do que na forma relativa de valor”, já que o fato de “possuir a forma equivalente aparece, [...] no interior de nosso intercâmbio, como propriedade social da natureza de uma coisa [...]” (MARX, 1983, p. 638). Evidentemente, não se trata de tal natureza, mas da relação econômica na qual esses valores de uso são contrapostos e que apaga, no resultado dessa relação, as suas mediações reflexivas, produzindo, assim, a aparência de “propriedade social da natureza de uma coisa”. A fim de tematizar esse processo de imediatização ou de naturalização da troca econômica (o que acaba por ocultar contradições fundamentais do modo capitalista de produção, cujo desenvolvimento aponta, entre outras coisas, para a explicação das crises econômicas), Marx apresenta, no Anexo ao capítulo I, 1 – A forma do valor (1867), quatro peculiaridades da forma equivalente, das quais trato a seguir rapidamente.

A primeira peculiaridade diz respeito ao fato de que, na forma equivalente, o valor de uso se torna forma de manifestação de seu contrário, o valor. Isso porque, como foi visto, na relação de troca a mercadoria A transforma “[...] a pele natural de um outro corpo de mercadoria em sua própria forma de valor” (MARX, 1983, p. 632). Há, dentro dessa relação, uma imposição da forma social sobre a forma material pela qual a mercadoria B ou o casaco deixa de valer como aquilo que sensivelmente é para existir como forma de manifestação de uma determinação econômica, isto é, do valor. Do ponto de vista do resultado, qualquer corpo de mercadoria que ocupa a posição da forma equivalente aparece para os sujeitos da troca como naturalmente trocável. Processa-se, assim, a partir da identificação econômica de dois corpos por meio da troca, uma naturalização daquilo que é social.17

A segunda peculiaridade trata do trabalho concreto produtor do valor de uso que ocupa a posição da forma equivalente, trabalho esse que, por meio dessa relação de valor, se torna a forma de manifestação do trabalho abstratamente humano. A partir dela é possível afirmar que aquele trabalho concreto (a alfaiataria, por exemplo) não vale, por si só, como “trabalho humano indistinto”, ainda que também seja, de fato, “dispêndio de força humana de trabalho no sentido fisiológico” (MARX, 1962, p. 61). Essa dimensão de indiferença permanece suspensa no interior do trabalho concreto até o momento em que o seu produto concreto (o valor de uso) passa a ser determinado pela forma equivalente do valor. Nesse instante e, principalmente, nessa relação de valor, tal indistinção passa a viger em termos práticos para o valor de uso e o trabalho concreto passa a viger como forma de manifestação do trabalho abstrato. Cito um trecho de Para a Crítica da Economia Política, de 1859:

As condições do trabalho que põe valor de troca [...] são determinações sociais do trabalho. [...] [mas “sociais”] de um modo particular [...]. A simplicidade indiferenciada do trabalho é, em primeiro lugar, igualdade dos trabalhos de diferentes indivíduos, relacionamento recíproco de seus trabalhos como iguais, e isto mediante uma redução de fato (tatsächliche Reduktion) de todos os trabalhos a um trabalho de igual espécie. O trabalho de qualquer indivíduo, enquanto se apresente em valores de troca, possui esse caráter social de igualdade, e só se apresenta no valor de troca enquanto se relaciona como igual com o trabalho de todos os indivíduos”

(MARX, 1980, p. 111, grifos meus)18

Decorre disso a terceira peculiaridade da forma equivalente. Os vários “trabalhos privados autossuficientes e em exercício independentemente uns dos outros” interagem a partir de uma “conexão social material” efetivada “por meio da troca de seus produtos”, isto é, por meio de uma relação de valor em que uma mercadoria ocupa a forma relativa de valor e outra, a forma equivalente. Diferentemente da forma relativa, “o equivalente tem forma imediatamente social na medida em que tem a forma da trocabilidade imediata, e ele tem essa forma na medida em que vige como corpo de valor para outra mercadoria, portanto, como igual”. Assim, o trabalho concreto contido nesse corpo de valor “vige como trabalho na forma imediatamente social, isto é, como trabalho que possui a forma da igualdade com o trabalho contido dentro de outra mercadoria”. A igualdade entre os trabalhos concretos é, portanto, um resultado de sua interação por meio da relação de valor. (MARX, 1983, p. 634-635) A conexão entre essa peculiaridade e a anterior é sintetizada didaticamente por Marx no seguinte trecho:

[Produtos distintos] são iguais apenas na medida em que são trabalho humano em geral, trabalho abstratamente humano, isto é, dispêndio de força humana de trabalho. Portanto, uma vez que [...] o trabalho concreto determinado contido no equivalente vige como forma determinada de efetivação ou forma de manifestação do trabalho abstratamente humano, ele possui a forma da igualdade com outro trabalho, e é, assim, ainda que trabalho privado e, como todos os demais, trabalho produtor de mercadorias, no entanto trabalho na forma imediatamente social

(MARX, 1983, p. 635, grifos do autor)

Um pequeno parêntese. A força de trabalho vendida pela classe trabalhadora e comprada pela classe capitalista é o “trabalho na forma imediatamente social”, ou seja, trabalhos concretos diversos que se igualam entre si naquilo que têm em comum ante à forma da mercadoria, a saber, a sua capacidade de (ou força em) produzir valores de uso destinados à venda no mercado. O preço dessa força de trabalho é pago pelos capitalistas, assim, com base na média do preço da reprodução cotidiana dessa força, sendo essa média um recurso estatístico que expressa e opera a redução do trabalho privado a trabalho social, abstraindo as singularidades de cada atividade produtiva particular em favor do estabelecimento de um padrão de medida temporal-monetário enquanto métrica da atividade humana. Dentre suas várias expressões de contraposição, a resistência proletária à ofensiva “abstrativa” do modo capitalista de produção ocorre do lado “material” da relação social de produção, ou seja, na recusa mais ou menos organizada em realizar o mais-trabalho ao qual as trabalhadoras e trabalhadores estão praticamente obrigados em razão de estratégias da organização capitalista do processo produtivo combinada a instrumentos jurídicos de coerção ao trabalho.

A quarta peculiaridade expressa, por fim, o caráter fetichista da forma equivalente ante a forma relativa de valor de uma mercadoria. Se essa última “é mediada, a saber, por sua relação com outra mercadoria”, a forma equivalente “consiste precisamente no fato de que a forma corpórea ou natural de uma mercadoria vige imediatamente como forma social, como forma de valor para outra mercadoria”. É como se a coisa possuísse, por si só, a “propriedade natural social” de ser equivalente ou mercadoria, o que é uma aparência resultante da própria dinâmica das trocas econômicas no capitalismo, a qual parece assumir certa compulsoriedade inata devido tanto à mediação monetária quanto ao impulso à circulação de mercadorias advindo do capital. Como afirma Marx, “que os produtos do trabalho [...] sejam valores, determinadas grandezas de valor e sobretudo mercadorias, são propriedades que, naturalmente, lhes são devidas apenas dentro de nosso intercâmbio [...]”. (MARX, 1983, p. 637-638)

Não entrarei no desenvolvimento da forma do valor em suas figuras simples, individual ou acidental (I); total ou desdobrada (II); geral (III); e forma de dinheiro (IV). Mas indico que são esses desdobramentos que acabam por demonstrar a necessidade da relação de troca e uma nova classe de problemas que advém do fato da forma equivalente se destacar dessa relação e se autossustentar como forma do dinheiro. Nesse momento, a mercadoria não está mais dentro de si, não reflete mais a si mesma a partir de dentro (M-M), mas, mediante o processo de troca, se relaciona com o produto externo dessa reflexão interna, ou seja, com a forma equivalente do valor tornada forma dinheiro (M-D).19 As figuras dessa forma socioeconômica se desenvolvem como funções que operacionalizam a relação de troca entre mercadoria e dinheiro. Tais funções apresentam determinações que excedem a forma da mercadoria justamente por presumi-la como uma forma relativa de valor em estado absoluto, cujo valor terá medida, fluidez e corpo na medida em que o dinheiro funcione como, respectivamente, medida dos valores, meio de circulação e dinheiro como tal (entesouramento, meio de pagamento e dinheiro mundial).

Vê-se, a partir daquelas peculiaridades da forma equivalente, de que modo uma prática social constitui o interior da forma socioeconômica da mercadoria, a qual determina retroativamente a relação entre as categorias econômicas que a constitui, a saber, valor de uso, valor de troca, trabalho e dinheiro, bem como as próprias práticas sociais classificadas (e normatizadas) por essas categorias e suas interrelações. Trata-se, assim, de um círculo reflexivo de práticas que são categorizadas e de categorias que são praticadas. A ordenação dessas categorias – que existem concretamente apenas em relação umas com as outras – é constituída, também reflexivamente, pela forma da mercadoria e, depois, do dinheiro.

Se é correto afirmar que a configuração dessa forma se apresenta em toda mercadoria singular que circula em uma economia cuja produção esteja determinada pelo capital, também é correto pensar que esse modo de produção é determinado por aquela forma, já que a produção capitalista está contida em um modo de circulação que decorre justamente do desenvolvimento das determinações da forma da mercadoria, a saber, D-M-D’. A produção de mais-valor (D’) é uma necessidade que aparece com a elevação do grau de objetivação e autossuficiência da forma do dinheiro, elevação essa observada na passagem da circulação M-D-M (vender para comprar) para a D-M-D (comprar para vender). A transformação de mercadoria em dinheiro se torna aí auto finalidade, de modo que “a figura exteriorizada da mercadoria fica impedida de funcionar como sua figura absolutamente alienada ou forma evanescente de dinheiro. Com isso, o dinheiro se petrifica no tesouro e o vendedor de mercadorias vem a ser entesourador” (MARX, 1962, p. 144). A despeito das funções que o entesouramento cumpre na circulação metálica, ele rebaixa, assim, a um registro meramente imaginário tanto a determinação de valor de troca da mercadoria-dinheiro (sobreposição da forma-preço à determinação do valor) quanto o aumento da riqueza representada nela (i. e., medida em termos monetários). Desse modo,

o dinheiro como forma da riqueza geral, como valor de troca autossuficiente, é incapaz de outro movimento que um quantitativo: aumentar. [...] [O dinheiro] não tem, portanto, de modo algum a capacidade - que, de acordo com seu conceito geral, deve ter - de comprar [...] a totalidade da riqueza material; ele não é um “précis de toutes les choses”. Ele é, portanto, como riqueza, detido na forma geral da riqueza, como valor que vige como valor, o impulso permanente de avançar sobre sua barreira quantitativa; processo infinito. Sua própria vivacidade consiste exclusivamente em que ele apenas se conserva como valor distinto do valor de uso e vigente para si enquanto ele se multiplica permanentemente por meio do próprio processo de troca. O valor ativo é apenas o valor que põe mais-valor

(MARX, 1980, p. 81)

Há, portanto, na forma do dinheiro uma contradição entre a sua “restrição quantitativa” (quantitativen Schranke) (ele é um “meio de compra de eficácia restrita”) e sua “ausência qualitativa de restrição” (qualitativen Schrankenlosigkeit) (como “representante geral da riqueza material”) (MARX, 1983, p. 90). Nos termos dessa forma, a solução aparece com aquele “impulso permanente de avançar sobre sua barreira quantitativa”, de modo que o dinheiro só se realiza como valor (isto é, se mantém aparte do valor de uso e de acordo com as determinações do processo de troca) na medida em que se autovaloriza. Essa necessidade coage o modo de produzir mercadorias, direcionando-o a estratégias de produção de mais-valor absoluto (aumento da jornada de trabalho em relação ao tempo socialmente necessário de trabalho para reprodução da força de trabalho) e relativo (redução do tempo socialmente necessário de trabalho para a reprodução da força de trabalho por meio de aumento da sua produtividade).

A produção de mercadorias está contida, portanto, em uma circulação determinada pela autovalorização permanente e automática do valor. Note que não se trata de um processo autônomo ou de um sujeito autoconsciente que regula a autovalorização do valor, mas sim de espasmos de circulação de mercadorias que cumprem as determinações contraditórias das formas que constituem o processo. Nele, dinheiro e mercadoria aparecem como “modos variados de existência do próprio valor” e, na medida em que ele passa de uma forma à outra, “transforma-se em um sujeito automático, [sujeito] que se processa dentro de si mesmo”. Uma vez que, nesse processo, o valor “altera sua própria grandeza, se repele como mais-valor de si mesmo como valor originário, se valoriza a si mesmo”, ambas suas formas são “formas particulares de manifestação” do capital. (MARX, 1983, p. 108-109).

O capital é, assim, uma relação social de produção impulsionada por espasmos sociais no sentido de produzir mais-valor, cujos impulsos advém das contradições constitutivas das determinações econômicas da forma. Essa produção capitalista de excedente se realiza a partir da troca entre o dinheiro (como capital) e a mercadoria (como força de trabalho). Uma vez no processo produtivo capitalista, as portadoras e portadores da força de trabalho são submetidos às estratégias de produção de mais-valor impostas pelos capitalistas, o que redunda invariavelmente na usurpação das forças produtivas do trabalho social e no sofrimento físico e psíquico da classe trabalhadora. Assim, a “atividade concreta dos indivíduos reais” sofre da determinação de “um universal que se auto-adjudica uma subjetividade pseudo-concreta” (MÜLLER, 1982, p. 33).

Considerações Finais: Em que Sentido se Fala de Materialismo das Formas Socioeconômicas na Crítica da Economia Política?

Apesar de lidar com um “universal”, é preciso que ele seja dimensionado de acordo com a proposta apresentada pelo autor. As determinações das formas mercadoria, valor e dinheiro não constituem diretamente todo e qualquer capital econômico. Antes, o que se pode depreender da leitura das duas primeiras seções do livro I de O Capital  a partir da segunda edição (1872-1873) – ou os dois primeiros capítulos da primeira edição (1867) – é que essas determinações dizem respeito ao processo de formação do capital em geral, processo esse que corresponde à gênese conceitual do capital industrial singular, cujo pleno desenvolvimento – pelo menos do ponto de vista do nível de abstração do processo de produção do capital - terá que considerar, ainda, aqueles seus desdobramentos que rumam à constituição do capital social total (HEINRICH, 1989, 2014; PINHEIRO, 2020, p. 217-230). A todo instante, dado o escopo do livro I, lida-se com o capital produtivo, ou seja, com aquele capital cuja aplicação mediante o processo de circulação (compra de força de trabalho e de meios de produção) visa a produção de mais-valor.

A apresentação das formas mercadoria, valor e dinheiro é, portanto, a apresentação do processo de formação objetiva de um capital produtivo. A sua circulação em cadeia com o capital-dinheiro e com o capital-mercadoria demonstrará, no livro II, a expansão dos desdobramentos daquelas determinações. A importância desse nível de abstração é que, por meio dele, pode-se isolar e demonstrar analiticamente a especificidade da estrutura que constitui o fundamento do modo capitalista de produção.20 Esse fundamento é tangenciado, justamente, pelo modo como aquelas categorias mais abstratas da economia política clássica, como valor de uso, valor de troca, trabalho, equivalência e dinheiro, são ordenadas naquela estrutura. Essas ordenações são reconstruídas de acordo com suas contradições efetivas, tais quais encontradas e mapeadas pelas pesquisas econômicas de Marx e cuja resolução ocorre não a partir da sua superação em um fundamento, mas a partir da forma socioeconômica “dentro da qual elas podem se mover” (MARX, 1962, p. 118).

Chega-se, desse modo, a uma leitura contraintuitiva: o materialismo marxiano da crítica da economia política diz respeito não apenas à materialidade das relações de produção, que em si é algo abstrato, mas sobretudo à matéria determinada pela forma, o que indica a continuidade de uma posição hegeliana, a saber:

Se se abstrai de todas as determinações, de toda forma de um algo, resta a matéria indeterminada. A matéria é um pura e simplesmente abstrato. (Não se pode ver, sentir etc., a matéria; o que se vê, o que se sente, é uma matéria determinada, quer dizer, uma unidade da matéria e da forma.) Essa abstração, a partir da qual surge a matéria, não é, porém, somente um descartar e suprassumir externo da forma, mas a forma reduz-se através de si mesma [...] a essa identidade simples

(HEGEL, 2017, p. 100-101; 2003, p. 88).

A materialidade das formas socioeconômicas encontra-se, assim, na concretude da estrutura objetiva mais fundamental e específica do modo capitalista de produção, uma concretude que não é meramente descritiva de suas relações sociais de produção, mas também normativa, já que as categorias econômicas, orientadas pelo dever ser do capital, impõem às classes sociais os horizontes de possibilidades de suas lutas, bem como a seus sujeitos, os limites políticos de sua conduta. O rompimento com esse (im)positivo do capital aparece, assim, como um ultrapassar dessas possibilidades e limites, de modo a apontar um caminho para a emancipação da dominação econômica do capital sobre o trabalho. Tal rompimento não consiste, vale dizer, de uma negação simples desse positivo, mas de uma negação determinada que se produza a partir do próprio positivo, um ultrapassar que ocorra por meio daquilo mesmo que seja ultrapassado. Nesse sentido, a discussão acerca da dialética é fundamental para o desenvolvimento do pensamento crítico marxista e para a avaliação crítica do projeto político-intelectual marxiano, na medida em que permite tematizar e atualizar o positivo do capital (aquilo que dele se impõe aos sujeitos) a partir de seu próprio negativo (aquilo que nele falha ao se impor aos sujeitos).

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Notas

2 Esse diagnóstico pode ser inferido, p. e., do seguinte trecho de O Capital: “No progresso da produção capitalista, desenvolve-se uma classe trabalhadora que reconhece, a partir da educação, tradição, hábito, as exigências daquele modo de produção como leis naturais autoevidentes. A organização do processo capitalista de produção já formado rompe cada resistência; o engendramento contínuo de uma superpopulação relativa mantém a lei da oferta e da demanda por trabalho e, portanto, o salário nos trilhos adequados às carências de valorização do capital; a coerção muda das relações econômicas sela o domínio dos capitalistas sobre os trabalhadores.” (MARX, 1962, p. 765)
3 Cito os manuscritos econômicos de 1858-1861: “Esse nível histórico de desenvolvimento da produção econômica – cujo produto próprio é o trabalhador livre – é, contudo, a pressuposição para o vir-a-ser e, mais ainda, para o ser-aí do capital enquanto tal. Sua existência é o resultado de um prolongado processo histórico no âmbito da configuração econômica da sociedade. Mostra-se, nesse ponto, de maneira determinada como a forma dialética de apresentação só está correta quando ela toma ciência de seus limites. A partir da consideração da circulação simples emerge como resultado para nós o conceito geral de capital, pois, dentro do modo burguês de produção, a circulação simples em si mesma existe apenas como pressuposição do capital e ele existe de maneira pressuposta [a ela]. O resultado dessa consideração faz do capital não a encarnação de uma ideia eterna, mas mostra como ele, a princípio na efetividade, apenas como forma necessária, precisa desembocar no trabalho que põe valor de troca, na produção baseada no valor de troca.” (MARX, 1980, p. 91)
4 Até porque Marx inclui em sua noção de empiria não apenas aquilo que é “imediata e sensivelmente perceptível, mas também a generalização sucedida por meio de outro pensador” (JAHN; NIETZOLD, 1978, p. 156). Desse modo, a própria economia política é, para o autor, um campo de pesquisas na medida em que seus desenvolvimentos teóricos ganham corpo e efetividade no debate político. Veja, p. e., Salário, preço e lucro (1865) (MARX, 1988, p. 383-432).
5 Tal como Marx sugere no prefácio da primeira edição de O Capital (MARX, 1962, p. 12), a “capacidade de abstração” é um instrumento inescapável para a “análise das formas econômicas”. O termo “abstração do entendimento” (verständige Abstraktion), que aqui relaciono à noção de “categoria”, denota a finalidade analítica da abstração em razão da qual “ela destaca efetivamente o comum, fixa-o e, assim, nos poupa da repetição”; esse “comum isolado por meio da comparação” diz respeito ao “geral”, uma “articulação múltipla que se difunde em várias determinações”, as quais indicam aquelas diferenças essenciais que não podem ser esquecidas diante da unidade do todo (MARX, 1976, p. 23).
6 Veja, p.e., a posição de Marx nos manuscritos de 1844: “Partimos dos pressupostos da economia nacional. Aceitamos sua língua e suas leis. (...) A partir da economia nacional mesma mostramos, com suas próprias palavras, que o trabalhador é rebaixado à mercadoria e à mercadoria mais miserável, que a miséria do trabalhador está em relação inversa ao poder e à grandeza de sua produção, [...].” (MARX, 1982a, p. 234)
7 A seção II da Marx-Engels Gesamtausgabe reúne todos os escritos preparatórios e publicados de Marx e de Engels que dizem respeito a O Capital. Ela abrange desde os Grundrisse (1857-1858) até o livro III de O Capital publicado por Engels em 1894, integrando, assim, 15 tomos. Desses, destaco o tomo 6, que reproduz a segunda edição do livro I de 1872, junto à qual estão publicadas as Ergänzungen und Veränderungen zum ersten Band des “Kapitals” (Dezember 1871- Januar 1871) em que Marx reelabora questões acerca da forma do valor apresentadas na edição de 1867 (para um comentário sobre essa reelaboração, ver Heinrich e Lima (2018); o tomo 11, que apresenta os manuscritos de Marx sobre o livro II desenvolvidos entre 1868-1881; e o tomo 14, que contém os manuscritos sobre o livro III escritos por Marx entre 1871-1882 e o material produzido por Engels entre 1885 e 1894, a fim de organizar e publicar aqueles escritos marxianos na forma de um livro coeso.
8 Do ponto de vista dessa reconstrução, é possível indicar, de acordo com Theunissen (1975, p. 318), uma dimensão objetiva e outra subjetiva da dialética: “Todas as relações nas quais o um se apropria do outro como seu outro são relações de poder, mesmo que o abarcar genuinamente conceitual ainda não esteja plenamente cultivado. Chamamos a estrutura interna de poder dessas relações de dialética no sentido objetivo. A dialética no sentido subjetivo, o modo dialético de pensamento, tem seu objeto específico no poder do abarcar e, na verdade, não apenas na medida em que ela é lógica, mas como teoria da efetividade em geral. Pois a unidade entre conceito e realidade – que é como o pensar dialético define a efetividade – baseia a si mesma no fato de que o conceito ‘abarca a realidade’, tal como Hegel comumente se expressa.”
9 Veja, p. e., em MARX, 1976, p. 39, a abordagem de Marx sobre a atualização da categoria trabalho realizada (de modo teoricamente inconsciente, pode-se dizer) pela economia política moderna, a qual resultará, mais tarde, na elaboração da categoria de trabalho abstrato.
10 “As categorias econômicas nada são além de expressões teóricas, abstrações das relações sociais de produção. [...] Os mesmos homens que estabelecem as relações sociais em conformidade com sua produtividade material produzem também os princípios, as ideias, as categorias em conformidade com suas relações sociais. Assim, essas ideias, essas categorias são tão menos eternas quanto as conexões que exprimem. Elas são produtos históricos e transitórios.” (MARX, 1896, p. 151-152)
11 Como se verá, essas “relações contraditórias e mutuamente excludentes” dizem respeito às determinações da forma da mercadoria estruturadas a partir da forma do valor, em especial, às formas relativa e equivalente de valor que “são momentos pertencentes um ao outro, mutuamente condicionantes, inseparáveis, mas, ao mesmo tempo, extremos autoexcludentes (einander auschließende) ou opostos, isto é, polos da mesma expressão de valor; eles se distribuem continuamente sobre as várias mercadorias que são referidas umas às outras pela expressão do valor.” (MARX, 1962, p. 63) Lembro que “[...] essa oposição polar de ambos os momentos da expressão do valor se desenvolve e se petrifica na mesma medida em que a forma do valor em geral se desenvolve ou vem a ser formado” (MARX, 1983, p. 645). Portanto, o ponto de partida do desenvolvimento da forma do valor (a consideração da sua forma simples) e, assim, do desenvolvimento da forma da mercadoria, pressupõe a consumação do curso do desenvolvimento da própria forma do valor, não apenas enquanto possibilidade epistemológica presente na figura da troca de mercadorias mediada pelo dinheiro, mas principalmente como fundamento sócio-histórico da sua constituição.
12 “Ser valor de uso parece pressuposição necessária para a mercadoria, mas ser mercadoria parece [uma] determinação indiferente para o valor de uso. Nessa indiferença, o valor de uso ante a determinação econômica da forma, isto é, o valor de uso como valor de uso, assenta-se além do círculo de consideração da economia política. Ele recai em seu círculo apenas onde seja, ele mesmo, determinação da forma. Ele é, imediatamente, a base material na qual uma determinada relação econômica se apresenta, o valor de troca.” (MARX, 1980, p. 108)
13 “[...] o capital industrial, que é a forma fundamental da relação de capital, tal como ela domina a sociedade burguesa, [...] no processo de seu surgir, tem que primeiro subjugar essas formas [a forma comercial e a do juro] e convertê-las em funções derivadas ou particulares de si mesmo. Ele encontra essas formas mais antigas na época de sua formação e de seu surgir. Ele as encontra como pressuposições, mas não como pressuposições postas por ele mesmo, não como formas de seu próprio processo de vida. Assim como encontra originariamente a mercadoria, mas não como seu próprio produto, e encontra a circulação de dinheiro, mas não como um momento de sua própria reprodução.” (MARX, 1968, p. 460).
14 “A dialética como método não pode ser mais do que aquilo que tinha levado uma existência parasitária e bastante subdesenvolvida ao longo do ‘método’ de Hegel: a forma de exposição racional e ao mesmo tempo crítica de uma matéria que as ciências particulares prepararam e da qual o pesquisador precisa ter se apropriado de um modo diferente do dialético. Hegel pronunciou-se sobre esse conceito subjetivo de método apenas em observações preparatórias – em especial no início da Enciclopédia e da Filosofia da Natureza. Marx, ao contrário, faz desse conceito o hen kai pan (‘o uno é o todo’) da dialética.” (FULDA, 2017, p. 114) A posição de Fulda é, no entanto, contestável no que diz respeito à “existência parasitária e bastante subdesenvolvida [da dialética] ao longo do ‘método’ de Hegel”. A “forma de exposição racional e ao mesmo tempo crítica de uma matéria que as ciências particulares prepararam” pode ser conferida, p. e., na revisão de 1831 da Doutrina do Ser para a segunda edição da Ciência da Lógica, a partir da qual foram adicionadas “[...] 70 páginas que exploram, a partir do solo da aritmética básica e da analítica superior, o tema das relações de potência” (NOLASCO, 2015, p. 317). Isso denota que, mesmo na Lógica, Hegel permanecia ocupado com as ciências particulares a fim de incorporar o resultado histórico do desenvolvimento de suas determinações à apresentação do processo dialético da vida de seu objeto de investigação, i. e., o pensar.
15 Marx se aproxima, assim, da seguinte formulação de Hegel: “Se as formas lógicas do conceito fossem, efetivamente, receptáculos mortos, inativos e indiferentes de representações ou pensamentos, [a noção dessas formas seria uma história muito supérflua e dispensável para a verdade.] Mas na verdade essas formas são, ao contrário, como formas do conceito, o espírito vivente do efetivo; e, do efetivo, só é verdadeiro o que é verdadeiro em virtude dessas formas, por meio delas e nelas. Mas a verdade dessas formas, para si mesma, até hoje nunca foi considerada e investigada, como tampouco sua conexão necessária.” (HEGEL, 1989b, p. 310; 1995, p. 295).
16 Sobre a expropriação agrária ocorrida na Roma Antiga, Marx afirma: “Assim, um belo dia, houve, de um lado, seres humanos livres despojados de tudo, exceto de sua força de trabalho, e de outro, para a exploração desse trabalho, o possuidor de todas as riquezas adquiridas. O que aconteceu? Os proletários romanos se tornaram não trabalhadores assalariados, mas uma turba ociosa ainda mais desprezível que os assim chamados ‘poor whites’ dos estados sulistas dos Estados Unidos, e, junto deles, não se desenvolveu nenhum modo capitalista de produção, mas um modo baseado sobre o trabalho escravo. Eventos de uma analogia gritante, mas que se desdobram em um ambiente histórico distinto, levaram, portanto, a resultados completamente diferentes.” (MARX, 1987a, p. 111-112)
17 A partir disso, é possível entender a razão do pensamento burguês lidar com as relações econômicas de sua época como se lidasse com processos naturais objetivamente estranhos às determinações subjetivas. Lohmann (1991, p. 22) afirma: “Na Crítica da Economia Política de Marx se trata, essencialmente, do esclarecimento dessa virada histórico-social das ações que são consumadas a partir da liberdade para as ‘ações’ que ocorrem como eventos da natureza. Essa virada é criticada como indiferenciação, coisificação e, por fim, como estranhamento”. Realizar essa crítica não significa conferir ao sujeito uma autonomia cara ao idealismo kantiano, mas ressignificar essa “natureza” como uma estrutura histórica e social que, ainda que coaja e determine os sujeitos, é mutável e porosa às subjetividades.
18 Cito Murray (2000, pp. 35-36): “Apesar da noção geral de trabalho abstrato ser aplicável a todo trabalho humano, é apenas em uma sociedade onde, via de regra, a riqueza toma a forma da mercadoria que a noção de trabalho abstrato tem significado prático. Apenas em tal sociedade o trabalho é validado como igualmente humano ao mesmo tempo em que a sociedade trata o caráter e o propósito particulares e concretos do trabalho com completa indiferença. [...] Para Marx, o trabalho produtor de valor é o trabalho ‘praticamente’ abstrato, o qual é trabalho de uma espécie social peculiar.”
19 “O cristal de dinheiro é produto necessário do processo de troca das mercadorias. A contradição imanente da mercadoria como unidade imediata de valor de uso e valor de troca, como produto do trabalho privado útil que forma um elo apenas singularizado de um sistema total natural-espontâneo dos trabalhos úteis ou da divisão do trabalho, e como materialização imediatamente social do trabalho abstrato humano – essa contradição não sossega nem descansa até que tenha se figurado na duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro. Portanto, na mesma medida em que se consuma a transformação dos produtos do trabalho em mercadorias, consuma-se a transformação da mercadoria em dinheiro.” (MARX, 1983, p. 54)
20 Cf. carta de Marx a Engels, 24/08/1867, MARX, 1965, p. 326.

Autor notes

* Hyury Pinheiro. Doutor em Sociologia pela Universidade de Campinas (2020). Pesquisafinanciada pela CAPES (Processo n° 88882.329296/2019-01). E-mail: hyure.pnh@gmail.com.


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