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A Cruzada Contra o Capital Cultural
The Crusade Against Cultural Capital
Mediações - Revista de Ciências Sociais, vol. 27, núm. 3, e45807, 2022
Universidade Estadual de Londrina

ARTIGOS


Recepção: 20 Março 2022

Revised document received: 23 Abril 2022

Aprovação: 28 Setembro 2022

DOI: https://doi.org/10.5433/2176-6665.2022v27n3e45807

Resumo: O artigo analisa o crescimento recente do anti-intelectualismo, associado à nova extrema-direita (alt-right), a partir da categoria de “capital cultural”. Alimentado pelos novos circuitos de disseminação dos discursos, ele promove a desconfiança em relação às vozes autorizadas da ciência, da escola e do jornalismo, em favor dos saberes espontâneos do “homem comum”. O resultado é uma situação que priva de recursos os detentores de capital cultural – os setores dominados da classe dominante, na definição de Bourdieu – em favor dos detentores de capital econômico.

Palavras-chave: Capital cultural, anti-intelectualismo, pós-verdade, nova extrema-direita.

Abstract: The article analyzes the recent growth of anti-intellectualism, associated with the new extreme right (alt-right), using the category of “cultural capital”. Fueled by the new circuits for the dissemination of speeches, it promotes distrust in relation to the authorized voices of science, school and journalism, in favor of the spontaneous knowledge of the “common man”. The result is a situation that deprives holders of cultural capital – the dominated sectors of the ruling class, in Bourdieu's definition – in favor of holders of economic capital.

Keywords: Cultural capital, anti-intellectualism, post-truth, alt-right.

No curso que proferiu no dia de 19 de abril de 1984 no Collège de France, Pierre Bourdieu observou que “o capital cultural é a espécie de capital que vai ser mais espontaneamente reconhecida como legítima” (Bourdieu, 2016, p. 261)1. Objetificado em artefatos como livros ou obras de arte, institucionalizado em títulos e diplomas, mas sobretudo incorporado na pessoa de seu possuidor (o indivíduo “culto”), que é sempre necessário para ativar a eficácia de suas manifestações objetivas ou institucionais, o capital cultural confere a seus detentores uma posição de superioridade social quase automática. Transita no mundo social, mais do que qualquer outra forma de capital, como um atributo quase inato; ou, melhor, como o reflexo de atributos inatos de quem o possui. Mais do que o produto de certas circunstâncias e de uma determinada trajetória, parece ser a decorrência automática de qualidades pessoais como “inteligência” e “sensibilidade”. Por isso, gera um reconhecimento forçoso, uma deferência espontânea – mas um reconhecimento, Bourdieu também não se cansava de assinalar, fundado no desconhecimento das condições materiais que permitiam adquiri-lo.

É possível dizer que, nas últimas décadas, esse reconhecimento espontâneo do capital cultural, descrito pelo sociólogo francês, tem encontrado dificuldades crescentes para se reproduzir2. Uma maneira de ler o avanço recente do obscurantismo de extrema-direita é como uma revolta contra essa situação – uma revolta contra o capital cultural, que passa pela desvalorização dos artefatos que o objetivam, dos títulos que lhe dão existência institucional e, enfim, das pessoas que o encarnam. Mas não é uma revolta, como a crítica de Bourdieu podia sugerir, no sentido de desnudar sua vinculação com as desigualdades sociais, de democratizar o acesso a ele ou mesmo de desafiar a hierarquia rígida entre saberes legítimos e ilegítimos. Destrona-se o capital cultural para, no seu lugar, fazer uma apologia interessada da ignorância, apresentada como triunfo do senso prático do “homem comum” contra o elitismo dos sabichões.

Movimentos políticos que exaltam a sabedoria dos cidadãos comuns não são novidade. São mesmo uma derivação óbvia do ideal democrático de igualdade. O poujadismo francês, nos anos 1950, ou, ainda antes, o qualunquismo italiano servem de exemplo. Ambos, não por acaso, com inclinações conservadoras ou reacionárias, já que o senso comum é visto como cristalizado e imune a desafios, além de ser muitas vezes atravessado por preconceitos. Mas foram movimentos marginais, com impacto relativamente reduzido. Já a nova extrema-direita tem se firmado como peça central nos sistemas políticos das democracias eleitoral, inclusive com a capacidade de ganhar governos.

Ela também expressa seu anti-intelectualismo de um modo muito mais rude, o que é um dos traços definidores de seus líderes – de Donald Trump a Jair Bolsonaro, passando por Viktor Orbán, Rodrigo Duterte e muitos outros. Por um lado, combina com a linguagem desabusada, direta, sem meias-palavras, que é central na composição de suas personas políticas. Tratar-se-ia, nesse caso, de evitar o refinamento artificial dos modos e do discurso, próprio das elites estabelecidas e do jogo político tradicional, mas também da fala rebuscada dos intelectuais3. O abandono deste refinamento visto como hipócrita tem como consequências um acirramento das desavenças e o estreitamento do espaço de negociação e barganha.

Por outro lado, o anti-intelectualismo leva à valorização do conhecimento obtido pela experiência direta, baseado no senso comum ou mesmo em preconceitos, potencialmente acessível a todos, em detrimento das teorias abstratas, das fórmulas complicadas e das conclusões contraintuitivas, próprias da ciência e do ambiente universitário. Em casos extremos, especulações bizarras – como a de que a Terra é plana – ganham uma nova respeitabilidade e ampliam seu círculo de adeptos. Há um vínculo necessário com algum tipo de teoria conspiratória, que explicaria por que uma verdade auto-evidente seria sistematicamente negada por um enorme conjunto de instituições, que inclui das escolas e universidades até as empresas aéreas e a NASA. A correlação entre terraplanismo e adesão à nova extrema-direita (por vezes chamada de alt-right, para assinalar seu caráter “alternativo” em relação aos circuitos estabelecidos de legitimação discursiva) é alta (cf. Peters, 2017; Cvar e Bobnič, 2019).

Na síntese apresentada por um cientista político, os “populistas” – termo que prefiro evitar, por seu caráter equívoco e por suas conotações demofóbicas – “afirmam que as soluções para os problemas mais prementes do nosso tempo são muito mais descomplicadas do que o establishment político nos faria acreditar e que a grande massa das pessoas comuns sabe instintivamente o que fazer” (Mounk, 2018, p. 7). Daí se extrai uma conclusão lógica. Se os problemas se perpetuam, mesmo tendo soluções tão simples, é porque não há interesse em resolvê-los. A conspiração de intelectuais e cientistas, para nos apresentar um mundo mais complicado do que de fato é, leva à conspiração das pessoas no poder para perenizar situações prejudiciais às maiorias.

Da forma como extrema-direita “alternativa”, anti-intelectualismo e teorias conspiratórias se articulam, um papel destacado é exercido pelos novos circuitos de difusão social dos discursos, propiciados pelos avanços nas tecnologias da comunicação e pela emergência das chamadas mídias sociais. Formam-se enclaves de reforço mútuo de crenças, visões de mundo e informações, praticamente imunes a qualquer desafio vindo de fora. Há um reforço entre a tendência, própria da psicologia humana, de evitar a dissonância cognitiva e o funcionamento dos algoritmos das empresas comerciais que controlam a internet. Nessas bolhas, mesmo os discursos mais disparatados podem ganhar status de verdades compartilhadas incontestes. A reprodução desta situação depende da depreciação do capital cultural: é o que permite o ceticismo quanto às fontes de autoridade até então reconhecidas, como a ciência, a academia ou mesmo o jornalismo profissional, destruindo a possibilidade de estabelecer qualquer critério fidedigno e universalizável de validação da informação. Essa indeterminação perene, que reproduz na vida cotidiana os paradoxos epistemológicos sobre a impossibilidade de um fundamento último do conhecimento, é por vezes chamada de “pós-verdade”.

A primeira seção do artigo discute o conceito de capital cultural, tal como elaborado na sociologia de Bourdieu, e sua relação com o capital econômico. Na interpretação aqui proposta, a deslegitimação do capital cultural leva a uma reconfiguração das relações entre estas duas formas de dominação, com uma ampliação da primazia do capital econômico.

Na segunda seção, discute-se o conceito de pós-verdade e sua relação com o anti-intelectualismo da nova extrema-direita. Há uma nova dinâmica, que faz com que a situação atual seja qualitativamente diversa de formas anteriores de contestação interessada de saberes considerados legítimos. Não se trata apenas de buscar especialistas “alternativos”, turbinar suas credenciais, impô-los no debate e criar dúvidas na opinião pública – como, por exemplo, no caso da negação do aquecimento global ou mesmo da pretensa teoria do design inteligente, que rejeita a seleção natural das espécies. Trata-se de minimizar ou mesmo recusar a própria distinção entre especialistas e não-especialistas. Por isso, é possível falar em uma cruzada contra o capital cultural, em vez de apenas em estratégias para influenciar os circuitos de sua atribuição.

A terceira seção dirige o olhar para polêmicas concretas, tais como os estudos de gênero, um dos alvos permanentes da nova extrema-direita, e a pandemia mundial da Covid-19, em que governantes como Donald Trump e Jair Bolsonaro se fizeram porta-vozes de negacionismo, teorias conspiratórias e esperança em soluções milagrosas. Os dois casos mostram como se combinam as estratégias de turbinar, aos olhos do público, a legitimidade de discursos que sequer são levados em conta em seus campos de origem e de negar a qualquer discurso uma superioridade sobre o senso comum. Mostram também que não se trata de recusar qualquer hierarquia de autoridade de fala, mas de recusar aquela baseada nos padrões estabelecidos de atribuição de capital cultural.

A conclusão, enfim, assinala a consequência esperada da cruzada em curso: a perda de autonomia dos campos intelectuais, com o fortalecimento de múltiplas instâncias de censura e o predomínio cada vez menos desafiado da lógica do capital (econômico) na gestão do mundo social.

Disputas entre dominantes

Em sua obra, Pierre Bourdieu busca construir uma sociologia abrangente da dominação social, sensível às suas diferentes manifestações. O conceito alargado de “capital” é fundamental nesta empreitada. Ele se refere às moedas simbólicas que permitem que os agentes em disputa ocupem posições mais centrais nos diferentes campos sociais. Tais moedas têm sua validade restrita àquele espaço específico. Quanto mais um campo é capaz de proteger sua própria autonomia, mais os capitais oriundos de outros campos serão ineficazes para nele gerar valor. Assim, por exemplo, é o prestígio próprio concedido pelos pares e por alguns outros poucos agentes aceitos no campo, como críticos ou marchands, que confere legitimidade a um artista plástico, gerando um “capital artístico” que, idealmente, pouco tem a ver com o valor de mercado alcançado pelas obras (capital econômico) ou a posse de um diploma de doutor em História da Arte (capital acadêmico). Romero Britto ou Damien Hirst podem ser sucesso de vendas, mas isso não se traduz necessariamente – ou pode ter até um efeito negativo – no capital especificamente artístico que detêm, isto é, no reconhecimento a eles atribuído pelos agentes situados no campo artístico.

O campo, assim, se refere a uma configuração de relações objetivas entre posições de agentes ou de instituições, definida pelo controle de diferentes parcelas do capital específico. Os diferentes campos sociais se constituem à medida que determinadas práticas são capazes de gerar espaços próprios de autonomia. Em alguns de seus artigos e livros, Bourdieu estudou tal processo em detalhe, observando a autonomização paulatina da arte e da literatura em relação seja ao mercado, seja ao Estado, permitindo que elas estabelecessem suas próprias modalidades de consagração e hierarquias internas (Bourdieu, 1987, 1992). Como estruturas objetivas, os campos impõem sua lógica aos agentes que deles participam. Daí a metáfora do jogo, que percorre a obra de Bourdieu: o agente no campo é o jogador que interiorizou as regras do jogo, que organiza sua ação a partir dela e que aceita como inquestionável que os objetivos do jogo são aqueles que deve alcançar.

Bourdieu discute ainda como, no mundo social mais amplo, duas formas paralelas e concorrentes de capital produzem os dois eixos principais de dominação. São eles o capital econômico e o capital cultural. A relação entre eles não é de exterioridade absoluta. Por um lado, a obtenção do capital cultural depende de um quantum de capital econômico, na forma de acesso a espaços, de obtenção de determinados bens, de contatos com instrutores e, sobretudo, de tempo livre. Por outro lado, a operação do capital econômico depende, de forma crescente, do capital cultural de administradores e de engenheiros. Mas são duas formas de dominação que seguem lógicas diversas, cuja distribuição entre diferentes grupos sociais também é diversa e que, portanto, se definem tanto por complementaridade quanto por competição.

O campo do poder seria o espaço social em que diferentes formas de poder, assentadas em diferentes tipos de capital, medem suas forças. Trata-se, ao que parece, do mundo social como um todo, que reproduz, em nível superior, as disputas por reconhecimento e influência que caracterizam cada um dos campos que o compõem. A obra de Bourdieu não é particularmente clara ao definir as relações entre campos e subcampos4 e o sociólogo francês jamais avançou em seu pretendido estudo sobre o campo do poder.

Ainda assim, é bem consolidada, em seu pensamento, a caracterização da sociedade contemporânea como estruturada sobretudo pela distribuição do capital econômico e do capital cultural. Uma representação bidimensional do mundo social, muito presente nas obras de Bourdieu, é feita apresentando-o como um plano cartesiano cujos eixos são essas duas espécies de capital. Há, no entanto, uma hierarquia entre os eixos, com o predomínio do capital econômico. Os detentores de capital cultural elevado integram, é certo, o estrato dominante da sociedade, mas na condição de “dominantes dominados” (Bourdieu, 1989, p, 548). Em suma, na sociedade contemporânea o domínio de capital econômico e capital cultural é conjunto, mas assimétrico.

A relação entre os dois grupos dominantes é de cooperação – a “divisão do trabalho de dominação” – mas também de conflito: uma luta “pela imposição do princípio de dominação dominante” e, simultaneamente, “pelo princípio legítimo de legitimação” da dominação social (Bourdieu, 1989, p. 376). A tensão entre os detentores de capital econômico e de capital cultural, assim, atravessa a sociedade e se manifesta de diversas maneiras. Um exemplo elucidativo, que o próprio Bourdieu introduz, é a posse de diplomas escolares. Para os detentores de capital cultural, o reconhecimento legal do diploma e o monopólio de acesso a determinadas posições, que ele confere, são garantias que permitem fundar as vantagens de que desfrutam em algo mais do que o reconhecimento social difuso. Por isso, quanto mais o diploma é elevado, “mais está predisposto a funcionar como um título de nobreza, uma dignidade, que dispensa seu detentor, de uma vez por todas, de atestar na prática suas capacidades” (Bourdieu, 1989, pp. 168-9). Já os detentores de capital econômico “tendem naturalmente a privilegiar a capacidade técnica e a tratar a dimensão simbólica do título como um entrave ao livre jogo da concorrência e das forças do mercado” (Bourdieu, 1989, p. 169) e portanto advogam por desregulamentação das práticas profissionais.

Sobretudo na fase do capitalismo regulado, o Estado5 pode ser visto como uma arena central em que capital econômico e capital cultural se defrontam. A burguesia exerce uma influência automática sobre o Estado capitalista, cuja capacidade de financiamento depende da arrecadação fiscal (portanto, em última análise, das decisões privadas de investimento dos detentores do capital), o que é chamado de “dependência estrutural” (Offe, 1984 [1972]). Ao mesmo tempo, a tecnoburocracia estatal, que se caracteriza por competências profissionais específicas avalizadas por diplomas, torna-se responsável por uma gestão cada vez mais detalhada de todos os setores da vida social, incluindo a própria economia. Ela regula tanto os conflitos internos entre os grupos no poder quanto a relação com a massa da população, tornando-se, na leitura de Poulantzas (2013 [1978]), tanto central para a produção da hegemonia social quanto um fator de decadência da democracia liberal, já que a área sob sua jurisdição torna-se praticamente imune à expressão da vontade eleitoral.

O Estado ao qual Poulantzas se referia, no final dos anos 1970, passou por profundas transformações. Mesmo a dependência estrutural em relação ao capital, baseada na extração de impostos, é modificada pelo peso crescente da dívida pública e, por consequência, dos interesses dos credores (Streeck, 2017 [2013]). Se antes questionava-se o avanço da tecnoburocracia sobre a soberania popular, um tema que se tornou comum nas ciências sociais, hoje o que se aponta é a perda da autonomia do Estado diante das grandes corporações. Na disputa sobre o princípio de dominação dominante, a balança parece se inclinar cada vez mais para o capital econômico. É neste cenário, por vezes chamado de “pós-democracia” (Crouch, 2004), que a cruzada contra o capital cultural se estabelece.

O mundo da pós-verdade

“Pós-verdade” ainda não tem um estatuto de conceito. É uma expressão retórica, com algo de modismo – em 2016, na esteira de sua ampla difusão pela mídia, post-truth recebeu o título de “palavra do ano” dos dicionários Oxford –, à qual alguns autores buscam conferir mais rigor. Ainda funciona, grande parte das vezes, como descrição impressionista de um conjunto de fenômenos relacionados entre si, como a desconfiança crescente em relação às fontes até então legítimas de saber (como ciência, universidade ou jornalismo) e a difusão de uma espécie de relativismo científico popular, muito radical, que desemboca na crença de que não há possibilidade de que fatos sejam estabelecidos para além da diferença de opiniões e no postulado de que todas as opiniões têm necessariamente o mesmo valor. Em especial, a pós-verdade remete ao uso que o discurso político faz dessa nova situação de incerteza epistêmica absoluta, operando uma difusão deliberada de desinformação e fortificando seus adeptos em enclaves de seguidores de tal ou qual “verdade” alternativa, de maneira a bloquear qualquer tipo de interlocução com ideias diferentes.

A existência de tais enclaves é, portanto, essencial para que os discursos da pós-verdade prosperem – e as novas tecnologias da informação e da comunicação favorecem, e muito, seu aparecimento. A esperança de que a internet geraria uma ampliação e uma democratização exponenciais do debate público, que orientou a reflexão de autores do final do século passado (Levy, 1994, 1997), logo se mostrou ilusória. Já na mesma época, os desenvolvedores da tecnologia tinham outro plano – e eles eram os “profetas armados”, como diria Maquiavel, isto é, aqueles que controlavam os meios para implementar suas previsões no mundo real (cf. Miguel, 2000).

Em vez de um ambiente de discussão e de auto-organização coletiva, o que se desejava era criar um mercado onipresente. Cada vez mais sofisticadas, as técnicas de captura de dados e de “personalização da experiência”, orientadas em primeiro lugar para incentivar práticas de consumo, levam a uma situação em que cada internauta se vê praticamente livre de contato com visões de mundo divergentes – as “bolhas” de que falava Pariser (2011). Tal desenvolvimento é favorecido por tendências que os estudos de psicologia social, desde os anos 1950, apontam como inatas aos seres humanos. Desejamos evitar o estresse causado pela “dissonância cognitiva”, isto é, pela presença de fatos contrários às nossas crenças. Movidos pelo “viés de confirmação”, buscamos informações que corroborem nossos esquemas mentais prévios e fugimos daquelas que os desafiam. Levados pela vontade de integração ao grupo, não apenas silenciamos nossas discordâncias como adaptamos até o conhecimento produzido pelos nossos próprios sentidos6.

Ou seja: os enclaves discursivos que permitem florescer a pós-verdade geram um grupo de referência, motivando os integrantes a agir de maneira a perpetuar sua conformidade a ele, e funcionam como um aparato protetor contra a emergência de informações contraditórias7. Nesse ambiente, como observou Sawyer (2018, p. 56), o critério de validação de uma afirmação qualquer passa a ser apenas a anuência da “rede de concordância” na qual o indivíduo está inserido. Qualquer questionamento pontual tem que ser eliminado, pois é visto como um atentado à rede de concordância inteira. Como o pertencimento à rede torna-se parte da identidade de cada um, são postos em marcha os fortes mecanismos psicológicos que visam proteger a identidade pessoal.

Por isso, os dispositivos de pós-verdade são tão eficazes para bloquear o debate público. Vários estudos mostram como a apresentação de fatos que negam determinadas crenças é inútil para demover quem adere a elas – e por vezes contribui para uma defesa ainda mais agressiva da percepção falsa sobre o mundo (McIntyre, 2018). Isso se deve a predisposições psicológicas como as indicadas antes, mas também ao completo esvaziamento do terreno comum que serviria de apoio à discordância e balizaria critérios compartilhados de validação. Como dizem Lewandowsky, Ecker e Cook (2017), a pós-verdade “não é uma mancha no espelho”, mas “uma janela para uma realidade alternativa”.

A referência à pós-verdade inclui ainda um elemento adicional: ela é fruto de uma intencionalidade, isto é, a comunidade de sentido que aceita e propaga as informações desprovidas de conteúdo real verificável está, consciente ou inconscientemente, a serviço de determinados interesses. Não por acaso, a popularidade da expressão está ligada aos dois eventos, ambos em 2016, que fizeram acender o sinal amarelo em relação à saúde das democracias liberais do Ocidente: as vitórias de Donald Trump, nas eleições presidenciais estadunidenses, e do Brexit, no plebiscito sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia8. As campanhas de Trump e do Brexit foram, segundo o consenso dos observadores, amplamente ancoradas na difusão deliberada de inverdades.

Dados verificáveis (sobre a relação entre imigração e criminalidade ou sobre as despesas do Reino Unido com a União Europeia) eram falsificados sem pudor, ao mesmo tempo em que histórias sem qualquer fundamento factual, muitas delas absolutamente inverossímeis, eram difundidas. A mais famosa é a que ligava Hillary Clinton e vários outros integrantes do Partido Democrata a uma rede de pedofilia sediada em uma pizzaria de Washington – cujo pendant, no Brasil, é a infame “mamadeira de piroca” atribuída aos governos do Partido dos Trabalhadores. Parte das histórias fantasiosas é atribuída a “caça-cliques”, em princípio desinteressados da disputa política e buscando apenas a remuneração de publicidade gerada pelo aumento do tráfego em seus canais na web (cf. Benkler, Faris e Roberts, 2018), o que significa dizer que diferentes intencionalidades concorrem para produzir o ambiente informacional da pós-verdade.

Pesquisas mostraram que uma vasta maioria dos eleitores julgava que Trump mentia (McIntyre, 2018, p. 152), o que não o impediu de vencer as eleições. A pós-verdade parece indicar, portanto, não apenas um uso estratégico da desinformação por parte de agentes interessados, mas um novo padrão de relação do público em geral com a ideia de verdade. De acordo com a síntese proposta por Harsin (2018), a pós-verdade apresenta três conjuntos entrelaçados de problemas. O primeiro, epistêmico, se refere à presença de múltiplas reivindicações de verdade concorrentes. O segundo, fiduciário, diz respeito à perda de confiança nos dispositivos de saber que avalizavam, com sua autoridade, o que era a verdade. De fato, uma das características da modernidade é nossa dependência de sistemas que não dominamos e com os quais estabelecemos uma relação de crença ou confiança (Giddens, 1990). É possível pensar que, no ambiente da pós-verdade, esta crença está mantida apenas para aquilo que permite confirmação imediata – assim, continuamos a entrar em aviões cuja engenharia é misteriosa para nós, porque a experiência direta comprova que voam. Mas naquilo que não permite essa confirmação, como o passado histórico, o efeito a médio e longo prazo de determinados comportamentos ou fatos ocorridos em espaços geográficos e sociais distantes, a confiança nas vozes autorizadas declina e é desafiada por competidores sem as mesmas credenciais e com audiência localizada.

O terceiro conjunto de problemas indicado por Harsin, ao lado do epistêmico e do fiduciário, é ético-moral. Diz respeito à desatenção deliberada aos critérios de validação do discurso ou ao uso intencional de informações que se sabe que são falsas. Embora essas estratégias sejam proveitosas para os grupos que delas lançam mão, elas não prosperariam sem a cumplicidade da audiência. Mais uma vez, não há aqui nada de novo, apenas a radicalização de tendências anteriores. P. T. Barnum, o famoso mistificador do século XIX, que alguns apontam como pioneiro da propaganda comercial moderna, já dizia que o segredo é entender que o público deseja ser enganado e colabora ativamente para que a ilusão não se desfaça (cf. Boorstin, 1992 [1961], p. 209).

A ideia de que cada um pode “escolher” o mundo em que vive alimenta, em primeiro lugar, os diferentes tipos de negacionismo histórico. Para um olhar desatento, parece que, se prefiro acreditar que o Holocausto nunca existiu, que o nazismo era de esquerda ou que não havia tortura na ditadura militar brasileira, nada muda na minha vida. Quando se trata de selecionar governantes ou de definir políticas em relação a questões de saúde pública, porém, tal inocuidade não se sustenta. A pós-verdade parece indicar, assim, que o público elege suas crenças buscando uma gratificação imediata (Kapolkas, 2019, pp. 21-2), sem preocupação com as consequências futuras das ações que estas crenças comandam. Ao estabelecerem um mundo de certezas absolutas, com uma fronteira nítida entre o bem e o mal, sem os ruídos que a complexidade do real inevitavelmente produz, as narrativas da pós-verdade, quando são capazes de gerar um enclave sólido, cativam seu público com a oferta de um ambiente confortável, despido de estresse cognitivo.

A intencionalidade na promoção de “fatos alternativos” – para usar a expressão celebrizada por Kellyanne Conway, assessora do presidente Donald Trump – aproxima a pós-verdade da “agnotologia”. O neologismo foi difundido por Robert Proctor (1995) para indicar o estudo da promoção da ignorância e da incerteza em campos nos quais o consenso científico está bem estabelecido. Outros, porém, o usam para designar o próprio conjunto de procedimentos usados para promover a ignorância (cf. Mirowski, 2013). São técnicas desenvolvidas em primeiro lugar pela indústria do tabaco, em sua campanha de décadas para desacreditar as pesquisas que relacionavam o consumo de cigarro ao câncer de pulmão. Hoje, o melhor exemplo é o negacionismo climático, na forma da recusa a aceitar seja o fato de que a temperatura do planeta está aumentando, seja de que esse aumento é fruto da ação humana.

O ponto fulcral destes procedimentos é a promoção da dúvida sobre consensos científicos em formação. Como escreveu certa vez o executivo de uma subsidiária da British American Tobacco, “dúvida é o nosso produto”9. Há um investimento inicial na produção de dados alternativos, com o financiamento e a promoção pública de pesquisadores dispostos a chegar às conclusões desejadas pelas empresas. A mídia cumpre seu papel, alimentando a “polêmica”, seja por pressão de interesses econômicos, seja por um entendimento superficial de que sua função é “mostrar os dois lados”. Como resultado, o público passa a julgar que existe uma divergência científica aberta em áreas que se caracterizam, na verdade, pelo oposto: pela convergência avassaladora10.

A dúvida criada dá a muitas pessoas justificativas para a manutenção de comportamentos que lhes parecem cômodos ou prazerosos e que, de outra maneira, elas seriam levadas a modificar. Se a relação entre câncer e tabagismo não está completamente estabelecida, posso continuar fumando. Se não é certo que há aquecimento global ou que ele é fruto da ação humana, não é preciso mudar técnicas de produção e hábitos de consumo. Se a pandemia global do novo coronavírus está tendo sua gravidade exagerada ou se há um remédio infalível e amplamente disponível, como a hidroxicloroquina, então não é necessário que eu me submeta às regras de isolamento social.

Mas, como o balanço das publicações científicas mostra a convergência nas conclusões, os pesquisadores patrocinados pelos interessados na promoção da dúvida se apresentam como vítimas de uma espécie de macarthismo acadêmico, que bloqueia as vozes dissidentes. Apela-se a uma visão rasa de “liberdade de expressão” que nega validade ao método científico e que, no limite, faz de todos os discursos “opiniões” de valor equivalente. De maneira mais profunda, usa-se contra a ciência seu próprio agnosticismo quanto à possibilidade de estabelecer uma verdade última – apenas conclusões que o conhecimento disponível sustenta além da dúvida razoável. A radicalização deste agnosticismo por vertentes ultra-relativistas abriu flancos que grupos conservadores, incomodados com conclusões da pesquisa científica, souberam aproveitar. Já se disse que a teoria do design inteligente (que busca dar uma roupagem acadêmica ao velho criacionismo) “é o filho bastardo do fundamentalismo cristão com o pós-modernismo” (Pennock, 2010, p. 757).

Não se trata, convém ressaltar, de reduzir a discussão sobre a epistemologia pós-modernista a uma acusação simplificadora. A questão é que, sobretudo após o affair Sokal, que ganhou grande publicidade, e a consequente agudização das science wars, grupos da extrema-direita perceberam que o campo científico, pela própria complexidade de seus debates internos, estava mal posicionado para enfrentar um ataque frontal e mal intencionado como o que eles deflagraram.

Tal como descrita até aqui, a construção da pós-verdade passa por um esforço de redistribuição da legitimidade científica. É uma tentativa de intervenção de força no campo científico, graças ao dinheiro e à visibilidade midiática, a fim de inflar a posição daqueles alinhados aos interesses dos patrocinadores. O capital cultural é ameaçado por uma investida contra a autonomia dos campos que o geram, que seriam colonizados pelo poder econômico, mas permaneceria ativo como simulacro. Assim, a indústria do tabaco, os negacionistas climáticos ou mesmo os defensores do design inteligente enfileiram seus doutores, criam suas próprias publicações com peer-review para escoar os resultados de suas pesquisas enviesadas (Orekes e Conway, 2010, p. 244) e usam seus títulos acadêmicos como argumento de autoridade. Um exemplo particularmente insólito é a carta aberta de cientistas brasileiros em defesa do uso da hidroxicloroquina no tratamento de infecção por Covid-19, no qual, junto de cada assinatura, era indicado o número de citações que seus trabalhos publicados teriam recebido, segundo o website Google Scholar11.

Mas há outro elemento a ser introduzido, que é o anti-intelectualismo. Ele aponta para uma segunda dimensão, que atinge o capital cultural em si mesmo, afirmando que o conhecimento sofisticado dos acadêmicos é irrelevante para o mundo real, sendo melhor se fiar na experiência empírica, “terra-a-terra”, das pessoas comuns. Trata-se da exacerbação de algo que é definidor do pensamento conservador moderno, da fundação por Edmund Burke (1982 [1790]) à sua atualização por Oakeshott (1967): a desvalorização do racionalismo, que julgaria que se deve fazer tábula rasa da tradição e reorganizar o mundo por novos critérios. O que se vê é a transposição, também para as ciências “duras”, do anti-intelectualismo que antes era usado para desacreditar as ciências humanas.

Assim, Donald Trump, ainda candidato à presidência dos Estados Unidos, pôde desmerecer a ideia de aquecimento global falando que o spray que ele passa dentro de seu apartamento fechado não tem como prejudicar a camada de ozônio que está a quilômetros de distância da superfície terrestre. Para Mariano Rajoy, então primeiro-ministro espanhol, se os cientistas não são capazes de garantir “que tempo irá fazer amanhã em Sevilha”, então não poderiam prever como será o clima nos próximos séculos. Já Ernesto Araújo, quando chanceler do governo brasileiro, apresentou o frio que passou ao visitar a Itália como prova de que o planeta não está ficando mais quente12. Mesclam-se apelos ao senso comum (a distância entre o apartamento “fechado” e a camada de ozônio), à experiência coletiva (a imprecisão da previsão do tempo) e à experiência pessoal (a viagem a Roma) com a desconfiança no saber científico.

O capital cultural sob ataque

A discussão anterior apontou duas estratégias pelas quais se busca enfraquecer a posição do capital cultural. Uma projeta uma aparência de capital cultural para legitimar a autoridade de pessoas e argumentos que, no entanto, são sustentados por mecanismos externos ao campo de produção daquele tipo de capital13. Outra, mais radical, aposta no anti-intelectualismo para negar ao capital o reconhecimento dos “profanos” que é a base da efetividade de qualquer forma de capital simbólico.

As duas estratégias não são excludentes. Nas campanhas contra informações incômodas, é frequente que se lance mão de ambas, embora em proporções diversas. Os estudos sobre a tentativa da indústria do cigarro para negar o nexo entre seu produto e o desenvolvimento de câncer pulmonar, a partir dos anos 1950, mostram um predomínio absoluto da primeira delas. Em vez de negar que pesquisadores médicos tivessem competência para estabelecer este nexo, promoveram seus próprios especialistas e investiram dezenas ou centenas de milhões de dólares no desenvolvimento de pesquisas falsas. Era uma época em que a autoridade da ciência era menos desafiada. Além disso, a relação entre o tabagismo e o câncer é menos mediada, mais unívoca e mais diretamente compreensível do que, por exemplo, entre o uso de combustíveis fósseis e o aquecimento global – e, talvez mais importante, põe em jogo a consequência pessoal que o hábito gera para o próprio fumante, ao passo que o aquecimento global fala em consequências coletivas para gerações futuras. Em suma, o egoísmo estreito torna mais difícil desprezar o conhecimento científico quando está em jogo a própria vida14.

No outro extremo está o terraplanismo. Seus arautos são, em geral, “autodidatas” sem credenciais acadêmicas, que difundem suas teorias por canais das redes sociais (cf. Garwood, 2007). Ao contrário do que ocorre com muitos dos outros ataques ao conhecimento científico, o terraplanismo não é aceito pela imprensa como uma controvérsia digna de atenção e é reportado de forma em geral jocosa. Seja porque se trata de desafiar um fato bem estabelecido há mais de dois milênios, seja porque não há interesses econômicos que alavanquem a iniciativa, seu caminho é um ataque frontal à autoridade de cientistas e intelectuais. Embora por vezes produzam teorias bastante contraintuitivas, como a do “efeito Pac-Man” que faria pessoas e objetos serem teletransportados à outra extremidade da Terra assim que alcançassem uma borda, tal como no antigo videojogo de mesmo nome (Bryner, 2018), o argumento principal é a experiência sensível imediata, isto é, o fato de que vivemos na Terra e a sentimos como plana sob nossos pés, negando qualquer discurso que a negue ou relativize.

Um exemplo mais híbrido é dado pelo design inteligente, que se opõe à teoria da seleção natural. O criacionismo “raiz” se apoiava na autoridade de textos sagrados e de chefes religiosos, que se erodiu ao longo dos séculos XIX e XX. Os defensores do design inteligente mantêm estreita aliança com fundamentalistas religiosos, mas seu discurso público é outro. Seus porta-vozes não são pastores, mas biólogos e professores universitários (ainda que, em geral, de instituições ligadas a igrejas). Os argumentos que empunham dão roupagem pretensamente científica às objeções de senso comum contra a seleção natural: a impossibilidade de que o “acaso” produza algo tão “perfeito” quanto os seres vivos, o fato de que o darwinismo ainda seja chamado de “teoria”15. Em suma, o papel do especialista é traduzir e referendar o conhecimento espontâneo do cidadão comum.

Um caso que merece atenção é o ataque aos estudos de gênero. Direcionado contra disciplinas da área de humanas, mais vulneráveis e menos dotadas de reconhecimento social, busca negar validade, em bloco, a toda uma área do conhecimento científico, anatematizada como uma forma de falsificação da realidade: é a “ideologia de gênero”16. Há a valorização de uma forma de autoridade contraposta ao capital cultural – a autoridade religiosa, ativa na produção de formulações dogmáticas para sustentar a imutabilidade dos estereótipos associados a homens e a mulheres (cf. Garbagnoli, 2014). Mas nem sempre esta autoridade é evocada, sobretudo quando estão em jogo iniciativas que devem ser implementadas por um Estado ainda oficialmente laico. A batalha contra a pretensa ideologia se apoia, então, no caráter natural e autoevidente dos papéis de gênero. Ou seja, é, uma vez mais, a defesa do senso comum historicamente construído contra saberes que o desafiam. Como a reprodução destes papéis é vista, por esse mesmo senso comum, como essencial ao bom funcionamento das principais instituições sociais, a começar pela família, a reação toma a forma do pânico moral. Resposta emotiva, que “cristaliza medos e ansiedades generalizados” (Weeks, 1981, p. 14), o pânico impõe uma sensação de urgência que bloqueia reflexão e debate.

Uma característica particular desta campanha, para a qual concorrem tanto sua construção no registro do pânico moral quanto o fato de se voltar contra ciências historicamente menos dotadas de legitimidade social, é que ela não busca estabelecer um terreno de dúvidas, mas fixar certezas e proibir debates. No caso mais conspícuo, o governo extremista de Viktor Orbán, na Hungria, baniu os estudos de gênero das universidades (Barát, 2019; Vida, 2019). No Brasil, a proibição à discussão de temáticas ligadas a gênero tornou-se a principal bandeira do chamado “movimento Escola Sem Partido”, lobby conservador com foco na educação (Miguel, 2016). Algumas vitórias obtidas em legislativos locais foram derrogadas por determinações do Supremo Tribunal Federal, mas permanece em marcha uma pressão de tipo macarthista para impedir a tematização de questões como a dominação masculina, o caráter social dos estereótipos de gênero ou a necessidade de respeito à diversidade sexual.

Outra peculiaridade da luta contra a “ideologia de gênero”, em comparação com outros casos apresentados aqui, é que ela não invalida apenas a autoridade de sociólogos, antropólogos, historiadores, psicólogos e outros especialistas. Questiona também as formas de capital cultural associadas à legitimidade de produtores e consumidores de arte. No Brasil, ocorreram vários episódios nos últimos anos, dos quais os mais destacados foram o cancelamento da exposição Queermuseu, em Porto Alegre, em setembro de 2017, após pressão de grupos conservadores, e o veto a publicações com temática LGBT na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, por iniciativa do prefeito da cidade, o bispo neopentecostal Marcelo Crivella, em setembro de 2019.

O tipo de anti-intelectualismo mobilizado contra os estudos de gênero dá peso à leitura de que as elaborações de acadêmicos, artistas e outros detentores de elevado capital cultural não são apenas inúteis para a vida real, das pessoas comuns, mas também perigosas. Esta perspectiva é menos central, mas não está ausente nos outros casos. Em alguns deles, são as liberdades individuais que estão ameaçadas – a liberdade de fumar em locais públicos, a liberdade de usar veículos poluentes. Em outros, é simplesmente o direito à expressão da divergência, que o establishment intelectual estaria cerceando, como no caso do criacionismo. Por fim, não é infrequente que sejam mobilizadas teorias conspiratórias amplas para explicar o porquê de se ter formado o consenso científico sobre uma ideia que seria falsa, como ocorre muitas vezes no terraplanismo (Olshansky, 2018).

A sensação de ameaça também foi mobilizada fortemente nas disputas relacionadas à pandemia global do novo coronavírus (Covid-19), declarada pela Organização Mundial da Saúde em março de 2020. As reações à crise sanitária foram variadas e houve mesmo governantes à esquerda que, no início, minimizaram sua gravidade e evitaram tomar as medidas necessárias de contenção, como o presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador. A recusa mais radical, porém, veio da extrema-direita, em especial dos presidentes dos Estados Unidos, Donald Trump, e do Brasil, Jair Bolsonaro, e de seus respectivos círculos de apoiadores. Talvez não por acaso, os dois países mais afetados pela pandemia.

Como de hábito no ambiente da pós-verdade, as informações promovidas por Trump e Bolsonaro eram diversas e por vezes contraditórias entre si, tendo em comum apenas o fato de desafiarem os consensos científicos que se estavam construindo acerca da nova doença. Por vezes, sua gravidade foi negada: “uma gripezinha”, disse Bolsonaro em pronunciamento oficial, em rede de rádio e televisão, em 24 de março de 2020. Com frequência, o isolamento social preconizado por epidemiologistas foi atacado como inútil ou pernicioso, por vezes a partir do enquadramento de que os efeitos na economia seriam devastadores – o risco de “morte de CNPJ”, nas palavras de um empresário que acompanhou Bolsonaro na visita surpresa ao Supremo Tribunal Federal, em 7 de maio de 2020, cujo objetivo foi exatamente pressionar contra a quarentena. Passeatas com esse objetivo ocorreram em muitas cidades tanto do Brasil quanto dos Estados Unidos, representando em si mesmas atos de desobediência civil contra as medidas sanitárias.

Sem qualquer base factual para tanto, a pandemia foi descrita como produto intencional, uma conspiração da China para debilitar o Ocidente. A insistência de Trump para denominar o patógeno como “vírus chinês”, acompanhada por “influenciadores” da extrema-direita pelo mundo afora, integrava esta estratégia. A conspiração teria como objetivo a hegemonia chinesa na economia mundial ou, de forma alternativa, a implantação do “comunismo”, já que as medidas de isolamento levavam à ampliação do controle estatal e redução das liberdades individuais. A Organização Mundial de Saúde, alvo de ameaças do governo estadunidense, depois imitadas pelo governo brasileiro, seria parte do complô.

A denúncia da conspiração seria presumivelmente fundada na competência própria dos líderes políticos para detectar tal tipo de trama. Bolsonaro e Trump, porém, não se eximiram de desafiar informações médicas com o “bom senso” do cidadão comum, pouco sofisticado mas eficiente e pragmático, tão central à construção de suas personas públicas. Assim, por exemplo, para Bolsonaro, o povo brasileiro teria uma imunidade especial, comprovada pelo pretenso fato de que, no país, as pessoas mergulham no esgoto e não adoecem (Uribe e Carvalho, 2020). Ao longo dos meses, Trump apresentou variadas propostas de tratamento, chegando a aventar a possibilidade de injetar desinfetante para “limpar” o organismo – embora depois tenha se retratado, dizendo que havia sido sarcástico (Noor, 2020). A autoridade de Trump e do Bolsonaro para palpitar em questões médicas não deriva, evidentemente, de qualquer conhecimento especializado, mas sim da posição de líderes políticos. Há, portanto, uma anulação do reconhecimento da autoridade dos saberes especializados, em favor de algo que, à falta de termo melhor, pode ser denominado como o carisma do chefe.

Um aspecto particular das disputas em relação à pandemia, bastante relevante para a discussão aqui travada, foi a polêmica sobre o uso da cloroquina (ou da hidroxicloroquina, sua fórmula mais leve) no tratamento do novo coronavírus. Conhecida há décadas e prescrita para o tratamento de malária, ela apareceu como esperança de cura a partir de resultados anunciados por um médico francês. Pesquisas posteriores logo apontaram para um resultado nulo da cloroquina no combate ao vírus, mas aí a defesa de seu uso já havia se tornado parte importante do discurso da extrema-direita. Se não era mais possível negar a gravidade da doença, era possível combater as medidas de isolamento social afirmando que havia cura garantida e ao alcance de todos. Trump e Bolsonaro fizeram reiteradas defesas públicas da cloroquina; o presidente brasileiro chegou a determinar que os laboratórios das forças armadas produzissem milhões de unidades da droga.

Uma charge que circulou amplamente nos perfis da direita nas redes sociais brasileiras ilustra bem o lugar da cloroquina nesse discurso (Figura 1, abaixo). A charge mostra duas personagens, cada uma em frente a um aparelho de televisão: um “patriota”, vestido com a camisa da seleção brasileira de futebol e empunhando a bandeira nacional, e um “esquerdista”, com roupa e bandeira vermelhas. O esquerdista usa máscara, o patriota não, sinalizando que a obediência às regras de isolamento social não é uma exigência sanitária, mas uma opção política. O elemento central, porém, é que a controvérsia sobre os benefícios da cloroquina é retirada do campo da disputa científica, a ser resolvida por evidências colhidas de acordo com os procedimentos aceitos como corretos, como experimentos controlados, e transformada em uma questão de torcida. Enquanto o patriota torce pela cloroquina, o esquerdista torce pelo vírus.


Figura 1
Charge difundida em perfis da direita brasileira nas redes sociais
Fonte: conta do Twitter “Cartunista Zappa”, 7 de abril de 2020 (twitter.com/Zappa_Humor/status/1247509521817317377/photo/1; acesso em 11 jun. 2020.

A charge resume aspectos centrais dos mecanismos próprios da “pós-verdade”. Não há uma questão de fato a ser enfrentada – uma doença real e a busca por um remédio cuja eficácia deve ser comprovada de forma empírica. Há apenas a escolha entre duas realidades possíveis, uma na qual o remédio está à mão e o problema, portanto, resolvido e outra na qual a crise sanitária não tem saída fácil à vista. É claro que só opta pela segunda realidade quem está contra o país. Juntam-se aí o anti-intelectualismo e a teoria conspiratória: os cientistas, que ao fim e ao cabo foram reduzidos à posição de torcedores como quaisquer outros, insistem em evocar sua falsa autoridade para favorecer o colapso da economia e o desgaste do governo.

Conclusão

O anti-intelectualismo é visto como um traço congênito do chamado “populismo de direita”. Seus líderes fazem questão de projetar a imagem de desprovidos de refinamento, broncos mesmo. Esse é um elemento central da identificação com os liderados. Mas a cruzada contra o capital cultural tem raízes no outro ramo da extrema-direita, o ultraliberalismo – apesar de suas pretensões científicas e da crença de que se apoiam numa visão realista, sem ilusões, do comportamento humano e do funcionamento da economia. Trata-se de inibir a atividade regulatória do Estado. Como observam Oreskes e Conway (2010, p. 237), o que a pesquisa científica aponta em questões como o uso de agrotóxicos, a chuva ácida, o fumo passivo, o buraco na camada de ozônio ou o aquecimento global – e a lista poderia ser ampliada, agora, com o combate à pandemia do novo coronavírus – são as falhas do funcionamento do mercado capitalista. A resolução de cada um desses problemas exige uma intervenção coordenada que não é possível alcançar pelo mercado. Aparentemente, negar a realidade destes fatos é mais fácil do que confrontar a conclusão que eles impõem.

O Estado, por sua vez, age como um grande intelectual coletivo: é nele “que a relação orgânica entre trabalho intelectual e dominação política, entre saber e poder, se realiza da forma mais acabada” (Poulantzas, 2013 [1978], p. 97). A legitimidade advinda da concentração de saberes e de informações é tão importante, para o Estado contemporâneo, quanto aquela que nasce da autorização popular. Ela confere aos dominantes dominados, detentores de capital cultural, um terreno privilegiado para a luta permanente que travam contra a fração dominante da classe dominante, os detentores do capital econômico.

Pierre Bourdieu e Nicos Poulantzas não são dois autores que tenham estabelecido diálogo entre si ou que costumem ser aproximados, mas há aqui uma convergência importante. Tal como Bourdieu, Poulantzas (1968, 2013 [1978]) via a dominação política como cindida internamente, uma cisão inscrita no próprio Estado. Assim, os grupos dominantes simultaneamente competem entre si e se esforçam por assegurar sua dominação comum sobre o restante da sociedade. Por vezes, as disputas internas àquilo que o cientista político franco-grego chamava de “bloco no poder” levam à formação de alianças de um setor dominante com um grupo dominado, o que só acrescenta complexidade ao processo.

Passando agora à hibridização com o pensamento bourdieuano, é possível pensar que os detentores do capital cultural tendem a ocupar o Estado – os donos do poder econômico, como regra, permanecem de fora do aparelho estatal, exceto por vezes assumindo os cargos diretamente ligados à gestão macroeconômica (ministério da Economia, Banco Central). Sua influência se dá por meio da dependência estrutural do Estado diante do investimento privado, descrita antes, e também das variadas formas pelas quais o dinheiro influencia a política, do financiamento de campanha e dos “anéis burocráticos” (Cardoso, 1974) ao lobby e à corrupção. Essa posição no Estado, aliada à sua própria condição de dominados dentro do grupo dominante, permitiu aos detentores do capital cultural estabelecer diversas alianças pontuais com grupos dominados. Afinal, é a burocracia estatal que encarna o discurso da neutralidade do Estado. Cabe a ela desenhar – com o apoio da rede de detentores de capital cultural, dentro e fora de seus aparelhos – e implementar as políticas de promoção do “bem comum” necessárias à legitimação de todo o sistema.

Nas últimas décadas, esta legitimidade parece em baixa – em grande medida pela pressão da própria burguesia, que, menos disposta a pagar o preço da pacificação social, impôs políticas de austeridade que trabalham sem disfarces contra os interesses das maiorias. A promoção dos valores da meritocracia e do empreendedorismo, próprios da razão de mundo neoliberal (Dardot e Laval, 2009), abre terreno para a deslegitimação da intervenção estatal.  A adoção de um discurso anti-intelectualista extremado retira da burocracia estatal outro naco de sua autoridade, enfraquecendo-a diretamente e também seus aliados, detentores de capital cultural, fora do aparelho de Estado.

Deslegitimação do capital cultural e desautonomização dos campos intelectuais convergem, assim, para a produção de um ambiente social em que o poder do capital econômico é cada vez menos desafiado. Se a pós-verdade transformou a atribuição de verdade discursiva num “livre mercado” aberto aos “empreendedores” mais ousados, cumpre lembrar que todo mercado responde à assimetria de recursos materiais. Os detentores do capital econômico partem, como sempre, com grande vantagem. São eles os que lucram tanto com a retração da democracia liberal, que retira poder das maiorias que só se expressam pelo voto, quanto com a perda de legitimidade dos saberes especializados e da burocracia profissional.

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Notas

2 Este artigo integra o projeto “O debate político no novo ambiente comunicacional: redes, polarização e pós-verdade”, apoiado pelo CNPq com uma bolsa de Produtividade em Pesquisa. Agradeço as críticas e sugestões de Regina Dalcastagnè e Gabriel Vitullo. Evidentemente, continuo único responsável por eventuais equívocos e lacunas.
3 Caso seja necessário endossar essa afirmação, basta lembrar do episódio da divulgação, por decisão judicial, em maio de 2020, do vídeo da reunião ministerial do governo Jair Bolsonaro ocorrida no mês anterior. A reunião foi marcada por grosserias, intenso uso de palavrões e ameaças contra adversários políticos. Mas na base de apoio do presidente, o vídeo foi considerado um grande triunfo (Ratier, 2020).
4 Nos seus cursos no Collège de France, Bourdieu apresentou uma discussão sobre a relação entre campos e subcampos que não me parece profícua, nem isenta de ambiguidades. Por um lado, ele afirma que “um subcampo não é parte de um campo”, já que apresenta uma lógica diversa – e exemplifica com o subcampo da crítica literária em relação ao campo literário (Bourdieu, 2016, p. 24). É de se perguntar, então, por que aparece o prefixo “sub”, em vez de se falar simplesmente de dois campos diversos. Mais adiante, ele define que “falar de subcampo é supor que o campo englobado é dominado pelo campo englobante” (Bourdieu, 2016, p. 167), mas é difícil compatibilizar tal afirmação com a anterior: como tal dominação se apresenta, se nem a lógica de funcionamento é a mesma? Não há possibilidade de estender a discussão aqui, mas creio que Bourdieu ficou prisioneiro de sua própria tendência a tratar os campos e subcampos como fenômenos concretos, em vez de como construtos analíticos ancorados nas práticas sociais concretas.
5 Uso o conceito de “Estado” no sentido corrente da teoria política, em particular das vertentes marxistas ou neomarxistas de autores como Offe, Poulantzas ou Jessop, não de acordo com o esboço de definição que o próprio Bourdieu apresentou em seus cursos no Collège de France. A ênfase exagerada que ali ele confere aos aspectos simbólicos deixa em segundo plano a materialidade do aparelho estatal e o leva a afirmações tão contundentes quanto difíceis de sustentar, tais como que o Estado não passa de uma “ilusão bem fundada”, que “existe essencialmente porque acreditamos que existe” (Bourdieu, 2012, p. 25).
6 Estou fazendo referência à longa linhagem de estudos que nasce dos trabalhos fundadores de autores como Solomon Asch, Leon Festinger, Peter Cathcart Wason, Daniel Kahneman e outros. Para um breve resumo, no contexto das discussões sobre pós-verdade, cf. McIntyre (2018, cap. 3).
7 Estudos sobre o comportamento online mostram uma realidade mais complexa (para um resumo, cf. Miguel, 2022). Ainda assim, a ideia de enclaves discursos capta um aspecto central do fenômeno.
8 Um terceiro exemplo mereceria ser acrescentado à lista, com destaque: a derrota do acordo de paz no plebiscito realizado na Colômbia em outubro de 2016. A campanha pelo “não” ao acordo estribou-se amplamente em argumentos não apenas falsos, mas absurdos (González, 2017). Como a Colômbia é um país periférico, porém, o caso não recebe, na literatura internacional, o destaque da eleição de Trump e da vitória do Brexit.
9 Há várias obras que contam a história da luta dos fabricantes de cigarros contra a avalanche de dados que comprovavam os malefícios de seu produto. Remeto aqui ao próprio Proctor (1995, 2011). Para uma narrativa mais ampla, que mostra como os mesmos estratagemas – e por vezes os mesmos cientistas – foram usados em várias campanhas de desinformação, da defesa do cigarro ao negacionismo climático, ver Michaels (2008) e Oreskes e Conway (2010).
10 A manutenção da “polêmica” científica também desempenha o relevante papel de proteger empresas, quando são processadas pelos danos que seus produtos causaram aos consumidores. Essa é uma preocupação central para muitos ramos, do cigarro aos agrotóxicos (cf. Oreskes e Conway, 2010).
11 A íntegra da carta foi publicada na internet por um pequeno jornal extremista, a Gazeta do Povo (2020).
12 Para Trump e Rajoy, ver Block (2019, pp. 46 e 48). Para Araújo, ver Amado (2019).
13 Um abordagem radical leva à falsificação de diplomas e outras distinções acadêmicas, inclusive entre políticos e altos burocratas. Pós-graduações não cursadas abrilhantaram os currículos de pelo menos dois ministros do governo Bolsonaro (Damares Alves e Ricardo Salles) e um governador eleito em 2018 (Wilson Witzel). Não se trata de fenômeno recente (talvez hoje seja mais fácil descobrir as falsificações, graças às novas tecnologias) ou restrito ao Brasil (por exemplo, em 2013, a ministra da Educação da Alemanha, Annette Schavan, teve que devolver seu diploma de doutorado, por plágio).
14 A questão do chamado “fumo passivo”, que levou ao segundo grande embate entre a indústria do cigarro e a saúde pública, já mostrou um perfil diferente.
15 Uma discussão já antiga, mas ainda pertinente, sobre os argumentos do design inteligente se encontra em Dawkins (1998 [1996]).
16 Esta curiosa apropriação da concepção marxista de “ideologia” (como falsa consciência atrelada à promoção de determinados interesses sociais) é mais frequente em português e espanhol. Em línguas como francês ou inglês, é mais corrente que os grupos conservadores falem em “teoria” de gênero. Para uma detalhada discussão da produção da noção de “ideologia de gênero”, ver Junqueira (2018).

Autor notes

* Luís Felipe Miguel. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (1997). Docente junto ao Departamento e ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade de Brasília. Pesquisa financiada pelo CNPq (Processo n° 303411/2021-0). E-mail: luisfelipemiguel@gmail.com.


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