DOSSIÊ – A Morte e o Processo de Morrer nas Ciências Sociais

"Vivenciar o Sentido da Morte é na Prática": os Profissionais de Saúde e suas Vivências com a Morte em um Hospital do Câncer na Paraíba

“Experiencing the Meaning of Death Happens in Practice”: Health Professionals and their Experiences with Death in a Cancer Hospital in Paraíba

Weverson Bezerra Silva *
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Mónica Franch *
Universidade Federal da Paraíba, Brasil

"Vivenciar o Sentido da Morte é na Prática": os Profissionais de Saúde e suas Vivências com a Morte em um Hospital do Câncer na Paraíba

Mediações - Revista de Ciências Sociais, vol. 28, núm. 1, e46964, 2023

Universidade Estadual de Londrina

Recepção: 15 Novembro 2022

Revised document received: 26 Janeiro 2023

Aprovação: 10 Abril 2023

Resumo: Nesse relato etnográfico serão apresentadas as experiências dos profissionais de saúde do Hospital Napoleão Laureano com a morte e o processo de morrer com os pacientes com câncer. Trata-se de uma etnografia hospitalar, buscando contemplar as diferentes categorias de experiência diante do processo de morte. Foram entrevistados profissionais de diversas categorias da equipe multiprofissional que cuida dos pacientes com câncer, sendo observado questões em comum em seus discursos, quando se direciona às experiências de morte infantil, o medo do primeiro paciente morto e as técnicas com o corpo morto. Diante dos resultados, ficou evidente a necessidade de uma formação profissional voltada para a discussão do tema da morte no período da formação acadêmica, de forma que o processo de morrer seja um assunto discutido não só na dimensão biomédica, mas também sociocultural, reconhecendo o duplo sofrimento do paciente e de sua família quanto o sofrimento do profissional diante da morte.

Palavras-chave: Morte, profissionais da saúde, câncer, hospital, cuidados paliativos.

Abstract: This ethnographic report will present the experiences of health professionals at The Napoleon Laureano Hospital with death and the process of dying with cancer patients. It is a hospital ethnography, seeking to contemplate the different categories of experience before the death process. Professionals from various categories of the multidisciplinary team that cares for cancer patients were interviewed, and issues were observed in common in their discourses, when it is directed to the experiences of infant death, the fear of the first dead patient and the techniques with the dead body. In view of the results, it was evident the need for professional training focused on the discussion of the theme of death during the period of academic training, so that the process of dying is a subject discussed not only in the biomedical dimension, but also sociocultural, recognizing the double suffering of the patient and his family as the suffering of the professional in the face of death.

Keywords: Death, health professionals, cancer, hospital, palliative care.

Introdução

Este artigo discute dados produzidos no marco de uma etnografia com profissionais de saúde que trabalham em um hospital especializado no tratamento do câncer na cidade de João Pessoa (Paraíba), o Hospital Napoleão Laureano (HNL). A pesquisa que dá origem a este artigo trata das práticas para manutenção da vida e gestão da morte de pacientes com câncer em Cuidados Paliativos (CP) no referido hospital (SILVA, 2021). No recorte aqui escolhido, nossa atenção se volta para o modo como os profissionais vivenciam e compreendem a morte dos pacientes, com atenção às dimensões simbólicas, emocionais, intersubjetivas e sociais. Não entraremos em uma discussão aprofundada sobre CP, que já tratamos em outra ocasião (SILVA, 2022), mas dialogamos com a produção existente sobre a morte e o morrer em contexto hospitalar e, concretamente, sobre as atitudes e emoções dos profissionais de saúde diante desse fato inerente à sua prática.

A produção brasileira sobre o assunto, de modo geral, tem reafirmado estudos internacionais no que diz respeito à centralidade do hospital na gestão da morte. Tal centralidade é resultado de um longo processo histórico que modificou as funções sociais do hospital (FOUCAULT, 2012) e ampliou o poder médico nas decisões ligadas à saúde, à vida e à morte dos indivíduos (MENEZES, 2000; PITTA, 2016). O deslocamento da morte para o espaço hospitalar afastou o moribundo da comunidade na qual estava inserido, passando a morte a ocorrer sob a égide do poder médico e sob ditames técnicos (ARIÈS, 1977; MENDES; BORGES, 2012; MENEZES, 2004). Esse processo não esteve isento de legitimação social, pois veio acompanhado de uma paulatina delegação dos cuidados com os doentes, por parte da sociedade, em favor dos médicos e outros profissionais de saúde, especialmente na iminência da morte (MENEZES, 2000). O hospital emerge, deste modo, como um espaço privilegiado para o ocultamento da morte, que caracterizou a atitude ocidental moderna diante do fim da vida (ARIÈS, 1977; PITTA, 2016). Isso não quer dizer que a morte em outros contextos, sobretudo no espaço doméstico, não tenha sido tematizada pela literatura: como uma escolha familiar para morrer “no seu lugar”, na contramão da tendência dominante de hospitalização dos idosos e doentes (NEVES, 1998); no marco dos CP domiciliares, a partir da reorganização das fronteiras entre o espaço hospitalar e o doméstico (SOLLERO-DE-CAMPOS; BRAGA, 2019; SONEGHET, 2020); ou diante das reivindicações e debates recentes por uma “morte digna”, que apontam para importantes mudanças em curso nos regimes de (in)visibilidade da morte (MENEZES; MACHADO, 2019). Nossa proposta neste artigo, entretanto, se centra nos processos da morte e do morrer em contexto hospitalar, sem desconsiderar a existência dessas outras possibilidades, tradicionais e contemporâneas, de gestão do fim da vida.

Embora uma das primeiras análises a chamar a atenção sobre a morte no hospital – o clássico A solidão dos moribundos, de Norbert Elias (2001) – tenha posto a lente sobre a figura do paciente em vias de morrer, no Brasil são diversas as pesquisas que observaram como os profissionais de saúde, principalmente os médicos, agem diante da morte em seu espaço de trabalho (AREDES; MODESTO, 2016; AREDES; GIACOMIN; FIRMO, 2018; MACEDO, 2019; MENEZES, 2000; SILVA; MENEZES, 2015; SOUZA et al., 2018). De modo geral, essas pesquisas apontam para as dificuldades dos profissionais em aceitarem e comunicarem a morte dos pacientes, relacionando essa dificuldade à hegemonia do paradigma biomédico, curativo e tecnicista, à ausência de uma formação específica e adequada sobre o assunto, à dificuldade dos profissionais com o tema em suas vidas pessoais, além de outros fatores, como condições de trabalho e cultura institucional, dificuldades estas inseridas na tendência mais geral de ocultamento ou negação da morte em Ocidente anteriormente mencionada (SOUZA et al., 2018). Destacamos, dentre esses estudos, pesquisas realizadas em contextos como CTI – Centros de Terapia Intensiva e prontos-socorros, espaços específicos para doentes graves ou em risco imediato de vida, em que predominam a máxima objetificação do paciente e a curta temporalidade na relação médico-paciente (AREDES; MODESTO, 2016; MENEZES, 2000; SILVA; MENEZES, 2015; SOUZA et al., 2018). Devido à presença constante da morte, tais contextos evidenciam, de modo singular, os “paradoxos” (SOUZA et al., 2018) ou “limites” (MENEZES, 2000) do paradigma biomédico e do poder médico, sendo de interesse especial para problematizar as atitudes dos profissionais diante do fim da vida.

Afora os contextos de medicina de emergência, a literatura também explora de maneira profícua as atitudes diante da morte de profissionais de saúde em serviços ou instituições que seguem o ideário dos CP, voltados à “qualidade de vida” e à produção de uma “boa morte” para pacientes “fora de possibilidades terapêuticas curativas” (MENEZES, 2004, SILVA, 2021; SONEGHET, 2020). Nesses casos, a temporalidade da relação entre paciente, profissionais de saúde e outros sujeitos (familiares, principalmente) se alarga, bem como se tornam mais complexas e nuançadas as possíveis reações à morte no hospital, incorporando práticas, experiências e saberes de origens diversas ao estritamente biomédico, especialmente de cunho religioso (MENEZES, 2004). Há diferenças notáveis entre os primeiros estudos (MENEZES, 2004), que mostravam um cenário ainda pouco institucionalizado no Brasil, e pesquisas mais recentes, que registram uma maior formalização e especialização desse tipo de cuidado, ampliando o foco para recortes diversos, como a sedação paliativa (MENEZES; LIMA, 2018), o impacto das desigualdades na efetivação da “qualidade de vida” dos pacientes (SONEGHET, 2020), entre outros temas. É nesse ponto da reflexão que nosso trabalho se insere, a partir de três características: a) trata-se de uma pesquisa que possui uma abordagem antropológica, tendo por base uma pesquisa etnográfica; 2) o campo empírico é um hospital situado em uma capital do Nordeste brasileiro; e 3) trata das experiências dos profissionais diante da morte de pacientes com câncer, doença possui uma carga fortemente negativa em nossa sociedade (SONTAG, 1984).

O artigo está dividido em seis partes. Iniciamos com uma breve contextualização do campo e dados sobre a pesquisa. Em seguida, tratamos das atitudes gerais dos profissionais da saúde face à morte dos pacientes. Na terceira parte, selecionamos os relatos sobre as mortes consideradas mais difíceis, a partir de critérios como tempo de interação, tipo de vínculo, características pessoais do paciente e modo de morrer. Na quarta parte damos atenção especial à morte de crianças, a mais difícil dentre as mais difíceis das mortes com a que os profissionais precisam lidar. Finalmente, destacamos os cuidados post-mortem, tanto em relação à comunicação às famílias (quinta parte) como no tratamento do corpo morto (sexta e última parte).

Sobre o Campo e a Pesquisa: Breve Nota Metodológica

A pesquisa em que este artigo se baseia foi desenvolvida no Hospital Napoleão Laureano, fundação privada de utilidade pública, referência em atendimento de pessoas com câncer na Paraíba. A instituição dedica 90% de sua capacidade para atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e 10% para atendimento particular. O edifício em que está situado o hospital tem duas plantas. Na planta térrea, há um fluxo maior vindo da rua, pois lá é onde se situam o setor de urgências, a farmácia, o ambulatório, os consultórios das diversas especialidades, o setor administrativo, os espaços da assistente social e da psicologia, o apoio voluntário, as salas para exames e o setor de pediatria. Já as enfermarias ficam no primeiro andar, dentre elas, as enfermarias 25 e 26, onde estão internados os pacientes em CP. No espaço central do hospital há uma capela ecumênica e um jardim verde, que funciona como espaço de sociabilidade dos familiares, pacientes, voluntários e profissionais da saúde.

O campo teve início em dezembro de 2019 e se estendeu até o mês de março de 20213, após uma interrupção de oito meses definida pelo hospital diante do advento da covid-19. Nos primeiros meses da pesquisa, em contexto pré-pandêmico, o pesquisador e primeiro autor deste artigo4 se deslocava até o HNL várias vezes na semana, fazia observações do cotidiano da instituição, interagia com os diversos membros da equipe e, em menor medida, com os familiares e pacientes internados no hospital, com foco naqueles que estavam em CP. No retorno a campo, houve mudanças na possibilidade de interação com pacientes e profissionais, com uma limitação maior dos horários e formas de contato possíveis. A presença ostensiva de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), a proibição das visitas dos familiares e mudanças no staff do hospital compuseram um novo cenário para a pesquisa (SILVA, 2022).

Foram realizadas 21 entrevistas semiestruturadas com os profissionais da equipe paliativa: três (3) médicas, quatro (4) enfermeiras, quatro (4) técnicas/os de enfermagem, uma (1) assistente social, dois (2) psicólogo/as, duas (2) fisioterapeutas, uma (1) fonoaudióloga, duas (2) nutricionistas, uma (1) farmacêutica e um (1) biomédico. A razão de sexo do conjunto de entrevistados repete a “inflexão de gênero” já observada na literatura sobre CP (MENEZES; HEILBORN, 2007) – 19 mulheres para três homens. Todos os profissionais se autodefiniram como cristãos, que aderem ao cristianismo em suas vertentes católica, protestante ou espírita. Alguns deles cursaram disciplinas de CP em algum momento do curso universitário e um grupo significativo de entrevistados fez um curso de especialização em CP, ofertado pela Universidade Federal da Paraíba.

Por fim, incluímos neste artigo alguns dos desenhos realizados por profissionais do HNL que participaram de uma oficina ministrada por Weverson Silva, em fevereiro de 2020, sobre aspectos socioculturais da morte e do morrer, a pedido do setor de pesquisa do hospital. Como parte das atividades da oficina, os participantes foram solicitados a desenhar algum evento que quisessem compartilhar com os colegas. O uso dos desenhos aqui reproduzidos foi devidamente autorizado pelos seus autores5.

“Uma Rotina Cotidiana”: Primeiras Experiências e Aprendizagens dos Profissionais de Saúde Perante a Morte

O relógio marcava exatamente nove horas e nove minutos na manhã de uma quarta-feira de janeiro do ano de 2020. Era um dia de calor, dos ventiladores só saía ar quente e as pessoas buscavam alívio se abanando com folhas de papel. Estávamos na “central”, uma sala que os profissionais consideram “o coração do hospital”, pois se localiza no centro do edifício, em cima da capela. Sentado em uma cadeira de plástico, eu observava os profissionais caminhando de uma enfermaria para outra. De repente, a coordenadora da enfermagem entrou na sala e informou que um familiar precisava de ajuda com o seu paciente. Os profissionais presentes olharam para uma tabela exposta na parede, verificaram quem era a profissional que estava auxiliando naquela enfermaria e continuaram seus afazeres. Passado algum tempo, uma pessoa irrompeu na sala pedindo ajuda: “ele vai morrer, se ninguém for!” Logo percebi que se tratava do familiar anteriormente mencionado. Ao ouvirem a referência à morte, os profissionais em seguida se mobilizaram e vários deles saíram rapidamente da sala em direção à enfermaria do paciente. Quando retornaram à “central”, perguntei se o paciente tinha ficado melhor. Uma enfermeira então me disse que era comum os pacientes dizerem que vão morrer ou os familiares anunciarem que seus parentes estão morrendo. Essa seria, de acordo com ela, uma “rotina cotidiana. Quando a dor chega, o pensamento direcionar à morte”.

Entre a equipe que participou desta pesquisa, não apenas os pacientes e seus familiares têm seus pensamentos “direcionados à morte”, mas esse é também um assunto que perpassa o cotidiano dos profissionais. Como certa feita disse um técnico de enfermagem, “trabalhar com a morte é não parar de pensar nela”. Fato inescapável à existência humana, a morte é um fenômeno social universal, que acontece em todas as culturas, mas cada uma delas tem seus rituais de passagem e desenvolve meios de proceder com o corpo do defunto, tanto no quesito técnico, como do ponto de vista simbólico e ritual (SANTOS, 1983). Embora se trate de um fato social, é necessário levar em consideração o componente subjetivo dessa vivência. Desse axioma não fogem as mortes ocorridas no ambiente hospitalar: apesar de enquadradas em protocolos e normatizações, são também sempre únicas e singulares, devido às trajetórias que ali se entrecruzam.

Em uma primeira acepção, os profissionais de saúde da equipe paliativa do HNL entendem que há duas atitudes principais em relação à morte de pacientes: combater a morte ou aceitar o momento da sua chegada. A primeira dessas atitudes tem por objetivo manter o paciente vivo e se apoia na crença irrestrita no poder médico, bem como na efetividade e eficiência técnica do conhecimento médico. A morte do paciente, nesse caso, aparece como um fracasso que pode acarretar culpa por parte do profissional, o que também aparece em outras pesquisas (MACEDO, 2019; SANTOS, 1983; SOUZA et al., 2018). Já a segunda atitude, afinada com o ideário dos CP (MENEZES, 2004), compreende a morte como um fato natural da vida e é a que predomina entre os profissionais que atendem pacientes com câncer no HLN. Aceitar a morte dos pacientes permite aos profissionais superarem o sentimento de impotência e de culpa e assim auxiliarem os pacientes sob seus cuidados. Como afirma Menezes (2004, p. 205), “Os paliativistas são confrontados cotidianamente com o sofrimento e com a morte”, e por isso precisam “construir novas repre-sentações sobre o processo do morrer e incorporar novas formas de comportamento emocional.” Os relatos das primeiras experiências dos profissionais com a morte em serviço ajudam a perceber o modo como eles foram mudando suas percepções ao longo do tempo.

Para ilustrar como a morte de um paciente pode ser experimentada como um fracasso, trazemos o caso da enfermeira Alana6, que no começo da sua experiência profissional sentia que “perdia” todos os pacientes: “nadava, nadava e morria na praia”. Os procedimentos técnicos eram feitos, porém, o paciente acabava “vindo a óbito7, e ela não se sentia uma profissional competente. Na tentativa de entender que “deveria aceitar a morte” e que este evento era um “processo natural”, Alana precisou se aproximar do ideário dos CP, o que lhe permitiu “compreender” o processo da morte dos pacientes e entender que ela pode proporcionar uma “morte linda”.

Se, para Alana, a mudança de atitude em relação à morte de pacientes ocorreu graças à formação em CP, outros profissionais entrevistados mencionaram que aprenderam a lidar com a morte “na prática”, em suas relações com os pacientes no hospital. Para Macedo (2019), a sociedade confere aos médicos o prestígio e a responsabilidade de lutar contra a morte. A promessa de salvação oferecida pela medicina afeta diretamente o contexto atual da morte e quando esta ocorre, é como se a própria medicina tivesse fracassado em seu intento. Com o fracasso, vem o sentimento de impotência. A maioria dos entrevistados referiu-se à sua formação universitária como tendo sido calcada em uma visão tecnicista e manifestou “despreparo” em seus primeiros tempos de trabalho no hospital. Artur, técnico em enfermagem do HNL, é um bom exemplo disso. Na entrevista realizada, informou que seu único contato com a morte durante a formação foi nas aulas de anatomia e que, por isso, “vivenciar o sentido da morte é na prática”. É importante notar que as aulas de anatomia não buscam incutir uma relação dos profissionais com a morte. Essas aulas visam que os estudantes se debrucem sobre o cadáver, que ali está para auxiliar a entender o corpo humano. Como afirma Consorte (1983, p. 41), “As únicas circunstâncias em que os médicos admitem a morte na sua intimidade são as salas de Anatomia e de Autópsia, porque somente ali ela se coloca como algo a serviço da vida”. Cabe observar, igualmente, que o estudante na sala de anatomia não estabelece qualquer relação com o cadáver sobre a mesa, que é apenas um instrumento de conhecimento. Contrariamente, na vivência no ambiente hospitalar, o corpo morto não é apenas um cadáver ou um objeto de estudo, o profissional teve uma relação prévia com o paciente, no âmbito do cuidado em vida.

Na prática profissional, a culpa não aparece apenas como um sentimento individual dos profissionais diante do que percebem como um fracasso. Familiares dos pacientes também podem questionar as práticas dos profissionais, como vemos nesta passagem da entrevista com o técnico de enfermagem Artur:

Essa paciente estava muito grave, e a acompanhante estava só me observando. Aí ela me fez uma pergunta: “você é muito frio, você não sente remorsos?”. Sinto sim, eu tenho família, eu sou de carne e osso, será que eu ia gostar de um paciente estar nessa situação, JAMAIS. Ela estava um pouco agressiva com as palavras e eu disse que se ela estava naquela situação não era culpa minha, pois eu estou aqui para dar o melhor de mim para esses pacientes que precisam do meu trabalho, contribuição.

(Artur, técnico de enfermagem, entrevista realizada em 02/03/2020).

A situação acima permite refletir sobre as sutilezas do trabalho emocional no convívio hospitalar com pacientes em CP. Ao relatar o acontecimento, o entrevistado gesticulou muito, colocou a mão no peito e disse que, para ele, não é fácil escutar esse tipo de comentários e ainda fazer entender ao paciente que sua atitude não é de desvalorização daquela vida. Esse profissional tem uma forma de falar calma e pausada, e destaca que essa característica pessoal às vezes não é compreendida pelos familiares. Ao fazer uma acusação desse tipo (“você é muito frio, você não sente remorsos?”), o familiar demanda do profissional um envolvimento afetivo que ele aprendeu a controlar, quer seja na prática, quer seja por meio de uma capacitação em CP, ou de ambas as maneiras. Assim, a fala tranquila, que Artur atribui a uma característica própria, também pode ser entendida enquanto um ato técnico, produzido a partir de sua prática e formação, com o objetivo de propiciar o tom emocional adequado para situações de tensão. Trata-se, como afirma Menezes (2004, p. 207), de uma emoção “domesticada”, o que pode também servir como um mecanismo emocional de lidar com a situação.

Nos seus relatos sobre as vivências com a morte, alguns profissionais descrevem momentos em que se colocam “no lugar do paciente” e como isso ajudou ou atrapalhou sua prática profissional. A técnica de enfermagem Rosiane destaca que “quando a gente vem de primeira é um susto grande, porque a gente se coloca no lugar do outro e a gente não queria estar neste lugar. Mas aí tenta fazer de tudo para o paciente ter um conforto maior do que a doença”. Rosiane foi uma interlocutora que se mostrou muito disposta a ajudar na pesquisa. Sempre simpática e com um sorriso no rosto, caminhava comigo no hospital mostrando os espaços e os pacientes que cuidava. Certo dia, enquanto caminhávamos pelas alas e entrávamos nas enfermarias, fiquei observando aqueles espaços parados, apenas os profissionais transitando de uma sala para a outra, os olhares dos familiares e pacientes direcionados a um ponto fixo, teto, parede, televisão, alguns olhos molhados, cansados e vazios, olhares distantes, sem interação entre familiares e pacientes. Na porta de uma enfermaria, fui confundido com um profissional e chamei Rosiane para que ela atendesse o familiar que havia me abordado. Na saída da enfermaria, quando já estávamos a uma distância segura daquela cena, a técnica me confidenciou que o quadro daquele paciente estava se agravando a cada dia e que os familiares não aceitavam a situação. Perguntei o que ela achava disso. “A equipe faz de tudo – ela disse –, porém nem sempre depende de nós. Se dependesse de mim, todo mundo estava curado. Ninguém merece morrer de câncer, algo tão doloroso”. Passear por esses espaços na companhia de Rosiane, com seu sorriso no rosto e ao mesmo tempo sua atitude atenta e cuidadosa, me fez pensar em como ela havia conseguido superar o momento de “se colocar no lugar do outro” para “se colocar ao lado do outro”.  

Para integrar uma equipe paliativista, é necessário que o profissional seja treinado com fins de valorização da vida por meio de contato com sua sensibilidade (MENEZES, 2004, p. 76). Mas a maneira em como esse treino se transforma em atitudes concretas é uma receita pessoal, resultado de aprendizados individuais e coletivos. Existe um paradoxo na prática dos CP, que Menezes (2004, p. 77) explica:

Os significados da morte e do morrer devem ser alterados do pesar e do ocultamento para uma aceitação. Assim, dois processos são construídos simultaneamente: uma sensibilidade tendo em vista a identificação do profissional com o doente e seu sofrimento e uma dessensibilização diante da morte, condição necessária à conti-nuidade de seu trabalho.

Ou seja, os profissionais da saúde desenvolvem uma atitude que passa pela dessensibilização para realizar suas práticas médicas, mas ao mesmo tempo precisam lidar com o princípio humanitário do cuidado. Na próxima seção, mostraremos de que modo algumas situações explicitam de modo mais acirrado a natureza desse paradoxo.

Tempo, Afeto e Sangue: as Mortes Mais Difíceis Para os Profissionais

Como já foi salientado anteriormente, a morte, enquanto fenômeno social, é alvo de investimento em todas as culturas, e cada uma delas desenvolve rituais de passagem que indicam como proceder com a pessoa morta. O aspecto que gostaríamos de destacar neste momento é a não equivalência entre as mortes, a diferenciação que é feita entre elas, a depender de uma série de critérios, dentre eles as características sociais do morto, a relação de maior ou menor proximidade, a forma da morte e a idade do morto, diferenças estas que incidem, inclusive, no impacto emocional e no luto. Uma das autoras que esclarece essa afirmação é a antropóloga Neves (1998, p. 3), que se expressa nos seguintes termos:

Portanto, a morte enquanto fenômeno social não é diferente das outras dimensões do universo das relações sociais; nela verificam-se diferenciações que permeiam todos os domínios desse universo. Assim é que não se morre com a mesma idade, nem da mesma maneira, além de existirem diferenças entre os sexos, entre profissões, entre os níveis de rendas. São diferentes as atitudes que se assume quando se trata da morte de uma criança, de um jovem ou de um idoso, ou quando se trata de uma morte de uma pessoa próxima ou distante, ou ainda, se trata de uma morte violenta, abrupta ou de uma doença que progressivamente encaminha a pessoa para o evento final. Consequentemente, muda-se o tratamento com o defunto, com as atitudes no funeral, o tipo de enterro, a duração dos ritos, a imortalidade da pessoa, etc.

No contexto hospitalar, quer seja nos CTI – Centros de Terapia Intensiva ou em CP, diversos estudos mostram que as reações emocionais às mortes de pacientes também sofrem importantes variações. Aredes, Giacomin e Firmo (2018), em pesquisa realizada em um serviço de pronto-socorro em Belo Horizonte, destacam quatro critérios que caracterizam as mortes mais difíceis para os profissionais: a idade do morto, a identificação com o paciente, as circunstâncias da morte e a responsabilidade dos profissionais em relação àquela morte (por não ter realizado, na sua compreensão, os procedimentos mais adequados). Veremos como alguns desses critérios se reproduzem na nossa pesquisa, enquanto outros estão ausentes.

Uma das últimas perguntas da entrevista versava sobre a experiência mais marcante dos profissionais com a morte de algum paciente no hospital. Esse foi o momento mais difícil de ser compartilhado nas conversas. Houve situações em que precisei parar a conversa, pois as narrativas foram visivelmente dolorosas para os entrevistados, permeadas pelo choro e por expressões de desgosto. Ao lembrar desses eventos, o esperado controle das emoções mostra seus limites. Os profissionais não tiveram qualquer dificuldade em identificar as situações mais difíceis, destacando, dentre elas, os “óbitos infantis” (que trataremos mais adiante) e, em seguida, os casos em que se estabelece uma maior proximidade entre profissional e paciente. Na descrição abaixo, uma das enfermeiras participantes da oficina ministrada com os profissionais explica como lida com essas situações em seu cotidiano profissional:

Se eu parar para conversar com esses pacientes vai atrapalhar meu serviço. Na realidade, a gente pensa assim: mas a partir do momento que a gente para tudo e a gente conversa, a gente vê que o ânimo e até o olhar deles melhora, o semblante aliviado, como se tivesse tirado um peso de cima dele, principalmente quando eles estão ali na UTI, porque eles olham de um lado e do outro e veem um monte de paciente ao lado deles, os profissionais pra lá e pra cá e os corredores vazios, de vez em quando a TV é ligada, quando eles pedem, que é uma forma de interagir um pouquinho, pra eles entenderem um pouco que está havendo lá fora, porque eles acabam ficando solitários. Eles ficam na sala algumas das vezes sozinhos, pois não tem familiar o tempo todo para desabafar, para conversar, para ter um apoio na angústia que eles sentem e eles veem na gente um amigo, um profissional amigo que pode dar apoio naquele momento em todos os sentidos. E assim, quando ocorre o caso que esse paciente vem a óbito, principalmente aqueles de longa permanência, que a gente acaba se apegando, é muito o sentimento que a gente fica, é angustiante, mas infelizmente quando Deus chama, não pode reverter à situação.

O desenho abaixo (Figura 1), realizado pela enfermeira cuja fala registramos aqui, expõe em traços a situação acima descrita. A imagem representa duas profissionais chorando por um “paciente de longa permanência”, com o qual já tinha se criado uma rotina de troca de afetos, o que motivou sentimentos de angústia e desgosto.

A Despedida - Desenho Feito por Uma Enfermeira
Figura 1
A Despedida - Desenho Feito por Uma Enfermeira
Fonte: Acervo de Weverson Bezerra Silva (2020).

Ao escutar os relatos dos profissionais sobre as mortes mais difíceis, um aspecto que se destaca, e que marca a diferença mais evidente com as experiências em urgências e emergências hospitalares, é a longa permanência dos pacientes com câncer no ambiente hospitalar. Vários profissionais entrevistados já trabalharam em um hospital de urgência, e destacam que o fato de não conhecer a história a fundo dos pacientes que “vão a óbito” interfere nas formas de sentir a morte. De acordo com eles, a morte na urgência é caracterizada como algo repentino ou uma tragédia, porém, a morte de pacientes com câncer em longa duração é uma “morte acompanhada”, uma morte esperada, para a qual, de certa forma, os profissionais se preparam, pois sabem que vai acontecer. Entretanto, o fato de “acompanhar” implica também o surgimento de laços de afeto, e por isso elas podem ser sentidas como mortes difíceis.

Outra categoria que foi acionada por alguns profissionais foi a da “morte consciente”, referindo-se às situações em que o paciente, internado em longa permanência no hospital, tem plena consciência de que está morrendo. A técnica de enfermagem Rosiane narrou a seguinte cena:

Ele morreu consciente, foi uma experiência marcante que está na minha memória. Ele estava segurando a minha mão e pedindo pra não morrer, foi logo quando eu entrei, há um ano atrás. Ele teve um enfisema pulmonar. Neste momento, eu estava na sala e ele estava com o companheiro dele, o único que sempre esteve presente. Ele viu como ele estava e desceu. Porém quando subiu novamente ficou do lado dele.

O relato acima chama a atenção por diversos aspectos, um deles é a maneira como foi significado pela profissional um relacionamento homoafetivo. A técnica de enfermagem Rosiane destacou que achava “lindo” o amor do casal, pois o companheiro esteve presente até o último momento. Na hora da morte, entretanto, o companheiro se retirou da sala, deixando a profissional a sós com o paciente. Rosiane, que via aquele paciente como “parte de sua vida”, apenas apertou a mão dele e demonstrou segurança para ele não se sentir sozinho. Quando o companheiro entrou no quarto, Rosiane o abraçou e naquele momento percebeu como era “bonito um relacionamento gay”. Não sabemos qual a percepção dessa entrevistada sobre diversidade sexual, mas no seu relato as convenções sociais terminaram sendo menos relevantes do que o afeto dispensado pelo companheiro. Em outros depoimentos é possível perceber que o afeto, demonstrado pela presença contínua junto ao paciente, é o que melhor define a qualidade de ser um bom familiar para os profissionais entrevistados.

Uma terceira situação que remete às mortes difíceis foi mencionada pelo técnico de enfermagem Wertton, que trouxe o relato de um paciente pedindo socorro aos profissionais de saúde em seus últimos momentos de vida. Essa morte foi marcada pela presença do sangue. O profissional viu o paciente se esvaindo em sangue e o sangue se tornou, para esse interlocutor, a materialidade da vida que estava se extinguindo. Essa morte, mais do que outras presenciadas ou acompanhadas, levou Wertton a pensar na própria finitude e a refletir sobre a dificuldade do trabalho na área da saúde. Eis o relato:

O paciente começou a sangrar, ele dizendo assim “não deixe eu morrer”, mas o paciente estava muito grave, cabeça e pescoço. E ele sangrando demais, sangrando demais, estava eu e o médico. Ele botou o sangue dele todinho para fora, ele ficou dessa cor [nesse momento ele apontou para minha blusa branca]. Aí o médico olhou para mim e disse “limpe ele e faça o pacote” 8. Aí a minha conclusão é que eu tiro que não somos nada, é muito doloroso e não é fácil trabalhar na área de saúde.

(Werton, técnico de enfermagem, entrevista realizada em 02/03/2020).

A última situação que apresentamos foi trazida pela enfermeira Martiniana Xaxá e tem como diferencial o foco na personalidade e atitudes da paciente internada. A paciente lembrada por essa profissional era sempre amável e positiva no processo de tratamento. A cada chegada ao plantão, lhe desejava “bom dia”. Com o agravamento da situação, um dia a paciente chamou a enfermeira e lhe disse “que queria morrer sem sentir dor”. De acordo com o relato, Martiniana Xaxá sentiu naquele momento que paciente “ia morrer”, mas os afazeres do dia a mantiveram ocupada durante o plantão. Na hora de ir embora para casa, notou que havia esquecido algum pertence, “não lembro o que”, e retornou ao setor. Foi quando percebeu uma movimentação na urgência e viu que a paciente tinha acabado de falecer, ou nas palavras dela, “estava em óbito, sem batimentos”. Nesse momento, a profissional sentiu que precisava se despedir, e como a paciente lhe desejava sempre “bom dia”, a profissional lhe desejou um “caminho de luz e sem dor”.Buscar algo que esqueci não foi um acontecimento por acaso”, relatou a enfermeira, pois foi então que constatou que a morte veio a ocorrer em seu plantão, o que revelaria o vínculo especial entre paciente e profissional.

Até aqui, exploramos algumas situações de morte de pacientes que os profissionais consideram especialmente difíceis de lidar e que põem em evidência o paradoxo proximidade/distância exigido por esse tipo de atividade. São situações que singularizam eventos e personagens a partir de um vínculo que se constrói pela longa permanência na instituição ou pelo modo de morrer. Se, nessas histórias, nos deparamos com sensibilidades e relações diferenciadas entre os profissionais, há um tipo específico de morte que une a todos no mesmo sentimento de tristeza e revolta: a morte de crianças.

“Agora é Um Anjinho”: As Atitudes dos Profissionais Diante da Morte Infantil

A experiência dos profissionais da saúde do HNL perante a morte e o morrer de pacientes infantis é marcada por um profundo mal-estar. O trabalho cotidiano com crianças com câncer propicia um desgaste físico e emocional, que se desdobra em experiências de aflição. Alguns profissionais saíram do acompanhamento de crianças e pediram transferência para a ala dos adultos por não aguentarem esse sofrimento. O afastamento do setor infantil é o ápice das muitas estratégias e mecanismos de defesa que os profissionais tentam desenvolver no trato com crianças.

Não apenas a morte, mas a própria hospitalização das crianças no hospital oncológico é percebida como incômoda, preocupante e perturbadora. Há um cuidado especial no ambiente destinado a elas, que pode ser observado na decoração e disposição de objetos no setor. Situada no andar térreo, “a pediatria” é um setor específico para crianças. Tem ambulatório, consultórios e uma brinquedoteca, além da enfermaria para internamentos. O espaço possui muros pintados com desenhos de animais, tem fotografias e desenhos dependurados das paredes. A maioria dos voluntários é alocada nesse setor. Quando entrei pela primeira vez “na pediatria”, parecia que estava em outro hospital, pois as cores, brinquedos e desenhos contrastavam com a monocromia do andar superior. Logo me senti invadido por um sentimento de descontração. Todo dia de observação, antes de sair do campo, passava um tempo na ala infantil, observava as crianças chegando e conversando com os profissionais de uma forma íntima, explicando para eles o que estavam fazendo em casa ou perguntando se poderiam brincar na brinquedoteca. Os profissionais me disseram que as crianças com câncer consideram o hospital uma “segunda casa”, pois já estão familiarizadas com aquele ambiente.

A maioria das crianças internadas no HNL foi diagnosticada com leucemia, que é o câncer infantil mais comum. Um dos problemas que os profissionais reconhecem é que os sintomas iniciais do câncer (febre, dor no corpo etc.) podem ser facilmente confundidos com outras doenças. Por isso, muitas vezes, quando o diagnóstico finalmente é dado, “já foi longe demais”. Geralmente, as crianças acompanhadas no HLN fazem tratamento com quimioterapia, e por conta disso experimentam queda de cabelo, um dos marcadores mais visíveis de câncer. De acordo com uma das enfermeiras que conversou comigo, é possível sentir “a autoestima da criança” diminuindo quando ela começa a perder o cabelo. Para amenizar essa situação, é comum o uso de lenços e tiaras coloridas pelas meninas; já os meninos usam bonés. Os profissionais chamam essas crianças pelo nome, e em outros momentos até com nomes de personagens infantis.

De acordo com Pettenon e Menin (2015), que desenvolveram uma pesquisa sobre os profissionais de saúde no contexto hospitalar, os profissionais da pediatria buscam estabelecer com as crianças uma forma de comunicação mais clara e efetiva, que se estende também aos demais familiares. Os profissionais entendem que, mesmo na impossibilidade da cura, os pais continuam a acreditar que a criança irá sobreviver. No HNL, os profissionais entrevistados também têm cautela nas formas de tratar esses pacientes e seus familiares. Existe um acompanhamento diferenciado com os pacientes do setor infantil, parcialmente motivado por um sentimento de impotência com a situação e uma maior empatia com os familiares, quando comparado com os pacientes adultos.

A atitude diferencial com as crianças internadas e, especialmente, com a morte de crianças, também observada em outras pesquisas (AREDES; GIACOMIM; FIRMO, 2018), se insere no espectro de atitudes desenvolvidas em relação à infância nas sociedades modernas e contemporâneas. É preciso remeter à obra clássica de Philippe Ariès (1986), intitulada História Social da Infância e da Família, na qual o autor mostra, a partir do exemplo francês, o longo processo de mudança nas mentalidades que elevou a criança ao centro da instituição familiar, depósito do investimento afetivo de seus familiares e do cuidado do Estado. Um aspecto importante na mudança de mentalidades foi o progressivo controle da mortalidade infantil, que contribuiu para uma expectativa generalizada de que os filhos sobrevivam aos pais. Nesse sentido, a morte de crianças é hoje percebida como uma morte fora da ordem, especialmente pungente pela valorização simbólica, material e afetiva que as crianças possuem em nossa sociedade. Relatos que sugerem a percepção de uma morte prematura, fora do tempo, foram comuns no setor infantil. A enfermeira Fabrícia enfatizou que a morte infantil não é algo fácil, pois está gravada no imaginário das pessoas a ideia da criança como um ser saudável, cheio de alegria, com todo um caminho para desvendar, explorar e aprender. É difícil para a família aceitar tal diagnóstico na criança, pois o tratamento é doloroso e ainda há a possibilidade de morte. Até para o pesquisador, esses foram os relatos mais difíceis de serem escutados. Tem profissionais que, na ocasião da morte de uma criança no setor, passam dias afastados de suas funções pelo grau de afetividade que desenvolveram com a criança e com os familiares.

No forte impacto emocional que essas mortes acarretam, encontram-se, sobrepostos, os significados positivos relativos à infância e os significados negativos atribuídos ao câncer. Como disse a enfermeira Fabrícia: “se um adulto não merece morrer assim, imagina uma criança, que não tem maldade e nem pecado. Elas não mereciam”. Ao afirmar que as crianças “não merecem” a doença e a morte reafirmam-se, a um só tempo, a visão da criança pura e inocente e a imagem do câncer como punição e castigo, o que reatualiza metáforas já analisadas sobre a doença (SONTAG, 1984). Aqui sugere-se uma compreensão religiosa ou moral da doença, a partir da ideia de pecado e maldade em contraposição à de inocência.

A ideia de pureza das crianças está relacionada a uma imagem simbólica muito disseminada entre a equipe paliativista: a da criança que ao morrer vira um “anjo” ou “anjinho”. Uma das enfermeiras que participou da oficina ministrada em fevereiro de 2020 desenhou um paciente infantil (Figura 2), descrevendo seu desenho com estas palavras: “ele já estava próximo da morte, e a gente não tinha mais nada a se fazer, pois o quadro já tinha se agravado muito. Naquele momento tive uma lição, pois pude perceber que é um anjinho puro que se foi”.

Um Anjo Indo pro Céu – Desenho de Um Técnico de Enfermagem
Figura 2
Um Anjo Indo pro Céu – Desenho de Um Técnico de Enfermagem
Fonte: Acervo de Weverson Bezerra Silva (2020)

Na literatura sobre mortalidade infantil, a crença em “anjinhos” aparece como um elemento central em contextos nos quais as mortes de crianças pequenas são muito frequentes, ajudando à comunidade, sobretudo às mães das crianças, a lidar com essas perdas (FRANCH; FALCÃO, 2004). De modo semelhante, a enfermeira autora da Figura 2 encontra na figura do “anjo” a “lição” que lhe permite aceitar a difícil situação da perda de um paciente infantil.

A figura do “anjo” aparece em outro relato, da nutricionista Raphaela, desta vez da boca da paciente. A criança em questão tinha sete anos e sabia que estava próxima da morte. A entrevistada tinha uma relação muito próxima com ela, que se estendia até as suas filhas, pela proximidade etária. Essa morte a afetou de um modo tão intenso que ela decidiu se afastar do setor de pediatria. O último pedido da menina foi se vestir de “anjinho”:

Um contato com a morte que me chamou muita atenção foi com uma criança, minhas filhas eram pequenas e elas vinham para cá e tinha essa criança, [...], ela tinha sete anos, isso foi vinte anos atrás mais ou menos, e o que aconteceu? minhas meninas se apegaram a ela, elas passaram finais de semana na casa de uma copeira daqui, tinha um câncer cervical, e ela pegou infecção urinária e ela não poderia tomar quimioterapia para diminuir o tumor, e o tumor dela era super agressivo, não poderia porque ela estava fazendo uso de antibiótico, e nesse meio termo ela teve insuficiência respiratória e foi a óbito.  E ela sempre dizia, “tia quando eu morrer, quero me vestir de anjo, me vestir de azulzinho.” Foi quando eu saí da pediatria, eu era da pediatria e saí porque a gente se apega, a gente sentia, ela fez quadrinhos, a gente da nutrição se apagou com ela, era eu e outra. Eu sou a mais antiga. E o meu mecanismo foi sair da pediatria que me afetava mais. Mas aí a gente vai criando uma barreira, principalmente no âmbito familiar, pois é aí que a gente vai criando muitas raízes e você fica na dependência de sempre ajudar mais e mais e ultrapassar o seu limite emocional. Foi aí que me perdi muito.

(Raphaela, nutricionista, entrevista realizada em 03/03/2020).

Além da identificação e do vínculo com as crianças e com as famílias, alguns relatos chamam a atenção para a dimensão do sofrimento. A fisioterapeuta Rafaela lembrou de uma criança que estava traqueostomizada, dispneica – “uma respiração ofegante a criança estava. Foi colocada na ventilação mecânica, ela só queria ar para respirar, uma coisa tão simples, a gente está respirando, né?” Já a assistente social Milena trouxe o caso de uma menina que foi sendo desfigurada pelo avanço da doença:

Até hoje eu lembro, essa menina o nome dela era [...] e a gente a chamava de Pocahontas, sabe por quê? Ai, meu Deus eu não gosto nem de falar, eu acho que ela tinha oito anos na época ela tinha o cabelo enorme, linda, linda, linda, parecia uma índia, por isso que a gente chamava de Pocahontas. Aí todo dia eu passava e perguntava como estava, Pocahontas, aí nós ligávamos pra saber como é que ela estava aí ela, a gente se envolve demais, a gente começou a se envolver demais, não que eu tenha criado aquela coisa dura..., mas eu me protejo mais. Esse é um dos meus maiores medos, de não sentir a dor do outro. Porque quando você não sente você... [respira forte]. Mas aí o que aconteceu, ela amputou a perna, foi mertasacoma com metástase pulmonar, aí eu estava começando não sabia que era tão grave assim, ela completou ano aqui e raspou o cabelo a gente acompanhou tudo, passou meses aqui. Aí ela cortou primeiro a perna, ai depois ela foi pra uma UTI, depois voltou, foi todo um processo, eu sei que no dia que ela faleceu eu estava em casa [...] e sim, a gente recebia bilhetes dela, ela mandava bilhetinhos, aquela parte afetiva, a gente se envolveu muito, eu inexperiente quando ela morreu queria me despedir. Eu fiquei uma semana, como se fosse da minha família, eu chorava, ficava lendo os bilhetes dela, foi difícil a recuperação.

(Milena, assistente social, entrevista realizada em 23/02/2020).

Foi muito comum, durante o campo, os profissionais de saúde destacarem como esses processos de morte interferiram em suas relações pessoais. As narrativas evidenciam como a relação com a morte infantil é delicada e como realizar o distanciamento extramuros é um processo árduo. De acordo com Valle, Mazel-Gonçalves e Santos (2016), o contato com o fenômeno da morte de crianças com câncer no ambiente hospitalar deixa marcas profundas indeléveis, pois quando a finitude da criança é abordada, a morte é vista como uma calamidade, principalmente quando as crianças morrem de câncer.

Um dos relatos escutados se diferenciou dos demais. Foi o da médica Lizandra, que destacou o aspecto positivo da relação especial que pode se criar com alguns pacientes, no caso em questão, com um adolescente:

[enfermeira disse] “doutora ele está lá em cima, está indo embora, mas eu acho que ele ainda quer ver a senhora” e eu disse “eu vou lá!” e quando eu falei com ele e alisei o cabelo dele, não deu um minuto ou dois e ele faleceu, sabe quando você espera, sabe que ele tinha um olhar de amigo e era adolescente também, um olhar de interação com você e que eu confiava nele e ele confiava em mim, tudo que eu falava ele tentava fazer, pro bem dele mesmo e tudo que ele me contava a gente tentava diminuir de sintomas, a gente conseguia se compreender, era como disse antes, é mágico, quando você consegue essa interação profunda com o paciente ou com a família ele se torna parte de você, não é parte da sua família porque ele não vai ser parte da sua família, ele se torna um pedaço de você, porque aquela experiência você consegue passar adiante para outros e isso se torna mágico.

(Lizandra, médica, entrevista realizada em 26/11/2020).

O diferencial desse relato, o único aqui trazido proferido por uma médica, nos leva a refletir sobre as hierarquias, posições e funções de cada membro da equipe no cotidiano hospitalar. De um lado, os médicos têm um envolvimento pontual com os pacientes, pois estabelecem as principais condutas terapêuticas a serem seguidas pelo restante da equipe e realizam visitas periódicas. De outro lado, a equipe de enfermagem realiza o cuidado cotidiano dos pacientes, tarefa para a qual a proximidade é exigida. Enfermeiros, portanto, podem vivenciar o envolvimento afetivo como um risco inerente à sua posição ao lado do paciente – “sentir a dor do outro”. Já os médicos, como sugere o relato de Lizandra, podem chegar a celebrar o momento em que esse envolvimento ocorre, como uma “conexão que se torna mágica”. Pela positividade ou pela negatividade, as mortes de crianças se destacam como as que mais mobilizam afetivamente os profissionais de saúde.

“Todo Dia Morre Gente Aqui”: A Comunicação da Notícia da Morte

Acompanhar o processo de morte dos pacientes e notificá-lo à família faz parte do cotidiano dos profissionais da saúde entrevistados. Como escutava com frequência durante a observação: “Todo dia morre gente aqui”. Na figura a seguir (Figura 3), uma enfermeira representa em forma de desenho o espaço em que o paciente morre no hospital. Na maioria das vezes, o paciente se encontra em sua enfermaria, sozinho ou com algum familiar. A enfermeira disse que anota o “horário do óbito” no relógio que tem em sua sala, e em seguida chama o médico para oficializar a morte assinando a “declaração de óbito” e realizando a “evolução do óbito”. A enfermeira relata que, nas ocasiões em que os familiares não perceberam a morte do paciente, sai em busca de outros profissionais, como a psicóloga ou a assistente social, que estejam disponíveis para dar a notícia, mas geralmente são os próprios médicos que fazem a comunicação da morte.

A Hora da Morte – Desenho de Uma Enfermeira
Figura 3
A Hora da Morte – Desenho de Uma Enfermeira
Fonte: Acervo de Weverson Bezerra Silva (2020).

Destacamos a legenda da imagem, escrita pela enfermeira: “O profissional de enfermagem constatando um óbito, muito triste a sensação, aquele momento”. “Aquele momento” é a hora da morte, não desejada, mas esperada por alguns familiares. A partir dos relatos, percebeu-se a dificuldade dos profissionais em comunicar essa notícia, o que atribuem em parte ao fato de não ter um espaço adequado no hospital para “dar óbito”. A assistente social Milena explica a situação desta maneira:

Primeiro, a gente não tem nem local pra dar óbito aqui. A gente não tem uma sala para poder acolher a família. Essa sala aqui que a gente está conversando agora a gente pensou quando foi reformar a sala, pensou em fazer essa sala como acolhimento, entendeu? pra fazer isso aí, entendeu? para receber a família aqui junto com psicologia e serviço social, mas não tem uma sala pra dar essa notícia. Pra fazer suporte psicológico tem uma sala, aquela, espaço ecumênico, tem uma igreja aí você senta ali, você não vai dar uma notícia ali. Aí ali seria ideal ter uma salinha, mas não tem. Na UTI [unidade de terapia intensiva] também não tem, só assim os corredores e quem tiver passando vai ver a família chorando, não tem um espaço.

(Milena, assistente social, entrevista realizada em 23/02/2020).

O suporte dado à família é um aspecto importante do trabalho dos profissionais. No horário da visita, o médico costuma informar aos acompanhantes sobre a situação real de cada paciente, para que já “estejam preparados” se o prognóstico não for bom. Por isso, quando ocorre de a equipe acudir à enfermaria em emergência, ou quando os familiares recebem uma ligação do serviço, muitas vezes antecipam a notícia que receberão. Mesmo assim, a negação da morte é a reação mais comum por parte dos familiares. Uma assistente social descreveu esse momento como sendo “dramático” para a família e “triste de comunicar” para o profissional. É importante perceber aqui como ocorre a distribuição de tarefas entre os diversos profissionais, cabendo ao médico “a explicação da parte mais técnica do óbito”, de acordo com a psicóloga Durvalina:

Às vezes a gente consegue, às vezes não, porque por mais que a gente venha trabalhar para esse momento da morte, ninguém está pronto para perder ninguém. Ninguém quer perder ninguém. Por mais que você veja que é grave ninguém quer perder ninguém! E lá na hora da notícia da morte a gente faz o suporte pra família o médico dá toda explicação da parte mais técnica, do que ele morreu, o que aconteceu, se teve uma parada, a gente fica com a família depois nas enfermarias e a mesma coisa é nos outros setores, urgência... aí chega o comunicado “ah tá chegando a notícia que tal setor teve um óbito”, a gente já sabe que é pra dar o suporte a família, pois a negação ainda é forte

(Durvalina, psicóloga, entrevista realizada em 25/11/2020).

Os profissionais são conscientes da necessidade de acompanhar os familiares depois da notícia de uma morte, porém informam que não há profissionais suficientes para isso no hospital. Individualmente, alguns funcionários continuam mantendo contato com as famílias de pacientes que morrem, mas essa não é uma ação institucional. É importante notar que os profissionais ligados a um determinado paciente não participam da comunicação da morte nem dos cuidados com o corpo morto. Quanto maior a afetação dos profissionais com os familiares, menor o envolvimento deles no post-mortem.

Algumas das dificuldades encontradas na nossa pesquisa, especialmente a falta de um espaço adequado, já foram observadas em outros estudos como o de Souza et al. (2018) sobre comunicação da morte em um pronto-socorro. Entretanto, há uma diferença importante entre ambos os estudos: se no pronto-socorro, um dos elementos que dificultavam a comunicação da morte era o pouco contato entre os profissionais e os familiares, na nossa pesquisa, o fato de se tratar de pacientes de “longa duração” torna essa comunicação mais viável, embora não isenta de “tristeza” – a emoção mais mencionada nos relatos desse momento, e que remente ao luto.

A comunicação da morte é o último momento nas entrevistas em que os profissionais se referem aos pacientes pelo nome. Dali em diante, o paciente perde sua individualidade e passa a ser definido por um substantivo genérico: “o corpo”.

“Envelopar o Corpo”: O Rito post-mortem

O acondicionamento do corpo morto, a partir do momento da “constatação do óbito” até a “descida para o necrotério”, constitui a última fase do cuidado da equipe palia-tivista com o paciente. Para debater essa parte tão delicada do trabalho dos profissionais da saúde no HNL, trazemos o pensamento de Mattedi e Pereira (2007, p. 319):

Do ponto de vista sociológico, a morte pode ser descrita como o núcleo de um complexo cultural que envolve técnicas, costumes e valores. Isso significa que, para habituar-se à morte, cada sociedade, cada comunidade, cada grupo social, à sua própria maneira, acabou desenvolvendo dispositivos de suportes sociopsicológicos para conviver com a ideia de finitude. Com isso, a morte foi se transformando numa experiência institucionalizada socialmente, cercada de ritos, hábitos e técnicas.

O tratamento do corpo morto que se verifica no HNL também está cercado de ritos, hábitos e técnicas que constituem a experiência institucionalizada da morte naquele contexto. Chama especial atenção o vocabulário utilizado para se referir a esse momento. Uma das primeiras vezes em que tomei contato com essa terminologia foi na narrativa, anteriormente transcrita, sobre a “morte com sangue”, feita pelo técnico de enfermagem Wertton. Após “a constatação do óbito”, o médico fez a seguinte solicitação ao entrevistado: “limpe e faça o pacote”, ao que o técnico reagiu começando a "envelopar o corpo”. Se toda a inserção na rotina dos profissionais me colocou em contato com códigos e linguagens, não podia ser diferente nesse momento, quando observei com surpresa que o vocabulário em torno dos cuidados com o morto continha palavras que usualmente se referem a coisas, como “fazer o pacote” ou “envelopar”.

O trabalho de acondicionar o corpo morto para sua retirada é específico da equipe de enfermagem, e dentro desta, recai sobre os técnicos de enfermagem. Um dos entrevistados, o técnico de enfermagem Artur, ilustra como é o processo: “quando tem o óbito, depois disso é só fazer o pacote, que é colocar os algodões, colocar no nariz e ouvidos, identificar ele/ela com o nome completo e em seguida colocar a data e a hora do óbito, os dados ficam também na capa”. Idêntico procedimento foi relatado por Wertton, técnico de enfermagem, que deu mais detalhes sobre a “capa”, nos permitindo entender a razão da metáfora do “envelope” – o corpo morto é colocado em uma espécie de saco plástico fechado sobre o qual se escrevem os dados do paciente, como se fossem os dados do destinatário ou do remetente de uma carta:

Geralmente quando a gente prepara o corpo, a gente usa uma capa que a gente pede, pega na farmácia. A gente identifica o paciente com o nome, a data, e a hora que ele foi a óbito. O primeiro é o médico que dá o óbito. Aí depois a gente pega o paciente e coloca no envelope, dentro da capa e chamamos o maqueiro e eles que levam o corpo lá embaixo, no necrotério

(Werton, técnico de enfermagem, entrevista realizada em 02/03/2020).

De acordo com vários relatos, os procedimentos que devem ser realizados nesse momento consistem em fechar os olhos do morto, retirar os drenos ou outros objetos que estejam no corpo, fazer os curativos utilizando gases ou fitas, retirar secreções e fechar os orifícios naturais (ouvidos, narinas e regiões orofaríngea, anal e vaginal), para evitar saída de secreções ou flatos. Além disso, deve-se juntar os pés com ataduras. A técnica do preparo do corpo é de execução bastante rápida, até porque é realizada do lado de outros pacientes que estão com vida. A técnica de enfermagem Rosiane contou que, sempre que alguém morre na enfermaria, ela se apressa em fechar as cortinas, para que os pacientes no leito vizinho não fiquem olhando. Quando todos os procedimentos são concluídos, a expressão utilizada é que “o pacote” ficou pronto.

Os materiais utilizados nos procedimentos são pinça longa, algodão, tesoura, bacia com água, lençol, papel toalha, sabonete líquido, atadura crepe, além dos EPIs para proteção dos profissionais. Destacamos que, nesse momento, instrumental, materiais e equipamentos de proteção ganham relevância mostrando a necessidade de pensar de modo integrado a função técnica e simbólica: ao entrarmos na fase de separação do rito de passagem, sobressaem ações e objetos que demarcam e performam a distância entre mortos e vivos, no caso, entre os profissionais e “o corpo”. Não se trata, portanto, apenas de uma questão de higiene ou profilaxia pois, como nos ensinou Mary Douglas (2012), todo gesto de limpeza é ao mesmo tempo uma forma de ordenação do mundo. Do mesmo modo, a terminologia utilizada ao longo de todo o processo marca uma clara diferença deste momento em relação ao processo de cuidado em vida, quando primava o tratamento o mais individualizador possível, que se expressava pelo uso do nome próprio dos pacientes. No post-mortem, é preciso desumanizar o paciente, que primeiro se torna apenas matéria (“o corpo”) e em seguida coisa (“pacote”, “envelope”).

Imagina-se que, nesses procedimentos, que fazem parte do momento de separação do rito de passagem para os profissionais da saúde, as emoções também devam ser distanciadas. O que se verifica, entretanto, é que o trato com o corpo morto é um momento revestido de dificuldade, talvez por remeter à fragilidade da condição humana. Um dos profissionais entrevistados colocou esse sentimento em palavras: “não é fácil não, porque você fazer um pacote de outro ser humano, não foi muito bom não. Eu digo a você que ninguém está preparado para isso não, não foi fácil”.

Considerações Finais

Ao longo do artigo, apresentamos experiências, aprendizagens, atitudes e emoções diante da morte, desenvolvidas por profissionais de saúde que trabalham no atendimento direto de pessoas com câncer num hospital especializado na cidade de João Pessoa. Levando-se em conta as duas situações mais comuns encontradas na literatura sobre o assunto, CTI ou CP, estes profissionais correspondiam à segunda delas, e refletem alguns dos elementos já discutidos em outros trabalhos. Conforme Menezes (2004) já apontava, os profissionais que trabalham em CP precisam desenvolver uma atitude emocional que se desdobre em um duplo movimento: sensibilizar-se em relação à dor do outro em vida e dessensibilizar-se em relação à sua morte, que deve ser compreendida como parte da vida. Essa atitude contrasta com aquilo que é observado nas emergências, que expressam em seu mais alto grau a crença no poder da medicina para prolongar a vida e combater a morte, que consequentemente aparece nesses contextos como um fracasso. A análise das entrevistas e observações aqui contidas mostram como o fracasso aparece, sobretudo, nas primeiras experiências com a morte de pacientes, uma atitude que vai sendo substituída aos poucos por uma outra, de aceitação. Uma metáfora que nos pareceu especialmente apropriada para descrever a trajetória dos profissionais no seu contato com a morte no hospital nos foi sugerida pela técnica de enfermagem Rosiane –de se colocar “no lugar do outro” a atuar “ao lado do outro”. Em alguns casos, a mudança de atitude é atribuída à participação em cursos de especialização em CP, mas a maioria dos entrevistados valoriza “a prática” como sendo a principal responsável dessa transformação, conforme salientamos no título do artigo: “Vivenciar o sentido da morte é na prática”. Há uma crítica aberta à forma como a morte, em suas diversas dimensões que tocam a prática na área da saúde (“acompanhar”, “comunicar”, “envelopar”), está ausente nas formações universitárias, ao mesmo tempo em que se entende que a experiência vivida no dia a dia no serviço é a melhor mestra.

O desgaste, o sofrimento e a dificuldade do trabalho emocional envolvido no trato cotidiano com pacientes com câncer em CP apareceram de diversas maneiras na pesquisa. Os profissionais destacam a longa permanência dos pacientes no hospital como um elemento que torna difícil a dessensibilização, pois é responsável pelo surgimento de vínculos com alguns pacientes, cujas mortes passam a ser sentidas de maneira mais pungente, sobretudo no caso dos profissionais da enfermagem, para os quais a proximidade é uma exigência e ao mesmo tempo um risco. Alguns elementos também contribuem para a singularização de algumas experiências com os pacientes, como a personalidade ou atitude dos próprios pacientes (“uma paciente muito alegre”) ou a observação de uma relação de afeto entre um paciente e seu companheiro (“como é bonito um relacionamento gay”). Em outras ocasiões, é a forma como ocorreu a morte que marca esse evento na memória dos profissionais (“consciente” ou “com muito sangue”). A morte de crianças, uma morte percebida como sendo injusta e fora de ordem, aparece em primeiro lugar de dificuldade, o que veio acompanhado de relatos sobre o sofrimento observado, estratégias de aceitação alinhadas com o imaginário dos “anjinhos” e, em última instância, pela negativa de continuar trabalhando no setor infantil.

Optamos por apresentar, neste artigo, todos os momentos envolvidos no ciclo da morte, que podemos enumerar como “acompanhar” a morte, “constatar o óbito”, “comunicar” à família e, por fim, “envelopar” o corpo. Discutimos como a equipe se distribui face a essas tarefas e como elas ensejam emoções diferentes, desde a “empatia” no acompanhamento, a “tristeza” na hora da comunicação até a sensação de profundo mal-estar ao “fazer o pacote”. Um tema não explorado no artigo é o das relações com os acompanhantes, que tanto pode ser de complementariedade e empatia, como de cobrança e tensão, ou às vezes simplesmente de ausência, situações em que os profissionais “assumem” o papel da família. 

Da valorização da “prática” como verdadeira mestra no trato cotidiano com a morte hospitalar, é importante reter a crítica à formação universitária, que não prepara os profissionais para o trato com a morte – aspecto que necessariamente estará presente em sua atuação profissional futura. Neste momento, chamamos também a atenção para as queixas dos entrevistados sobre as limitações de recursos e condições de trabalho, que interferem em suas práticas e consequentemente em seu bem-estar emocional. Os profissionais reclamaram da falta de medicamentos, da necessidade de contratação de novos profissionais, da estrutura das enfermarias e da ausência de um espaço adequado para conversar com os pacientes. Se os profissionais “acompanham” a morte, é preciso acompanhar esses profissionais desde a formação até a prática, dando-lhes condições melhores para o exercício dessa importante atuação junto daqueles que vão morrer.

Por fim, apontamos para a necessidade de produzir mais conhecimento empírico relacionado ao processo de morrer no ambiente hospitalar, ampliando o que já foi estudado pelos pesquisadores das ciências humanas e da saúde sobre esse tema e, assim, dar atenção não só para os profissionais da saúde, recorte deste trabalho, mas também aos pacientes e familiares. Nesse sentido, destacamos o valor da etnografia como forma privilegiada de construção de um conhecimento compartilhado diante dos fatos mais sensíveis que dizem respeito à vida e a à morte.

Referências

AREDES, Janaína Souza; GIACOMIN, Karla Cristina; FIRMO, Josélia Oliveira Araújo. O médico diante da morte no pronto-socorro. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 52, n. 42, 2018.

AREDES, Janaína Souza; MODESTO, Ana Lúcia. Entre vidas e mortes, entre máscaras e fugas: um estudo sobre a prática médica hospitalar. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 26, n. 2, p. 435-453, 2016.

ARIÈS, Philippe. História da morte no ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Tradução de Priscila Vianna de Siqueira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.

ARIÈS, Philippe. História social da infância e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

CONSORTE, Josildeth. A morte na prática médica. In: MARTINS, José de Souza (org.). A morte e os mortos na sociedade brasileira. São Paulo: HUCITEC, 1983. p. 201-210.

DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 2012.

ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2012.

FRANCH, Mónica; FALCÃO, Tânia. Será que elas sofrem? Algumas observações sobre Death without weeping de Nancy Scheper-Hughes. Revista de Ciências Sociais: Política & Trabalho, João Pessoa, v. 20, n. 1, p. 181-196, 2004.

MACEDO, Juliana Lopes de. A morte e a medicina: sentimentos envolvidos diante da morte entre médicos. RBSE. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, [s. l.], v. 18, n. 53, p. 119-130, agosto de 2019 ISSN 1676 8965.

MATTEDI, Marcos Antonio; PEREIRA, Ana Paula. Vivendo com a morte: o processamento do morrer na sociedade moderna. Caderno CRH, Salvador, v. 20, n. 50, maio, 2007. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-49792007000200009

MENDES, Nayara; BORGES, Moema da Silva. Representação de profissionais da saúde sobre a morte e o processo de morrer. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 65, n. 2, p. 324-331, mar./abr. 2012.

MENEZES, Rachel Aisengart. Difíceis decisões: uma abordagem antropológica da prática médica em CTI. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de janeiro, v.10, n. 2, p. 27-49, 2000.

MENEZES, Rachel Aisengart. Em busca da boa morte: antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004.

MENEZES, Rachel Aisengart; HEILBORN, Maria Luiza. A inflexão de gênero na construção de uma nova especialidade médica. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 15, n. 3, p. 336, 2007.

MENEZES, Rachel Aisengart; LIMA, Carolina Peres. Sedação paliativa em fins de vida: debates em torno das prescrições médicas. Revista M., Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, p. 405-420, 2018.

MENEZES, Rachel Aisengart; MACHADO, Renata de Morais. Visibilização contemporânea do processo de morrer: novos rituais e sensibilidades. Tempo da ciência, v.26, n.51, p.12-30, 2019.

NEVES, Ednalva Maciel. Da morte biológica à morte cultural: um estudo sobre o morrer em casa em João Pessoa-PB. 1998. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Departamento de Ciências Sociais, Centro de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 1998.

PETTENON, Marinez Koller; MENIN, Gisele Elise. Terminalidade da vida infantil: percepções e sentimentos de enfermeiros. Revista bioética, Brasília, v. 23, n. 3, p. 608-614, 2015.

PITTA, Ana. Hospital: dor e morte como ofício. São Paulo: Hucitec, 2016.

SANTOS, C. A. F. Os profissionais de saúde enfrentam: negam a morte. In: MARTINS, J. S. (org.). A morte e os mortos na Sociedade Brasileira. São Paulo: Hucitec; 1983.

SILVA, Nathalia Ramos; MENEZES, Rachel Aisengart. “Se parar, parou”: categorização do morrer em uma unidade de terapia intensiva da cidade do Rio de Janeiro. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 265-285, 2015.

SILVA, Weverson Bezerra. Os cuidados paliativos para pacientes com câncer em tempos de covid-19 na ótica dos profissionais de saúde, Áltera, João Pessoa, n. 14, p. 1-25, 2022.

SILVA, Weverson Bezerra. Trabalhar com a morte é não parar de pensar nela: estudo antropológico sobre as práticas dos profissionais de saúde do hospital Napoleão Laureano com os pacientes com câncer em cuidados paliativos. 2021. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2021.

SOLLERO-DE-CAMPOS, Flavia; BRAGA, Rafaela Costa. Quando a morte ocorre no domicílio. Revista M., Rio de Janeiro, v. 4, n. 8, p. 419-433, 2019.

SONEGHET, Lucas Faial. Fazendo o melhor da vida na morte: arranjos de cuidado, qualidade de vida e cuidados paliativos. Revista M., Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 357-382, jul./dez. 2020.

SONTAG, Susan. A doença como metáfora. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984. (Coleção Tendências, n. 6).

SOUSA, Emilene; PIRES, Flavia. Entendeu ou quer que eu desenhe? Os desenhos na pesquisa com crianças e sua inserção nos textos antropológicos. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 27, n. 60, p. 61-93, 2021.

SOUZA, Gislaine Alves; GIACOMIN, Karla; AREDES, Janaína Souza; FIRMO, Josélia Oliveira Araújo. Comunicação da morte: modos de pensar e agir de médicos em um hospital de emergência. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 28, n. 3, 2018.

VALLE, Elizabeth Ranier Martins do; MAZER-GONÇALVES, Sheila Maria; SANTOS, Manoel Antônio dos. Significados da morte de crianças com câncer: vivências de mães de crianças companheiras de tratamento. Estudos de Psicologia, Campinas, v. 33, n. 4, p. 613-622, out./dez. 2016.

Notas

3 A pesquisa teve aprovação pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde (CEP/CCS) da UFPB, de número 2639019.4.000.5188.
4 Para mais detalhes, ver Silva (2021). O trabalho de campo foi realizado integralmente pelo primeiro autor deste artigo, sob orientação da segunda autora, e ambos dividem a escrita do artigo. Os trechos em primeira pessoa do singular, que remetem a observações em campo, referem-se sempre ao primeiro autor.
5 Seguindo recomendações de Sousa e Pires (2021), que refletem sobre o uso do desenho como técnica de pesquisa com crianças, incluímos os desenhos e as explicações dadas pelos seus autores, evitando fazer inferências ou projeções sobre tais produções imagéticas.
6 Todos os nomes de interlocutores são fictícios.
7 Como mostrado em outras pesquisas (MENEZES, 2004), os profissionais entrevistados raramente utilizam a palavra “morte”. Entre os eufemismos ou tecnicismos que recobrem esse fato social, “vir a óbito” é mais corrente no espaço pesquisado.
8 Como mostraremos na seção correspondente, “fazer o pacote” é uma categoria nativa que diz respeito ao preparo do corpo morto.

Autor notes

* Weverson Bezerra Silva. Doutorando em Antropologia pela Universidade Federal da Paraíba. Doutorando junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba. E-mail: weversonsilbez@gmail.com
* Mónica Franch. Doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2008). Docente junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal da Paraíba. Email: monicafranchg@gmail.com.
Declaração de Co-Autoria Ambos assumem corresponsabilidade ética e científica em relação ao conteúdo do manuscrito
HMTL gerado a partir de XML JATS4R por