ARTIGOS

“Eles Estão por Todos os Lugares”: Reflexões e Apontamentos a partir da Circulação de Pessoas em Situação de Rua

“They Are Everywhere”: Reflections and Notes from the Movement of People Living on the Streets

Nildamara Theodoro Torres *
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Ananda da Silveira Viana *
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil

“Eles Estão por Todos os Lugares”: Reflexões e Apontamentos a partir da Circulação de Pessoas em Situação de Rua

Mediações - Revista de Ciências Sociais, vol. 27, núm. 3, e44708, 2022

Universidade Estadual de Londrina

Recepção: 08 Outubro 2021

Revised document received: 24 Janeiro 2022

Aprovação: 12 Dezembro 2022

Resumo: Viver em situação de rua é viver em circulação, “habitando todos os espaços” sem, contudo, permanecer em algum deles. Os sujeitos que vivenciam o espaço das ruas reconfiguram as noções de casa e evidenciam o descompasso e a fragilidade das instituições. O presente artigo tem como objetivo fazer apontamentos sobre a centralidade da circulação na vida de pessoas em situação de rua, destacando principalmente as formas de se ganhar e reproduzir a vida. Temos como chave analítica breves notas etnográficas de trabalhos de campo ainda em desenvolvimento em Volta Redonda, município localizado no sul do Estado do Rio de Janeiro, trazendo as primeiras impressões sobre o circular e permanecer a partir de uma média cidade. Entendemos, por fim, que as formas de assistência, acesso a equipamentos de saúde e de tratamentos possibilitam condições mínimas de um cotidiano fragmentado, mas que também apontam para uma forma indireta de abandono desta minoria indesejada, evidenciando também que estes sujeitos “estão por todos os lugares” – o paradoxo do visível e invisível tratado pelos estudos da situação de rua.

Palavras-chave: Situação de rua, circulação, Volta Redonda, redes de acolhimento.

Abstract: Living on the streets is living in circulation, “inhabiting all spaces” without, however, to belong at any of them. The individuals who experience the space of the streets reconfigure the notions of home and show the gap and the fragility of the institutions. This article aims to make notes on the centrality of circulation in the lives of homeless people, especially the way of earning life and reproducing. We have as analytical key brief ethnographic notes supported by field work still in development in Volta Redonda, a city located in the south of the State of Rio de Janeiro. This gives us first impressions about the circular and staying from an average city. Finally, we understand that the forms of assistance and access to health equipment and treatments provide minimum conditions for a fragmented daily life. They also point to an indirect form of abandonment of this unwanted minority and also evidence that these subjects "are everywhere” - the paradox of the visible and invisible treated by the studies of the street situation.

Keywords: Homeless, circulation, Volta Redonda, care networks.

Introdução

O presente trabalho tem como objetivo fazer uma reflexão em torno da circulação de grupos de pessoas em situação de rua que vivem de forma itinerante, entre a casa e a rua, a rua e os abrigos e os abrigos e outras redes de cuidado. Visamos, então, realizar um trabalho teórico-reflexivo sobre a circulação de pessoas em situação de rua pelas diversas formas de habitação temporária. E, através da materialidade das cidades, do uso dos espaços e seus recursos, capturar como o deslocamento e o movimento são peças-chaves para a sobrevivência desses sujeitos. Desta forma, nossa proposta é construir um levantamento e relação da literatura que já discute população em situação de rua e sua circulação, apresentar uma breve análise em torno dos pontos de fixação destes sujeitos nas cidades, as suas dinâmicas de circulação e a rua como uma forma de habitar a cidade e como um espaço de reprodução da vida na ausência de uma habitação fixa (a casa), trazendo Volta Redonda como chave analítica e etnográfica.

À luz da definição de Michel De Certeau (2002), entendemos que a cidade é marcada por sua transitoriedade e funcionalidade. O seu espaço é dinâmico e atravessado por mobilidades, atividades e sujeitos, todos em circulação. Uma das principais características de quem tem a rua como local de vivência e sobrevivência é o nomadismo, ou seja, estar numa condição de rotineira circulação entre espaços. Viver na rua é viver um itinerário de idas e vindas entre ruas, entre bairros, entre instituições e, até mesmo, entre casas. Esta mobilidade, destaca Escorel (1999), não é temporária. Ela é, de fato, uma forma de vida.

Trazemos Volta Redonda como um ponto de reflexão comum e por se tratar de uma média cidade com forte impacto socioeconômico, visando sinalizar futuras análises sobre a maior presença de pessoas em situação de rua em cidades que estão fora do eixo metropolitano. De antemão, julgamos ser importante uma breve contextualização sobre nosso lugar enquanto pesquisadoras deste tema. O fato de sermos duas mulheres, que cresceram em uma cidade média e uma cidade pequena e por termos passado por um processo de saída para grandes cidades, conduz parte de nosso olhar. As pessoas que vivem em metrópoles lidam cotidianamente com uma paisagem composta por catadores, por mendicâncias, por pessoas sob as pontes e marquises, em barracas de lona plástica, em albergues públicos ou ao relento. Tal quadro, até pouco tempo, era algo pouco comum em outras localidades.

A escolha de Volta Redonda, para além de nossas relações pessoais com a cidade, está ancorada na importância que ela possui para o eixo Sul Fluminense e pela importância de desenvolver debates sobre as médias cidades. Volta Redonda está localizada na região sul do estado do Rio de Janeiro, mais precisamente no médio Vale do Paraíba do Sul, e é considerada um importante polo econômico entre as duas principais metrópoles, Rio de Janeiro e São Paulo. A sua vantajosa proximidade geográfica também a coloca em um eixo de alta circulação de recursos e pessoas. Ao ser destacada por sua intensa atividade industrial, a história da cidade muitas vezes é confundida com a história da Companhia Siderúrgica Nacional - CSN.

Cabe-nos trazer uma breve contextualização histórica sobre a expansão irregular dos espaços urbanos da cidade. A forma como os bairros foram se constituindo para receber os trabalhadores da CSN ocorriam de acordo com as fases de expansão da usina. Essa expansão não planejada atraía massas de trabalhadores, e quando o processo acabava, não havia nenhum tipo de acompanhamento das pessoas que ficavam pela cidade sem trabalho e sem as moradias provisórias ou fixas cedidas pela empresa.

De acordo Fontes e Lamarões (1986), o problema habitacional da cidade se agravou ainda mais com a reduzida oferta de casas pela CSN e a demissão de trabalhadores pouco qualificados e com o término das obras de construção civil no final da década de 1940. A partir das colocações de Lima (2010) tudo isso deu origem a uma “outra” Volta Redonda, do outro lado do rio Paraíba do Sul, a “cidade velha”, pobre, sem planejamento, desvinculada da usina, com habitações precárias e de crescimento “autônomo” aos interesses da Companhia, habitada por trabalhadores dispensados pela CSN e por pequenos comerciantes.

Vimos que, desde a década de 40, alguns autores (FONTES; LAMARÃO, 1986; VEIGA; FONSECA, 1990) já vinham apontando para a existência das primeiras ocupações na cidade, como o Morro dos Atrevidos e a favela do morro de São Carlos, compostos por parte significativa dos trabalhadores que atuaram na construção da usina, dispensados ao término dos serviços e permanecendo às margens do mercado de trabalho e às margens da cidade. Entre 1979 e 1980, as ocupações irregulares passaram a crescer, como o bairro Santo Agostinho, hoje um dos maiores da cidade, que chegou a contabilizar, aproximadamente, doze áreas ocupadas acompanhadas de sérios problemas de infraestrutura.

Há um histórico de irresponsabilidade pública no planejamento urbano da cidade e uma enorme brecha entre esse processo de expansão e uma preocupação de fato em solucionar os vestígios da desordem que ainda pairam sobre a cidade. Uma cidade fortemente dividida em bairros centrais, bairros de classe média alta e bairros muito pobres. E, pensando esta gramática urbana há um movimento pouco sólido direcionado para as pessoas em situação de rua e sua circulação pela cidade.

Há, ainda, uma forte escassez de literatura no campo das ciências sociais que se atente para a circulação e os modos de vida itinerante da população em situação de rua, que têm crescido nos últimos anos, principalmente quando enfocado o contexto de médias cidades. E Volta Redonda nos auxilia a pensar como a circulação desses sujeitos está interligada a diversos fatores que também estão presentes em cidades médias, e por isso estão inseridas na vida itinerante desses sujeitos. A circulação dessas pessoas pode se dar por inúmeras razões, dentre eles a procura por locais mais seguros para passar a noite ou o dia (um atrativo em cidades menores) e a procura por instituições, como os centros de acolhimento, abrigos e/ou espaços de projetos sociais que distribuem alimentos, produtos de higiene, etc. Assim, traremos neste trabalho uma revisão de uma literatura que já vem debatendo a circulação das pessoas em situação de rua e breves notas etnográficas de um trabalho de campo ainda em desenvolvimento, buscando dar indícios para investigações futuras.

O nosso caminho etnográfico tem sido atravessado por experiências desta população em trânsito. Sujeitos “fora do lugar” que utilizam abrigos, o Consultório na Rua, o Centro Pop – Centro de Referência Especializado para a População em Situação de Rua e outras redes/equipamentos de acolhimento como espaços possíveis para sobrevivência diante de uma vida marcada pela circulação. Além disso, para este artigo, contamos com relatos de alguns profissionais, como coordenadores, psicólogos, assistentes sociais e uma comerciante e voluntários em projetos sociais de doação de comidas, água, roupas e casacos.

A População de Rua e os Espaços Urbanos

Primeiro, é importante destacar a mudança da categoria “moradores de rua” para “pessoas em situação de rua”. A Política Nacional para a População em Situação de Rua propõe o termo “população em situação de rua” para se referir a um grupo de pessoas, de caráter heterogêneo, que se encontram em situação de vulnerabilidade econômica e social, que não possuem moradia regular e que podem ter vínculos familiares e afetivos rompidos ou fragilizados (TEIXEIRA et al., 2019), vivendo em trânsito entre ruas públicas, áreas degradadas ou unidades de acolhimento. Por entender que o termo “moradores de rua” retira a complexidade dos modos de viver desses grupos, a PNPDR reformulou a nomenclatura e a conceituação desses grupos. Apesar disso, o termo “população em situação de rua” ainda é insuficiente para definir um grupo marcado por uma multiplicidade de realidades, que vive num fluxo itinerante entre variados locais, realizando todo tipo de trabalho, majoritariamente informal.

A circulação acontece por motivos vários. Pode acontecer quando há algum evento em um local específico da cidade, através do deslocamento para aquela rua ou bairro por catadores de latinhas, vendedores ambulantes ou mesmo pedintes. Catadores e recicladores de latinhas, por exemplo, se deslocam tanto para coletar os itens, quanto para ir aos armazéns e estabelecimentos que recolham as latas e os recicláveis. Por vezes, circulam pelas ruas de bares e eventos e já amanhecem nos portões e entradas de centros de recolhimento. No caso de pedintes, os sujeitos circulam por bares, lanchonetes, praças pedindo ajudas financeiras, comida e bebida. Este último caso é muito corriqueiro em locais de festas, eventos e bares, em que as pessoas em situação de rua, dependentes de álcool, aproximam-se de grupos de pessoas que estão consumindo bebida alcoólica pedindo que compartilhem um pouco.

Pessoas em situação de rua que estão à procura de emprego, por outro lado, circulam pelos bairros da cidade à procura de serviços. Neste último caso, a imagem que apresentam em uma entrevista de emprego, por exemplo, é ponto chave para conseguir ou não o trabalho. Na maioria dos casos, por viver na rua, a higiene e as condições corporais e de vestimenta não são consideradas dentro das regras sociais de formalidade, o que acaba por prejudicar substancialmente as oportunidades desses sujeitos. Em muitos casos, acaba sendo mais viável passar os dias em albergues ou centros de acolhimento para que consigam tomar banho e se arrumar.

Os trabalhadores informais também circulam dentro dos ônibus, vendem balas, pequenos objetos pessoais, adesivos, utensílios de cozinha, etc. Em Volta Redonda, estas atividades ainda causam espanto aos passageiros e funcionários dos ônibus, que são pouco habituados com tal prática, relativamente recente, diferente dos grandes centros urbanos. Esta atividade é majoritariamente dominada por residentes das Comunidades Terapêuticas (CTs)3 de cidades da Baixada Fluminense, como Seropédica e Nova Iguaçu.

Nem todas as pessoas em situação de rua de fato não possuem moradia e endereço fixo. Inúmeros trabalhadores, que vivem na informalidade, estão nas ruas por motivos variados, como falta de recursos financeiros para pegar transportes todos os dias, estar próximo a locais de coleta de materiais, o exercício do trabalho durante a madrugada, o processo de reabilitação, como no caso dos moradores das CTs, a embriaguez, problemas e condições da ordem psicossocial, problemas e rompimentos de laços familiares, dentre outros. Uma característica marcante de Volta Redonda é que, grande parte das pessoas em situação de rua, principalmente as que permanecem diariamente em um dos bairros centrais da cidade, a Vila Santa Cecília, praticam a mendicância durante o dia, mas possuem residências em bairros mais distantes do centro, como Eucaliptal e Santa Cruz, ou residem em cidades mais para o interior do Estado, como Resende e Porto Real. Por não conseguirem voltar para a casa, pernoitam na rua por dias ou mesmo semanas.

É importante ressaltar que Escorel (1999) e Simões Junior (1992), em seus trabalhos sobre a população em situação de rua, enfatizam que, em muitos casos, as pessoas circulam entre o mesmo território, se mantendo próximos de locais que já conhecem. Os locais para ficar e circular dentro desse mesmo território variam de acordo com o tipo de espaço urbano ocupado (ESCOREL, 1999) e de acordo com as necessidades dos sujeitos ou dos grupos.

Em médias e grandes cidades, os grupos de pessoas em situação de rua tendem a ficar e circular pelos centros. Essas escolhas se dão por questões estratégicas e de sobrevivência. Nos centros e bairros centrais há um maior fluxo de pessoas e de carros, maiores números de supermercados, lanchonetes, praças e áreas de bancos. Por conta disso, possuem maiores condições de conseguir serviços e bicos, dinheiros e doações e maiores condições de sobrevivência, como conseguir alimentos, remédios e permanecer e pernoitar, já que são locais que ficam mais desertos à noite, proporcionando uma maior privacidade para exercer atividades próprias da esfera domésticas (ESCOREL, 1999). E esta inversão de atividades da rua versus casa é um ponto forte de nossa investigação e será tratada mais adiante.  

Ademais, tanto quem possui endereço quanto quem se encontra em situação de rua, mas que não possui residência, circulam entre os próprios logradouros públicos. Isto porque quase não é possível permanecer ou pernoitar todos os dias, e por muito tempo, no mesmo local, já que ficam em evidência, tanto pela vizinhança e os moradores das casas e condomínios ao redor, quanto por agentes públicos.

A transitoriedade entre espaços também se relaciona, diretamente, com o viver sob o não-reconhecimento e sob a égide do estigma. Isto quer dizer que, o grupo de pessoas que faz das ruas seus espaços de convívios e sobrevivência, carregam, em seus corpos, de forma material ou simbólica, o não-reconhecimento enquanto sujeitos sociais, cidadãos plenos, detentores de direitos, e o estigma de “viverem na rua”, “fora das regras sociais” e serem parte de uma estética da cidade que escancara a pobreza, a desigualdade e o racismo institucional4. São, constantemente, associados a “mendigos”, “cracudos”, “marginais” e “vagabundos” e possuem seus direitos básicos negados (como o acesso à saúde e à moradia).

Mesmo diante das inconstâncias do “viver nas ruas”, Eulália5, a coordenadora do Centro POP de Volta Redonda, salientou para a importância de estabelecer vínculos entre estas pessoas e as redes de acolhimento. Isso aumenta as chances de respostas positivas e de sobrevivência diante das hostilidades das ruas. Apesar de destacar que a cidade conta com muitos grupos voluntários que ofertam, principalmente, alimentos, produtos de higiene e vestuário, para Eulália esses grupos não se preocupam com o acesso a direitos básicos e afirma:

Entendo a importância das necessidades imediatistas, ninguém quer morrer de fome! Mas estas ações acabam impedindo que essas pessoas cheguem até as redes em busca de ajuda. Aqui, além de comida, vão encontrar uma intervenção efetiva de prevenção, promoção, reabilitação

(Diário de campo, março de 2021).

Em consequência das inúmeras reclamações sobre a quantidade de “pedintes” perambulando pela cidade, esta também é uma forma que o Centro POP encontrou para manter certo controle sobre as idas e vindas das pessoas. Até o mês de março de 2021, aproximadamente três mil pessoas do circuito das ruas (entre elas trecheiros, andarilhos e migrantes) haviam passado pelo Centro POP para receber algum tipo de assistência.

Depois de dez anos morando na capital paulista, Elisa retornou para Volta Redonda, segundo ela, em busca de “tranquilidade”. A fala indignada que deu título a este artigo, “eles estão por todos os lugares”, foi dita enquanto Elisa, a dona de uma loja no centro da cidade, expressava seu incômodo com a presença de um catador de latinhas que revirava uma lixeira. O pequeno estabelecimento estava localizado no centro da cidade, no Aterrado, bairro movimentado da cidade, que serve, inclusive, de moradia para pessoas em situação de rua durante a noite. “Estar por todos os lugares”, como ela mesma diz, significa reformular continuamente os sentidos do próprio lugar e das pessoas que também fazem parte desses lugares. A “tranquilidade” a qual se refere está intimamente ligada à ausência desses sujeitos, uma memória longínqua da cidade que um dia já foi “limpa”. Portanto, a estigmatização desses corpos produz uma perturbação intimamente ligada à quebra de fronteiras e das regras sociais previamente estabelecidas, visto que, não ter casa, significa “morar” em todos os lugares.

Quando a comerciante nos diz que “eles estão por todos os lugares” nos trouxe uma reflexão do que é ser invisível e estar visível na gramática urbana e social a partir da cidade de Volta Redonda. Nos amparando numa literatura clássica sobre invisibilidade de pessoas em situação de rua a partir da ausência de direitos e cidadania, percebemos também como essa invisibilidade se torna visível quando as pessoas em situação de rua ocupam e compartilham espaços com os cidadãos volta-redondenses.

As pessoas que precisam das ruas para habitar e sobreviver são atravessadas pelos estigmas e pelos sentidos que são dados aos espaços; são vistos como “fora do lugar” independente do espaço que estejam ocupando. Em diversos aspectos, é perceptível a diferença entre Volta Redonda e a capital paulista, mas ambas lidam com os atravessamentos da vida de pessoas itinerantes, mesmo que em escalas diferentes. Não encontramos números precisos que mostrem que houve um aumento da população em situação de rua em Volta Redonda nos últimos anos, mas visivelmente passaram a fazer parte do cenário das ruas que, por sua vez, também passaram a ser marcadas por contornos e articulações criadas a partir da circulação dessas pessoas. Para que estas não estejam “por todos os lugares”, é preciso criar formas de interceptação e maior controle do fluxo dos indesejáveis pelo espaço urbano. E isso colocou o município na posição de “cidade referência” do Sul do estado em acolhimento/controle da população em situação de rua.

Não por acaso, em 2014 a cidade iniciou a implementação do Consultório na Rua, com a proposta de integração entre os dispositivos assistenciais e o território, em que o atendimento pode ocorrer nas próprias ruas. Em 2018, esta forma de intervenção foi efetivamente colocada em prática e funciona como um poderoso dispositivo de interceptação, controle e “limpeza” dos espaços públicos.

Casa, Rua e a Circulação – Aquém e Além da Casa

Dentro dos estudos das Ciências Sociais, as casas não são vistas apenas como um bem material e local de habitação. São espaços de convívio, de trocas, de realização e compartilhamento de cuidado, de trabalhos, de fluxos de dinheiro, de disputas, pertencimentos, brigas e acolhimentos. A casa não é, ainda, um espaço isolado. Ela está intrinsicamente relacionada às outras casas e à sua vizinhança, numa configuração de casas (MOTTA, 2014) – uma interdependência entre as casas, representando a possibilidade de se compartilhar a vida.

Quando não se tem o espaço físico da casa, tais relações são estabelecidas e feitas nos logradouros públicos, nos albergues e abrigos. Enquanto nas casas a circulação da vida cotidiana, para a realização de necessidades básicas, é feita entre os próprios cômodos, cada qual com seu propósito, e entre os espaços da vizinhança, de uma casa à outra, nas ruas essa circulação se estende aos espaços públicos e às instituições. Praças, viadutos, avenidas, becos são os principais locais de parada, de pernoite e de trabalho.

Estamos, então, oferecendo indícios de que a circulação pela cidade e as formas de habitar os espaços urbanos, seja através logradouros públicos ou instituições, representa, em algum sentido, a vida doméstica fora da casa. Como, a partir da rua, se ganha e se faz a vida, se reproduz o trabalho, se cuida, se alimenta, se convive.

Ultrapassando uma definição clássica de público e privado6, viver na rua é realizar as necessidades básicas, de subsistência, de cuidado, de manutenção da vida e de trabalho nos próprios logradouros públicos. É ter nos espaços públicos das ruas, becos, casas abandonadas, seus locais de morada provisória ou permanente, sem divisão entre a casa e rua, entre sua própria casa e a casa de um vizinho e entre os próprios cômodos de uma casa. Estão, pois, ocupando um espaço singular, que não é próprio, e portanto, “transitório”. Estão fora da gramática social e, “para evitar a reação, a confusão e o conflito desencadeados por sua ação de ocupar subversivamente a rua para dela fazer a casa, devem deslocar-se continuamente.” (ESCOREL, 1999, p. 236).

Escorel (1999) destaca que as pessoas em situação de rua podem ser distinguidas em três tipos: as que circunstancialmente ficam na rua, as que estão recentemente na rua e as que estão permanentemente na rua. Nos dois primeiros casos, as pessoas transitam mais entre espaços públicos e albergues e abrigos; no último, a rua é, de fato, sua casa, sendo montadas cabanas, espaços com papelões e panos ou preenchendo casas abandonadas, podendo, eventualmente, alojar-se em abrigos ou pensões.

Alguns espaços da cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, já são estabelecidos e conhecidos como espaços de moradia, convivência e sobrevivência de pessoas em situação de rua, como as beiras das linhas de trens, o Largo de São Francisco e o Centro da cidade. No contexto volta-redondense, um dos nossos interlocutores afirmou que as pessoas que vivem nas ruas da cidade procuram locais para pernoitar ou apenas passar alguns dias e, em seguida, voltam a procurar um novo lugar mais seguro nas ruas do município ou em seus arredores.

Mas, a partir de nosso campo, também identificamos grupos de pessoas em situação de rua que tomam determinados lugares da cidade para fazer de abrigo de forma mais prolongada. É o caso de um dos homens em situação de rua que acompanhamos a partir de grupos de voluntários de doação de alimentos7: o pescador, seu filho e alguns outros homens se estabelecem embaixo de um dos principais viadutos do centro da cidade, organizando seus bens, dividindo espaços com papelão e aproveitando a beira do rio para pescarem – o pescador e seu filho são conhecidos por pegarem peixe no rio Paraíba do Sul8. Não sabemos, contudo, há quanto tempo eles estão estabelecidos embaixo do viaduto, e se identificam aquele local como uma possível moradia. Mas percebemos que lá estão eles, toda semana, no horário da noite, voltando de trabalhos e bicos que tenham feito ao longo do dia.

Leandro é um dos psicólogos que trabalha no Consultório na Rua em Volta Redonda e preocupa-se em dizer que o espaço seguro para moradias ao qual se referiu está menos relacionado à violência das ruas em si e mais relacionado às remoções compulsórias que acontecem por meio de agentes do próprio Estado. Por outro lado, há também pessoas que ficam mais visíveis na arquitetura urbana, como no caso daqueles que ficam, dormem ou desmaiam em calçadas, sem nenhum tipo de proteção ou separação de seu corpo com a sujeira do chão. E com a justificativa de realizarem uma “ação” para encaminhá-los a espaços de acolhimento, os agentes do Estado acabam por forçar a saída das pessoas destes locais. É de bom tom ressaltar que em cidades de médio porte há um maior controle do poder público sobre a população em situação de rua e sua circulação ou permanência nos lugares.

Em qualquer lugar, a rua representa uma dinâmica própria e complexa. Viver na rua representa ocupar espaços públicos que também refletem um tipo de sociabilidade, como compartilhar um beco, uma praça, um viaduto, partilhar roupas, alimentos, bebidas. Viver em transitoriedade entre os espaços públicos e os espaços de acolhimento significa, também, não estar isolado. A rua representa a possibilidade de relações sociais múltiplas, que influenciam nos itinerários e constituem as relações que serão estabelecidas com os atores sociais, sejam instituições assistenciais públicas ou privadas, sejam desconhecidos, sejam sujeitos que compartilham o cotidiano.

“Circular sem permanecer” (LEMÕES DA SILVA, 2012) compreende essas relações familiares, afetivas e institucionais. Enquanto em uma casa se mantém um contato frequente com familiares e vizinhos, as relações afetivas na rua são atravessadas por idas e vindas, sem um ponto fixo e permanente de encontro e de contato. Por outro lado, isto não quer dizer que tais sujeitos não possuam seus vínculos afetivos, estabelecidos com outros sujeitos com os quais compartilham a vida.

Como mencionado acima, há grupos de pessoas que vivem nas ruas que compartilham um local fixo que fazem de morada, um local já entendido como de permanência. Nestes casos, a circulação ocorre por outros motivos, como ir em busca de trabalhos ou de alimentação. De qualquer forma, a “itinerância e a fixação se intercalam” (ESCOREL, 1999, p. 252) no cotidiano de quem tem as ruas como abrigo e local de trabalho, e essa relação fixação e circulação varia de acordo com as circunstâncias. A autora ilustra tal situação da seguinte forma:

A itinerância é condicionada pelos horários estabelecidos para distribuição de comida ou outras doações pelas instituições assistenciais, assim como por fatores relacionados com as possibilidades de trabalho e rendimento através da coleta do lixo, no caso, as relações estabelecidas com porteiros e vigias para acesso às “fontes”, o horário de passagem de caminhão da limpeza urbana e o horário de funcionamento dos depósitos. A fixação depende de que não haja reclamações (porteiros, moradores, comerciantes) e, por vezes, ocorrem mudanças de locais por outros interesses (amizades ou comida mais próxima)

(ESCOREL, 1999, p. 252-253).

Para viver na rua é imprescindível se manter seguro. Para tal, é necessário tanto encontrar locais mais seguros para pernoitar, como buscar instituições de acolhimento, quanto se manter em grupos. Neste último caso, é entendido que sobreviver sozinho é mais difícil do que sobreviver em bando. Manter-se com um grupo, então, é uma forma tanto de manter relações de sociabilidade, quanto uma forma de proteção em casos de roubos e de violências (de transeuntes e de agentes públicos, como policiais e guardas municipais).

As pessoas que são atendidas por grupos de voluntários de doação de comida em Volta Redonda, que circulam pela cidade, normalmente estão em grupos. É mais frequente vermos grupos de pessoas em situação de rua que compartilham um espaço e se ajudam e protegem mutuamente. E percebemos que algumas regras são criadas para se fixar, mesmo que por poucas noites, em um local. Um exemplo que trazemos é de um grupo de pessoas em situação de rua, que também recebe as quentinhas doadas pelos voluntários, que ocupam os espaços de uma praça em um dos bairros centrais de Volta Redonda. Essa praça em questão é uma praça famosa, bem movimentada, com barracas de lanches e rodeada por bares, pubs e prédios residenciais. Em uma de nossas conversas com um dos homens que pernoitam naquele local, seu Reginaldo, ele nos diz que não é sempre que conseguem ficar fixados no mesmo ponto da praça. Para receber as doações, eles vão para o lado da praça que dá para uma rua movimentada, com inúmeros bares e pubs ao final dela. Naquela parte, eles param para receber os alimentos, comem e transitam pedindo ajudas e esmolas. Mas, para pernoitar, a fim de não correrem algum tipo de risco, se deslocam para o outro lado da praça, menos movimentado, mais escuro, que dá acesso diretamente às ruas residenciais.

Apesar dessa dinâmica de deslocamento para autoproteção, e mesmo para manter um mínimo de privacidade, as pessoas em situação de rua ficam visadas também pelos moradores dos prédios ao redor. É frequente algum tipo de denúncia por parte dos moradores, que se incomodam com a presença dos indesejáveis e alertam a polícia para “solucionar o problema” – fazendo com que, em grande parte, disperse as pessoas em situação de rua, que precisarão encontrar outros lugares minimamente seguros para pernoitar.

Mas as casas também continuam sendo pontos de passagem nessa circulação de pessoas entre os espaços. Há uma interconexão entre as casas a que pertenciam, as casas de familiares, o bairro de origem e a vida nas ruas, uma interconexão “de duas dimensões aparentemente antagônicas: a casa (o bairro) e a rua, universo de errância e circulação” (SILVA, 2012, p. 45).

Pessoas em situação de rua que possuem endereço fixo, por exemplo, acabam por ficar nas ruas devido às condições precárias de trabalhos e “bicos” e à precariedade da mobilidade urbana. Nestes casos, estar na rua é garantir uma forma de trabalho ofertada através dos espaços públicos (como vigias de carros, coletores de materiais recicláveis, etc.)9 e significa a manutenção de uma outra casa, de uma família. Expressa, pois, a garantia das necessidades de uma casa e “daí em diante, dormir na rua pode significar uma estratégia de economia, visto que voltar para casa também é sinônimo de gastos com deslocamentos”. (SILVA, 2012, p. 47).

Em Volta Redonda, esta mobilidade acontece de forma menos precária, visto que a distância entre os bairros é menor do que em grandes cidades. Entretanto, há pessoas em situação de rua que, ao fazerem uso de substâncias psicoativas, mesmo despois do trabalho ou da mendicância, não conseguem se deslocar até suas casas e acabam ficando nas localidades que passaram o dia.

No caso de pessoas que utilizam a rua como forma de trabalho e nela pernoitam, o estar na rua representa a forma possível de ganhar dinheiro e manter a sobrevivência e manutenção financeira desta casa. Para tanto, uma outra pessoa fica responsável pela manutenção do lar (podemos pensar que são, principalmente, as mulheres), que mantém a organização e a reprodução da vida a partir desta casa e das demais que compõem essa configuração. Estar na rua, então, não significa necessariamente romper com o regime de solidariedade e de redes de cuidados na casa. A casa também está presente nesta circulação e transitoriedade de quem vive ou ganha a vida na rua.

Em um mês, cerca de cinquenta pessoas chegam no Centro POP de Volta Redonda em busca de ajuda de custo com passagem para todo o Brasil, mas com os principais destinos sendo Resende, Porto Real, Vassouras e o interior de São Paulo, de Minas Gerais e do Espírito Santo. De acordo com Luciano de Oliveira (2016), os vínculos da população em situação de rua com a cidade de São Carlos, no interior paulista, estão ligados a alguma referência familiar ou domiciliar anterior à rua. Esta compreensão também contempla Volta Redonda e os focos da Assistência Social, que busca restabelecer esses núcleos de apoio.

Adriana Fernandes (2018) projeta seu olhar atento aos abrigos, que também fazem parte deste conjunto de dispositivos de controle e interceptação de pessoas em condições de precariedade e se inserem no circuito da população pobre e precarizada da cidade. Além desses espaços, também circulam entre as ocupações, invasões, hospitais, clínicas psiquiátricas e prisões10. Muitos desses trajetos são marcados  por circunstâncias expulsivas, que não permitem aos sujeitos “ficar” ou “morar” (MACHADO, 2021).

Tecendo as Redes do Acolhimento – O Circuito das Ruas

Como já mencionado, viver e permanecer na rua traz uma série de riscos. Ao estar na rua, estão vulneráveis tanto às incertezas físicas do tempo (como tempestades, altas e baixas temperaturas), quanto às ações discriminatórias que podem chegar a atos de violências físicas. Aqui, o nosso foco está na ideia de acolhimento em diferentes faces, mas que possuem importantes mecanismos de gerenciamento da população de rua.

Nos centros de acolhimento, assim como em outros espaços como postos de saúde, UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) e hospitais, os sujeitos enfrentam tanto os estigmas (re)produzidos pelos agentes públicos, quanto as dificuldades de cumprirem com as exigências dos espaços. Dentro disto, vale destacar, mesmo que brevemente, que as pessoas em situação de rua possuem diversas dificuldades em receber atendimentos da ordem psicossocial, principalmente em níveis de cuidado com maior complexidade. Como salientam Teixeira et al. (2019), trabalhadores do Consultório na Rua (CnaR) relatam que muitos profissionais de outros setores de serviços da saúde só atendem pessoas em situação de rua se acompanhadas por algum profissional da equipe do CnaR – demonstrando o quanto esses sujeitos estão à margem de seus próprios direitos básicos.

A abordagem na rua é uma das principais portas de entrada para as diversas formas de acolhimentos. E, além disso, permite realizar essa aproximação e estabelecer vínculos entre os funcionários e a população de rua que não utiliza os serviços institucionais, mas que, ainda assim, precisam de acolhimento. De acordo com Martinez (2016), acolher implica ouvir, e é neste momento que se inicia a abordagem, por isso é uma técnica investida na intimidade e na atenção aos sofrimentos psíquicos e físicos desses sujeitos.

O Serviço de Acolhimento para População em Situação de rua (RIO DE JANEIRO, [2022], p. 45)11 é uma forma de acolhimento provisório, que visa garantir um espaço com privacidade para pessoas do mesmo sexo ou para um grupo familiar e são ofertados em abrigos e casas de passagem, sendo dividido em três modalidades: Abrigo Institucional, Casa de Passagem12 e República.

O Abrigo Institucional é uma forma de acolhimento provisório que se caracteriza como uma residência provisória. Os acolhimentos aos usuários dos abrigos (pessoas adultas ou grupos familiares com ou sem crianças) devem ser realizados levando em conta abordagens que fortaleçam os vínculos afetivos, familiares e entre os próprios grupos. Já as Casas de Passagem são unidades de acolhimento imediato e emergencial. Ou seja, acolhem indivíduos ou grupos familiares em qualquer horário do dia e da noite e devem verificar as condições apresentadas por cada pessoa ou grupo de pessoas. Esta modalidade representa o principal local de transitoriedade das pessoas que se abrigam: são locais temporários de passagem, como, em alguns casos, de apenas uma noite.

Uma terceira modalidade de acolhimento por parte do Estado é o Serviço de Acolhimento em repúblicas, que funciona de maneira mais diferenciada. Tal serviço oferece proteção, apoio e moradia subsidiada às pessoas que antes estavam em situação de rua e que estão em fase de reinserção social, retomando vínculos sociais. O serviço funciona através de um sistema de autogestão ou cogestão e seu período de funcionamento deve ser ininterrupto com permanência máxima de 12 meses (RIO DE JANEIRO, [2022]).

Esse é o tipo de serviço que busca, além do acolhimento, a saída de tais sujeitos da rua. Para isso, atua juntamente com políticas sociais e de transferência de renda, como o Bolsa Família (BRONZO et. al., 2021)13, participação em programas e benefício da Assistência Social, projetos de habitação, fortalecimento de vínculos sociais e familiares, entrada no mercado de trabalho formal e acesso a serviços públicos universais, como saúde, educação, geração de emprego e renda (RIO DE JANEIRO, [2022]).

Morar na rua cria uma desvinculação material e simbólica do espaço da casa com seus moldes da “parede, janelas e portas”. Mas, o tempo longo de estada e circulação, por vezes, torna a condição de rua, voluntária ou involuntariamente, uma realidade menos transitória. Algumas pessoas em situação de rua optam radicalmente por este modo de vida, outros esperam por uma casa nova o tempo todo ou recorrem às redes de assistência. Há, ainda, os que erguem habitações constituídas de uma temporalidade frágil, pois, além de estarem situados em espaços de intervenção urbana constante e hostil à sua permanência, são espaços muito vulneráveis – como cobertura de papelão e/ou plástico (FRANGELLA, 2010).

Mesmo que prefiram não permanecer por muito tempo nos abrigos, por inúmeros motivos14, estas e outras instituições fazem parte do itinerário assumido pelos sujeitos. Carriconde (2019) salienta para a porosidade das fronteiras entre esses dois territórios: rua e abrigo. A autora compreende essas instituições como:

Zona de indefinição que garante aos seus usuários plasticidade e transitoriedade de seus estatutos e práticas, sensíveis não só às políticas urbanísticas, assistenciais e penais, como às políticas do campo da saúde geral e mental

(CARRICONDE, 2019, p. 76).

Os abrigos se localizam dentro de uma rede de instituições que vão da saúde à justiça, servindo como retaguardas para corpos adoecidos, corpos a serem ou seguirem sendo vigiados e cuidados, que não podem seguir em instituições de confinamento e saúde, mas que delas não podem ser totalmente desvinculadas.

Junto a outros dispositivos da assistência e aos dispositivos penais e da saúde (descritos anteriormente) forma-se uma rede de serviços, programas e instituições por onde transitam os indesejáveis de muitas ordens (MARTINEZ, 2015; RUI, 2014; MALLART; RUI, 2017). Em muitos casos, esta população, estando “fora da rede”, fica mais exposta à falta do cuidado em diversas escalas – ausência de exames médicos, medicamentos, cirurgias, recuperação.

Por um lado, podemos dizer que os abrigos são espaços coletivos onde estas pessoas também constroem suas subjetividades, seus recursos materiais, suas resistências e sobrevivências. É nesse sentido que Raquel Carriconde (2019) propõe que os abrigos estão nas margens do Estado, envolvendo tanto pessoas usuárias quanto seus funcionários em virações por dentro do Estado. Viração aqui entendida como formas de conseguir recursos para a sobrevivência e recursos simbólicos para se comunicar e se posicionar (GREGORI, 2000), e como uma mobilidade marcada pela inconstância e instabilidade e transitoriedade entre trabalhos formais e informais (SILVA, 2011).

Ao passo que funcionam como assistência e cuidado, as instituições também exercem formas de poder, controle e coerção. A atuação e a função das instituições cumprem esse papel ambíguo e dinâmico, tão tratado dentro das ciências sociais, sobre cuidado e controle. A assistência e o acolhimento são indissociáveis da punição, dos dispositivos de criminalização de um grupo e mesmo de reafirmação de noções estigmatizantes (CASTEL, 1998, 2000; FOUCAULT, 1987; GOFFMAN, 1974).

É, em determinado sentido, o que acabamos percebendo no caso de seu José, figura conhecida pelos assistentes sociais, funcionários públicos e voluntários. Seu José vive na rua há muitos anos. Ninguém sabe exatamente com o que trabalha, mas sabe-se que ele está sempre circulando pela cidade e fazendo um bico aqui e outro ali. E sabe-se também que ele sempre para e pernoita em uma parte específica da cidade, bem próximo ao Centro Pop e aos centros comerciais. Quando os voluntários saem para doar as comidas e demais itens, sempre indagam “precisamos ver se seu José está ali hoje”, “mais ali na frente a gente vai encontrar o seu José”. Seu José é uma figura que nos traz algumas importantes reflexões por alguns motivos principais.

O primeiro deles é sua recusa a ir para abrigos e albergues, já que, nestes locais, não é permita a entrada e o uso de bebidas alcoólicas. Seu José prefere dormir e ficar nos espaços da rua a abrir mão dessa “liberdade” e de sua possibilidade de consumir álcool. O segundo deles é referente às doações que aceita ou não: seu José não costuma aceitar determinados itens, como roupas e cobertores, que estejam em melhor estado. Ou ele pede para lhe darem outros itens num estado inferior, ou recusa, afirmando que encontrarão outras pessoas “que precisam mais” do que ele.

Seu José, em determinados sentidos, nos demonstra as fragilidades e os limites das instituições, e nos retrata, em seu modo de habitar a rua e se relacionar com outros atores, esta relação ser invisível e estar visível. Constantemente é perguntado por assistentes sociais se não prefere ir a alguma das instituições, sempre negando. Constantemente lhe é oferecida roupas novas, sempre negando. Ainda nos falta um contato maior e mais profundo com seu José, mas o que nos aparece até então é que a invisibilidade posta a ele, por ser um morador dos espaços públicos da rua, o fez permanecer nessa invisibilidade, preferindo não ser o centro das ações governamentais ou voluntárias de ações sociais.

A temporalidade dos abrigos está associada às especulações desses espaços se tornarem uma zona de conforto ou um hotel e, pejorativamente, como um “lugar de gente que não quer nada” (FERNANDES, 2018). Este “dia após dia” é atravessado pela impossibilidade de ficar nos abrigos por muito tempo, cujo tempo do abrigo e os “tempos” da vida nas ruas não são compatíveis.

Tais corpos estão às margens, no sentido proposto por Veena Das e Deborah Poole (2008), ocupando brechas nos espaços entre a lei e a disciplina e, nesse sentido, expressando tanto perigo quanto poder. Porque não respeitam fronteiras e perturbam o sistema de posições e regras e, portanto, são indesejáveis e não podem estar próximos do restante da sociedade. Esse afastamento dos sujeitos perigosos permitiu que as Comunidades Terapêuticas emergissem dentro de uma ordem discursiva que lhes dava legitimidade, como “tutoras dos indesejáveis”. Mas em Volta Redonda a forte atuação das igrejas católicas tem uma longa trajetória e se destaca nesse cenário desde os movimentos de base católicas que eram comuns nas décadas de 199015.

No caso de Volta Redonda, os grupos de voluntários de doações de comida exercem papel de destaque para a viração e luta diária de pessoas em situação de rua. Os grupos de voluntários católicos (os quais nós acompanhamos e nos inserimos) circulam pela cidade com um cronograma pré-determinado e com um mapeamento objetivo da cidade: circulam principalmente pelos bairros do centro e atendem grupos de pessoas em situação de rua que já são conhecidos por eles. Assim, os voluntários param em locais específicos da cidade já sabendo que ali encontrarão aquele determinado grupo.

Em uma de nossas idas a campo, numa das principais praças de um bairro central da cidade, encontramos um grupo de cinco pessoas, quatro homens e uma mulher (acompanhada de seu parceiro). Neste momento, um dos casais responsáveis pela organização das doações tirou do carro uma blusa social e alguns cobertores. A mulher, Laura, veio em direção de Arnaldo, um homem aposentado de 65 anos que vive em situação de rua, e lhe estendeu a blusa social, dizendo que, quando a viu, logo se lembrou dele. Seu Arnaldo ficou imensamente satisfeito, agradeceu a Laura e disse o quanto gostava de andar bem vestido. “Nós lembramos logo de você”, respondeu Laura.

Em seguida, um rapaz que vinha em direção ao grupo perguntou se ainda havia comida e se haveria um tênis mais novo para substituir o que calçava, que já estava gasto e rasgado. Prontamente Laura se direciona até o carro e lhe estende um par de tênis em ótimo estado, recebendo um sorriso e um agradecimento do rapaz.

Tais casos ilustram como a atuação dos voluntários, de determinada forma, ameniza o trabalho diário e constante para suprir as necessidades básicas de pessoas que possuem as ruas como espaço de trabalho, moradia e circulação. Como já sabem os dias e os horários em que os voluntários irão passar, os grupos de pessoas em situação de rua que são diretamente atendidos pelos voluntários se organizam para estar nos locais no horário certo, a fim de não perderem o café, o almoço ou a janta e não precisarem se preocupar em arrumar comida naquele período do dia.

Assim, o que percebemos é um duplo movimento: ao passo que os voluntários param naqueles lugares pré-determinados já sabendo que ali encontrarão grupos de pessoas em situação de rua (a maioria já conhecida por eles), os grupos em situação de rua retornam e permanecem nesses locais já sabendo e à espera dos alimentos e demais itens. Por mais que já tivessem aqueles espaços como pontos de parada e pernoite, e que exatamente por isso os voluntários mapearam aqueles locais como pontos fixos de parada, a permanência frequente, todos os dias ao longo dos meses, é produzida pela certeza de ter uma janta ao final do dia. E não apenas a janta é produtora dessa dinâmica, mas também a relação interpessoal que se cria: com os voluntários, eles são conhecidos, contam sobre seus dias, relatam sobre trabalho, desemprego, dificuldades materiais. E compartilham conquistas, pequenas vitórias, fofocas, histórias de vida. Como no caso de seu Arnaldo, que não apenas ganhou uma blusa social do jeito que gosta, e não apenas recebeu uma marmita para jantar, mas também compartilhou (e compartilha) algumas conquistas do dia, como ter conseguido uma bike para ajudar na sua locomoção do dia a dia.

Essa breve discussão buscou mapear como estes espaços operam com a ideia do acolhimento e, além disso, como eles também fazem parte da movimentação das margens, compõem o cenário das ruas e os fragmentos que mantêm essas trajetórias vivas e circulando.

À Guisa de Conclusão

Variados são os motivos que levam as pessoas em situação de rua a terem uma rotina itinerante: necessidades básicas, trabalho, abrigo, proteção, criminalidade, perseguições por tráfico ou outros delitos, políticas públicas – que podem acabar em mobilidade forçada.

Importa-nos dizer que independente das variações do ficar na rua, estar na rua e ser da rua (OLIVEIRA, 2016), estas pessoas movimentam todos os espaços da cidade e podem ser acolhidas ou repelidas por eles. Este último força aqueles que vivem nas ruas ao deslocamento e é através desse movimento que recriam sua territorialidade. A intensidade desse movimento também está conectada à temporalidade das cidades e dos seus habitantes. A repulsa provoca reações imediatas que levam a um deslocamento altruísta ou forçado desses sujeitos. Seja pela própria intenção de mudar, seja pela denúncia de lojistas ou moradores, seja por agentes do Estado, a genealogia da mobilidade não interfere na continuidade do fluxo.

Seguindo as marcações de Giorgio Agamben (2002), os espaços que compõem o circuito das ruas, o circuito das margens, são espaços de suspensão, igualmente precário e liminar da vida nua, a vida matável. Contudo, as casas e as instituições que citamos nesse artigo estão inseridas em zonas igualmente transitórias e complexas. Percebemos que há uma extensa ramificação de setores: Abrigos, Centros de Acolhimento, Casas de recuperação, Consultório na rua, projetos voluntários e tantos outros, em que todos eles fazem parte de uma rede que oferece atenção básica e demais cuidados e ao mesmo tempo são indefinidas e sensíveis, assim como os dependentes de suas políticas.

A perspectiva etnográfica tem sido fundamental para a apreensão das potencialidades da vida nas ruas em Volta Redonda. A cidade apresenta pistas de um cenário que exige um olhar cuidadoso sobre os modos de viver nas ruas e seus desdobramentos. Estes sujeitos vivenciam o espaço das ruas entre a circulação e o confinamento, reconfiguram as noções de casa e evidenciam o descompasso e a fragilidade das instituições. A rede que compõe os atendimentos estatais e assistencialistas, os processos de acolhimento/controle, a visibilidade desses sujeitos em programas sociais e autônomos acabam por reforçar a situação de rua como “fora do lugar”.

Entendemos que estas formas de assistência e acesso a equipamentos de saúde, de tratamentos, programas sociais heterogêneos e pontuais, são políticas que possibilitam condições mínimas de um cotidiano fragmentado. Porém, todas elas apontam para uma forma indireta de abandono desta minoria indesejada, mas ainda assim evidenciam que estes sujeitos “estão por todos os lugares” – o paradoxo do visível e invisível tratado pelos estudos da situação de rua.

Nesta dialética do visível e invisível, ocupar os espaços da rua, de uma praça, de uma calçada dá luz à imagem do sujeito que é constantemente apagado da gramática social e urbana. “Estar em todos os lugares” nos dá alguns indícios e nos levanta algumas reflexões do que é, de fato, ser alguém da rua, que tem a rua como moradia, como pernoite, como trabalho, como local de sociabilidade. Se está em todos os lugares, circulando à procura de emprego, à procura de comida, à procura de assistência; se está em todos os lugares também ocupando os espaços urbanos, muitos deles negados para os “marginais”, os “invisíveis”, aqueles com os quais preferimos não lidar. Ao passo que são invisíveis para as principais políticas sociais e para direitos fundamentais básicos, são visíveis quando ocupam espaços nos quais não deveriam estar. “Estar em todos os lugares” é estar na frente de uma loja numa avenida comercial no centro da cidade, sendo visto como um sujeito que poderá repelir uma clientela, causar uma má impressão ao estabelecimento ou causar problemas para donos e clientes.

Mas, para além da fala de denúncia feita pela comerciante, percebemos o “eles estão por todos os lugares” como uma rica chave etnográfica para – ao menos começar a – entender e delinear a gramática da circulação, da exclusão e da dinâmica da vida urbana a partir de uma média cidade. Uma cidade planejadamente construída ao redor de uma indústria, que recebeu migração de trabalhadores de quase todo o Brasil, e que se configurou numa dialética urbana entre bairros operários e periféricos e uma classe média que ascendeu nos áureos anos da Indústria Siderúrgica Nacional.

Nesta direção, percebemos, e defendemos, que ser invisível e estar visível é construído a partir de uma temporalidade e uma relação interpessoal específica. Assim como são invisíveis no cotidiano das cidades, no acesso a direitos, cidadania e reconhecimento, se tornam visíveis quando ocupam espaços que lhes são negados e entendidos que não são para eles.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

BRONZO, Carla; OLIVEIRA, Breynner R.; CIRENO, Flávio; ARAÚJO, Edgilson Tavares de; JANNUZZI, Paulo. Auxílio Brasil não é o Bolsa Família melhorado: um salto no abismo e o desmonte da proteção social no Brasil. Estadão, São Paulo, 3 nov. 2021. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/auxilio-brasil-nao-e-o-bolsa-familia-melhorado-um-salto-no-abismo-e-o-desmonte-da-protecao-social-no-brasil/. Acesso em: 22 nov. 2022.

CARRICONDE, Raquel Martini. “Cair na rede”: circulações desde os abrigos da cidade. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

CASTEL, Robert. As armadilhas da exclusão. In: BÓGUS, Lucia; YAZBEK, Maria Carmelita; BELFIORE-WANDERLEY, Mariangela (org.). Desigualdade e a questão social. São Paulo: EDUC, 2000. p. 235-264.

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.

CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2002. v. 2.

DAS, Veena; POOLE, Deborah. El estado y sus margenes. etnografias comparadas. Cadernos de Antropologia Social, Buenos Aires, n. 27, p. 19-52, 2008.

ESCOREL, Sarah. Vidas ao léu. trajetórias de exclusão social. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999.

FERNANDES, Adriana. Quando os vulneráveis entram em cena: estados, vínculos e precariedades em abrigos. In: BARROS, Joana; COSTA, André; RIZEK, Cibele (org.). Os limites da acumulação, movimentos e resistência nos territórios. São Carlos: USP, 2018.

FONTES, Ângela Maria Mesquita; LAMARÃO, Sérgio Tadeu de Niemeyer. Volta Redonda: história de uma cidade ou de uma usina?. Revista Rio de Janeiro, Niterói, v. 1, n. 4, p. 15-23, 1986.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 27 ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

FRANGELLA, Simone. Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade de moradores de rua em São Paulo. São Paulo: Fapesp, 2010.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva. 1974.

GREGORI, Maria Filomena. Viração: experiências de meninos nas ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

LIMA, Raphael Jonathas da Costa. A “reinvenção” de uma cidade industrial: Volta Redonda e o pós- privatização da companhia siderúrgica nacional. 249f. 2010. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

MACHADO, Carly. Presos do lado de fora: comunidades terapêuticas como zona de exílio urbano. In: FIORE, Mauricio; RUI, Taniele (org.). Comunidades terapêuticas no Brasil. Brooklyn: Social Science Research Council, jun. 2021.

MALLART, Fábio; RUI, Taniele. Cadeia ping-pong: entre o dentro e o fora das muralhas. Pontourbe, São Paulo, n. 21, 2017.

MARTINEZ, Mariana Medina. A gestão da saúde nos registros: empreendimentos para construir redes. AVA, Tucumán, v. 26, 2015.

MARTINEZ, Mariana. O consultório na rua e as novas formas de intervenção em cenários de uso de crack: o caso de São Bernardo do Campo. In: RUI, Taniele; MARTINEZ, Mariana; FELTRAN, Gabriel (org.). Novas faces da vida nas ruas. São Carlos: EdUFSCar, 2016. p. 281-301.

META INSTITUTO DE PESQUISA DE OPINIÃO. Pesquisa nacional sobre a população em situação de rua. [S. l.]: WWP, 2008.

MOTTA, Eugênia. Houses and economy in the favela. Vibrant, Brasília, DF, v. 11 n. 1. 2014.

NEVES, Delma. Habitantes de rua e vicissitudes do trabalho livre. Antropolítica (UFF), v. 2, p. 100-130, 2011.

OLIVEIRA, Luciano Freitas de. A construção das “populações-alvo” nas políticas públicas o caso dos moradores de rua em São Carlos/SP. In: RUI, Taniele; MARTINEZ, Mariana; FELTRAN, Gabriel (org.). Novas faces da vida nas ruas. São Carlos, EdUFSCar, 2016. p. 67-88.

RIO DE JANEIRO (Estado). Ministério Público. A tutela da população em situação de rua: cartilha de orientação. Rio de Janeiro: Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa da Cidadania, [2022]. Cartilha de Apoio. Disponível em: https://www.mprj.mp.br/documents/20184/25421/cartilha_tutela_populacao_situacao_rua_para_grafica_2.pdf. Acesso em: 22 nov. 2022.

RUI, Taniele. Nas tramas do crack: etnografia da abjeção. São Paulo: Terceiro Nome, 2014.

SILVA, Carlos. Viração: o comercio informal dos vendedores ambulantes. In: CABANES, Robert; GEORGES, Isabel; RIZEK, Cibele; TELLES, Vera (org.). Saídas de emergência: ganhar/perder a vida na periferia de São Paulo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.

SILVA, Thiago Lemões da. Família, rua e afeto: etnografia dos vínculos familiares, sociais e afetivos de homens e mulheres em situação de rua. 2012. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2012.

SIMÕES JUNIOR, José Geraldo. Moradores de rua. São Paulo: PÓLIS, 1992.

TEIXEIRA, Mirna Barros; BELMONTE, Pilar; ENGSTROM, Elyne Montenegro; LACERDA, Alda. Os invisibilizados da cidade: o estigma da população em situação de rua no Rio de Janeiro. SAÚDE DEBATE, Rio de Janeiro, v. 43, n. 7, p. 92-101, 2019. DOI 10.1590/0103-11042019S707

VEIGA, Sandra Mayrink; FONSECA, Isaque. Volta Redonda, entre o aço e as armas. Petrópolis: Vozes, 1990.

Notas

3 Até onde se estendeu nossa investigação sobre as Comunidades Terapêuticas em Volta Redonda, percebemos que ainda são espaços pouco mencionados pelas pessoas. Mas há espaços denominados como casas de recuperação, casas de acolhimento, espaços de “resgate” que se assemelham com o funcionamento das CTs. Não será possível aprofundar o debate neste artigo, mas cabe dizer que o artigo de Carly Machado (2021) “Presos do lado de fora: Comunidades Terapêuticas como zona de exílio urbano”, traz uma perspectiva original de discussão deste fenômeno na medida em que não trata da eficácia do tratamento no interior desses lugares, mas, sim, do modo como as CTs se tornam zonas de exílio urbano. E esse percurso analítico aponta as CTs como peças-chave para pensar o circuito das ruas.
4 E aqui podemos pontuar também o caráter racial e da hipermasculinização de homens que vivem nas ruas, normalmente associados a bandidos, criminosos e sujeitos agressivos (FRANGELLA, 2010).
5 Todos os nomes foram alterados para preservar a identidade de nossos interlocutores.
6 Não iremos, aqui, contudo, aprofundar nas questões teóricas entre público e privado.
7 Não entraremos, contudo, nas dinâmicas próprias da atuação dos voluntários e a relação entre estes e as pessoas em situação de rua. Tal questão foi tratada com mais detalhes em trabalho apresentado no 46º Encontro Anual da Anpocs, intitulado “’A rua em Volta Redonda não passa fome’: a circulação de pessoas em situação de rua e as doações de comida”, no ST “Enfoque das ciências sociais sobre a situação de rua no Brasil”.
8 O Rio Paraíba do Sul é uma bacia hidrográfica que corta a cidade de Volta Redonda, tendo importância central para a constituição da cidade. Contudo, por uma série de degradações ambientais, o rio possui alto índice de poluição.  
9 Geralmente estes são “bicos” realizados predominantemente por homens. Nesta direção, há um atravessamento de gênero (que não vamos nos aprofundar neste artigo), em que as mulheres são menos passíveis a romper laços familiares e a abandonar obrigações sociais do cuidado e da administração da casa, enquanto que os homens, no papel de provedor, ou a partir do rompimento com as obrigações do cuidado, possuem mais chances de ver nas ruas uma possibilidade de “ganhar o pão” (ESCOREL, 1999; NEVES, 2011).
10 Importante ressaltar que outros espaços, como ocupações (sejam por movimentos sociais, sejam de forma autônoma e independente), prisões, clínicas psiquiátricas são espaços centrais nesta dinâmica de circulação, voluntária ou forçada. Contudo, por questões práticas, levando em conta o contexto específico da cidade de Volta Redonda, tais espaços não serão desenvolvidos mais a fundo.
11 “Os Serviços de Acolhimento Institucional (Abrigos Institucionais e Casas de Passagem) e os Serviços de Acolhimento em República são serviços que integram a Proteção Social Especial de Alta Complexidade do Sistema Único de Assistência Social - SUAS. Segundo o documento “Texto de Orientação para o Reordenamento do Serviço de Acolhimento para População Adulta e Famílias em Situação de Rua”, desenvolvido pelo Ministério do Desenvolvimento Social, a especificidade desses serviços está na oferta de atendimento integral que garanta condições de estadia, convívio, endereço de referência, para acolher com privacidade pessoas em situação de rua e desabrigo por abandono, migração, ausência de residência ou pessoas em trânsito e sem condições de autossustento” (RIO DE JANEIRO, [2022], p. 45).
12 De acordo com a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, aprovada pela Resolução CNAS nº 109/200971.
13 No governo de Jair Bolsonaro (PL), a política foi desmontada e transformada no novo Auxílio Brasil.
14 De acordo com pesquisa do MDS de 2010 (que possuiu uma amostra reduzida), 69,3% do público que respondeu ao questionário e que preferiam dormir nos albergues afirmaram que os preferiam por questões de violência e 45,2% por questões de conforto. Já dos que preferem as ruas, 44,3% apontaram a falta de liberdade como o principal motivo, 27,1% pelo o horário de funcionamento e 21,4% pela proibição de uso de álcool e drogas. Para mais informações sobre a amostra (META INSTITUTO DE PESQUISA DE OPINIÃO, 2008).
15 Em 1998, após as demissões da CSN em momentos de crise, surgiram muitas mobilizações populares, como a Pastoral Operária e da Juventude que, juntos, fundaram o movimento Grita Volta Redonda, Pela Dignidade e Pela Vida. Os detalhes sobre essa discussão se encontram na tese de Lima (2010).

Autor notes

* Nildamara Theodoro Torres. Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2019). Doutoranda junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: nildamaratorres@gmail.com.
* Ananda da Silveira Viana. Mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2020). Doutoranda em Sociologia junto ao Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisa financiada pela CAPES (Processo n° 88887.495614/2020-00). E-mail: anandasilveiraviana@gmail.com.
Declaração de Co-Autoria: Nildamara Theodoro Torres e Ananda da Silveira Viana declaram terem escrito conjuntamente o artigo na íntegra, sem divisão de partes e/ou seções.
HMTL gerado a partir de XML JATS4R por