Resumo: Neste artigo, enfocamos os impactos analíticos das formas de se nominar a monoparentalidade feminina em trabalhos que têm aderido à terminologia mãe solo, difundida nas redes sociais desde os anos 2010. A partir de uma revisão da produção bibliográfica, compreendendo o período de 2010 a 2019, argumentamos que a introdução da terminologia nos espaços acadêmicos parte das experiências de mulheres que estão nos lugares de produção do conhecimento, especialmente em graus iniciais de formação, e que deixam de tratar a categoria monoparentalidade exclusivamente como questão relativa ao “outro”, passando a abordá-la por meio da ótica de quem a vivencia. Sugerimos, a partir desta análise, a relevância em se problematizar a relação entre as terminologias acionadas pelas próprias pessoas para descreverem suas experiências parentais, as dimensões político-identitárias das tipologias de parentesco e as categorias analíticas mobilizadas nas pesquisas.
Palavras-chave: Família, gênero, mãe solo, monoparentalidade, terminologias.
Abstract: In this article, we focus on the analytical impacts of the ways of naming female single parenthood in works that have adhered to the terminology solo mother, widespread on social networks since the 2010s. Based on literature review, covering the period from 2010 to 2019, we argue that the introduction of terminology in academic spaces is based on the experiences of women who are in the places of production of knowledge, especially in initial degrees of training, and who stopped addresing the category single parenting category exclusively as a question related to the “other”, starting to approach it through the perspective of those who experience it. Based on this analysis, we suggest the relevance of problematizing the relationship between the terminologies used by the people themselves to describe their parental experiences, the political-identity dimensions of kinship typologies and the analytical categories mobilized in the research.
Keywords: Family, gender, solo mom, single parenthood, terminologies.
ARTIGOS
Categorias Empíricas e Analíticas: Mães-Solo e Monoparentalidade Feminina
Empirical and Analytical Categories: Solo Mothers and Female Single Parenthood
Recepção: 22 Junho 2022
Revised document received: 19 Outubro 2022
Aprovação: 20 Dezembro 2022
Pra começar, falar mãe solteira é uma coisa bem feia e bem ruim. Mãe não se define pelo estado civil. Então, a primeira proposta que faço a você é: não fale mais ‘mãe solteira’, fale ‘mãe solo’. Vamos fazer com que no mecanismo de pesquisa do Google apareça ‘mãe solo’, e não ‘mãe solteira’. [...] Se o pai não está dividindo a criação igualitariamente, 50/50, sim ela é considerada ‘mãe solo’. Uma coisa muito importante de se dizer é que uma ‘mãe solo’, com exceção da produção independente (quando eu digo produção independente, gente, é quando a mulher foi lá e fez inseminação e realmente desde o início ela quis ser ‘mãe solo’) tirando essa exceção da produção independente, nenhuma mãe escolhe ser ‘mãe solo’. Por quê? Porque ninguém escolhe passar por um processo de vida tão difícil. [...]
(MÃES..., 2016).O trecho acima demonstra algumas questões centrais às discursividades sobre maternidades presentes na web, perpassadas por perspectivas feministas e cujas expoentes se autodenominam “mães solo”3. Problematizando criticamente a mono-parentalidade feminina, colocam em discussão a relação entre parentalidade e conjugalidade e as desigualdades de gênero presentes nas relações parentais de cuidado e responsabilização pelas crianças.
Neste artigo, a partir de uma revisão bibliográfica, compreendendo o período de 2010 a 2019, argumentamos que esta produção tem adentrado a academia por meio, especialmente, de pesquisadoras mais jovens que ora aderem à terminologia “mãe solo” como autodescritiva da própria experiência, ora a acionam não apenas como uma expressão politicamente mais correta, mas que traz também problematizações importantes para os debates acadêmicos sobre configurações familiares monoparentais, como a predominância da monoparentalidade feminina e as desigualdades de gênero presentes nas relações parentais.
A partir da pesquisa que a primeira autora conduziu sobre “maternidade solo” e da qual a segunda autora participou como bolsista de iniciação científica sobre as discursividades em torno da “maternidade solo”, passou a nos chamar a atenção o uso difundido da expressão “mãe solo” não apenas em publicações acadêmicas como também sua circulação em outros ambientes da universidade, como grupos de pesquisa e atividades de extensão. Proferida, em geral, por pesquisadoras em graus iniciais de formação acadêmica e visto com certa reserva pelas mais experientes, tínhamos a sensação de que a terminologia parecia estar adentrando as discussões acadêmicas por meio da experiência de pesquisadoras que se autoidentificavam como “mães solo” e acompanhavam na web as discussões feministas sobre o tema. Mais do que simples confusão entre conceitos êmicos e analíticos, nossa hipótese era de que haveria nestes trabalhos uma perspectiva crítica em relação ao campo de pesquisa sobre família e parentesco. Icônico desta postura, foi o posicionamento de outra bolsista de iniciação científica, Thaís Teles Rocha, que participou ativamente desta pesquisa, ao propor que usássemos monomarentalidade; afinal, o bem estabelecido termo acadêmico monoparentalidade estaria longe de dar conta do fato de que a experiência monoparental é sobretudo feminina e socialmente marcada por enormes desigualdades de gênero4.
Ainda que a questão esteja presente em grande parte da produção acadêmica que, ao abordar a monoparentalidade, tende a recorrer aos resultados da própria pesquisa tanto quanto aos dados censitários para ressaltar a predominância feminina nesses arranjos familiares e trace ricas discussões sobre questões de gênero (BILAC, 2003; FONSECA, 2004; SCOTT, 2011; WOORTMANN; WOORTMANN, 2004), argumentamos sobre a importância de se analisar a relação entre as terminologias acionadas pelas próprias pessoas para descreverem suas experiências parentais, as dimensões político-identitárias das tipologias de parentesco e as categorias analíticas mobilizadas nas pesquisas.
Uma primeira questão relevante sobre o contexto de debate da “maternidade solo” é que a propagação da terminologia tem na internet seu principal espaço. Duas das mais importantes produções desse campo, na década de 2010, são as tirinhas da designer Thaiz Leão, que cria em 2014 o Projeto “Mãe solo”, presente em redes sociais e, posteriormente, em livros, e os vídeos do canal de Youtube “Hel”, da atriz, roteirista, e podcaster Helen Ramos, ambos altamente influentes se considerarmos a repercussão desses trabalhos, levando-se em conta, por exemplo, o número de pessoas que acompanhavam suas publicações (inferida via números de seguidoras, inscritas no canal ou visualizações, a depender do veículo) e também a ressonância de suas produções em mídias tradicionais, como jornais, revistas e canais de televisão. Consideramos esses perfis significativos para a argumentação que aqui apresentamos, não só pela importante repercussão que tiveram nos anos 2010, mas também pela influência sobre trabalhos acadêmicos publicados no mesmo período5.
A proposição da expressão “mãe solo” nas redes sociais relaciona-se, a princípio, a uma crítica às formas de se nominar a experiência monoparental feminina, especialmente no que diz respeito à estigmatização que recai sobre a terminologia “mãe solteira”. As problematizações que a acompanham nas produções veiculadas nas redes sociais colocam em jogo noções normativas de família, que supõem o exercício da parentalidade dentro de contextos conjugais, a divisão de gênero em relação aos cuidados de crianças, a normatização do comportamento sexual feminino e as distintas expectativas sociais em relação à maternidade e à paternidade. Vão ainda além, ao propor uma reivindicação pela constituição de redes de apoio, levantando uma problematização sobre as dimensões jurídicas e burocráticas dos direitos parentais. Boa parte das discussões apresentadas nesta produção sobre “maternidade solo” é também perpassada pela crítica à “romantização da maternidade”. Longe de ser uma experiência monolítica, considera-se, desta perspectiva, que a “maternidade real” é marcada por uma miríade de experiências em que as relações desiguais de gênero estão muito presentes6.
Se nas primeiras décadas do século XXI, o campo discursivo dos feminismos (ALVAREZ, 2014) não pode ser pensado em separado da web (FERREIRA, 2015), a questão da maternidade aparece como nicho particular desse debate, em que feminismos e maternidades voltam a se interseccionar pela crítica à medicina como lócus central de saberes sobre a maternidade (em seus vários aspectos, do processo reprodutivo à criação de filhos). Assim, a problematização da maternidade na web, a partir de uma reivindicação identitária feminista, tem como um de seus tópicos primeiros o debate em torno do parto humanizado (PULHEZ, 2015), embora junto a ele venha, também, toda uma discussão sobre formas de criação de filhos(as), sobrecarga de trabalho e direitos de modo ampliado (MEDRADO; MULLER, 2018).
Os espaços de encontros virtuais inscritos neste contexto de autocomunicação de massa (CASTELLS, 2013), na qual os sujeitos são, a um só tempo, receptores e emissores, são marcados por reuniões em torno de interesses comuns e pela busca por reconhecimento e comunicação. O cenário das redes sociais é central para localizarmos as discursividades em torno da “maternidade solo”, que se posicionam a partir de um ideário feminista, constituindo o que Alvarez (2014) tem denominado como campos discursivos de ação, que estariam menos ligados aos movimentos feministas tradicionais do que ao fluxo horizontal de discursos e práticas feministas plurais.
Acionamos, assim, o termo feminista para descrever esse campo discursivo, que compreende tanto as produções de Thaiz Leão e Hellen Ramos nas redes sociais quanto as pesquisas acadêmicas sobre “maternidade solo”. Feminismo aparece, aqui, mais como uma categoria autodescritiva, mobilizada nas redes de modos por vezes concorrentes ou contraditórios por diferentes sujeitas, do que como um movimento específico com recortes precisos. Temos total consciência dos limites do acionamento genérico do rótulo feminista, mas consideramos fundamental apontar para o fato de que a terminologia “mãe solo” tem sido mobilizada por pessoas que se autoidentificam como feministas, ainda que não constituam um movimento homogêneo. Lembramos, nessa direção, que feminismo está longe de ser um conceito monolítico, havendo, ao contrário, uma diversidade de correntes e perspectivas, muitas das quais discordantes entre si. A influência dos feminismos nos estudos acadêmicos sobre maternidades resultaram, historicamente, em enquadramentos que são também bastante diversos, tais como a especificidade da maternidade entre mulheres negras nos Estados Unidos (COLLINS, 2019); o trabalho materno como uma prática (RUDDICK, 1992); a relação com a psicanálise (CHODOROW, 1978); a construção histórica da noção de instinto materno (BADINTER, 1985); ou mesmo a dupla apreensão da maternidade como fonte, a um só tempo, de opressão e poder (RICH, 1976).
Na virada do milênio, uma das dimensões que emerge com mais força em estudos sobre maternidade é a da agência, que vem à tona junto com um revigoramento de variados movimentos feministas, muitos dos quais com pautas específicas sobre maternidade. Sobre a dimensão da agência, Andrea O´Reilly (2016) sugere que se a noção de maternidade patriarcal caracteriza a criação de filhos como um ato privado e apolítico, a mobilização da noção de agência materna, feita pelos atuais estudos, tem colocado em primeiro plano a dimensão político-social do trabalho materno. Nessa direção, a autora propõe a categoria da “maternagem” (mothering) como expressão mais centrada no empoderamento, experiência e agência femininas, na medida em que melhor definiria a prática de cuidado, contrapondo-se à institucionalidade e determinação social e biológica da responsabilidade do cuidado às mulheres, engessada na categoria “maternidade” (motherhood). Tais dimensões são também mobilizadas no debate sobre “maternidade solo” que analisamos aqui.
Embora os termos analíticos sejam, frequentemente, vistos como não marcados e neutros, detentores dos “olhos de deus” que tudo representam sem serem representados (HARAWAY, 1995), eles próprios são corporificados e têm uma historicidade. Nessa direção, vale lembrar que a introdução do termo, hoje bem estabelecido academicamente, monoparentalidade é, segundo Nadine Lefaucheur e Claude Martin (1993), também marcado por uma dimensão política. Proposto por sociólogas feministas francesas, na década de 1970, tinha o objetivo de conceder o status de famílias verdadeiras a arranjos “chefiados por mulheres”, aproximando configurações que estariam em lados opostos do espectro da valoração moral, como “mães viúvas” e “mães solteiras”. Posterior a isso, as pesquisas sobre a questão foram tanto na direção de normalizar as experiências de monoparentalidade quanto de compreender seus efeitos nas condições de vida de famílias vulneráveis, a efetividade de políticas públicas ou os impactos relacionais desta configuração familiar.
No caso brasileiro, uma tipologia largamente acionada para descrever a experiência monoparental feminina tem sido “mulher chefe de família”, mais usada pela demografia e bastante problematizada, nas décadas de 1980 e 1990, nas pesquisas censitárias, que acabam por substituir “chefia” por “responsabilidade feminina”. A depender da pesquisa, contudo, nem sempre “chefia” é considerada a categoria mais apropriada, podendo ser substituída por outras terminologias, como, por exemplo, “unidade mãe-filho” (FONSECA, 2004). A tipologia “mãe solteira”, socialmente muito difundida, e na qual por muito tempo uma determinada experiência social foi reconhecida, não deixa, contudo, de continuar a ser extensamente acionada (SARTI, 1995; SCOTT, 2011).
Embora não seja nossa intenção nos determos na bibliografia que há anos tem se debruçado com grande competência sobre famílias monoparentais no Brasil, vale destacar, ainda, que boa parte desta produção tem por foco grupos de camadas mais populares, sujeitos mais circunscritos à heteronormatividade e arranjos nos quais a monoparentalidade raramente aparece como uma escolha ou objeto reflexivo por parte dos sujeitos pesquisados7.
Tomamos, desse modo, a categoria “mãe solo” como uma expressão autodescritiva tanto quanto como tema de um discurso social e como uma noção acionada com fins de mobilização política (BRAH, 2006). Muitos dos acionamentos da categoria, que veremos a seguir, são calcados na noção de experiência. Experiência esta que é tanto das próprias pesquisadoras que se identificam como “mães solo” como também das pessoas que estão sob foco analítico. Da nossa parte, ao empreendermos esta análise, consideramos, tal como propõe Joan Scott (1998), que a experiência deve ser historicizada tanto quanto as identidades que ela produz.
Se as categorias identitárias são históricas e contingentes (HALL, 2006), argumentamos que do mesmo modo devem ser consideradas as categorias analíticas. Sendo assim, compreender a dinâmica da mudança das terminologias acadêmicas e a influência mútua entre categorias autodescritivas de determinados grupos e as terminologias mobilizadas em um campo de conhecimento é um exercício relevante para a produção de saberes mais localizados (HARAWAY, 1995).
Nosso levantamento compreendeu a busca na plataforma Google Acadêmico no período entre 2010 e 2019, através das palavras-chave “mãe(s) solo”, “maternidade solo” e “paternidade solo”. A escolha pela plataforma deveu-se ao fato de que as expressões em foco não se constituem como indexadores usuais de artigos acadêmicos, de modo que a busca em plataformas de revistas científicas ou bases de teses não retornava nenhum resultado direto8.
A pesquisa no Google Acadêmico retornou 258 resultados, dentre eles artigos, relatórios, trabalhos de conclusão de curso (doravante TCC), dissertações de mestrado, teses de doutorado e livros literários ou acadêmicos9. Desse total, foram descartados 16 resultados que continham os termos “mãe” e “solo” próximos um do outro, mas não faziam referência à experiência monoparental. Uma tese (VITORELLO, 2013) foi acrescida ao levantamento10, totalizando 259 resultados.
Sobre o perfil das pessoas autoras dos trabalhos, destaca-se que são, em sua maioria, mulheres, muitas das quais se identificam nos agradecimentos ou no corpo do texto como mães. A maior porcentagem concentra-se em dissertações, embora haja também um volume importante de trabalhos de graduação e uma menor proporção distribuída entre teses e artigos de professoras/es doutoras/es, havendo ainda um pequeno número de trabalhos não acadêmicos. A área predominante é a das Ciências Sociais, embora tenham sido levantados também um número considerável de trabalhos distribuídos entre as áreas de Educação, Comunicação Social e Letras e, por fim, uma pequena proporção em outras disciplinas, inclusive dos campos das Exatas e Biológicas.
A distribuição do material entre os anos selecionados revela o processo de inserção e dispersão do termo nas produções acadêmicas. O número de resultados é inicialmente pequeno, com apenas um entre 2010 e 2014, se tornando mais robusto nos anos subsequentes, com cento e dezesseis trabalhos encontrados entre 2015 e 2018. O ano de 2019 apresenta o maior volume de material levantado, com cento e vinte e seis resultados. Em todo o período de referência, vinte resultados trazem os termos “solo” e “solteira” sem distinção. .Há, contudo, um aumento gradativo no número de trabalhos em que são feitas problematizações acerca das terminologias, especialmente a partir de 2017, com quarenta e um resultados em que há alguma contextualização em torno da categoria “mãe solo” Em relação às temáticas mais abordadas, foram encontrados vinte trabalhos que traziam discussões relacionadas à temática racial e dezoito em que o termo é utilizado como exemplo da diversidade de arranjos familiares existentes e que vêm se tornando mais comuns nos últimos tempos A busca pela expressão “paternidade solo” apresentou apenas um resultado (CARVALHO, 2019).
Na sequência, abordamos mais detidamente o conteúdo levantado. Optamos por organizar nossa exposição não em termos temporais, mas dividindo em duas grandes seções. Nos debruçamos, em primeiro lugar, sobre trabalhos que acionam a expressão “mãe solo” sem necessariamente levar adiante uma discussão sobre a terminologia. São trabalhos bastante diversos, que mobilizam a expressão como categoria nativa ou para descrever a experiência das próprias pesquisadoras, apresentando, em alguns casos, o uso cambiante entre “solo” e “solteira”. Na seção seguinte, analisamos trabalhos que acionam mais diretamente o debate feminista sobre “maternidade solo”, trazendo problematizações sobre modelos de família e sobre a relação entre categorias nativas e analíticas.
Muitos dos trabalhos analisados, especialmente nos primeiros anos de levantamento, mencionam a expressão “mãe solo”, mas não desenvolvem reflexões a respeito de seus sentidos ou apenas apresentam curtas definições, vinculando, por vezes, a condição à ausência paterna e sem vinculá-la ao estado civil. Na dissertação de Hebert de Souza (2016), por exemplo, a terminologia é utilizada em referência a algumas interlocutoras de pesquisa e definida a partir do texto de outra autora como um termo para designar mulheres que criam os filhos sozinhas ou sem a presença do pai. Essa definição é a mais usual, e aparece com pequenas variações em outros trabalhos, podendo ser definida como “uma condição imposta às mulheres quando existe o abandono do pai dos seus filhos (à família) ou a negação da paternidade.” (LUZ, 2019, p. 14) ou como uma nova forma para “definir milhares de mulheres que criam seus filhos sem a ajuda do pai” (CAIM, 2019, p. 12). Outros trabalhos, no entanto, vão na contramão desse movimento de romper a díade maternidade/estado civil ao descrever a “mãe solo” como “uma mãe que não é casada e é a principal responsável pela criação de seu filho” (MELLO, 2017, p. 17).
Alguns dos trabalhos mencionam concomitantemente os termos “solteira” e “solo”, o primeiro vindo à tona nas falas de mulheres entrevistadas e o segundo, utilizado pelas autoras em referência a suas interlocutoras, não apresentando necessariamente problematizações sobre a dupla terminologia (SILVA, 2018). Em outros, como no artigo de Carlos Ramos e Wellen Peixoto (2018), o uso da expressão “mãe solteira” por parte das interlocutoras é problematizado pelos autores, que ponderam que a terminologia reforça um modelo ideal de família e implica em uma dependência da mulher em relação ao homem. Sugerem, então, “mãe solo” como uma opção mais adequada para evitar os preconceitos relacionados ao estado civil. Em alguns casos, o intercâmbio de termos aparece nas falas das próprias entrevistadas, como na dissertação de Kelly Lima (2018), em que uma de suas interlocutoras utiliza a expressão “mãe solteira” como autodescritiva e se corrige, em seguida, dizendo que o correto seria “mãe solo”. A oscilação entre as terminologias por parte das interlocutoras de pesquisa demonstra quão recente é sua introdução e os próprios processos de aproximação dessas mulheres em relação às problematizações e reivindicações políticas referentes a seu uso.
A categoria “mãe solteira” é também ressignificada em alguns trabalhos, como na dissertação de Talita Carvalho (2019) que apresenta uma interpretação menos usual de seu acionamento como categoria nativa. A partir de um caso icônico no debate público sobre aborto no país, o pedido na justiça de Rebeca Mendes para realizar um aborto com a assistência do Estado sem ser criminalizada, a autora analisa sequências discursivas, publicadas nas mídias, sobre o caso. A expressão “mãe solteira” aparece em entrevistas dadas por Rebeca Mendes, bem como em comentários de leitores. De acordo com a autora, a expressão é usada pela personagem no sentido do empoderamento, afastando mais do que aproximando maternidade e casamento, havendo, segundo ela, uma reivindicação entre “mãe solteira” e “um tipo de super-mãe, aquela que mesmo sozinha, sem o pai, ou fora do casamento, assume integralmente o cuidado com os filhos” (CARVALHO, 2019, p. 55). Nesse caso, ainda que a terminologia “mãe solo” não tenha sido acionada, a mobilização da expressão “mãe solteira” não necessariamente assume um caráter estigmatizante, mas revela processos outros de questionamento e problematização em relação aos significados da terminologia, presentes também nas discussões sobre “maternidade solo”.
A oscilação entre as terminologias ocorre em outros casos por parte das próprias autoras, que ora recorrem à “mãe solo” ora à “mãe solteira” para descreverem a experiência monoparental feminina. Na maioria dos casos, no entanto, não há qualquer tipo de discussão ou problematização acerca das terminologias e essa ausência de discussões aprofundadas não é uma questão restrita a um tipo específico de publicação, aparecendo em TCCs, dissertações e teses.
Uma dimensão historicamente importante em trabalhos sobre monoparentalidade é a circunscrição de classe (WOORTMANN; WOORTMANN, 2004). Em nosso levantamento, a expressão “mãe solo” é acionada, em alguns casos, para compor um perfil geral de determinadas populações consideradas vulneráveis, havendo ainda uma recorrência do acionamento da expressão “maternidade solo” em trabalhos com temáticas raciais, especialmente relacionada à vivência de mulheres negras. Vanessa Saraiva (2018) aponta que a maioria das crianças e adolescentes negros e pardos são oriundos de famílias pobres, chefiadas por “mães solo”. Na dissertação de Kelly Lima (2018), focada nas vivências de gravidez e parto de mulheres negras e na discriminação racial nos serviços de saúde, a autora relaciona as experiências de suas interlocutoras com a questão racial, destacando como as mulheres negras se encontram com mais frequência no papel de únicas cuidadoras dos filhos. A partir das narrativas de suas entrevistadas, aborda os múltiplos questionamentos que essas mães receberam nos serviços de saúde sobre a paternidade de seus filhos, traçando uma relação com um estereótipo negativo associado ao comportamento sexual de mulheres negras de baixa renda.
Um número considerável de trabalhos faz referências à vereadora Marielle Franco11 e à escritora Carolina Maria de Jesus12, acionando a terminologia de forma descritiva, juntamente com outras categorias como mulher, negra, pobre e “mãe solo”, de modo a delinear a figura de ambas enquanto mulheres marcadas por diversas opressões, por romperem com o ideal branco e masculino e por resistirem a ele (COSTA, 2019; SIRINO, 2019). A maioria desses resultados não apresenta qualquer tipo de discussão ou definição da terminologia, e em alguns deles os termos “solo” e “solteira” são utilizados sem distinção.
Na tese de Jussara dos Santos (2018), no artigo de Miriam dos Santos (2019) e no TCC de Mariana de Oliveira (2019), a categoria é mobilizada no debate sobre a solidão afetiva das mulheres negras, em que a raça interfere diretamente em suas relações afetivas. Nesse sentido, as autoras afirmam que a “maternidade solo” se torna uma realidade corriqueira na vida de mulheres negras. O artigo de Raíssa dos Santos e Edna Rossetto (2018) aciona o termo em uma discussão sobre como meninas negras internalizam na infância o arranjo monoparental como único possível para si, enquanto meninas brancas trazem como referência a família nuclear. Nesse contexto, denominam essa “mãe sozinha” presente no ideário de suas interlocutoras como “mãe solo”, “a antiga ‘mãe solteira’” (SANTOS; ROSSETTO, 2018, p. 163, grifo nosso).
A mobilização dos termos “solo” e “solteira” é bastante recorrente como categorias autodescritivas, seja na produção de mulheres que são mães e enfatizam o fato em sua escrita ou na fala de interlocutoras de pesquisa que se autodenominam “mães solo”. Os termos podem aparecer nos agradecimentos de TCCs, dissertações e teses. Nessa modalidade de acionamento, a autorreferência é usualmente seguida de relatos sobre as dificuldades em conciliar a maternidade aos estudos, como é o caso do TCC de Kelly da Silva (2019), que traz o termo nos agradecimentos junto a um relato sobre sua trajetória de se tornar “mãe solo” durante a graduação, tendo que abandonar temporariamente a universidade por não conseguir conciliar a maternidade e os estudos. Aqui, como em grande parte dos casos em que a experiência da pesquisadora é acionada, há um relato similar de negligência institucional das universidades, que causam inúmeras dificuldades às mães, levando muitas delas ao trancamento da faculdade.
Essas produções estão situadas num cenário historicamente importante para a universidade, com a consolidação das políticas de ações afirmativas, que tensionam as políticas epistemológicas, trazendo uma série de debates sobre raça, gênero, deficiência, maternidade, menos circunscritos a sua dimensão teórica, mas tomados também como parte entranhada à política cotidiana do ambiente acadêmico e tensionando epistemologicamente campos específicos de conhecimento.
Nessa direção, vale nos voltarmos para outros contextos para refletir sobre os entrelaçamentos entre categorias nativas e analíticas a partir da experiência das próprias pesquisadoras. Um caso exemplar diz respeito ao termo cisgênero. Pouco aceito nos meios de estudos de gênero até pouco tempo atrás, o termo “cisgender” começou a ser usado pelos movimentos trans internacionais a partir da década de 1990 para designar pessoas que não seriam trans, isto é, que se identificam com o gênero que lhes foi designado desde o nascimento. Adentra a academia, com muitas resistências, apenas nos anos 2000. Céu Cavalcanti e Vanessa Sander (2019), acadêmicas que se autoidentificam respectivamente como trans e como cisgênero, trazem uma instigante reflexão sobre os mecanismos de saber-poder que mantiveram e mantêm as pessoas trans fora dos espaços de produção do conhecimento, localizadas como o “outro” de quem se fala e se produz verdades. Nesse sentido, apontam como a reivindicação do termo “cisgeneridade” pode ser um artefato teórico-político que atua de forma a contestar a noção da comunidade trans como “objeto de pesquisa”, fortalecendo a produção de um conhecimento crítico e desestabilizando a naturalização da experiência cis.
No caso da terminologia “mãe solo”, sua proposição e as problematizações que a acompanham não se originam na academia, mas passam a adentrá-la de forma ramificada, seja através da entrada de mulheres que são “mães solo” nos espaços de produção acadêmica, das intercomunicações entre academia, movimentos sociais e mídias digitais ou da inclusão de tais discussões nesses espaços através de disciplinas, trabalhos e pesquisas. A reivindicação da categoria “maternidade solo” revela, portanto, o processo de dispersão da terminologia, que surge como categoria de mobilização política, passando a ser um objeto do discurso social, e aparecendo, agora, como uma categoria nativa que tensiona os limites das categorizações acadêmicas.
Se em muitos trabalhos as terminologias “mãe solo” ou “maternidade solo” são acionadas sem maiores reflexões sobre as implicações analíticas (e políticas) das escolhas terminológicas, em outros, essas dimensões são levantadas e o debate feminista sobre “maternidade solo” da web pode ser mobilizado também como uma espécie de referencial teórico.
O primeiro trabalho de nosso levantamento a problematizar criticamente as terminologias referentes à experiência monoparental é a tese de Márcia Vitorello (2013) que aborda as representações da maternidade em configurações monoparentais femininas com filhos menores de dezesseis anos. Realizada num período temporal em que o debate na web sobre “maternidade solo” era ainda incipiente e baseado numa pesquisa que não tinha por campo as interações virtuais, a autora menciona as discussões iniciadas em blogs sobre maternidade como um referencial importante para refletir criticamente sobre as relações entre conjugalidade e parentalidade. Um dos pontos destacados na pesquisa é a mudança na perspectiva sobre a monoparentalidade feminina apresentada pelas autoras desses blogs que, a despeito de problematizarem as agruras e os preconceitos sofridos em suas experiências maternas, abordam também os aspectos positivos dessa “maternidade solitária”. Esse é um dos primeiros trabalhos levantados que, efetivamente, tece uma reflexão sobre tipologias usadas para descrever suas interlocutoras pensando em seus efeitos analíticos. Lembrando o estigma que recai sobre a designação “mãe solteira”, a autora volta-se aos blogs que, a despeito de acionarem a terminologia “solteira”, problematizam essa condição e recorrem ao termo “sozinhas” para descreverem suas experiências de vida. A expressão “maternidade sozinha” é, assim, acionada pela autora tanto como conceito analítico que a leva a problematizar criticamente a produção acadêmica sobre monoparentalidade como também como categoria identitária acionada por algumas de suas interlocutoras. Vitorello (2013, p. 86) aponta para uma diminuição do estigma da monoparentalidade feminina, que ganha alguma legitimidade social, proteção do Estado e, nas palavras dela, começa a aparecer como uma “configuração familiar possível”.
Ao longo dos anos, com a consolidação do ciberespaço como um campo de pesquisa legítimo para as mais diversas áreas do conhecimento, foi também frequente em nosso levantamento trabalhos que tinham por foco específico o ativismo digital materno, como são os casos dos artigos de Flávia Melo (2018), referente à pesquisa de doutorado, no qual aborda a temática das masculinidades, o de Raquel Schneider (2018), centrado em analisar a “desromantização da maternidade” a partir do canal “Hel”, de Helen Ramos e o de Andrea Medrado e Ana Paula Muller (2018) que analisa a plataforma de ativismo materno “cientista que virou mãe”. A dissertação de Jéssica Lauxen (2018), com enfoque em um programa televisivo sobre depressão pós-parto, aciona a terminologia “mãe solo” para descrever mulheres que são o foco das representações midiáticas e traz problematizações sobre o ideário hegemônico de família, que excluiria arranjos considerados desviantes, como as famílias monoparentais e homoafetivas. Em todos esses casos, no entanto, apesar de as autoras remeterem-se ao debate feminista sobre maternidade da web, não aprofundam a problematização sobre os usos da terminologia “mãe solo”, enquanto categoria analítica ou nativa.
O paper de Silva, Cassiano e Cordeiro (2019) é particularmente interessante para nossos objetivos, uma vez que toma como foco da pesquisa a própria proposição da categorização “mãe solo” a partir das redes sociais. Investigando a hashtag13 “maesolo”, os autores problematizam a relação entre a popularização das discussões nas redes sociais sobre maternidade, a partir da expressão “mãe solo”, e preceitos feministas relativos a uma luta pela equidade de gênero nas relações parentais. O artigo toma, a um só tempo, “mãe solo” como categoria empírica presente em seu campo, como também adere ao termo para categorizar uma determinada experiência de maternidade em que a responsabilização pelos filhos recai unicamente sobre a mulher. Para os autores, a discussão sobre “maternidade solo” parte das mulheres que vivenciam essa experiência e passam a constituir uma espécie de movimento social pautado por princípios de empoderamento feminino e sororidade.
A influência das discursividades feministas sobre “maternidade solo” são também notáveis em trabalhos que não se debruçam diretamente sobre a questão, mas que, ainda assim, acionam as definições presentes neste debate como fontes importantes para suas próprias definições terminológicas. A tese de Nidilaine Dias (2018) apresenta a terminologia em referência às mães dos bebês diagnosticados com microcefalia após a epidemia de Zika do Brasil. Acionando o canal de Youtube “Hel” como referencial teórico, a autora aponta a dimensão política da criação do termo que desvincula maternidade e estado civil.
O fato de as produções sobre “maternidade solo” da web serem alçadas a referenciais teóricos é bastante sintomático do alcance que essas problematizações passam a ter e como as categorizações propostas por nossas sujeitas de pesquisa, associados ou não a movimentos sociais, podem tensionar conceitos acadêmicos. Na dissertação de Regiany Freitas (2018), que analisa um projeto de jornalismo voltando às questões de mulheres da periferia paulistana, as tirinhas de Thaiz Leão são acionadas como ilustrativas do universo semântico de um dos discursos sob análise. É a partir das problematizações das tirinhas reproduzidas que a autora discute os sentidos sociais de uma maternidade classificada socialmente como “boa” ou “ruim” e que legitimariam determinadas condutas sociais que atribuem unicamente à mãe a responsabilização por uma criança, eximindo tanto uma perspectiva mais coletiva de corresponsabilização social como também o próprio pai.
Outros trabalhos, ainda que não façam uso direto das produções feministas sobre “maternidade solo” como referenciais teóricos, sugerem a associação entre a expressão e sua problematização com os movimentos feministas, como é o caso do artigo das mestrandas Raquel Alves e Yazmin Safatle (2019) sobre maternidade no contexto de diagnóstico da microcefalia, e a tese de Laura Machado (2019), que aborda padrões de mobilidade e argumenta pela substituição do termo “solteira” por “solo”, pelo último desvincular a maternidade da situação de conjugalidade e destacar a dimensão da concentração das tarefas de cuidado.
Para além de uma forma de nominação de uma determinada experiência social, categorias analíticas possibilitam analisar um conjunto de fenômenos em referência a um corpus teórico específico. Entre os trabalhos que levantamos, o que parece levar mais a fundo essa dimensão é o TCC em Arquitetura de Priscila Accordi (2018) que traz conceitos e problematizações sobre “maternidade solo” em estreito diálogo com os vídeos do canal de youtube “Hel” e com as tirinhas de Thaiz Leão. Acionadas de modo muito similar ao que usualmente fazemos com bibliografias acadêmicas, essas produções fornecem o arcabouço teórico para seu projeto de arquitetura, focado no acolhimento e na relação entre mães e crianças. A autora parte da problematização do uso da expressão “mãe solteira”, destacando o caráter moralmente negativo que carrega e propondo “mãe solo” como categoria mais adequada. Entre as propostas presentes nas produções de Helen Ramos e Thaiz Leão, duas delas aparecem aqui com destaque, quais sejam, a defesa de que as desigualdades de gênero nas divisões de tarefas parentais vão além da relação de conjugalidade entre os pais da criança e a noção de que a responsabilização de crianças deveria extrapolar o âmbito familiar, tendo um caráter mais social e coletivo. Nesta direção, Accordi (2018) não apenas substitui “mãe solteira” ou “monoparentalidade feminina” por “mãe solo”, mas compartilha com as perspectivas feministas sobre “maternidade solo” a noção de que mulheres casadas também podem ser “mães solo” se a divisão de tarefas relacionadas ao cuidado de filhos não for feita de forma igualitária. O trabalho problematiza ainda a responsabilização de crianças como algo que pode ir além das figuras materna/paterna e propõe um projeto arquitetônico baseado numa construção que conjuga ambientes de trabalho, cuidado de crianças e residência. A parte residencial, direcionada sobretudo a mulheres que se enquadrassem na categoria “mães solo”, seria custeada pelo poder público. A autora volta-se assim para soluções arquitetônicas alternativas para dar conta da noção de responsabilização coletiva pelo cuidado de crianças, fazendo ainda um movimento que se coaduna às propostas da maternidade feminista ao propor as espacialidades públicas como mais acolhedoras à presença de crianças e questionando a responsabilização do Estado pela infância.
O uso da expressão “mãe solo” passa, ao longo dos anos, a centrar-se cada vez mais fortemente numa problematização sobre as relações parentais de um modo mais amplo, confrontando a noção hegemônica de família e pleiteando o reconhecimento de arranjos considerados dissidentes. Nesta direção, mesmo que não aprofundando a discussão terminológica que nos interessa aqui, vale salientar que a “maternidade solo” é apresentada em vários trabalhos como um exemplo da diversidade de arranjos familiares existentes, como no artigo de Alessandra Vieira e Lucy Ostetto (2018) ou enquanto um novo modelo familiar que vem ganhando espaço, como no TCC de Luísa de Lavor (2018), incluindo, em alguns casos, a sua mobilização juntamente aos arranjos homoafetivos (AREND, 2018; COSTA, 2018). Um dos pontos interessantes desta discussão é também a dimensão de classe, uma vez que os arranjos monoparentais que usualmente eram abordados em trabalhos acadêmicos a partir das camadas populares, passam a ser identificados também entre camadas médias e altas.
Na dissertação de Arlane Chaves (2019), vemos uma interessante reflexão sobre o peso cultural da expressão “mãe solteira”. A partir de entrevistas com mulheres menopausadas que desejavam ter filhos, a autora analisa histórias de vida nas quais as mulheres expressam o temor em exercerem a maternidade sem estarem casadas. Para a autora, a idealização de um modelo tradicional de família e a estigmatização social que recai sobre a “maternidade solteira” teriam incidido negativamente nos desejos dessas mulheres em gerar filhos em determinados momentos de suas vidas.
A dissertação de Pamela Canciani (2017), centrada em abordar a identidade lésbica como mecanismo de resistência e busca de direitos, volta-se à questão de gênero no âmbito familiar. Partindo da obra de Heleith Saffioti que põe em destaque a desigual-dade entre homens e mulheres na responsabilização pelos filhos, Canciani aborda a sobrecarga do trabalho doméstico destacando que esta realidade está mais presente entre “mães solteiras”, termo grafado entre aspas e mais bem explicado em nota de rodapé. Destacando que o termo é antigo e de cunho machista, a autora pondera que apesar de ser ainda socialmente bastante usado, ela defende que seu acionamento deve ser feito apenas com o fim de desconstruí-lo, respeitando os anseios do movimento feminista e substituindo, em outros momentos, apenas pelo termo mãe ou “mãe solo”. Vale ressaltar, a respeito desse trabalho, que é um dos poucos a abordar contextos monoparentais em que a mãe se autoclassifica como lésbica, ainda que não aprofunde a reflexão a respeito.
A dimensão da escolha e a diferenciação entre uma experiência involuntária de monoparentalidade e a monoparentalidade enquanto projeto também foi explorada em alguns dos trabalhos de nosso levantamento. A questão central para a maioria deles é diferenciar a produção independente (via fertilização in vitro ou inseminação artificial) e as situações em que as mulheres mesmo desejando, não podiam contar com uma divisão igualitária de responsabilidades no cuidado com as crianças (LACERDA, 2017; SANTOS, 2017). O artigo de Manuel da Silva Netto, Carlos Dantas, Carolina Ferraz (2018) foca-se na “família monoparental” e sua proteção constitucional para questionar sobre a formação intencional desses arranjos familiares por meio de reprodução assistida. Diferenciando a “monoparentalidade involuntária” e a “monoparentalidade desejada”, fruto das técnicas de reprodução assistida, adoção ou relação sexual em que a pessoa vivencia a parentalidade individualmente, identificam as “mães solo” na primeira categoria. Em nota de rodapé, defendem que o uso da terminologia “mãe solteira” é um artifício de violência simbólica contra as mulheres, que leva à estigmatização e à exclusão social e destacam que a mudança de paradigma na contemporaneidade seria, nas palavras deles, tributária do “Movimento de Mulheres”.
Ainda que não levando às últimas consequências as proposições postas no debate sobre “maternidade solo” da web, muitos dos trabalhos acionam a expressão “mãe solo” em referência a este debate e levantam problematizações analíticas que levam em conta senão todos, pelo menos alguns dos pontos propostos pelas “mães solo” da web, como o questionamento de um modelo de família, as persistentes desigualdades de gênero nas relações parentais e a dimensão do cuidado e da responsabilização de crianças como algo que deveria ser desprivatizado.
A revisão das produções que utilizam os termos “mãe(s) solo” e “maternidade solo” revela um acionamento tanto analítico quanto descritivo do termo, que em grande medida parte das experiências de mulheres mães inseridas nos espaços de produção de conhecimento e que busca se afastar do caráter moralmente negativo presente na terminologia “mãe solteira”. A mobilização dos termos visa, ainda, destacar a predominância da monoparentalidade feminina, lançando o olhar sobre as dimensões do cuidado e da parentalidade intrinsecamente relacionadas às questões de gênero, e refletindo na quase ausência de trabalhos em que são acionadas as expressões “paternidade solo” e “pai solo”.
A despeito da existência da monoparentalidade masculina e de pessoas que se autodenominem “pais solos” e discutam a paternidade neste contexto, avaliamos que o acionamento mais frequente da terminologia “mãe solo” evidencia a reivindicação de protagonismo por parte de mulheres mães que utilizam os espaços virtuais como plataforma de engajamento e publicização de suas demandas e problematizações, extrapolando os limites da internet e adentrando outros espaços. Nesse sentido, a reiteração da noção de que “maternidade não é estado civil”, defendida por figuras de destaque, nos anos 2010, como Helen Ramos e Thaiz Leão reverbera nas produções acadêmicas em que a relação entre parentalidade e conjugalidade passa a ser problematizada.
A noção de monoparentalidade enquanto novo modelo de família, juntamente aos arranjos homoparentais, reflete algumas similaridades entre eles, como a negativação histórica atribuída a ambos os modelos, tidos por muito tempo como desviantes e produtores de indivíduos desajustados, e a consequente reivindicação por parte dos sujeitos que compõem estes arranjos por legitimidade e pela positivação de suas vivências, tanto no âmbito social quanto no jurídico. A maior discursividade acerca desses arranjos revela, ainda, transformações sociais que perpassam a criação de medidas formais, como o reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas e o reconhecimento dos arranjos monoparentais como entidades familiares legítimas14. Adicionado a isso, sugerimos que a noção da monoparentalidade enquanto novo arranjo familiar reflete disputas atravessadas pela classe, na medida em que tal modelo coexiste historicamente com a família nuclear (CORREA, 1981), mas passa a ser visto como novo à medida em que é identificado entre camadas médias e altas. Nesse sentido, a proposição de que a monoparentalidade feminina ganha legitimidade social e passa a ocupar a posição de configuração familiar possível levantada por Vitorello (2013) nos parece mais adequada do que admiti-la enquanto um novo modelo.
Importante ressaltar, ainda, a forma com que as discussões acerca da “maternidade solo” se entrelaçam com a temática racial. Podemos refletir, por exemplo, sobre como a mobilização da categoria “maternidade solo” tem se dado, em grande medida, de forma a desassociar a monoparentalidade de um estigma social e moral, essencialmente atrelado à vulnerabilidade e ausência, mas sem ignorar as implicações de sua maior incidência entre mulheres negras, como a sobrecarga de trabalho feminino negro, a renda única para o sustento familiar e a divisão racial do trabalho (tanto em sua dimensão afetiva quanto econômica). Compreender a “maternidade solo” enquanto categoria que passa a se inserir nos discursos sociais e no campo acadêmico significa refletir, também, sobre as diferenças discursivas produzidas entre a monoparentalidade feminina em famílias negras e pobres e a monoparentalidade em famílias brancas de classes médias e altas, na medida em que, embora haja um processo de ressignificação do arranjo monoparental, que passa a ser visto como legítimo, vale refletir em que medida essa legitimidade tende a ser mais direcionada aos contextos de camadas médias e altas.
Há também uma questão delicada em relação aos usos possíveis do termo “mãe solo” em suas variadas dimensões analíticas e políticas. Se, por um lado, a problema-tização feminista sobre a “maternidade solo” à qual se remete propõe que a divisão igualitária de cuidados com os filhos é um elemento fundamental ao apontar a possibilidade de uma mulher se considerar como “mãe solo”, mesmo estando casada com o pai de sua criança, por outro, resta a questão sobre como lidar com uma categoria tão aberta e abrangente do ponto de vista demográfico e das políticas públicas. Por exemplo, na proposta de Accordi (2018) uma das justificativas para o financiamento público das residências para “mães solo” é o dado do IBGE sobre rendimento familiar mensal no estado de Santa Catarina em que as famílias de menor renda teriam a composição de “mulher sem cônjuge com filho”. A autora não avança na discussão, mas vale apontar que o uso da tipologia para uma problematização mais ampla em torno da responsabilização familiar e social em relação às crianças e as tipologias oficiais, baseadas em estado civil ou unidade doméstica, dificilmente vão convergir.
Histórica e contingente como outras categorias (BRAH, 2006), a proposição da expressão “mãe solo” tanto quanto seus acionamentos acadêmicos tensionam não só as formas de nominar parentalidades e arranjos domésticos, mas possibilitam refletir mais densamente sobre os processos de significação de experiências sociais e seus entrelaçamentos com proposições acadêmicas e políticas. Menos do que substituir a categoria monoparentalidade ou se tornar uma forma politicamente mais neutra ou correta para descrever uma determinada experiência, argumentamos que os acionamentos acadêmicos da terminologia podem ser muito produtivos para refletir sobre a miríade de experiências sociais postas sob a rubrica monoparentalidade e sobre as ressigni-ficações político-identitárias em torno de uma experiência historicamente estigmatizada. Por fim, mas não menos importante, ao colocar em xeque a relação sujeito/objeto na pesquisa e possibilitar um tensionamento entre termos acadêmicos e termos nativos, pode também trazer à luz a historicidade da produção do conhecimento.