ARTIGOS
As Oportunidades Políticas e a Influência do Conselho Estadual de Recursos Hídricos na Gestão do Rio Grande do Norte (2011-2021)
The Political Opportunities and Influence of the Water Resources State Council in Rio Grande do Norte Management (2011-2021)
As Oportunidades Políticas e a Influência do Conselho Estadual de Recursos Hídricos na Gestão do Rio Grande do Norte (2011-2021)
Mediações - Revista de Ciências Sociais, vol. 27, núm. 3, e46344, 2022
Universidade Estadual de Londrina
Recepção: 30 Junho 2022
Revised document received: 16 Novembro 2022
Aprovação: 20 Dezembro 2022
Resumo: O presente artigo trata da influência do Conselho Estadual dos Recursos Hídricos (CONERH) na gestão de recursos hídricos no Rio Grande do Norte (RN). Para compreender esse cenário, mobilizamos o conceito de estrutura de oportunidades políticas, relacionando-o com o Plano Estadual de Recursos Hídricos. Nosso objetivo é, assim, compreender o processo de recolocação da pauta da revisão do Plano na agenda governamental, a partir da participação institucional no CONERH. A metodologia utilizada é qualitativa: foram feitas entrevistas com 3 conselheiros. Além disso, realizamos análise documental em atas entre os anos de 2011 e 2021, visando identificar se houve oportunidades políticas, utilizando a análise de conteúdo enquanto técnica de análise. Ao final, identificamos que não houve uma relação direta entre o atual governo estadual e a atualização do Plano; entretanto, aferimos que, ao contrário da conjuntura federal, a gestão de recursos hídricos encontrou, no RN, com a mudança de governo, um ambiente político-institucional favorável à continuidade do debate em torno do Plano e da política estadual.
Palavras-chave: Participação institucional, conselhos, recursos hídricos, oportunidades políticas.
Abstract: This article deals with the influence of the State Council of Water Resources (CONERH) in the management of water resources in Rio Grande do Norte (RN). To understand this scenario, we mobilize the concept of political opportunity structure relating it to the State Water Resources Plan. Our objective is, thus, to understand the process of repositioning the agenda for the revision of the Plan on the governmental agenda from the institutional participation in CONERH. The methodology used is qualitative; we used interviews with three council members. Furthermore, we carried out a documental analysis of the minutes between the years 2011 and 2021, aiming to identify if there were political opportunities, using content analysis as an analysis technique. In the end, we identified that there was no direct relationship between the current state government and the update of the Plan, however, we assessed that, unlike the federal conjuncture, the management of water resources found, in RN, with the change of government, a political-institutional environment favorable to the continuity of the debate around the Plan and the state policy.
Keywords: Institutional participation, councils, water resources, political opportunities.
Introdução
Acompanhando o contexto internacional, o Brasil institucionalizou a gestão dos recursos hídricos em 8 de janeiro de 1997, a partir da promulgação da Lei nº 9.433/97, comumente conhecida como Lei das Águas. A partir desse marco, houve a criação da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRS) e da estrutura jurídico-administrativa do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamentando o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, declarando assim, sob a égide constitucional, os fundamentos de que a água é um bem de domínio público e a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas por se tratar de um recurso natural limitado.
Além de assegurar a todos o direito à água, a Lei das Águas prevê em suas prerrogativas que a gestão de recursos hídricos deva ser democrática, participativa e descentralizada, instituindo a bacia hidrográfica como unidade de planejamento e promovendo a criação de instâncias colegiadas de participação em todo território nacional, sendo elas, o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, os Conselhos de Recursos Hídricos dos Estados e do Distrito Federal e os Comitês de Bacia Hidrográfica. Todas essas esferas são compostas por membros do Poder Público e da sociedade civil.
Essas esferas participativas possuem um papel fundamental na aprovação de instrumentos de planejamento da gestão de recursos hídricos, sobretudo, os planos nacionais, estaduais e de bacia hidrográfica. Dessa forma, esses espaços buscam estabelecer diálogos e institucionalizar os debates entre o Poder Público e a sociedade civil, como também deliberar sobre as questões que atravessam a gestão das águas.
Aqui, o desenho institucional da política de gestão de recursos hídricos reflete a luta da sociedade civil em prol da participação nos processos decisórios. Assim, após o marco da criação dos espaços participativos, por volta dos anos 1990, a primeira década dos anos 2000 foi marcada pelo fortalecimento e aprimoramento das formas de discutir a gestão das águas.
Importa destacar que, embora em nível nacional a gestão de recursos hídricos só tenha sido institucionalizada no final da década de 1990, alguns estados foram vanguardistas na promoção do debate da gestão das águas, inclusive, incluindo a sociedade civil/usuários de água. Esse foi o caso do estado do Rio Grande do Norte, o qual instituiu em 1996 a Política Estadual de Recursos Hídricos e o Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CONERH), e, posteriormente, no ano de 1998, elaborou o Plano Estadual de Recursos Hídricos potiguar.
É nesse contexto que este estudo se insere, a partir do seguinte questio-namento: Como o Conselho Estadual de Recursos Hídricos do RN recolocou a pauta do Plano Estadual de Recursos Hídricos no debate? Optamos por direcionar o estudo para o plano, por se tratar de um instrumento de planejamento que requer a participação da sociedade civil e necessariamente deve passar pelo CONERH. Além disso, é também um mecanismo de materialização das discussões, isto é, uma política pública.
O tema torna-se relevante na medida em que estudos recentes, a exemplo de Marcondes (2022), apontam uma lacuna existente em trabalhos que relacionem a gestão de recursos hídricos e as políticas públicas. Por outro lado, embora seja crescente o número de artigos científicos que analisem a gestão democrática dos recursos hídricos, ainda há poucas relações com os instrumentos de planejamento. É neste sentido que esse estudo busca trazer contribuições, apresentando um panorama inicial da gestão de recursos hídricos potiguar, a partir do caso do CONERH e lançando luzes para possíveis agendas de pesquisa que surgiram a partir deste estudo inicial.
Além disso, cabe evidenciar que o cenário do RN apresenta uma atenção governamental aos recursos hídricos e de fortalecimento das instituições partici-pativas, como os conselhos, que vão na contramão da atual conjuntura em nível federal, no qual o governo Bolsonaro tem tomado medidas contra a política ambiental e contra a participação. Assim, considerando em nossa análise os conceitos de oportunidades políticas e mudanças de regime (TILLY, 2006), procuramos compreender como a eleição de Fátima Bezerra (PT), no ano de 2018, proporcionou um tecido político e administrativo à gestão de recursos hídricos, a ponto de as organizações encontrarem uma oportunidade de colocar a pauta do Plano Estadual de Recursos Hídricos, 20 anos após a sua elaboração, na cena política.
Nosso objetivo no artigo é compreender o processo de recolocação da pauta da revisão do Plano Estadual na agenda governamental, a partir da participação institucional no Conselho Estadual dos Recursos Hídricos (CONERH). A metodologia utilizada é qualitativa: por meio da análise documental de atas das 20 últimas reuniões do CONERH (2011-2021), procuramos compreender o lugar dessa demanda no Conselho. A análise documental das atas utilizou-se das seguintes variáveis de coleta de dados: a) número da ata; b) ano da ata; c) data da reunião; d) tipo de reunião (ordinária ou extraordinária); e) pautas da reunião; f) menções ao Plano Estadual de Recursos Hídricos; e g) atores presentes no debate. O intuito foi o de compreender, por meio dessas variáveis, os contextos de menções ao plano, os atores que o mencionaram, o período e como estes se posicionaram na ocasião. Somado a isso, utilizamos entrevistas em profundidade com 3 conselheiros, um representante do poder público e dois da sociedade civil.
Este estudo está estruturado em três seções, para além da introdução e das considerações finais. A primeira seção aborda o debate da participação social e sua relação com a gestão de recursos hídricos; a segunda seção refere-se à discussão de contextos e oportunidades políticas. A terceira seção trata do caso de revisão e atualização do Plano Estadual de Recursos Hídricos do RN. Nas considerações finais, fazemos um balanço da experiência, além de lançarmos questões que podem motivar possíveis agendas de pesquisa.
Gestão Do Recursos Hídricos No Brasil: Das Bacias Hidrográficas À Participação Social
Além dos Conselhos, Orçamentos Participativos (OPs) e Planos Diretores, podemos evidenciar a criação dos Comitês de Bacia Hidrográfica, que são instâncias colegiadas de participação compostas por representantes da sociedade civil e do Poder Público, as quais possuem caráter consultivo e deliberativo, com enfoque no debate e na defesa de uma Bacia Hidrográfica específica. Neste formato participativo, a discussão é direcionada para a unidade de planejamento da gestão de recursos hídricos, visando proteger aquele corpo d’água.
Soares, Theodoro e Jacobi (2008) apontam que, como medida de efetividade, é fundamental considerar a bacia hidrográfica como unidade de gestão, por “empoderar” as comunidades locais na formulação e implementação das políticas públicas, além de considerar como preceitos de boa governança das águas os aspectos relacionados à accountability, transparência, participação social, sustentabilidade e o envolvimento de diversos atores no processo decisório. Essa integração com outros setores pode se apresentar como uma alternativa para mitigar os problemas causados pela crise hídrica.
No cenário democratizante da década de 1990, o desenho institucional da Política Nacional de Recursos Hídricos ganhou contornos claros no que toca à previsão da participação social no processo decisório. Apesar disso, vale destacar que a Constituição Cidadã de 1988 já estabelecia mudanças nos arranjos governamentais no direito ambiental e das águas, como também já assinalava para uma outra perspectiva da dominialidade do recurso hídrico (COSTA; MERTENS, 2015).
Após essa fase, o debate sobre o acesso à água é ampliado, passando a ser objeto de uma abordagem ambiental, social, além de ser abordado também em seus aspectos técnicos. Como bem assinala Born (2000), para a garantia da cidadania, é preciso levar em conta a ideia de Seguridade Hídrica, que consiste na visão sistêmica de aspectos complexos que aglutinam questões como saúde, educação, gestão de recursos hídricos, segurança alimentar, saneamento, habitação etc., nos diversos níveis (locais, regionais e nacional). A água passa a ser entendida não apenas como um direito em qualidade e quantidade: ela passa também a ser relacionada ao fortalecimento da cidadania e dos preceitos democráticos.
Esse debate naturalmente manifestou-se por meio dos próprios usuários de água, o que fortaleceu ainda mais a pauta da descentralização dos processos decisórios da gestão de recursos hídricos; de forma conjunta, as instâncias colegiadas de participação acompanharam esse movimento. No entanto, mesmo diante de arranjos governamentais que promovem práticas democráticas, estudos como o de Jacobi e Barbi (2007) apontam que há uma assimetria entre as decisões tomadas pelo Poder Público e a sociedade civil, prevalecendo em grande medida os interesses da gestão pública. Essa desigualdade tem reflexos também no alcance dos movimentos sociais e grupos organizados, como ainda dentro do território.
Essa assimetria entre o Poder Público e a sociedade tem reflexos imediatos nos instrumentos de planejamento expostos na Política Estadual de Recursos Hídricos, isto é, nas políticas públicas. Esse elemento é pouco investigado nos estudos nacionais; há também uma baixa quantidade de estudos que buscam investigar a implementação de políticas públicas voltadas aos recursos hídricos e a efetividade dessas políticas (MARCONDES, 2022).
É relevante demonstrar que, embora este estudo seja direcionado para o Plano Estadual de Recursos Hídricos, a gestão das águas conta com outros instrumentos de gestão, sendo eles, a cobrança pelo uso dos recursos hídricos, as outorgas de direito de uso de recursos hídricos, o Sistema Estadual de Informações de Recursos Hídricos, o enquadramento dos corpos de água e os Planos de Recursos Hídricos elaborados pelos estados para cada Bacia Hidrográfica (COUCEIRO; HAMADA, 2011).
Embora exista um desenho institucional que promova um processo decisório democrático e institua o controle social, sabe-se que isso por si só não garante a participação efetiva da sociedade civil, nem tampouco garante que o Poder Público amplie o debate e torne os instrumentos de planejamento de fato participativos. Por essa razão, percebemos a necessidade de compreender os contextos e as oportunidades políticas no Rio Grande do Norte, elegendo um marco importante: a revisão do Plano Estadual.
As Instituições Participativas, os Contextos e as Oportunidades Políticas como Impulsionadores da Ação Coletiva
A participação social é um dos elementos de inovação do Estado brasileiro que ganha destaque após a redemocratização do país em 1988. Entre os diversos formatos de gestão participativa surgidos nas últimas três décadas, as Instituições Participativas (IPs) constam como componente principal. Aqui, as IPs são entendidas como formas diversas de incorporação de indivíduos e grupos da sociedade civil para deliberação sobre políticas públicas (AVRITZER, 2008).
Seguido do Orçamento Participativo, que se tornou o primeiro grande canal institucionalizado de participação da sociedade, na década de 1990, os Conselhos gestores figuram como o segundo grande canal (LAVALLE; BARONE, 2015). Os Conselhos gestores de políticas públicas são assim a materialização da democracia deliberativa, figurando ao lado do Orçamento Participativo e dos Planos Diretores como uma das três principais instâncias participativas do Brasil (AVRITZER, 2008).
De acordo com Tatagiba (2002, p. 54): “Os Conselhos Gestores de Políticas são, portanto, espaços públicos de composição plural e paritária entre Estado e sociedade civil, de natureza deliberativa, cuja função é formular e controlar a execução das políticas públicas setoriais.”
A respeito dessas duas características internas do processo participativo dos conselhos, a autora ainda recorda que a pluralidade na composição desse espaço decorre da natureza pública e democrática desses novos arranjos deliberativos; já a paridade entre Estado e sociedade é o que o torna um espaço de partilha do poder (TATAGIBA, 2002).
Enquanto espaço de partilha de poder, os conselhos decorrem da ação dos movimentos sociais, que impuseram no período constituinte, dentro das suas demandas, mecanismos de participação (AVRITZER, 2016). Esse foi o formato participativo adotado para um número considerável de políticas, devido à sua forma setorializada de atuação nas políticas.
Assim, um fator marcante para a sua implementação no Brasil está atrelado à adoção de mecanismos indutivos, por parte do governo federal, de repasse de recursos para sua criação. A partir dessa lógica, políticas como a saúde, educação, direitos das crianças e dos adolescentes e assistência social foram beneficiadas por terem sido escolhidas pela constituição como áreas estratégicas de atuação dos governos, o que os torna os principais conselhos adotados pelos municípios, naquele momento, e que permanecem ainda hoje.
Como apontam Romão e Martelli (2013), os estudos sobre as Instâncias Participativas, onde os conselhos estão inseridos, já passaram por uma progressão de gerações e abordagens analíticas. Nessa esteira, Sandro Silva (2020) prefere chamar as IPs de IDPs, ou seja, de Instituições de Deliberação Participativa, já que é nesses espaços que ocorrem as deliberações coletivas das políticas públicas. Ainda se referindo as IDPs, o autor aponta ainda que:
Carecem de estudos constantes que problematizem suas dinâmicas, seus resultados e sua importância política nas áreas em que estão situadas, bem como as reais influências que elas exercem tanto na formulação de políticas públicas quanto nas estratégias de mobilização da sociedade civil. Como esses mecanismos são muito heterogêneos em termos de tempo de existência, segmentos sociais envolvidos, grau de conflito, entre outros fatores, pesquisas que busquem captar as particularidades existentes são fundamentais na compreensão dos aspectos que influenciam sua efetividade
(SILVA, S., 2020, p. 429).Nesse sentido, recentemente, alguns autores (SZWAKO, 2012; TATAGIBA, 2013) vêm apontando que há dentro da sociedade uma queda na credibilidade dos conselhos e em sua capacidade de produzir ganhos à sociedade a partir da implementação de suas demandas ou mesmo da geração de canais entre Estado e Sociedade. Avalia-se, de modo geral, que as instituições participativas apontaram os seus limites (ROMÃO; MARTELLI, 2013). Esses limites podem estar relacionados sobretudo, aos dilemas da participação e da representação, como também, entre a deliberação e a efetividade (SILVA, S., 2020).
Para além dos déficits e limites que os estudos da efetividade deliberativa dos conselhos de políticas públicas vêm apontando nos últimos anos, é possível ainda diagnosticar que se trata de uma representação da comunidade em torno de um setor de política pública (LAVALLE; SERAFIM; VOIGT, 2016), o que nesse estudo abre margem para que busquemos compreendê-la através dos conceitos de contextos e oportunidades políticas.
A inserção da ideia de contexto político nos estudos acerca de participação, políticas públicas e movimentos sociais tem ganhado cada vez mais espaço. Nesse sentido, mobilizamos tal conceito a fim de compreender como o atual contexto político, nacional e estadual, em torno da gestão de recursos hídricos se reflete nas relações, nas tomadas de decisão e na agência dos atores do Conselho Estadual de Recursos Hídricos do Rio Grande do Norte. A ideia de contexto político é influenciada pelos estudos de Charles Tilly: ao analisar como as mudanças de regime imprimem modificações nas performances dos repertórios utilizados pelos movimentos sociais, o autor chama a atenção para o fato de que as relações do campo político são altamente influenciadas pelo contexto vigente (TILLY, 2006).
Nos estudos acerca dos movimentos sociais e ação coletiva, a abordagem estruturalista, difundida amplamente por teóricos norte-americanos como Charles Tilly, Sidney Tarrow e Doug McAdam, tem mobilizado em suas análises a ideia de Estrutura de Oportunidades Políticas. A teoria da estrutura de oportunidades políticas tem sido amplamente discutida nos estudos de movimentos sociais; entretanto, a teoria possui capacidade conceitual para estabelecer um fio condutor, também, entre os estudos sobre participação política e ação coletiva. Tarrow (2009) afirma que o papel do Estado é fundamental na promoção de espaços e possibilidades de ação coletiva. Concordando com o estudo de Tarrow e Meyer (2004) sobre oportunidades políticas, consideramos que a agência dos movimentos está estritamente relacionada e é dependente dos contextos. Para esses autores, seguindo a teoria do processo político, determinado contexto político e institucional é indutor da ação coletiva, pois a estrutura política e institucional é a matriz que impulsiona ou restringe a ação dos atores e movimentos.
Na gênese dos estudos acerca do conceito em questão, Eisinger (1973) analisou as mobilizações em cidades norte-americanas e afirmou que as possibilidades que existiam para a efetivação de protestos só foram concretizadas devido ao ambiente político daqueles locais; ou seja, para o autor, esse conjunto de combinações que permitiram os protestos e ações coletivas foi resultado das oportunidades políticas.
Giugni, McAdam e Tilly (1998) chamam a atenção para as oportunidades políticas abraçadas pelos movimentos, que conseguem inserir suas demandas na agenda governamental a partir dessa estrutura de oportunidades. Essas oportunidades, para os autores, não representam apenas possibilidades, mas também riscos, tendo em vista que são alheias aos movimentos. Nesse sentido, as especificidades do contexto político externo aos movimentos e atores sociais se tornam fundamentais para compreendermos as oportunidades políticas apreendidas pelos movimentos. Utilizando a estrutura de oportunidades políticas como ferramenta de análise, é possível investigarmos como as oportunidades estão relacionadas com a participação política e o fortalecimento da democracia (SILVA, S., 2020).
Ainda para Sandro Silva (2020, p. 4), "a estrutura de oportunidades políticas pode funcionar como uma ferramenta que permite perceber como e por que certas exigências e certos apoios entram no sistema político, enquanto outros não". O acesso dos atores sociais a espaços institucionais de participação pode ser relacionado com o que Tarrow (1996) denomina disposição de aliados influentes na política (atores institucionais) e abertura de acesso ao poder (tomada de decisão), ou seja, oportunidades oriundas de contextos políticos favoráveis à participação política e aproveitadas pelos movimentos.
Em estudo recente, Almeida, Vieira e Kashiwakura (2020) discorrem acerca do contexto político e institucional do Brasil e sua influência nas instituições participativas. As autoras analisaram a reação e/ou a resistência das IPs e dos atores que as compõem em torno de um contexto político não favorável a esse tipo de participação, afirmando que, no enfrentamento a períodos de instabilidade política, a existência e operacio-nalização desses espaços estão relacionadas ao grau de institucionalização e ao tipo de desenho que possuem.
Esse recente contexto não favorável à participação social no Brasil foi marcado pelo início do governo Bolsonaro (2019), sinalizado já no primeiro dia de gestão. O primeiro conselho a sofrer retração em seu funcionamento foi o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), ainda em janeiro: através de Lei, o governo federal instituiu a paralisação do seu funcionamento. Em abril, o decreto 9.759/2019, conhecido posteriormente como “revogaço”, institucionalizou de maneira sistemática o desmonte das instâncias colegiadas criadas em nível federal por decretos ou portarias.
Ao refletirem, à luz das teorias críticas da democracia e do direito, sobre as consequências dos atos normativos presidenciais que diminuíram ou extinguiram a participação social no âmbito dos conselhos, Mussoi e Quadros (2021) afirmam que essa redução da participação no Brasil, potencializada pelos decretos, medidas provisórias e leis do governo Bolsonaro, tem capacidade de potencializar um colapso democrático desses espaços. Esse cerceamento da participação social restringe as possibilidades de ampliação de processos democráticos na formulação de políticas públicas, à medida que ignora os fundamentos da democracia participativa e deliberativa (MUSSOI; QUADROS, 2021).
Ao mobilizarem o conceito de policy changes, que considera os fatores político-institucionais para analisar as mudanças institucionais, Bezerra et al. (2022) afirmam que, assim como as ações de desmonte do governo Bolsonaro para com os conselhos não são homogêneas, seus efeitos também não o são. Para os autores, os impactos sentidos em cada setor de política precisam ser analisados de maneira que considerem a inserção desse setor no campo político, seu lugar na agenda da gestão Bolsonaro e sua respectiva resiliência institucional.
Nota-se, portanto, a necessidade de análises posteriores em torno das consequências dessas ações em nível federal nos colegiados subnacionais, tanto em relação ao seu funcionamento, como em relação aos impactos no exercício cotidiano da participação social nesses espaços.
Dessa forma, no nosso estudo, torna-se fundamental considerar o contexto político-institucional de apoio e fomento às instituições participativas em nível estadual e, em nível nacional, o contexto político-institucional de desinstitucionalização e desmonte dessas IPs. Nesse sentido, entendemos que as estruturas relacionais, características e especificidades em ambos os contextos podem impulsionar ou restringir a ação coletiva, fomentando ou impedindo, assim, a proposição de demandas coletivas na agenda pública, como o caso do Plano Estadual de Recursos Hídricos do RN, como discutiremos na seção seguinte.
A Relação entre o Conselho e o Plano Estadual de Recursos Hídricos: O Caso do RN
Esta seção tem por finalidade apresentar a relação entre a revisão do Plano Estadual de Recursos Hídricos e as oportunidades políticas. Optamos por verificar essa relação por meio do CONERH, instância colegiada que possui caráter consultivo e deliberativo na gestão de recursos hídricos potiguar.
Nesse âmbito, cabe fazer uma breve contextualização da Política Estadual de Recursos Hídricos. No ano de 1996, o estado do Rio Grande do Norte promulga a Lei nº 6.908, de 01/07/1996, a qual dispõe sobre a Política Estadual de Recursos Hídricos. Por meio dela, é instituído o Sistema Integrado de Gestão de Recursos Hídricos – SIGERH. O Sistema supramencionado é composto pelo Conselho Estadual de Recursos Hídricos, pela Secretaria Estadual de Recursos Hídricos e Projetos Especiais – SERHID, hoje denominada Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos, e pelos Comitês de Bacia Hidrográfica. Posteriormente, foram inseridos neste arranjo institucional a Companhia de Águas e Esgotos do Rio Grande e o Instituto de Gestão das Águas do Estado do Rio Grande do Norte.
O desenho do Sistema desde a sua instituição já apresenta múltiplos atores no processo decisório. Tanto a composição do CONERH, como a Composição dos Comitês de Bacias contam com representações de associações profissionais, Organizações do Terceiro Setor, usuários de Águas, representantes de todo território potiguar, representação do Poder Público, e outros, o que demonstra a densidade do tecido relacional da Política da Gestão de Recursos Hídricos. Ela por si só vinculou o processo decisório a práticas democráticas e difundidas no território.
Essa mesma Política Estadual de Recursos Hídricos prevê a revisão do Plano Estadual a cada quatro anos; no entanto, através da análise documental das atas do CONERH (2011-2021), percebemos que os conselheiros passaram a pleitear de forma mais incisiva a revisão do Plano Estadual após a eleição de Fátima Bezerra como governadora do estado. Dessa forma, a mudança de regime, que nesse caso não foi apenas uma mudança de governo, mas de perspectivas, abriu a possibilidade de que os ativistas ambientais propusessem a revisão do Plano. Para Tilly (2006), as mudanças de regime possibilitam alterações nas performances e nos repertórios dos atores sociais. Corroborando com a ideia de Tilly (2006), os entrevistados afirmam que na gestão Fátima Bezerra houve avanços no diálogo com os órgãos.
E isso do ano passado pra cá tem melhorado, mas foi bem difícil no início né? E gradativamente tem melhorado porque existe uma pressão tanto dos comitês como de quem está representado no conselho. Então isso tem melhorado, né? E eu não sei se até porque ele não entendia, não era da área, não entendia a importância do conselho, mas começou a chegar a pautas que ele só conseguia liderar se passasse no conselho, aí a ficha foi cair, né?
(Conselheiro representante da Sociedade Civil 1, entrevista concedida aos autores em março de 2022).
O formato da construção dos planos tem sido muito a base de consultoria: você precisa ter estudos básicos, diagnósticos, que são peças muito técnicas; no entanto, eu entendo que a parte de gestão, de mobilização poderia avançar mais. Você precisa ter bons estudos para que o plano tenha base, tenha tudo isso, mas os estudos precisam dialogar mais com a sociedade [...]acho que no governo Fátima nós conseguimos avanços
(Conselheiro do poder público, entrevista concedida aos autores em fevereiro de 2022).De acordo com a tabela abaixo é possível perceber que entre os anos 2011 e 2014 o tema do Plano Estadual não apareceu nas reuniões ordinárias do Conselho Estadual, apenas em 2015 o assunto surge através de um aviso por parte do poder público de que o trabalho de revisão do Plano se iniciou naquele período. O tema volta a surgir no conselho em 2017, com o presidente informando que o processo de revisão do Plano estaria indo para os trâmites licitatórios. Após esse período, a revisão do Plano é discutida no Conselho mais duas vezes (2019 e 2020); em 2019, o Poder Público informa que o primeiro produto da revisão do Plano foi entregue à gestão.

O quadro acima demonstra que, nas reuniões ordinárias, o Plano Estadual foi pautado na maioria das vezes pelo Poder Público; apenas no ano de 2020, há representação da sociedade civil pautando o Plano no Conselho. Na ocasião, o conselheiro solicitou que os programas que trouxessem impactos ambientais, a exemplo do programa de perfuração de poços realizado pela SEMARH, denominado RN+ Águas fosse inserido no PERH para que houvesse um monitoramento rigoroso da disponi-bilidade do recurso hídrico subterrâneo. Além disso, o conselheiro atentou para outras questões que não constam nos produtos da revisão do Plano.
Ressaltamos que o Plano Estadual não foi amplamente discutido no Conselho no decorrer desses dez anos (2011-2021), apesar do relato de que foi criada uma comissão para debater a temática, que conta também com a participação qualificada da sociedade civil. Para o conselheiro representante da sociedade civil 1, essa é uma forma de aperfeiçoar o debate, visto que é necessário haver estudos técnicos e profissionais capacitados para refletirem sobre o tema.
Sempre que necessário, são formadas as comissões para que seja discutido. É uma comissão técnica porque tem gente que vem de várias instâncias e de várias formações;, então geralmente precisa que alguns assuntos sejam melhor aprofundados, e nem todo mundo teria essa capacidade técnica pra isso. Então se forma as comissões para poder trabalhar essas discussões com aprofundamento maior. Ao contrário dos comitês, a gente têm as câmaras técnicas, que a gente cria dentro das reuniões, e aí a gente já tem câmara técnica formada pra poder quando tem um assunto que a gente vê que não vai ser vencido numa reunião a gente leva pra câmara técnica
(Conselheiro da sociedade civil 1, entrevista concedida aos autores em março de 2022).O quadro 1 nos oferece o panorama dos anos de 2011 a 2021, onde é possível ver que o Plano não possuía grande visibilidade nas reuniões do Conselho. Das quatro reuniões realizadas na gestão Fátima Bezerra, duas delas tiveram como uma das pautas a revisão do Plano, o que significa um aumento, mesmo que tímido, da pauta no âmbito institucional. No entanto, os elementos apresentados nas atas não permitiram visualizar a eleição da governadora como uma oportunidade política para revisão do PERH.
De acordo com os entrevistados, não há uma dinâmica de funcionamento do Conselho bem estabelecida. Por isso, a realização de reuniões extraordinárias ficou mais recorrente no último período, principalmente, no ano de campanha eleitoral e após a eleição de Fátima Bezerra, como é possível observar na Quadro 2 a seguir:

Apesar do crescimento de reuniões extraordinárias e da revisão do Plano ter sido pautada também pela Sociedade Civil, o representante do Poder Público chamou atenção para as pouquíssimas reuniões realizadas por ano no CONERH. Para ele:
As vezes tem [reunião] extraordinária, algumas foram até extraordinárias porque tinha passado o prazo, mas era como se fosse ordinária, foi a pauta convencional que muitas vezes a reunião não foi puxada a tempo, aí vai na extraordinária, na que tiver [...] Muitas vezes a gente teve que correr para pautar uma reunião para que aquele tema fosse colocado, mas carece dessa dinâmica. Aí, você vai me dizer que é atribuição da secretaria executiva? Eu acho que sim, que tem que pautar mais, que tem de dar maior dinâmica, talvez até botar a sociedade civil tocando isso pra poder demandar isso
(Conselheiro do poder público, entrevista concedida aos autores em fevereiro de 2022).O conselheiro chama a atenção para a quantidade de reuniões provocadas pelo próprio Conselho. Para ele, deveria haver chamamento para reunião em média a cada dois meses, no mínimo, umas seis ou sete por ano. Esse número, que se aproxima do ideal para este conselheiro, muito diverge do número de reuniões que constam no portal eletrônico da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do RN. Por outro lado, um conselheiro representante da sociedade civil aponta que:
Eu acredito que o Conselho Estadual durante esses últimos anos de 2018 pra cá que é quando eu tô acompanhando mais de perto, acredito que ele cumpre apenas parcialmente a sua função, grandes questões que envolvem decisões importantes, deliberações importantes que deviam passar pelo CE não estão passando, atores fundamentais como os presidentes de comitê de bacia que deveriam estar mais engajados e envolvidos e estimulados a participar de certos momentos e certas comissões, não são. Acho que o CE está um pouco esvaziado nesse momento
(Conselheiro representante da Sociedade Civil 1, entrevista concedida aos autores em março de 2022).Outro elemento que chamou atenção na elaboração da Revisão do PERH foi a maneira como o processo foi regido, tendo sido inicialmente contratada uma empresa de consultoria, no ano de 2017, por meio de licitação. Por um lado, a contratação de empresas para a formulação de um plano possibilita que se obtenha uma visão externa da situação. Por outro lado, a contratação pode carecer do processo de participação social. Neste caso, o representante da sociedade civil 2 relata que:
O que eu posso dizer é que eu acredito que a revisão do plano está completamente estacionada no tempo, essa empresa praticamente virou um fantasma para os comitês, a última vez que a gente teve conhecimento dessa empresa foi, se eu não me engano, em julho de 2019 quando teve uma audiência pública na bacia do Apodi-Mossoró presencial em Pau dos Ferros onde a empresa veio apresentar os dados da revisão, a partir de julho ela falou que em setembro de 2019 retornaria com o Plano Estadual revisado e consolidado para mais discussões e a partir de então nós não temos mais notícias do que está acontecendo
(Conselheiro representante da Sociedade Civil 2, entrevista concedida aos autores em março de 2022).Em concordância com o conselheiro representante da Sociedade Civil 2, o representante do Poder Público também tece comentários sobre a maneira como a contratação de consultorias pode refletir no processo decisório participativo
O formato da construção dos planos tem sido muito a base de consultoria, você precisa ter estudos básicos, diagnósticos, que são peças muito técnicas, no entanto, eu entendo que a parte de gestão, de mobilização poderia avançar mais. Você precisa ter bons estudos para que o plano tenha base, tenha tudo isso, mas os estudos precisam dialogar mais com a sociedade, nesse ponto eu acho que esse formato das consultorias... “Ah, mas tem audiências”, foi lá e mostrou, mas é muito aquela coisa de externar aquilo ali, como o Plano Diretor da cidade, mas eu acho que esse aspecto, os comitês poderiam ser mais envolvidos para que essa participação fosse mais efetiva, ela existe, acho que no governo Fátima nós conseguimos avanços, mas o próprio formato de contratação das consultorias, a contratação desses serviços junto ao poder público deixa a coisa mais rígida
(Conselheiro do poder público, entrevista concedida aos autores em fevereiro de 2022).Ainda referente ao processo de revisão e atualização do Plano, o resumo executivo deste processo disponibilizado no ano de 2022 aponta a existência de seis momentos com a Sociedade Civil, tendo sido uma consulta pública realizada durante o mês de julho de 2020, nos municípios de Natal, Pau dos Ferros e Mossoró. As consultas públicas voltaram a acontecer no ano de 2021, por meio virtual, tendo sido realizadas durante o mês de abril com a Região do Seridó Potiguar, Baixo Açu e Mato Grande e Região do Trairi. No documento analisado, não havia o quantitativo dos participantes das consultas públicas, nem tampouco quais foram os métodos de mobilização utilizados pela empresa de consultoria.
É imperativo ressaltar que, para além dos debates das instâncias colegiadas de participação, as políticas de recursos hídricos e de meio ambiente estão sendo colocadas em pauta no legislativo brasileiro. Tanto os representantes da sociedade civil, como o próprio representante do Poder Público entrevistado declararam que as decisões de gestão de recursos hídricos tomadas pelo governo federal estão ocorrendo de maneira top-down, desconsiderando o caráter consultivo e deliberativo do CNRH. Além disso, a desinstitucionalização ocorre de maneira sutil: por previsão legal da Lei das Águas, não é possível extinguir os Conselhos. No entanto, a nível federal, o entrevistado do Poder Público relatou que houve uma diminuição considerável do número de cadeiras de representação da sociedade civil.
Esse cenário agrava ainda mais o ponto levantado por Jacobi e Barbi (2007): há uma desigualdade no processo decisório que envolve a sociedade civil e o Poder Público, colocando o Poder Público em vantagem nas tomadas de decisão. Nesse mesmo sentido, o entrevistado representante do Poder Público relatou que:
É claro que um membro do poder público tem uma maior possibilidade de pautar uma reunião, por que o poder público de certa maneira está em vantagem nesse sentido em qualquer conselho [...] a gente entendia que a paridade não era 50 % sociedade, 50% de poder público, porque 50% do poder público em termos de força vale mais do que 50% de sociedade civil, e muitas vezes a sociedade civil tem mais dificuldade em participar, em dedicar o tempo, até porque ele tem outras atividades, então tem que se facilitar essa participação na sociedade civil para que as pautas cheguem em um processo mais fácil, mais tranquilo, as vezes o pessoal tem que se valer de um apoio de uma entidade de maior porte e dentro da sociedade civil existem diferenciações
(Conselheiro do poder público, entrevista concedida aos autores em fevereiro de 2022).É importante destacar que o entrevistado do Poder Público é um exemplo de ativista institucional. Em outros momentos, ele fez parte de comitês de bacia hidrográfica e já representou a sociedade civil no CONERH. Por esse motivo, ele traçou um paralelo entre a diferença da atuação entre a sociedade civil e o Poder Público no Conselho.
Apesar das dificuldades enfrentadas no processo de atualização e revisão do Plano, o governo estadual se manteve firme diante da ideia de buscar manter as práticas participativas na gestão de recursos hídricos potiguar, atendendo os pedidos dos Comitês de Bacia Hidrográfica e buscando tornar a gestão mais descentralizada.
No entanto, apesar do desenho institucional prever preceitos democráticos e descentralizados, no âmbito federal novas compreensões em relação aos recursos hídricos foram normatizadas, a exemplo do Novo Marco do Saneamento Básico, sancionado pelo Presidente Jair Bolsonaro em 15 de julho de 2020: neste caso, não houve um amplo diálogo com a sociedade civil nem com os entes subnacionais. Esse redesenho se refletiu também na reestruturação da Agência Nacional de Águas, entidade responsável pelo Sistema Nacional de Recursos Hídricos. Esse cenário retrata a maneira como as políticas públicas estão sendo formuladas em nível federal, buscando cada vez mais desinstitucionalizar a participação da sociedade civil no processo decisório.
Mais recentemente, entrou em cena o Projeto de Lei nº 4.546/2021, denominado o Novo Marco Hídrico, que institui a Política Nacional de Infraestrutura Hídrica e organiza a exploração e a prestação dos serviços hídricos. Os debates ainda incipientes sobre o Projeto de Lei acenam para uma dissonância entre o Novo Marco Hídrico e a Lei 9433/1997, promovendo mais uma vez a desinstitucionalização de um desenho da política democrático, participativo e descentralizado, desconsiderando o papel fundamental dos Comitês de Bacia nesse processo. Aliado a isso, é válido destacar que esse marco traz a ideia de criação do instrumento da cessão onerosa pelo uso de recursos hídricos, isto é, a captação de recursos financeiros por meio de recursos naturais.
Os pontos elencados e os dados obtidos na pesquisa ampliaram o estudo, de forma a abrir outras perspectivas para compreender como vem se dando a gestão de recursos hídricos nos âmbitos estaduais e no âmbito federal. O Marco Hídrico, temática que surgiu em decorrência das entrevistas, demonstra o caminho da desinstitucionalização que vem ocorrendo no governo federal, de forma não dialogada com a sociedade civil. Cabe, portanto, realizar estudos que busquem compreender arranjos de governança que não se referem necessariamente às instâncias colegiadas de participação, mas que, ao final, refletem em suas atuações.
Considerações Finais
Este estudo buscou compreender o processo de recolocação da pauta da revisão e atualização do Plano Estadual de Recursos Hídricos na agenda governamental a partir da participação institucional no Conselho Estadual dos Recursos Hídricos (CONERH). Inicialmente, tínhamos a hipótese de que a pauta foi recolocada por questão de oportunidades políticas, em virtude de o contexto político estadual atual ir na contramão da desinstitucionalização promovida em nível federal, no âmbito das políticas ambientais.
A hipótese foi refutada por meio da análise de atas com recorte temporal de dez anos (2011 a 2021), pois, o debate de atualização do Plano surgiu antes da eleição da governadora Fátima Bezerra. No entanto, percebemos que a discussão ganhou mais força e a Sociedade Civil passou a trazer essa pauta em reuniões extraordinárias, sempre atendendo para aspectos que deveriam ser considerados no Plano.
Outro elemento que teve reflexos no processo de revisão e atualização do plano foi a contratação de consultorias para trabalhar com a temática, que, por um lado, pode ser vista como positiva por ser imparcial e ter um olhar externo ao Poder Público, mas, por outro lado, demonstrou que não houve vastos momentos de diálogo com a sociedade civil, tendo sido realizadas apenas seis consultas públicas em todo território nacional.
Os dados obtidos no estudo trouxeram à tona uma extensa agenda de pesquisa que relaciona ações que vão desde a desinstitucionalização das instâncias colegiadas de participação, a exemplo do mais recente projeto de Lei do Novo Marco Hídrico, a implementação da política pública na ponta até estudos relacionados à burocracia dos órgãos gestores, demonstrando que há um longo caminho a percorrer nas pesquisas relacionadas à participação social, gestão de recursos hídricos e à própria política ambiental.
Além desta constatação, a aplicação dos procedimentos metodológicos lançou luzes para que novas agendas de pesquisa sejam abertas na gestão de recursos hídricos do Estado brasileiro. Podemos notar que essa é uma área que conta com inúmeros ativistas institucionais; o reflexo disso é que, nos dez anos analisados nas atas, ficou demonstrado que houve pouquíssimas mudanças de conselheiros: o que se nota é alguma frequência na alteração da instituição que eles representam no Conselho. Isso gerou uma inquietação: quais são os motivos que promovem a participação destes atores por tantos anos?
Outro ponto que merece destaque é a dicotomia existente no debate entre o aspecto técnico e o político. Se a gestão de recursos hídricos é eminentemente técnica, como a sociedade civil pode contribuir no debate? Quais são as organizações responsáveis por qualificar os representantes para estarem aptos ao debate?
Por fim, destacamos a iniciativa de se realizar câmaras técnicas para debater um assunto em profundidade: essa prática é muito comum na política ambiental e na gestão de recursos hídricos. Esse procedimento é excludente ou necessário? Esse ponto não foi consenso entre os representantes da sociedade civil. Um fazia parte da câmara, o outro, não. Para o representante que não fazia parte da câmara, o debate ficou distante dos comitês de bacia e da sociedade civil. Qual seria o papel dos conselhos na busca da devolutiva dessas câmaras técnicas? Todas essas são questões ainda em aberto que merecem mais investigação.
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