DOSSIÊ – A Morte e o Processo de Morrer nas Ciências Sociais
Apresentação do Dossiê – A Morte e o Processo de Morrer nas Ciências Sociais: Perspectivas Sobre Um Fenômeno Multidimensional
Dossier Presentation – Death and the Process of Dying in the Social Sciences: Perspectives Around a Multidimensional Phenomena
Apresentação do Dossiê – A Morte e o Processo de Morrer nas Ciências Sociais: Perspectivas Sobre Um Fenômeno Multidimensional
Mediações - Revista de Ciências Sociais, vol. 28, núm. 1, e47624, 2023
Universidade Estadual de Londrina
Recepção: 01 Março 2023
Revised document received: 27 Março 2023
Aprovação: 10 Abril 2023
Resumo: O campo de estudos da morte e do morrer é amplo e multidisciplinar. Em se tratando de um fenômeno ubíquo e universal, não é de se espantar a pluralidade das abordagens para o estudo da morte. Desde a década de 1960, os estudos sobre morte e morrer nas Ciências Sociais vêm crescendo e se consolidando em um campo com questões, agendas de pesquisa e temáticas consolidadas. Os rituais em torno da morte, dos cadáveres e do adoecimento, as práticas de cuidado, controle e gestão dos corpos mortos ou dos sujeitos em processo de morrer, as crenças, ideias, representações e valores que informam e dão sentido ao fim da vida, todos esses são objetos dentro do guarda-chuva da literatura presente no dossiê apresentado nesse artigo. Ao longo do texto, oferecemos um panorama das questões da área e pontuamos como estas dialogam com os artigos que integram o dossiê.
Palavras-chave: Morte e morrer, cuidados paliativos, estudos cemiteriais, necropolítica, tanatopraxia.
Abstract: Death and dying is a broad and multidisciplinary field. Being a ubiquitous and universal phenomenon, death welcomes a plurality of scientific approaches. Since the 1960s, research on death and dying in the Social Sciences has been growing and has already consolidated into a field with established questions, research agendas, and themes. Rituals around death, corpses and illness, practices of care, control and management of dead bodies or dying subjects, beliefs, ideas, representations and values that inform and give meaning to the end of life, all these objects are found in the literature with which this collection of texts converses. Throughout this paper, we offer an overview of the main questions of the field and point out how these dialogue with each paper included in this thematic number.
Keywords: Death and dying, palliative care, cemiterial studies, necropolitics, thanatopraxy.
Introdução
Estudos sobre a morte e o processo do morrer têm uma longa história e múltiplas faces nas Ciências Sociais. Algumas de suas manifestações mais antigas são encontradas na obra de Émile Durkheim. Seu argumento sobre os “ritos piaculares” e práticas funerárias em sociedades aborígenes (DURKHEIM, 1996), incluído na agenda mais ampla de pesquisa sobre as “formas elementares da vida religiosa”, cujo estudo serviria de indício para entendimento das sociedades modernas, na contemporaneidade peca, do ponto de vista do pressuposto evolucionista, mas não deixa de elicitar questões instigantes. O pensador francês aplica as regras do método sociológico, como as descreveu, sobre o estudo dos rituais que seguiam a perda de um membro do grupo e, assim, conclui que as manifestações emotivas visíveis nesses contextos – os choros, as expiações, o rasgar das vestes, as lamentações – não podiam ser diferentes de um comportamento prescrito. Normas sociais regeriam as atividades dos envolvidos nos ritos funerários, de modo que aquilo que parecia ser absolutamente íntimo – o sentimento de perda – e aparentemente distante de um objeto sociológico – a morte de uma pessoa – se transfigura em um problema social e sociológico ao mesmo tempo. Social porque tais normas existem para assegurar que o enfraquecimento dos laços sociais e da comunidade ocasionado pela morte seja somente transitório e seja manejado da maneira correta. O ritual e suas práticas prescritas são as evidências de uma sociedade em convulsão temporária, visando reestabelecer seu estado homeostático prévio, pelo reforço dos laços que resultaria do luto e da celebração exercidos em formatos preestabelecidos. Sociológico porque tal contexto pode ser entendido à luz de certos conceitos, como coesão social e solidariedade, que evocam a imagem da sociedade como estrutura de laços morais a partir da qual emana um conjunto de significados, indicativos da objetivação e reforço da coesão moral de um grupo.
Discípulo de Durkheim e considerado o pai da antropologia, Marcel Mauss (1979, 2003) desenvolveu as ideias pioneiras de seu tio sobre emoções (e suas expressões individuais e coletivas) em dois artigos: A expressão obrigatória de sentimentos, com primeira publicação em 1921, e Efeito físico no indivíduo da ideia de morte sugerida pela coletividade (Austrália, Nova Zelândia), de 1926. O foco incide sobre o cerne do campo de estudos da antropologia: as relações entre natureza e cultura – ou, em outros termos, entre biologia/corpo e significados articulados a valores que orientam cada grupo ou cultura. Sem dúvida, os estudos da antropologia da morte – ao abarcarem uma produção dirigida aos cuidados corporais, ao que se designou como processos saúde/doença e, sobretudo, aos rituais, contaram com expressivo desenvolvimento a partir das obras de Mauss, Louis-Vincent Thomas, Victor Turner e Van Gennep, entre outros.
Se Durkheim passou por vias duvidosas a sensibilidade contemporânea, isto é, o evolucionismo clássico, para descrever o comportamento humano diante da morte, Philippe Ariès (1981), historiador medievalista francês, apostou numa abordagem historiográfica, embora notadamente circunscrita à França, da Idade Média ao século XX. Investigou as representações da morte no Ocidente, partindo do suposto que, se a segunda é um fenômeno universal, as primeiras mudam ao longo da história. As “atitudes” culturais associadas ao fim da vida são, assim, mapeadas por Ariès. A morte na Idade Média era um evento corriqueiro, familiar e vivido em comunidade. O moribundo sabia de sua morte e a enfrentava diretamente, exercendo relevante papel na organização social do processo de morrer, com apoio da família e da comunidade. A tal atitude Ariès nomeia de “morte domada”. Em contraste, a sociedade moderna ocidental do século XX lidaria com o morrer de maneira privada, medicalizada, com mecanismos de negação e ocultamento. A imagem do leito de morte com o moribundo consciente de si e de sua jornada, cercado pela família e por amigos, é substituída pela imagem do doente no leito hospitalar, cercado e conectado a aparelhos e tecnologia. O enfermo encontrava-se isolado e, frequentemente, ignorante acerca de seu destino. O diagnóstico de Ariès, bem como sua presença enquanto referência na literatura, é evidente até a atualidade (JACOBSEN, 2016). Alçado ao estatuto de paradigma, o refrão da “negação da morte” tornou-se objeto de estudo e crítica para os que duvidam de sua validade (ARMSTRONG, 1987), de sua generalidade e enraizamento em motivos supostamente a-históricos (KELLEHEAR, 2007, p. 54-57), de sua atualidade (JACOBSEN, 2016) ou os que investigam seus usos em contextos específicos (ZIMMERMAN, 2007).
A partir da década de 1970 o tópico passou por uma espécie de “renascimento” nas ciências sociais e humanas (WALTER, 2002, p. 2), a despeito de seu tão mencionado status de “tabu” (BECKER, 1995). Antes ainda, na década de 1960, encontra-se o clássico Awareness of Dying (1965) de Barney Glaser e Anselm Strauss, no qual a dupla de sociólogos estadunidenses apresentaram o resultado de sua extensa pesquisa de campo em unidades de tratamento intensivo. O clássico A solidão dos moribundos (2001) de Norbert Elias, publicado em 1982, é até hoje um marco, não apenas da literatura especializada como também da teoria social do século XX. Recentemente, o conceito de “necropolítica” (MBEMBE, 2016) ganhou espaço na antropologia crítica e na esfera pública, enquadrando a morte em um debate sobre a construção política dos corpos. Tais obras e suas respectivas vertentes serão apresentadas ao longo do texto, tendo como âncora os artigos que compõem esse dossiê.
Na seção seguinte, apresentamos alguns tópicos estruturantes do campo, com base em leituras macro-históricas da morte e do morrer. A escolha é estratégica e metodológica: a lente macro-histórica e sociológica, embora peque pela falta de detalhes e nuances, permite vislumbrar as grandes questões que até hoje informam o estudo da morte e do morrer, além de possibilitar e facilitar a exposição do estado da arte, em termos daquilo que permanece e do que há de novo. A partir das obras seminais de Philippe Ariès e Norbert Elias é possível alcançar uma compreensão do que há de específico no estudo da morte e do morrer segundo a perspectiva das Ciências Sociais. De um lado, as representações e os rituais subjacentes à história das mentalidades de Ariès, e de outro os papeis, as relações sociais e estruturas que adquirem caráter de mecanismo explicativo para Elias, propiciam um entendimento do fim da vida como problema social, sociológico e antropológico. No entanto, a especificidade histórica, geográfica e cultural de suas abordagens foi e continua sendo objeto de crítica a partir de novas visadas. Após apresentar as leituras “macro”, abordamos algumas vertentes do campo a partir dos artigos que integram o dossiê. O objetivo é contextualizar a literatura contemporânea representada nesse conjunto de artigos, por intermédio dos debates nos quais se inserem.
Questões Estruturantes e a Morte e o Morrer ao Longo das Eras
Phillipe Ariès é referência incontornável na literatura da morte e do morrer nas Ciências Sociais. Medievalista francês, Ariès foi um representante da escola dos Annales e da escola das mentalidades, grupos de historiadores cujo foco era a vida cotidiana de pessoas ordinárias a partir do estudo das mudanças nas representações sociais. Em contraste com a história centrada nas grandes figuras, historiadores como Ariès dedicaram-se a abordar e entender o horizonte de experiência de determinada época, atribuindo ênfase às representações e aos costumes, que se coadunariam no amplo e difuso conceito de “mentalidade”. Em sua obra L’Homme devant la mort, publicada em 1977 e traduzida para o inglês em 1981, o historiador francês apresenta uma interpretação da história das “atitudes diante da morte” pelas quais a civilização humana haveria passado até então. O escopo ambicioso é contrastado com a especificidade geográfica e antropológica do material, limitado ao período da Idade Média até o século XX na França (ARIÈS, 1981). Ainda ao reconhecer os limites de seu material empírico, Ariès não deixa de tecer generalizações acerca da relação do ser humano com a morte que, ao longo do tempo, vieram a constituir-se como paradigma no campo. A história narrada pode ser assim resumida: na Idade Média a morte era um assunto familiar, corriqueiro e tratado no âmbito doméstico, comunitário e público, pois conduzido por rituais nos quais pequenas comunidades participavam junto ao moribundo e sua família; e religioso, posto que as tradições espirituais eram o principal modo de interpretação da vida, de seu fim e acerca do que viria a seguir. Com os processos sociais que têm sido agrupados sob a vasta rubrica de “modernização”, associada aos conceitos de secularização e individualização – incipientemente discutidos por Ariès, deve-se salientar – o familiar passou a ser estranho, o comunitário e o público dobrou-se diante do individual e íntimo, e o religioso deu lugar ao científico, mais precisamente, ao saber médico. Assim, a “morte domada” do medievo, recebida de bom grado e conscientemente pelo moribundo, gerida religiosamente e com participação ativa da comunidade e da família, ocorrida em casa, transformou-se na “morte oculta” ou “negada” da modernidade. Enquanto tornava-se um assunto sujo, vergonhoso, demasiado grave e afastado da vida cotidiana, o morrer passou das mãos dos padres para os instrumentos clínicos dos médicos, cuja única relação com o fim da vida é uma batalha para evitá-lo ou, no limite, adiá-lo o máximo possível.
A tese da morte oculta não se popularizou por acaso. Não é difícil perceber o embaraço diante do assunto da morte no dia a dia, bem como os procedimentos para disfarçá-la, neutralizá-la e dirimir seus efeitos. Tais aspectos também estão presentes na obra de Norbert Elias (2001), que chega a conclusões semelhantes a Ariès. Todavia, Elias criticou o historiador, por considerar sua leitura da Idade Média deveras “romântica”, argumentando que, se a morte era de fato um assunto do qual se falava mais abertamente naqueles tempos, tal condição não significava que ela fosse menos temida, evitada ou avaliada como grave evento. Ademais, o sociólogo alemão identificou processos sociais subjacentes às transformações da morte na história do Ocidente, os quais, em conjunto, resultam na erosão do papel social do moribundo, apontando mecanismos capazes de explicar as mudanças de “atitude” apontadas por Ariès. Tais mudanças, por sua vez, estão diretamente vinculadas à cada vez mais frágil possibilidade de identificação com os adoecidos, os mais velhos e os moribundos. Com o adensamento das relações sociais de interdependência entre diferentes grupos sociais – as chamadas “configurações” ou “figurações” sociais –, as sensibilidades e as representações sociais transformaram-se em direção a uma regulação mais precisa, equilibrada e diferenciada de comportamentos e assuntos corporais, como a alimentação, a higiene pessoal, o esporte, a doença e a morte.
Na sociedade “tradicional” (Idade Média ao século XVI), o indivíduo se encontrava em redes menos densas de relação, portanto, menos sujeito a pressões por autocontrole e ao controle externo de outrem em seu cotidiano. Assim, a violência e a morte eram assuntos mais corriqueiros, pois morrer uma morte violenta ou por adoecimento era tanto mais comum quanto incerto. A partir do monopólio da violência legítima pelo Estado nacional e com a pacificação interna das sociedades ocidentais, ocorreu uma redução da tolerância à violência, ao mesmo tempo em que atos violentos tornaram-se menos comuns ou aceitáveis. Em paralelo, o aumento da expectativa de tempo de vida, o crescimento da expertise médica e a progressiva delegação dos encargos dos cuidados de doentes e moribundos a instâncias médicas afastaram o fim para uma idade avançada. A imagem da morte cotidiana, violenta e súbita da Idade Média, foi substituída pela morte dolorosa, por adoecimento, no fim de uma longa vida. Concomitantemente, a tendência à individualização típica da modernidade ocidental, que tornou o indivíduo a referência moral e simbólica última acima da comunidade ou do coletivo também impactou a experiência dos moribundos. Segundo Elias, tornamo-nos cada vez menos capazes de identificação com os outros, à medida em que a configuração da vida social na modernidade permitiu maior espaço para diferenciação individual. O moribundo se vê, então, desvalido de suas referências simbólicas tradicionais, pelo processo de secularização, desprovido de suas relações mais próximas pelo processo de individualização, e incapaz de lidar com a morte por sua menor tolerância e familiaridade com assuntos concernentes às necessidades e fragilidades do corpo humano.
Enquanto a morte passa a ser estranha, afastada da vida cotidiana, oculta do cenário social pelas barreiras produzidas pela instituição médica e por profissionais da saúde, a tendência moderna de individualização, em sociedades ocidentais, ergue barreiras entre as pessoas, de modo que compadecer-se do moribundo passa a ser mais difícil do que simplesmente ignorá-lo ou relegá-lo aos “bastidores da vida social” (ELIAS, 2001, p. 31). Individualização e medicalização são, desde Elias, figuras ubíquas na literatura sobre morte e morrer, sendo a segunda associada aos escritos de Michel Foucault (2014) sobre o processo de circunscrição de um número cada vez maior de áreas da vida nas malhas do saber médico. A “solidão dos moribundos” descrita por Norbert Elias é existencial e causada pela erosão das bases simbólicas e materiais que garantiam seus vínculos com aqueles de que mais precisam.
Elias e Ariès figuram como clássicos modernos do campo da morte e do morrer. São poucos os estudos nas Ciências Sociais que não os referenciem direta ou indiretamente. O período de sua publicação, contudo, conduziu a críticas pela falta de contemporaneidade, a despeito de datarem das décadas de 1970 e 1980. Tal situação ocorreu em decorrência das transformações mundiais dos anos subsequentes, que apontaram os limites de uma constatação uníssona do tabu da morte. Não se pode negar que, a nível das interações sociais, a deferência em torno do assunto da morte prevalece, mas uma afirmação como essa ainda deve ser contextualizada.
Na segunda metade do século XX, novas abordagens surgiram em torno da gestão do processo de morrer, a partir do que Louis-Vincent Thomas (1975, p. 8) nomeou como “uma crise da morte no mundo contemporâneo ocidental”. Do ocultamento da morte nos bastidores da vida social e nos corredores dos hospitais, locais em que o uso de eufemismos, metáforas e manobras para esconder o processo de morrer, emergiram proposições com ênfase para uma visibilização do final da vida, que enfatizam a fala aberta e franca sobre a morte (MENEZES, 2004; MENEZES, MACHADO, 2019; SONEGHET, 2020). Na tipologia do sociólogo britânico Tony Walter (2002, 2020), há de se adicionar um modelo de morte “pós-moderna”, diferente daquele referente à morte moderna, caracterizado pelo ethos do “ativismo prático”, o que significa uma implementação de dispositivos burocráticos, recrutamento de profissionais especialistas (PARSONS; LIDZ, 1963), além do surgimento de novas especialidades, voltadas ao acompanhamento dos processos do morrer e do luto (MACHADO; MENEZES, 2018). A morte da pós-modernidade mantém a multiplicação de experts comum da modernidade burguesa (KELLEHEAR, 2007, p. 147) na figura de uma equipe multidisciplinar biomédica, por exemplo, e instaura o self como autoridade máxima. Mais ainda, é o indivíduo entendido como psiquê que ocupa o centro do palco. Morrer é uma jornada do próprio si, um caminho emocional e psicológico a ser gerido na batuta do indivíduo como maestro de sua própria vida, cuja vontade e desejos são o padrão de ouro a ser respeitado pelos diversos especialistas que o circundam. Aqui, a morte e o morrer são personalizados nos mínimos detalhes, o que fomenta e dá razão ao crescente mercado de produtos funerais e médicos em uma crescente formatação do fim da vida (WALTER, 2020). A morte torna-se objeto de processo de medicalização, no qual as instâncias biomédicas e os saberes psicológicos são responsáveis pela produção de esperança (MENEZES, 2013). Em vez de ocultamento motivado pelo terror primordial diante da morte, deveríamos olhar para um novo regime complexo de visibilização, comodificação e sequestro, fomentado pela diferenciação estrutural das funções, típica de sociedades complexas (WALTER, 2020, p. 82).
Corroborando o argumento de Walter, o sociólogo dinamarquês Michal Hviid Jacobsen propôs uma nova fase para a tipologia de Philippe Ariès: a “morte espetacular”. Se é verdade que há uma deferência em torno dos assuntos da morte nas interações cotidianas e que para muitos é difícil encarar a própria mortalidade, também é verdade que a morte está presente a todo tempo nos canais de mídia contemporâneos. Após uma “re-reversão parcial” da “morte proibida” da modernidade – tipificada nas abordagens de Elias e Ariès –, ingressamos em um novo tempo de espetacularização da morte. Contudo, tal condição não significa que a morte e o morrer estão escancarados à vista, e que são assuntos tratados no cotidiano de todos. Todavia, novos modos de mediação e midiatização, ritualização, comercialização e medicalização, na forma da “revolução dos cuidados paliativos”, colocaram a morte em discurso na contemporaneidade, em um estado ambíguo, vacilando entre autonomia e controle, visibilidade e ocultamento (JACOBSEN, 2016, p. 10).
Allan Kellehear é mais veemente ao afirmar, referindo-se à espécie humana, que “nós não somos, e nunca fomos, pessoas que negam a morte” (2007, p. 60) e que o suposto medo universal da morte, subjacente nas leituras de Ernest Becker (1995) e Zygmunt Bauman (1992), por exemplo, é um produto culturalmente específico do esforço conjunto de alguns saberes ocidentais, como a psiquiatria e a sociologia (KELLEHEAR, 2007, p. 57). Sua história social da morte é mais longa em escopo, se comparada aos estudos de Walter, Ariès e Elias: o sociólogo australiano agrupa fontes arqueológicas, historiográficas, antropológicas e sociológicas para construir uma tipologia com início na Idade da Pedra, passa pela Idade Pastoral (do início da agricultura até o século XVII), pela Era Moderna (séculos XVII a XX), até a Era Cosmopolita (séculos XX e XXI). A morte e o morrer são, para Kellehear, questões perenes com respostas variadas. É como se, a cada momento, a morte se colocasse como interrogação, um enigma a ser resolvido, e cada sociedade em seu momento histórico respondesse com a gama de recursos simbólicos e materiais à sua disposição. Kellehear, assim como Walter, elencam o contexto social e epidemiológico como partes determinantes das respostas sociais diante da morte e do morrer. Em outras palavras, não basta acessar as representações e os costumes, ou para as estruturas e configurações sociais, é preciso entender o “contexto corporal” (WALTER, 2002, p. 49-50) em que a morte ocorre. Quais são as doenças predominantes? As pessoas morrem com que idade? Quais são os principais riscos ambientais ao corpo humano? A crescente expectativa de vida na contemporaneidade, por exemplo, informa as abordagens profissionais do final do século XX, a exemplo dos cuidados paliativos.
Portanto, o corpo é elemento central e necessário às reflexões em torno da morte. Os primeiros ensaios de Marcel Mauss (1979) apontam sua dimensão fundamental para uma compreensão das interseções entre os planos biológico, psicológico e sociológico. No presente recente, a pandemia COVID-19 trouxe os tópicos da morte, morrer e do luto para o centro da esfera pública. Objeto de inúmeras reflexões nas ciências sociais e na filosofia, esse evento de proporções globais ocasionou interpretações polêmicas (AGAMBEN, 2020) e reflexões metodológicas e teóricas nas páginas de jornais (HEINICH, 2020). Ao adquirir contornos de um “fato social total global” (VANDENBERGHE; VERÁN, 2022), o surto pandêmico do vírus Sars-CoV-2 tornou-se referência incontornável nos escritos sobre os processos saúde/doença. Conduziu, também para a agenda pública, distintos tópicos, como a solidão, a morte e o luto, entrecruzados com a tessitura política e social do contexto. Alguns conceitos e enquadramentos teóricos se popularizaram para pensar o momento, por exemplo, a sociologia do risco de Ulrich Beck, a noção de biopolítica de Michel Foucault e seus desdobramentos em Giorgio Agamben (vida nua) e Achille Mbembe.
A esse último filósofo devemos um conceito que cresceu em popularidade, tanto no interior como fora dos círculos acadêmicos, tornando-se referência obrigatória em estudos acerca da morte e do morrer: necropolítica. Em menor escala, reflexões informadas pela sociologia figuracionista de Norbert Elias se fizeram presentes, respondendo aos inelutáveis efeitos advindos do denominado “isolamento social”. A interdependência, noção central para o sociólogo alemão, ganhou vultos de palavra de ordem e ferramenta analítica. Judith Butler (2022) lança mão da tradição fenomenológica de Merleau-Ponty e Scheler para entender como nossas relações corporais de interdependência se reorganizam em tempos de pandemia. Enquanto evento global, a pandemia traz consigo questões referentes a mudança climática, as duas testemunhando da necessidade de um mundo habitável em comum. Nossas relações com o ambiente, já debilitadas nas condições de crise climática e de um capitalismo desenfreado, se tornam ainda mais frágeis na presença de um patógeno contagioso (BUTLER, 2022, p. 46). Outras forças estruturais como o racismo sistêmico, por exemplo, lançam luz sobre os regimes de “fazer morrer” e “deixar morrer” – nos termos de Michel Foucault e Achille Mbmebe – que afetam desproporcionalmente pessoas negras e pobres nas margens do capitalismo (BUTLER, 2022, p. 51). Paralelemente, o cenário “global”, “internacional” ou “planetário” (BIEHL, 2021) substituiu o “lugar comum”, por assim dizer, das reflexões acadêmicas, geralmente focadas nas localidades e nos contextos nacionais. O aumento da escala de análise não correspondeu, à revelia das intenções de alguns, a uma nova teoria geral ou a uma interpretação unívoca da conjuntura, como visto nas perspectivas decoloniais e pós-coloniais (MARTINS, 2020), bem como em visões atentas às clivagens entre países e regiões do mundo (BOSCO; IGREJA; VALLADARES, 2022).
Se considerarmos Durkheim um precursor tanto da sociologia quanto da antropologia, e Ariès e Elias como, respectivamente, um historiador por excelência e um sociólogo com ênfase em história, é possível afirmar que os estudos da morte e do morrer não estão vinculados a uma área do saber em sua gênese. Na segunda década do século XXI, a pluridisciplinaridade desse campo de estudos se torna mais evidente, sobretudo ao considerarmos as áreas da saúde, como enfermagem, psicologia, saúde coletiva e saúde pública, além das diversas frentes das ciências sociais e humanas, como geografia, literatura, filosofia, história, sociologia e antropologia. Vale, ainda, acrescentar os campos de estudos da arquitetura e meio ambiente. As perspectivas contemporâneas sobre a morte e o morrer, sejam elas macro-históricas ou dedicadas a um período específico como a pandemia COVID-19, indicam algumas questões que estruturam tal campo multidisciplinar: representações e costumes em perspectiva histórica e comparada entre culturas; novas abordagens profissionais e expertises; o cruzamento entre violência, poder e desigualdades; a medicina e os processos saúde-doença; as formas de manejo dos corpos em processo de morrer ou mortos.
O presente dossiê é um exemplo tanto da riqueza de perspectivas que hoje informam o horizonte dos estudos sobre a morte e o morrer quanto da consistência de seus grandes temas e questões. Não obstante sejam recorrentes os tópicos enunciados nos parágrafos anteriores – variação cultural e histórica, rituais, emoções, processos de individualização e de medicalização –, novos horizontes e formas inovadoras de abordagem se desenham e compõem esse conjunto de artigos. A seguir, descrevemos alguns eixos temáticos do campo, indicando os artigos que a eles correspondem e estabelecendo nexos com referências relevantes da literatura contemporânea.
Necropolítica, Violência e Poder
O conceito de “necropolítica”, cunhado por Achille Mbembe (2016) a partir de diálogo com a noção de “biopolítica” de Michel Foucault (2005), tornou-se foco de uma miríade de estudos na área da morte e do morrer. Mbembe articula o biopoder ao estado de exceção, conforme conceituado por Agamben (2005) e ao estado de sítio, para descortinar a construção contínua de estados de “exceção, emergência”, bem como de uma “noção ficcional do inimigo” (MBEMBE, 2016, p. 128). O conceito indica, portanto, a produção da morte como parte da reprodução de regimes de poder que demarcam certos espaços e sujeitos como objetos de eliminação. Assim, inspirou argumentos de teor mais crítico, voltados à estruturação desigual das chances de vida e morte na sociedade contemporânea, em cruzamento com teorias antirracistas e feministas.
A obra de Michel Foucault (1987), notadamente seus escritos sobre o saber médico (2014) e as instituições disciplinares modernas, lançou um modelo para estudos sociológicos e antropológicos sobre corpo, saúde, doença e morte. Posto de maneira resumida, sua genealogia das instituições modernas colocou o hospital e a medicina como personagens principais em um longo processo de controle e regulação dos sujeitos pelas conjunções historicamente variáveis de verdade e poder. Um discurso que se pretende científico e, portanto, reivindica para si a capacidade de dizer a verdade sobre um objeto, constrói o próprio objeto ao estabelecer os limites daquilo que pode ser dito sobre ele. No caso da medicina, a construção do sujeito doente conta com a formação de um conjunto de técnicas, saberes e tecnologias capazes de observar, nomear, classificar e agir sobre o que possa ser denominado como “doença”, que aflige um sujeito que, de outro modo, seria “saudável”. No entanto, sua contribuição também se faz presente mediante sua tipificação de regimes de poder, retomada por Mbembe e Judith Butler, entre outros. Em seus estudos genealógicos, Foucault traça algumas mudanças chave nas técnicas e tecnologias de poder do século XVI em diante. A tipificação inicial já aparece em Vigiar e Punir (1987), onde a “soberania” é contrastada com a “disciplina”. A primeira se daria pelo exercício de um “poder brilhante, ilimitado, pessoal irregular e descontínuo” (FOUCAULT, 1987, p. 74) em cerimônias como o suplício em praça pública, enquanto a segunda visava “regularizar, afinar, universalizar a arte de castigar” (FOUCAULT, 1987, p. 76) pelo investimento contínuo e calculado sobre o corpo. No primeiro regime, o soberano tinha poder de matar e, como corolário, “deixar viver”. Posteriormente, uma nova economia de poder, não sobreposta à disciplina, mas que usa suas técnicas, se instaura, com “o direito de fazer viver e de deixar morrer” (FOUCAULT, 2005, p. 287). Se na disciplina o importante era se ocupar dos corpos individuais por intermédio do exercício, do treinamento e da vigilância, entre outras técnicas, na “biopolítica” o foco é no “homem-espécie” ou na “população” entendida como conjunto de seres humanos que goza de regularidades próprias observáveis. Essa forma inovadora de poder é aplicada “à vida dos homens”, enquanto estes formam uma “massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc.” (Idem, p. 289). A morte aparece aí como característica da população que é, em alguma medida, evitável a partir do emprego de técnicas de poder com o objetivo de manter estáveis os indicadores produzidos pelos saberes implementados para entender tal população, como a estatística, a demografia e as ciências sociais.
Achille Mbembe volta-se aos escritos de Foucault sobre a soberania e a biopolítica para cunhar o conceito de necropolítica. Foucault já afirmara, em sua discussão sobre o dispositivo da sexualidade, que a “proteção geral da sociedade e da raça” por meio do controle médico passava pela eliminação e subjugação de corpos considerados anômalos ou perigosos (1988, p. 115). Nesse sentido, o poder aplicado à vida para fazer viver supõe a eliminação de elementos indesejáveis da população. Mbembe afirma que a morte violenta – usualmente provocada por instituições estatais – na contemporaneidade vai além do direito de matar da soberania, pois inclui determinadas formas de violência política, como a escravização, a exposição à morte ou ao risco de morte e a imposição da morte social. Aqui, o morrer adquire um caráter lento e deliberado, advindo da imposição da impossibilidade de indivíduos exercerem soberania sobre seus próprios corpos, seja pela incapacidade de se alimentarem, se protegerem ou de tratarem de problemas de saúde, por exemplo. Mbembe articula a noção de biopoder com os conceitos de estado de exceção e estado de sítio, de Agamben (2005), para entender como o poder nessa modalidade necropolítica “se refere e apela à exceção, emergência e a uma noção ficcional do inimigo”, ao mesmo tempo que “trabalha para produzir semelhantes exceção, emergência e inimigo ficcional” (MBEMBE, 2016, p. 128). A demarcação de grupos “excepcionais” e inimigos que devem morrer para que se assegure o estado de segurança em uma dada população está, por sua vez, vinculado aos arranjos coloniais que conjugaram racismo e capitalismo na história moderna.
Nesse horizonte de pesquisa, a ocorrência da morte e do morrer em contextos violentos, informados por interseções de gênero, raça e classe, consistem em objeto de análises, como no artigo Quem pode ser lembrado? Homenagens mortuárias em contexto de políticas de morte. Com foco multissituado, Edlaine de Campos Gomes, Julio Bizarria e Juliana Baptista refletem sobre o Massacre de Realengo, ocorrido em 2011, as inscrições no local do assassinato da vereadora Marielle Franco em 2018, e o monumento em homenagem às vítimas da operação policial na favela do Jacarezinho em 2022, destruído pela polícia cinco dias depois de erguido. A morte e o morrer encontram termos próximos como etnocídio e epistemicídio, popularizados nos estudos de violência e raça no Brasil. Nesse sentido, morrer é aqui parte de um processo político de constituição desigual e violenta de sujeitos marginalizados e marcados, cujas vidas são, nos enquadramentos normativos vigentes, precárias (BUTLER, 2004). O luto, as homenagens e as rememorações configuram práticas de oposição aos regimes de vida e morte, que tornam uns mais matáveis e menos dignos de memória que outros. Como Carla Rodrigues (2020, p. 71) argumentou, a separação entre “vidas que importam e vidas que pesam”, ou, em outros termos, entre vidas que são passíveis de luto, e memória e vidas que, pelo peso das marcas de gênero, raça e classe, estão marcadas para a eliminação e esquecimento.
O artigo A morte antecipada na forma de feminicídio: pelo direito à justiça, à verdade e à memória, em conjunto com o anterior, integra o cenário de estudos sobre mortes violentas, em diálogo com a teoria feminista crítica, sob ótica interseccional. A partir de um levantamento qualitativo e quantitativo dos casos de feminicídio julgados na Comarca de Londrina nos anos de 2021 e 2022, Silvana Aparecida Mariano e Márcio Ferreira de Souza tecem as ligações entre morte, gênero e moralidade. Ao considerar e nomear os feminicídios como “mortes antecipadas”, os autores apontam um padrão observável de atos violentos motivados por gênero. Ao se debruçarem sobre as justificativas arroladas nos julgamentos dos feminicídios, encontram referências ao comportamento das mulheres e a naturalização dos crimes, segundo a categoria “passional”. Nesse sentido, trata-se de mais um passo no processo de encobrimento das assimetrias de poder que sustentam e dão ocasião aos assassinatos de mulheres. Aqui, a morte ganha caráter de inevitabilidade, não por chegar no fim de uma longa vida, mas por interromper precocemente a vida de mulheres pobres e pretas em situação de vulnerabilidade aguda.
Esses dois artigos apontam, portanto, para o acúmulo crítico em torno do conceito de necropolítica e da tríade formada por Michel Foucault, Achille Mbembe e Judith Butler. No Brasil, é crescente a literatura em torno desses autores e de certas noções, como biopoder, racismo de estado, necropolítica e luto enquanto questão política (MEDEIROS, 2018; RODRIGUES, 2020). A morte e o morrer aparecem nessa vertente sob a lente das assimetrias de poder, da ação do Estado e da violência, em seus matizes física, psicológica, política e social.
Medicalização, Hospitais, Saúde e Doença
A partir de um afastamento dos estudos sobre mortes violentas, encontramos, entre a sociologia da saúde e da medicina, e a sociologia da morte e do morrer, uma tradição rica de estudos sobre formas de assistência médica e cuidado no fim da vida. Os livros Awareness of Dying, de Anselm Strauss e Barney Glaser (1965), e Passing On. The Social Organization of Dying (1967), de David Sudnow, podem ser apontados como pioneiros dessa vertente na sociologia moderna. Como entender a morte e o morrer hoje? O olhar das ciências sociais voltou-se para os saberes, os discursos e as práticas da biomedicina no hospital, locais em que os problemas do corpo e da mente foram circunscritos e recodificados, no processo denominado por Foucault de “medicalização” (LAWTON, 2000, p. 135). Glaser, Strauss e Sudnow não estão situados na tradição francesa crítica, todavia, investigam a morte em setores de emergência e em unidades de tratamento intensivo de hospitais dos Estados Unidos, para entender como o processo social do morrer é construído nas interações cotidianas de atores sociais. Distante das estruturas sociais e dos discursos, o problema incide sobre as percepções e interações diante do fenômeno em questão. Sua pesquisa em unidades de tratamento intensivo nos Estados Unidos resultou numa descrição densa exemplar das interações sociais no processo de morrer. A partir do exame das diferentes formas de abordagem e tratamento dos doentes, Sudnow (1967, p. 8) efetua uma etnografia do trabalho da morte no hospital e cunha o conceito de morte social, quando a pessoa ainda está viva, mas é tratada como morta.
Com olhar aguçado para a dinâmica das interações sociais in situ, Glaser e Strauss escapam de uma visão estática da expertise médica, bem como de um binário “saber ou não saber” quando o assunto é a consciência do paciente sobre seu processo de morrer. Contextos de consciência mudam à medida que os atores sociais interagem, produzindo assim padrões de mudança (GLASER; STRAUSS, 1965, p. 11). O processo de morrer é visto então como um problema de definição, percepção e comunicação. Contudo, o hospital e a medicina permanecem como pano de fundo que colore as relações sociais nos processos saúde-doença, como evidenciado na literatura sociológica e antropológica.3 Se optarmos ainda por outros nomes como sociologia ou antropologia da saúde, com forte tradição no Brasil (IANNI, 2015), os tópicos coincidem: o ambiente hospitalar, as vicissitudes da instituição, as regras e condições do exercício da medicina enquanto disciplina moderna, as interações entre profissionais e leigos, os significados atribuídos a doenças e ao trabalho de administra-las, o processo decisório em torno de sofrimento, vida e morte – entre tantas outras possibilidades de abordagem. Em território brasileiro, contudo, a sociologia da saúde em contextos médicos e hospitalares esteve em muito vinculada à tradição higienista e sanitarista. Em outras palavras, médicos intelectuais produziam sobre aspectos “sociais” e “culturais” da saúde a partir da perspectiva de sua disciplina, tendo como horizonte seus projetos de institucionalização. Esses “médicos cientistas-sociais”, como Nina Rodrigues, buscavam ao mesmo tempo explicar as causas socioculturais dos problemas de saúde e instaurar um projeto de saúde pública que, ao fim e ao cabo, era um projeto de nação (NUNES, 2014).
Com a institucionalização das Ciências Sociais ao longo das décadas de 1960 e 1970, a sociologia e antropologia da saúde passam a adquirir uma feição própria e uma identidade mais demarcada. Não obstante, o diálogo com os campos da saúde coletiva e da epidemiologia permanece firme, em muito reforçado pela instituição do Sistema Único de Saúde (SUS), para o qual contribuíram intelectuais sanitaristas de formações variadas. Os estudos de Márcia Grisotti (1998, 2010) na sociologia e de Octavio Bonet (2018) na antropologia, bem como o dos organizadores desse dossiê (MENEZES, 2004, 2006; SONEGHET, 2020; 2022) são exemplos de alguns rumos das ciências sociais em saúde na atualidade, que incluem o estudo de políticas e sistemas de saúde, de abordagens em saúde (como a medicina familiar, a tomada de decisões em unidades de tratamento intensivo e os cuidados paliativos), e das experiências de adoecimento no cotidiano.
Em ‘Vivenciar o sentido da morte é na prática’: Os profissionais de saúde e suas vivências com a morte no Hospital Napoleão Laureano, Weverson Bezerra Silva e Mónica Franch abordam a interface entre morte e saúde pela ótica dos cuidados paliativos, proposta de assistência em saúde para pessoas acometidas por doenças crônico-degenerativas sem perspectiva de cura – categorização do enfermo criada por esta modalidade de assistência ao último período de vida. Os cuidados paliativos ou a filosofia hospice surgem no cenário mundial na década de 1960 e, desde então, tal proposta tornou-se epicentro de ampla produção das ciências sociais ao redor do mundo (ABEL, 1986; CASTRA, 2003; KELLEHEAR, 1997; LAWTON, 2000; MENEZES, 2004; SONEGHET, 2020). A presença de um artigo sobre cuidados paliativos nesse dossiê aponta para uma das mais novas fronteiras nos estudos em torno da morte e do morrer sob a perspectiva dos processos saúde-doença. Ademais, compõe em conjunto com os demais artigos a constelação de reflexões sobre a morte em hospitais, políticas e sistemas de saúde, racionalidades médicas, profissões de saúde, organizações não governamentais, Estados e mercado, entre outras referências que marcam o processo de morrer na contemporaneidade (ALONSO et al., 2013; DAS; HAN, 2016; KAUFMAN, 2005).
A seguir, o artigo “Por uma antropologia dos sentidos da morte: investigando as relações sensíveis entre vivos e mortos na tanatopraxia” coloca em evidência um saber focalizado no cadáver. Ao evitar o caminho tradicional de abordagens qualitativas que miram as falas e os discursos, Pedro Corrêa opta pelas conexões entre sentidos, corpo e percepções, levantando questões candentes e pouco exploradas, como a importância das dimensões corporal e afetiva no processo de morrer (SONEGHET, 2022). Destarte, a questão dos saberes especializados e da profissionalização da morte na sociedade contemporânea é abordada na perspectiva de um saber que conta com escassos estudos no Brasil, dentre os quais destacamos Por onde vivem os mortos (NEVES, 2017), acerca do complexo funerário em Porto Alegre. Corrêa propõe um enquadramento conceitual voltado ao sensível e à sensibilidade nas relações entre vivos e mortos, para apontar possíveis modos de articulação para o desenvolvimento de reflexão sobre o tema.
Post-Mortem, Cadáveres e Cemitérios
Desde a antiguidade, uma das formas possíveis de leitura do estabelecimento de grupo ou sociedade consiste na escolha das formas de destino dos remanescentes corporais, como nomeado pelo historiador Thomas Laqueur (2015). Portanto, a história do trabalho de cuidado com os mortos constitui indício de distintos modos de entendimento de vida/ morte, espaço e relações socioespaciais entre vivos e mortos. Em Análise socioespacial das necrópoles públicas de Curitiba, Paraná: resultados empírico-analíticos em dados oficiais e indicativos perceptuais, os autores apresentam um levantamento detalhado de dados qualiquantitativos acerca dos cemitérios sob gestão municipal de Curitiba. Karime Massignan Grassi Vieira, Letícia Peret Antunes Hardt e Samira Kauchakje escolheram empreender o estudo na capital paranaense, por esta ser considerada, no senso comum, como uma referência em planejamento urbano, como “cidade modelo”. O artigo que finaliza o dossiê conta com reflexões sobre os cuidados e as possibilidades de destinação de corpos, no que tange à preservação do meio ambiente e dos direitos dos cidadãos. Trata-se de tema que vem sendo objeto de debates e de novas proposições de modos de destinação dos mortos em muitos países, como os Estados Unidos. No Brasil, são escassos os estudos sobre cemitérios,4 apesar de ser possível verificar o aumento da procura e interesse em cremações, o que constitui indício da presença de novas sensibilidades diante da morte e dos mortos. Não apenas os remanescentes do corpo morto, o destino dos ossos em exumações, como na contemporaneidade, o destino das cinzas resultantes de cremações pode se tornar objeto de práticas e discursos, concernentes aos sentidos da vida e da morte.
Os temas da morte e do morrer suscitam e podem conduzir à produção de distintas maneiras de abordagem, capazes de desvelar valores e significados vigentes em cada grupo, cultura ou sociedade, em determinado momento histórico. As possibilidades de desenvolvimento de análise sobre o morrer e a morte são inúmeras e estão em íntima conexão com a crescente produção de diferentes práticas rituais – muitas que se pretendem individualizadas ou singularizadas – e discursos em torno do término da vida. Sensibilidades e modos de expressão se transformam nos séculos XX e XXI, com a dissolução ou esmaecimento das fronteiras entre as esferas pública e a privada, com a espetacularização do sofrimento, da doença, do nascimento e da morte. Diversos países (ou estados, no caso dos Estados Unidos e Austrália) modificam suas legislações, para permitir escolhas em torno dos desígnios do próprio corpo, como interrupção voluntária da gravidez ou interrupção médica da vida, eutanásia e suicídio assistido, entre outras possibilidades. O corpo, objeto de intervenção, locus de poder e fulcro da vida social, pode ser visto também como a superfície de afetos e sensações específicas do processo de morrer, não somente para os moribundos, mas para os que deles se ocupam. O imperativo da transparência (HAN, 2017) coloca em suspeita o que não se submete à visibilização. Ao mesmo tempo, o imperativo da autonomia e da escolha se faz cada vez mais presente para uns, enquanto para outros o exercício do livre arbítrio é mantido à distância, com a necropolítica. A maciça exposição do morrer também acarreta um processo de banalização da morte, o que não significa necessariamente tratar-se de uma aceitação do término da vida.
Sem dúvida, o dossiê conta com amplo leque de caminhos para abordar a morte e o morrer, diante do qual apresentamos aqui reflexões produtivas e passíveis de conduzir a novas e profícuas trajetórias. Esperamos, assim, contribuir ao campo de estudos – não da morte em si – mas da vida, da pessoa e seus desígnios.
Referências
ABEL, Emily K. The hospice movement: institutionalizing innovation. International Journal of Health Services, New York, v. 16, n. 1, p. 71-85, 1986.
AGAMBEN, Giorgio. State of exception. Chicago: The University of Chicago Press, 2005.
AGAMBEN, Giorgio. Reflexões sobre a peste: ensaios em tempos de pandemia. Boitempo Editorial, 2020.
ALONSO, Juan Pedro; LUXARDO, Natalia; PIÑEIRO, Santiago Poy; BIGALLI, Micaela. El final de la vida como objeto de debate público: avatares de la “muerte digna” en Argentina. Revista Sociedad, Rosário, n. 33, p. 7-18, 2013.
ARIÈS, Philippe. The hour of our death. New York: Vintage Books, 1981.
ARMSTRONG, David. Silence and truth in death and dying. Social Science & Medicine, Amsterdam, v. 24, n. 8, p. 651-657, 1987.
BAUMAN, Zygmunt. Mortality, immortality and other life strategies. California: Stanford University Press, 1992.
BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 1995.
BIEHL, João. Descolonizando a saúde planetária. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 27, p. 337-359, 2021.
BONET, Octavio. Os médicos da pessoa: um olhar antropológico sobre a medicina de família no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2018.
BOSCO, Estevão; IGREJA, Rebecca Lemos; VALLADARES, Laura (org.) A América Latina frente ao governo da COVID-19: desigualdades, crises, resistências. Brasília: Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, 2022. p. 22-44.
BUTLER, Judith. Precarious life: the powers of mourning and violence. Nova Iorque: Verso Books, 2004.
BUTLER, Judith. What world is this: a pandemic phenomenology. Nova Iorque: Columbia University Press, 2022.
CAPONI, Sandra; VALENÇA, Maria Fernanda Vasquez; VERDI, Marta; ASSMANN, Selvino José (org.). A medicalização da vida como estratégia de biopolítica. São Paulo: Editora LeberArs, 2013.
CASTRA, Michel. Bien mourir: sociologie des soins palliatifs. Paris: Presses Universitaires de France, 2003.
CONRAD, Peter; BERGEY, Meredith. Medicalization: sociological and anthropological perspectives. In: WRIGHT, James D. (ed.). International encyclopedia of the social & behavioral sciences. Amsterdam: Elsevier Ltd, 2015. p. 105-109.
DAS, Veena; HAN, Clara. Living and dying in the contemporary world. California: University of California Press, 2016.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos, seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso dado no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 28. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2014.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.
GLASER, Barney G.; STRAUSS, Anselm L. Awareness of dying. Chicago: Aldine Publishing Company, 1965.
GRISOTTI, Márcia. Doenças infecciosas emergentes e a emergência das doenças: uma revisão conceitual e novas questões. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, p. 1095-1104, 2010.
GRISOTTI, Márcia. Políticas de saúde e sistemas médicos no Brasil. Revista Katálysis, Florianópolis, n. 3, p. 49-62, 1998.
HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2017.
HEINICH, Nathalie. “Il y a ce à quoi nous sommes reliés, nous tous, confinés mais interdépendants, responsables, solidaires et fiers de l’être.” Le Monde, 4 de abril de 2020. Disponível em: https://www.lemonde.fr/idees/article/2020/04/04/il-y-a-ce-a-quoi-nous-sommes-relies-nous-tous-confines-mais-interdependants-responsables-solidaires-et-fiers-de-l-etre60355323232.html. Acesso em: 7 fev. 2023.
IANNI, Aurea Maria Zöllner. O campo temático das ciências sociais em saúde no Brasil. Tempo Social, 2015, v. 27, n. 1, p. 13-32, 2015.
JACOBSEN, Michael Hviid. “Spectacular death” - Proposing a new fifth phase to Philippe Ariès’s admirable history of death. Humanities, Basel, v. 5, n. 2, p. 19, 2016.
KAUFMAN, Sharon. And a time to die: how american hospitals shape the end of life. Nova Iorque: Simon & Schuster, 2005.
KELLEHEAR, Allan. A social history of dying. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
LAQUEUR, Thomas. The work of the dead: a cultural history of mortal remains. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2015. p. 711.
LAWTON, Julia. The dying process: patients’ experiences of palliative care. Londres: Routledge, 2000. p. 240.
MACHADO, Renata de Morais; MENEZES, Rachel Aisengart. Gestão emocional do luto na contemporaneidade. Revista Ciências da Sociedade (RCS), v. 2, n. 3, jan./jun. 2018.
MARTINS, Paulo Henrique. El coronavírus, el don y los escenarios posneoliberales. In: BRINGEL, Breno; PLEYERS, Geoffrey (ed.). Alerta global: políticas, movimientos sociales y futuros en disputa en tiempos de pandemia. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales-CLACSO, 2020. p. 367-375.
MAUSS, Marcel. A expressão obrigatória dos sentimentos. In: OLIVEIRA, Roberto Cardoso (org.). Mauss. São Paulo: Ática, 1979. p. 147-153.
MAUSS, Marcel. Efeito físico no individuo da ideia de morte sugerida pela coletividade (Austrália, Nova Zelândia). In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 345-397.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios, n. 32, p. 123-151, 2016.
MEDEIROS, Flavia et al. O morto no lugar dos mortos: classificações, sistemas de controle e necropolítica no Rio de Janeiro. Revista M., Rio de Janeiro, v. 3, p. 72-91, 2018.
MENEZES, Rachel Aisengart. A medicalização da esperança. Amazônia Revista de Antropologia, Belém, v. 5, n. 2, p. 478-498, 2013.
MENEZES, Rachel Aisengart. Difíceis decisões: etnografia em um centro de tratamento intensivo. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. p. 107.
MENEZES, Rachel Aisengart. Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Garamond Fiocruz, 2004.
MENEZES, Rachel Aisengart; MACHADO, Renata de Morais. Visibilidade contemporânea do processo do morrer: novos rituais e sensibilidades. Tempo da ciência, Toledo, v. 26, n. 51, p. 12-30, jan./jun. 2019.
NEVES, Marcos Freire de Andrade. Por onde vivem os mortos: o processo de fabricação da morte e da pessoa morta no complexo funerário de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2017.
NUNES, Everardo Duarte. A sociologia da saúde no Brasil - a construção de uma identidade. Ciência & Saúde Coletiva, v. 19, p. 1041-1052, 2014.
PARSONS, Talcott; LIDZ, Victor. Death in American society. In: SHNEIDMAN, Edwin (ed.) Essays in self-destruction. Nova Iorque: Science House, 1963. p. 133-170.
RODRIGUES, Carla. Por uma filosofia política do luto. O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v. 29, n. 46, p. 58-73, 2020.
RODRIGUES, Claudia. Nas fronteiras do além: a secularização da morte no Rio de Janeiro séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.
SONEGHET, Lucas Faial. A normalidade crítica do cotidiano diante do adoecimento e da morte. Anuário Antropológico, Brasília, v. 47, n. 2, p. 205-222, 2022.
SONEGHET, Lucas Faial. Fazendo o melhor da vida na morte: qualidade de vida, processo de morrer e cuidados paliativos. Revista M., v. 5, n. 10, p. 357-382, 2020.
SUDNOW, David. Passing on: the social organization of dying. New Jersey: Prentice-Hall, 1967.
THOMAS, Louis-Vincent. Anthropologie de la mort. Paris: Payot, 1975.
VANDENBERGHE, Frédéric; VÉRAN, Jean-François. A pandemia como fato social total global. In: BOSCO, Estevão; IGREJA, Rebecca Lemos; VALLADARES, Laura (org.). A América Latina frente ao Governo da COVID-19: desigualdades, crises, resistências. Brasília: Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, 2022. p. 22-44.
WALTER, Tony. Death in the modern world. Londres: Sage Publications, 2020.
WALTER, Tony. The revival of death. Taylor & Francis e-Library, 2002.
ZIMMERMAN, Camilla. Death denial: obstacle or instrument for palliative care? an analysis of clinical literature. Sociology of Health & Illness, Brighton, v. 29, n. 2, p. 297-314, 2007.
Notas
Autor notes