DOSSIÊ – A Morte e o Processo de Morrer nas Ciências Sociais
Recepção: 15 Novembro 2022
Revised document received: 16 Janeiro 2023
Aprovação: 10 Abril 2023
DOI: https://doi.org/10.5433/2176-6665.2023v28n1e46971
Resumo: Este artigo expõe uma reflexão em torno dos vivos e mortos, enfocando os aspectos sensoriais da relação entre ambos. Apesar da morte ser um tema antigo na antropologia, a maioria dos estudos da disciplina centram-se ou nas representações coletivas do post-mortem ou nos rituais fúnebres, deixando em segundo plano a condição material do morto, expressa pela presença de seu cadáver. Mais do que mero objeto de reflexão e/ou intervenção, o cadáver sensibiliza quem o toca, olha e cheira. Tais relações não ocorrem fora do escopo da cultura: atualmente, a morte tornou-se um assunto da medicina, e a manipulação dos cadáveres passou a ser executada por indivíduos qualificados. A tanatopraxia é um dos muitos serviços criados para se lidar com o corpo morto. A fim de aprofundar o entendimento das relações entre vivos e mortos, é defendido, aqui, uma antropologia dos sentidos da morte, isto é, uma investigação de como os vivos sentem os mortos, tendo a tanatopraxia como um caso prolífero de estudo.
Palavras-chave: Morte, vivos/mortos, cadáver, antropologia dos sentidos, tanatopraxia.
Abstract: This article exposes a reflection on the living and the dead, focusing on the sensorial aspects of the relationship between them. Despite death being an old topic in anthropology, most studies in the discipline focus either on collective representations of the post-mortem or on funeral rituals, leaving in the background the material condition of the dead, expressed by the presence of their corpse. More than a mere object of reflection and/or intervention, the corpse sensitizes those who touch, look and smell it. Such relations do not occur outside the scope of culture: nowadays, death has become a matter of medicine, and the handling of corpses has come to be carried out by qualified individuals. Thanatopraxy is one of the many services created to deal with the dead body. In order to deepen the understanding of the relationships between the living and the dead, an anthropology of the senses of death is defended here, that is, an investigation of how the living feel the dead, with thanatopraxy as a prolific case of study.
Keywords: Death, living/dead, corpse, anthropology of the senses, thanatopraxia.
Introdução
Nossa atitude para com o vivo não é a mesma que para com o morto. Todas nossas reações são diferentes
(WITTGENSTEIN, 1979, p. 103).Em certa perspectiva, a morte é uma relação; mais especificamente, uma relação que se dá entre vivos e mortos. Tal constatação, ainda que óbvia, guarda um significado que pode passar despercebido, a saber: não se pode entender a morte somente através dos vivos, pelas ideias, preconceitos e julgamentos destes, bem como não se pode entendê-la só pelas angústias, lamúrias e inquietações dos moribundos. Isoladamente, vivos e mortos têm pouco a dizer sobre a morte – ou a vida. E o que chamamos de a morte corre o risco de se tornar uma abstração desmedida caso não consideremos, como Claude Lévi-Strauss, que “Os termos não valem em si; apenas as relações importam” (LÉVI-STRAUSS, 1997, p. 74). Ou seja, que os vivos e mortos se engendram mutuamente, definindo o(s) sentido(s) do que são na relação que mantêm e os mantêm.
Neste artigo – de caráter eminentemente teórico – exploro justamente tais relações, mas através de uma abordagem até agora pouco empregada. Considerando menos as crenças e práticas relativas à finitude existencial do que as experiências concretas entre vivos e mortos, tenho como mote, aqui, uma antropologia dos sentidos aplicada à morte. Quer dizer, pretendo tratar a morte à luz do que ficou conhecido como “virada sensorial”: um conjunto de estudos interdisciplinares dedicados aos sentidos, ou mais especificamente, à “dinâmica relacional (intersensorial – ou multimodal, multimídia) e frequente conflituosa natureza do nosso engajamento cotidiano no mundo sensorial” (HOWES, 2016, p. 115, tradução nossa). Nessa seara investigativa, o cadáver se apresenta como um ponto capital de análise, sendo não apenas um símbolo da sociedade, mas também algo que provoca impressões sinestésicas nas pessoas que o circundam – um agente produtor de significados e sentidos, de interações sociais e sensoriais (HARPER, 2010; MARTÍNEZ, 2013; MATHIJSSEN, 2021; MEDEIROS, 2014, 2016; NEVES, 2016; NEVES; DAMO, 2016; TESTONI et al., 2020)
A título de reflexão, usarei a tanatopraxia enquanto caso de estudo, visto que se trata de um serviço criado para se lidar com o corpo morto, cuja função primordial é retardar o processo biológico de sua decomposição. Nas sociedades modernas, o desenvolvimento científico e técnico deixou marcas indeléveis nas relações entre vivos e mortos, de modo que até os cuidados com o corpo morto passaram a ser realizados por indivíduos qualificados. Atualmente, a tanatopraxia é um dos principais serviços especializados nesses cuidados, englobando um conjunto de técnicas que “possibilitam que o cadáver seja manipulação sem risco e, portanto, transportando e exibido no funeral” (THOMAS, 1991, p. 130, tradução nossa).
A escolha da tanatopraxia não é à toa: tanatopráticos executam uma série de procedimentos que objetivam tanto a higienização quanto o embelezamento do defunto. Isto é, executam uma atividade preocupada não só com a dimensão estritamente médica da morte, incidindo também sobre o lado estético desta (MATHIJSSEN, 2021; TESTONI et al., 2020; THOMAS, 1989, 1991). Além disso, venho desenvolvendo uma pesquisa de doutorado voltada para as percepções sensíveis dos tanatopráticos, sendo este artigo tanto uma reflexão, quanto uma proposta teórica-metodológica para outras investigações, em torno destes.
Compondo a primeira seção do artigo (intitulada A vida social dos mortos), apresento uma breve revisão bibliográfica dos estudos clássicos da antropologia da morte, ressaltando a lacuna que o cadáver representa neste campo. Na seção seguinte (A antropologia dos sentidos e a morte), aprofundo o que seria uma antropologia dos sentidos aplicada à morte, trazendo algumas ilustrações etnográficas que nos ajudam a pensá-la. Na terceira seção (Sentindo os mortos), adentro de fato na dimensão sensorial da morte, salientando a importância do cadáver para se entender as relações sensíveis entre vivos e mortos. Finalmente, na seção final (O cadáver na modernidade – o caso da tanatopraxia), trato da morte e dos mortos na sociedade atual, fornecendo exemplos empíricos que sustentem a tanatopraxia como caso prolífero de estudo.
A Vida Social dos Mortos
Retomemos os estudos clássicos da antropologia sobre a morte e os mortos, cujas origens remontam à Escola Sociológica Francesa, e não em vão: seus mais proeminentes membros foram responsáveis por pesquisas pioneiras acerca do fenômeno em questão, que influenciaram gerações inteiras de cientistas sociais (CABRAL, 1984; RODRIGUES, 2006a, 2006b). Vejamos.
Foi o estudo seminal sobre a representação coletiva da morte, de Robert Hertz (2016), o primeiro a tratar da morte fora dos usuais domínios biológico e filosófico. Mediante a análise comparativa dos Dayaks de Bornéu, o autor demonstrou que a morte é um fato público e notório, no qual as crenças e os rituais convergem na tentativa de sobrepujar o risco, por ela imposto, de extinção do grupo. Este último, a fim de conservar a comunhão diante da privação, decide que a “última palavra deve ser dada à vida” (HERTZ, 2016, p. 86), orientando as crenças e ritos para a exorcização do perigo que a morte representa. As diferentes noções e práticas utilizadas após o falecimento de alguém, sejam dedicadas aos restos mortais, à alma ou aos sobreviventes, atestam que o término da vida é acima de tudo uma “fratura social”, sendo o morto objeto simultâneo de honrarias e medo, por sinalizar o esfacelamento dos laços que o unia aos vivos. “Além de interromper a existência corporal e visível de um vivo, a morte destrói o ser social enxertado na individualidade física” (HERTZ, 2016, p. 84). Na privação dos seus membros, o grupo tem a responsabilidade de perfazer ritos fúnebres com o propósito de perpetuar a crença de que a morte diz respeito à sociedade (e não ao indivíduo isoladamente), transcendendo, assim, a falência orgânica do defunto.
Na análise dos ritos de luto entre nativos australianos, Émile Durkheim (1996) verificou concepções semelhantes. Como “fato social”, a morte mobiliza forças coercitivas e impessoais que ultrapassam os interesses dos indivíduos, visando reparar a perda de um membro através do fortalecimento da solidariedade entre os sobreviventes. Para os Maori, as cerimônias religiosas que sucedem o falecimento de uma pessoa são “reguladas pela etiqueta”: o lamento e a tristeza são prescrições de um código moral, e a sensibilidade expressa está enredada pelos imperativos do costume. O que está em jogo é a vitalidade moral do grupo que precisa ser ressarcida. “Se existe pranto em comum, é que uns sempre podem contar com os outros e a coletividade, apesar do golpe que sofreu, não está desmantelada” (DURKHEIM, 1996, p. 440). No falecimento de uma pessoa, portanto, impõe-se a necessidade de compartilhar sua perda, de sofrer junto, preservando na memória a presença de quem se extinguiu apenas fisicamente. As crenças e rituais fúnebres “consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo e dotadas de poder coercitivo em virtude do qual se lhe impõe” (DURKHEIM, 2001, p. 33), cuja finalidade última é ofuscar a desintegração das consciências individuais.
Contudo, a força do social na morte vai além. Ao tatear uma teoria sociológica do simbolismo, como reparou Lévi-Strauss (2015), Marcel Mauss eleva a relação entre vivos e mortos a outro patamar de interdependência, destacando menos o lado moral e mais o simbólico. Primeiramente, em A expressão obrigatória dos sentimentos (Rituais funerários australianos), o autor demonstrou que nada há de “natural” ou “espontâneo” nas ações humanas frente à morte. Durante os rituais funerários, todo lamento, choro, gemido e soluço são ações convencionalizadas e previamente determinadas; movimentos e gestos que falam por nós “como frases e palavras. É preciso dizê-las, mas se é preciso dizê-las é porque todo o grupo as compreende” (MAUSS, 2015a, p. 332). As lágrimas que recaem sobre os defuntos, as condolências proferidas aos enlutados, são símbolos per si, correspondentes a uma linguagem específica – linguagem que está para além das meras funcionalidades morais do “dever ser”, mobilizando não apenas forças impessoais e coercitivas, “mas os homens totais compostos de um corpo, de uma consciência individual, e desta parte da consciência que provém da consciência coletiva” (MAUSS, 2015a, p. 334). A noção de que o corpo, a consciência individual e a coletividade estão misturados uns aos outros possibilita uma apreensão do morrer enquanto “fato social total”, ou seja, um fenômeno que abrange o “homem total”, numa mistura de fatores orgânicos, psicológicos e sociológicos.
A ilustração mais perfeita do “homem total” maussiano se encontra no Efeito físico no indivíduo da ideia de morte sugerida pela coletividade. Ao analisar relatos de nativos australianos e neozelandeses, Mauss indica a existência de um gênero de morte ocasionada por influências sociais, onde o indivíduo desfalece à medida que é esconjurado do grupo após quebrar algum tabu ou ser enfeitiçado. Como resultado, ele acredita estar amaldiçoado por sugestão, tal qual o aborígene australiano da tribo Wakelbure, que entre gritos violentos de dor, cai doente e morre em poucos dias após comer a carne de um animal prescrito como proibido. Em casos como este, a consciência abalada pela culpa entra em bancarrota e uma crise moral se instala, levando o sujeito a definhar de fome por não mais fazer parte da comunidade. A vida coletiva impõe as condições, ou os limites, à vida orgânica; morrer é desagregação tanto biológica quanto social, um ato simbólico assim como acidental e natural. As ideias e sentimentos da coletividade são capazes de estimular, de igual modo, a ruína fisiológica e a fragmentação psíquica dos seus membros, comprovando que a “consideração do social é necessária” (MAUSS, 2015b, p. 362) para se entender a morte.
Já na visão de Lévi-Strauss (1996), os mortos tendem a ser classificados conforme dois modelos. Em certas sociedades, eles são tratados como objetos manipuláveis, sendo usados pelos vivos em benefício próprio com intuito de obter auxílio ou vantagem. Neste caso, eles são acossados pelos vivos, voltando por vezes para perturbar e se vingar destes. “Mais que outras, essas sociedades sentem-se perturbadas pelos mortos de quem abusam. Pensam que eles lhes dão o troco por serem perseguidos” (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 246). Em contraposição, outras sociedades cedem aos mortos o direito de paz, tratando-os como sujeitos dignos de repouso. “Tudo acontece como se houvesse sido firmado um contrato entre os mortos e os vivos: uma troca do culto sensato que lhes é votado, os mortos ficarão em se lugar” (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 245). As atitudes de gratidão e especulação, evidentemente, são polos antitéticos por onde passa uma série de crenças e práticas variáveis. Porém, “a ideia dominante é que, nas relações entre mortos e vivos, não se pode evitar que haja uma comunicação de um para o outro” (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 246, grifo do autor). Vida e morte não são fatos estritamente biológicos, e sim, para o autor, códigos estruturados em pares de oposição, classificados por intermédio de uma lógica de exclusão/inclusão que os ordena como termos diferentes e, por isso mesmo, complementares.
Na esteira lévi-straussiana, dois proeminentes antropólogos brasileiros, Manuela Carneiro da Cunha e Roberto DaMatta, também aprofundaram o aspecto relacional dos mortos, enfocando nosso contexto. Cunha (1978) mostrou que os índios Krahó, do Tocantins, representam a morte como complementar à vida, sendo destinada aos membros que perdem a vitalidade ao se aproximarem demasiadamente da parentela falecida (respirando o cheiro podre do cadáver, sonhando com defuntos etc.), ou que são enfeitiçados por alguma substância externa ao corpo, deixando assim de fazer parte da aldeia dos vivos para integrar o “espaço dos mortos”, conhecido como mekarõ. Essa passagem implica o abandono dos laços não-consanguíneos, configurando-se enquanto uma traição à sociedade e uma entrega aos ancestrais que, ávidos, à espreita estão do “duplo” dos seus parentes. Ao mesmo tempo, a sobrevivência dos Krahó depende dessa relação de inimizade para com os mortos, que “servem para afirmar, circunscrever os vivos” (CUNHA, 1978, p. 145). A identidade Krahó se firma na oposição vivos/mortos: sobrevive quem se relaciona à distância com os falecidos, morre quem se aproxima demais de sua sociedade “macabra e subterrânea” (CUNHA, 1978). No fim, tudo depende da relação que os termos assumem, da convivência que se leva com quem já se foi e está, de algum modo, ainda presente.
Voltando os olhos para a sociedade brasileira em geral, DaMatta (1997) aproxima-a de seus indígenas. Ora, todos nós compartilhamos, ou pelo menos já ouvimos falar, de diferentes histórias e crenças populares sobre “almas penadas”, “fantasmas”, “espíritos” e “demônios” que habitam “casas assombradas”, igrejas, cemitérios, becos e encruzilhadas. Tal como os Krahó, os brasileiros compreendem o “outro mundo” como avizinhado “deste mundo”, mediante uma relação de negação e complementariedade simultâneas. Por isso lembramos, com olhos marejados, do nosso parente falecido no dia de seu aniversário, assim como evitamos falar mal do morto para que ele não “puxe o pé” nosso durante a noite. De acordo com DaMatta (1997), esses são traços típicos de organizações tribais e tradicionais, onde a coletividade se preocupa mais com os mortos do que com a morte em si. Tão “vivos” quanto nós, os mortos desaparecem “deste mundo” para reaparecerem, paradoxalmente, numa realidade complementar; eles exigem atenção e cuidados especiais, se não podem atrapalhar o fluxo ordinário das coisas, nos assombrando, amaldiçoando... Tudo se passa como se o fim do organismo não fosse o fim da pessoa, como se esta continuasse levando uma outra forma de vida que, invariavelmente, todos nós levaremos um dia.
E nada disso é “crendice”, “superstição” ou mera questão “metafísica”, pelo contrário: entre vivos e mortos existe um elo moral, que A.R. Radcliffe-Brown denominou como “sentido de dependência. Os vivos dependem dos que se foram; têm deveres para com os vivos no presente e para com os do futuro que deles dependerão” (RADCLIFFE-BROWN, 1973, p. 218). Os mortos gozam de grande influência, podem ser motivo de estranheza, mas em ambos os casos eles estão irremediavelmente ligados aos vivos, como se fossem seus “parceiros de troca”, residindo “aí o sentido dos sacrifícios, dos alimentos oferecidos aos mortos, das riquezas destruídas em homenagem a [eles][...]” (RODRIGUES, 1989, p. 88). A seu modo, Jean Baudrillard (1996, p. 181) resume essa perspectiva ao dizer que os mortos “simplesmente têm outro estatuto, o que exige precauções rituais. Mas visível e invisível não se excluem, trata-se de dois estados possíveis da pessoa. A morte é um aspecto da vida.”
É preciso notar, por outro lado, que as análises acima se referem a sistemas de crenças e ritos que visam ajudar as pessoas a suportar a finitude existencial. Segundo Louis-Vicent Thomas (1991), as soluções dadas ao dilema da morte seguem lógicas comuns, nas quais os mortos costumam ocupar um lugar proeminente. Malgrado as soluções que fornecem àqueles que os compartilham, tais sistemas falam mais das relações transcendentais entre vivos e mortos do que as relações “concretas” que os une aqui e agora. A meu ver, a materialidade do morto, sua dimensão sensível, é uma questão capital que permanece sendo uma lacuna nos estudos antropológicos sobre a morte. Para aprofundá-la, basta fitarmos um cadáver...
Dentre as inúmeras transformações ocasionadas pela morte, é no corpo que acontece o decisivo e inexorável processo de degradação da carne. Apesar da importância cabal que a morte possa ter nas análises antropológicas, o cadáver aparece sobretudo como objeto de “práticas rituais” e “crenças tranquilizadoras” (THOMAS, 1991, p. 112), guardando o estatuto de tabu, deixando em segundo plano sua concretude e agência na relação vivos/mortos. Contudo, ele é o resíduo mais palpável deixado pelos mortos: se “Desde tempos muito antigos”, escreveu Georges Bataille, “os homens tiveram um conhecimento alarmado da morte” (BATAILLE, 2014, p. 21), pode-se dizer que tal conhecimento, certamente, sempre esteve associado à experiência do corpo morto, como atestam os registros arqueológicos2. O cadáver é a expressão incontornável da morte e sua decomposição “não é um evento meramente biológico, mas também um processo social de grande dinamismo” (MARTÍNEZ, 2013, p. 2682, tradução nossa).
Portanto, se o cadáver é incontornável, é porque os vivos não conseguem se desvencilhar dele: em nosso âmago sentimos a presença intransigente de um corpo que apodrece pouco a pouco, de um ente querido que em breve se tornará algo totalmente estranho – uma “desordem que é, biologicamente, a podridão por vir, que, assim como o cadáver fresco, é a imagem do destino, [que] carrega em si mesma uma ameaça” (BATAILLE, 2014, p. 70). Assim, fica claro que os mortos não concernem exclusivamente à “capacidade humana de imaginar mundos” (GODELIER, 2017, p. 41); não são só objeto das religiões, mitos e rituais: os sentidos dos vivos igualmente os tangem3. José Rodrigues clareia isso ao reparar que
Ninguém permanece perto de um cadáver sem que sua fisionomia ateste que é precisamente um cadáver o que está vendo. Se a pessoa não está habituada, apresenta certas reações típicas: ousa olhar rapidamente para o cadáver e afasta os olhos imediatamente, de maneira a não deixar dúvida de que quer separar sua visão de algo que não quer ver; há quem cubra os olhos e quem desmaie
(RODRIGUES, 2006b, p. 52).Os mortos afetam os sentidos antes mesmo de ensejarem algum questionamento; o corpo (dos vivos) é o lócus das primeiras relações que se têm com eles – relações que são formadas, sobretudo, por intermédio da visão – aterrorizante – ou o odor – desagradável – do cadáver. “Sentidos”, aqui, referem-se ao “sentir”, à “sensibilidade”, às “sensações” e “impressões”, enfim, a “este saber habitual do mundo, essa ciência implícita ou sedimentada”, de acordo com Maurice Merleau-Ponty (2018, p. 319), pelo qual se incorporam formas, contornos, espessuras, cheiros, cores, sons, vibrações, gestos... Logo, os sentidos dos mortos dizem respeito à percepção sensorial que se tem do “cadáver, concreto e real, que sofre profundas transformações orgânicas” (THOMAS, 1989, p. 13, tradução nossa), e que “é quase sempre considerado perigoso, às vezes repugnante” (RODRIGUES, 2006a, p. 57).
Mais especificamente, o cadáver é matéria orgânica em decomposição: o corpo morto é destituído de vitalidade, frio, enrijecido, esquálido; excreta fluídos e flatulências; malcheiroso e apodrecendo, seu fim é ser carcomido por vermes e insetos. Como se debruçar, então, sobre essa “coisa heterogênea”, diria Bataille, “carregada de uma força desconhecida e perigosa (a lembrar do mana polinésio) e que certa proibição social de contato (tabu) a separa do mundo homogêneo ou vulgar” (BATAILLE, 2021, p. 244, grifo do autor)? Não há uma única resposta para isso; apenas experiências diversas – e é nesse ponto que a antropologia dos sentidos se mostra fundamental, pois ainda que imediatos, os sentidos não deixam de estar relacionados aos valores e normas sociais. Para David Howes (2013, p. 14, tradução nossa), os sentidos “nos dão o mundo, mas se ausentam no processo. Nós estamos conscientes do que percebemos (os objetos da percepção), porém raramente tomamos conhecimento de como nós percebemos.”
Percebemos um cadáver, sim, mas como? É para a relação entre sentidos e cultura que devemos nos voltar se quisermos responder essa questão. No entanto, antes de responde-la, é necessário que aprofundemos no que seria uma antropologia dos sentidos aplicada à morte.
A Antropologia dos Sentidos e a Morte
Assim como a morte, os sentidos são tema antigo nas ciências sociais (HOWES, 2013). Georg Simmel (2013), por exemplo, ao analisar o estilo de vida dos habitantes das cidades grandes, constatou a existência de um fundamento psicológico comum, que rege as relações, os interesses e as tarefas dos indivíduos, produzindo nestes um comportamento específico, de caráter reservado e indiferente. A vida metropolitana requer um “tipo fisiológico” marcadamente cosmopolita, segundo o autor, um “órgão protetor” que inibe os violentos estímulos sensoriais (a sonoridade das máquinas, o empurra-empurra das multidões etc.) causadores da “intensificação da vida nervosa” (SIMMEL, 2013, p. 312, grifo do autor). Frente aos fenômenos que emanam das ruas, fabricas, meios de transportes, e assim por diante, uma atitude “blasé” é adotada, em benefício da autonomia e equilíbrio pessoais.
Norbert Elias (2011), por sua vez, demonstrou que o controle da sensibilidade é parte de um “processo civilizador” que, desde os séculos XV e XVI, concomitantemente ao desenvolvimento dos Estados-nações, promoveu uma mutação nos comportamentos e hábitos das pessoas. A maneira de se sentar na mesa e utilizar os talheres, de comer, se vestir, falar, dormir, assoar o nariz, escarrar etc. passa a ser modelada por um certo habitus, responsável pela regulação e autorregulação das funções, atitudes e ações corporais, incluindo as mais triviais e ignóbeis. “A estrutura das emoções, a sensibilidade, e o comportamento das pessoas mudam, a despeito das variações, em uma direção bem clara” (ELIAS, 2011, p. 118). E dado que nenhum padrão comportamental é eterno, a civilização funciona como “segunda natureza” que altera a estrutura interna dos indivíduos, criando uma sensibilidade mais “delicada”, “fina”, destituída de aspectos repugnantes e grotescos, isto é, “incivilizados”.
Estudos clássicos como esses ilustram como os sentidos sempre estiveram, direta ou indiretamente, presentes nas reflexões dos cientistas sociais. Investigá-los não é mero capricho: seja no estilo blasé ou na etiqueta à mesa, as pessoas experimentam o mundo de um jeito regulado e valorado. “É graças à sociedade que há segurança e presteza nos movimentos, domínio do consciente sobre as emoções e o inconsciente” (MAUSS, 2015b, p. 419), e claro, sobre as impressões e disposições corporais. Contudo, essa discussão só se transformará em uma subárea antropológica a partir das décadas de 1980 e 1990, com o surgimento da chamada “antropologia dos sentidos” (HOWES, 1991a, 1991b, 2013, 2016; CLASSEN, 1997; LE BRETON, 2016) – campo/abordagem de estudo dedicado:
[...] a compreender a variação, de cultura para cultura, da padronização da experiência sensorial, de acordo com os significados e ênfases ligados a cada uma das modalidades de percepção. Dedica-se também a traçar a influência dessas variações nas formas de organização social, nas concepções de pessoa e cosmos, na regulação das emoções, e outros domínios de expressão cultural
(HOWES, 1991a, p. 3, tradução nossa).A percepção se desenrola num universo carregado de significados; ela é experiencial e processual, sim, mas de modo mais ou menos estruturado. Por isso, em certas culturas, o olhar é mais valorizado, enquanto que em outras, é a audição ou o tato que se destacam (quando são comparadas sociedades com escrita a sociedades sem escrita, esta diferença é notável). Analisando os sentidos sob essa perspectiva sócio-histórica, vê-se que eles não apenas se diferem no uso prático, mas que se encontram hierarquizados distintamente. É necessário estudar a percepção para além das vivências cotidianas, levando igualmente em consideração as qualidades que a sociedade lhes atribui. A riqueza simbólica de uma sociedade, inclusive, é construída com base na percepção que os indivíduos têm do mundo (CLASSEN, 1993, 1997). As representações coletivas repousam sobre a sensibilidade humana: religião, ritual, política, memória, imaginário, arte, técnica, ciência, senso comum, enfim, todos os domínios culturais possuem correspondências com os sentidos.
Todos os domínios culturais incluindo a morte, como defendo aqui. Para tanto, basta observarmos, por exemplo, como “O cheiro do cadáver é um potente sinal do fim da vida do corpo e pode, portanto, servir como base para um discurso cultural sobre a vida, a morte e a outra vida” (CLASSEN; HOWES; SYNNOTT, 1996, p. 162). Os bateks da Malásia colocam os mortos em árvores, queimando incenso de resina ao lado da cabeça dos cadáveres, que mais tarde serão devorados pelos tigres da floresta; nos Emirados Árabes Unidos, o cadáver é lavado com folhas odoríferas e perfumado com óleo de sândalo, cânfora e açafrão, pois acredita-se assim que o morto ficará com um cheiro agradável ao se encontrar com Deus; os bororos brasileiros repelem o odor pútrido dos mortos, crendo que o cadáver somente está “feito” quando sua carne já estiver desaparecido, restando apenas os ossos. Essas práticas e crenças olfativas “revelam diferentes meios pelos quais as sociedades tentam estabelecer uma ordem cultural a partir da desordem da morte” (CLASSEN; HOWES; SYNNOTT, 1996, p. 166).
Mas, como captar essas sensações na feitura antropológica? Como perceber o odor enquanto elemento de ordem/desordem social, por exemplo? Creio que o odor, assim como qualquer outro sentido humano, passou des-percebido por muitos antropólogos tão somente porque eles estavam preocupados mais com os sistemas, funções, estruturas, símbolos etc. do que com as sensações que subjazem as relações humanas. É necessário subverter isto, e considerar o engajamento do pesquisador, ao menos na antropologia, como uma empresa literalmente corporal, obtido mediante o “estabelecimento de uma experiência (ou uma relação) com a corporeidade nativa, com suas formas de percepção e atenção, com seus modos de estar no mundo” (VON DER WEID, 2017, p. 143).
A etnografia é um procedimento que reivindica a percepção do pesquisador, e se voltada para os sentidos humanos, ela se transforma numa “etnografia sensorial” (CASTRO, 2021), onde “ser afetado” pelo outro – numa comunicação involuntária e nem sempre verbal/escrita – constitui o cerne da pesquisa (FAVRET-SAADA, 2005). Ao etnógrafo cumpre o papel de realizar não reflexões e abstrações: sua experiência envolve deslocamentos espaciais/temporais, pois ele está sempre em movimento, explorando ambientes, tendo em conta “as vivências e as experiências sensíveis como fundamentais para o fazer etnográfico e para a antropologia” (CASTRO, 2021, p. 13). O corpo (do pesquisador, do nativo) é tanto uma via de conhecimento da sensibilidade alheia, como um recurso de reflexão antropológica. Através de imagens, sons, odores, gostos e toques, partilhamos da percepção do Outro e colocamos em perspectiva nossa percepção, mediante experiências que se desdobram sob a égide fenomenológica. Os dados empíricos que daí advém não poderiam ser obtidos através dos métodos convencionais de pesquisa (observação participante, entrevista etc.), já que são as próprias percepções sensoriais – acionadas enquanto ferramentas metodológicas – que os rastreiam.
É isto que Flavia Medeiros (2014, 2016), em seus estudos sobre o processo de fabricação dos mortos no Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro, desenvolve. A autora relata que para se entender a fundo o serviço dos agentes policiais, médico-legistas, técnicos de necropsia e papiloscopistas, é preciso estar familiarizado com as habilidades (de identificação e classificação dos cadáveres) por eles exercidas, que sobremaneira dependem da visão e olfato. Para isso, Medeiros descreve o quanto se tornou receptiva às relações sinestésicas que irrompiam no cotidiano do IML, aprendendo, junto a seus interlocutores, a experienciar uma forma específica de contato com os mortos, cujas impressões são inacessíveis ao dito/escrito. Quer dizer, ela adquiriu um determinado habitus à medida que convivia com os vivos e os mortos, o que a levou a concluir que “a multiplicidade das percepções é o meio que o antropólogo possui de construir conhecimento sobre o outro, tanto quanto (re)constituir-se após a passagem do trabalho de campo” (MEDEIROS, 2014, p. 79).
Assim, a morte não concerne apenas às representações coletivas: ela é igualmente uma presença sensível, suscetível de ser regulada por meio de um treinamento e aprimoramento dos sentidos. Tanto é verdade que os profissionais do IML detêm, de acordo com Medeiros (2014), uma determinada “habilidade do faro” que possibilita definir o estado ou condição dos cadáveres; frescos, putrefatos ou carbonizados, “esses corpos inertes provocam reações, criam relações, e uma diversidade de reações são realizadas em função deles (MEDEIROS, 2016, p. 170). Fenômeno semelhante pode ser encontrado em etnografias acerca de agências funerárias e laboratórios de anatomia universitários (NEVES, 2016; NEVES; DAMO, 2016). Em todos esses casos é possível entrever uma antropologia dos sentidos da morte – antropologia que implica numa etnografia sensorial dos mortos. É importante, portanto, não só acessar as ficções que os vivos diariamente tecem sobre os mortos, mas também alargar a percepção que se tem destes ao passo que aprendemos “a ver o que é nosso como se fôssemos estrangeiros, e como se fosse nosso o que é estrangeiro” (MERLEAU-PONTY, 1984, p. 200).
Em outras palavras, à medida que tratamos os vivos como estrangeiros e os mortos como familiares, sentindo estes como parceiros de troca, interlocutores de estudo. Voltarei a este ponto na última seção, ao analisar a tanatopraxia.
Sentindo os Mortos
Após essa breve – mas necessária – digressão sobre a antropologia dos sentidos e a etnografia sensorial, retomemos o fio condutor deste artigo: as relações sensíveis entre vivos e mortos. Precisamente, retomemos o exemplo dos Krahó citado acima. Dissemos que eles entendem a morte como um processo de desvitalização, onde a pessoa “adoece” após estabelecer um contato indevido com o parente falecido. Os sentidos têm um papel importante nesse processo: “Gabriel ‘cheirou demais a catinga’ do cadáver de seu irmão, e isto, anos depois, foi apontado como causa mortis”, relata Cunha (1978). Essa ligação entre morte e sentidos, entretanto, não é exclusiva dos Krahó, pois entre os povos ameríndios em geral, como estabeleceu Lévi-Strauss (2004), a sensibilidade é um aspecto fundamental da cultura, servindo de vetor para as classificações sociais. O olfato, a visão, a audição, o paladar e o tato integram o arcabouço mitológico e filosófico dos indígenas: as sensações podem alterar o curso da vida, e a percepção de certos objetos (animais, plantas), a morte ou o rejuvenescimento da pessoa, por exemplo. Junto aos fenômenos empíricos que acarretam (nojo, medo etc.), os sentidos são fixados por categorias mentais, de ordem abstrata, que os guiam segundo uma estrutura inconsciente. Com efeito, o cheiro de “catinga” dos mortos é determinado por “códigos sensoriais”, que se articulam a outros tipos de codificação, passando a significar os modos de discurso e comportamento, os gêneros de vida, aspectos do mundo, e assim por diante.
O que podemos extrair dessas considerações lévi-straussianas, se não que os sentidos podem simbolizar muitas coisas, incluindo o “supremo dualismo, o dualismo entre os vivos e mortos” (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 42)? A oposição entre vida e morte procede de qualidades sensíveis, concretas, que se encontram codificadas em termos olfativos (imputrescível/pútrido), sonoros (ruidoso/doce), táteis (duro/mole) etc. (LÉVI-STRAUSS, 2004). Howes (1988) chegou a conclusões semelhantes ao analisar o papel do olfato entre nativos da Indonésia e Melanésia, em particular, do odor que emana dos cadáveres – “o odor da morte”. Os grupos dessas regiões partilham repertórios sensoriais variados, e valorizam, de maneira desigual, o odor cadavérico, que se encontra articulado às representações de espaço, corpo e pessoa. Howes mostra que a assimilação perceptual ocorre por meio de um “sistema de diferenças” que pode ou não admitir certas sensações, na mesma medida que pode ou não admitir o que está na origem destas. No fim, é importante que nada passe despercebido; que os sentidos façam “sentido”.
De fato, observar um cadáver, sentir seu cheiro, tocá-lo, tem inúmeras implicações para os indivíduos, devendo por isso haver uma regulação sensorial em torno de algo tão “sensível”. Quem de nós, indaga Bataille, “poderia dizer que não empalideceria à visão de um cadáver repleto de vermes?” (BATAILLE, 2014, p. 70). Entretanto, se um cadáver empalidece os vivos, estes, por sua vez, não se mantêm passivos diante dele. Pelo contrário. Apesar da sensibilidade ser previamente regida por categorias sociais, os indivíduos se engajam incessantemente no mundo, criando, uns com os outros, novas formas de experimentá-lo. “O corpo”, diz David Le Breton (2016, p. 61), “é o agente tornando o mundo possível através da educação de um homem inconcebível sem a carne que forma sua existência”. Para vivenciar as situações do dia a dia, as pessoas agenciam seus sentidos, criando outros hábitos e costumes, outras formas de conduzir a vida. “A experiência perceptiva de um grupo se modula através dos intercâmbios com os outros e através da singularidade de uma relação com o acontecido” (LE BRETON, 2016, p. 32). É bem verdade que os sentidos fazem “sentido”, que eles estruturam a ordem coletiva; contudo, é igualmente verdadeiro que as pessoas, de modo mais ou menos independente, forjam novos arranjos sensoriais ao longo de suas vidas.
Assim, existe uma rede sinestésica que liga os indivíduos entre si, fazendo da percepção uma relação que se dá entre mim e o outro. Na condição de “aparência sensível”, o cadáver é um dos muitos objetos sinestésicos envoltos por “relações que os homens das múltiplas sociedades entretêm com o fato de ver, de sentir, de tocar ou de saborear” (LE BRETON, 2016, p. 14-15). Mais: para vê-lo, senti-lo etc. existe um “repertório sensorial” (LE BRETON, 2012) capaz de aprimorar e/ou inibir determinadas sensações em prol de algum objetivo, interesse ou desejo. Os já citados trabalhos de Medeiros deixam isto patente. A sensibilidade dos profissionais do IML é algo modelado com o propósito de auferir o estado e condição do corpo morto. O desagradável cheiro do cadáver era “um daqueles sentidos cuja percepção atinge os sentimentos” (MEDEIROS, 2014, p. 85), capaz de revelar muitas informações importantes, desde que regulado pela técnica correta. Os profissionais do IML sentem os mortos de modo radicalmente diferente, justamente porque desempenham um serviço que exige um conjunto singular de ações.
Sigmund Freud foi talvez um dos primeiros a iluminar as sensações que os vivos partilham diante do cadáver, verificando que a origem delas está no fato dos mortos serem “vistos como inimigos. O tabu da morte evidencia – se for permitido conservar a analogia com a infecção – uma particular virulência na maioria dos povos primitivos” (FREUD, 2013, p. 48). A seu ver, o horror que os mortos provocam é gerado por um medo inconsciente de contaminação via participação. A despeito do amor nutrido por uma pessoa querida – ou devido a ele –, quando morta ela vira objeto de perigo e restrições. Todavia, os enlutados compartilham um estranho desejo de tocar o falecido a ponto de cultuá-lo, numa atitude ambivalente de atração e repulsa. Freud justifica seu argumento com base nos conceitos de “neurose obsessiva”, “impulsos” e “projeção”, mas a repulsa e atração pelos mortos está também ancorada na cultura, sendo igualmente comum entre os “civilizados”. “O desejo de tocar os mortos sem dúvida não era maior outrora do que é hoje [...] em presença do cadáver, o horror é imediato, inevitável, e é, por assim dizer, impossível resistir a ele” (BATAILLE, 2014, p. 71). O horror que a morte inspira procede da relação ambígua que os vivos, enquanto membros de uma sociedade, têm com o cadáver de uma pessoa.
Os vivos desejam sentir seus mortos, tocá-los, vê-los, admirá-los; demonstrar, num derradeiro gesto de afeição, que eles foram importantes e que continuarão “vivos” na memória de todos. Inobstante, o corpo morto tem um poder “impuro” (RODRIGUES, 2006a, 2006b; DOUGLAS, 2014; HERTZ, 2016), manifestado pela sua presença muitas vezes assombrosa e nociva, dificilmente irrisória à percepção. De fato, os mortos são sujeitos e portadores de uma força ou ser que exerce ação, e não simples “coisas” inertes e passivas; eles têm mana, pois “todos os mortos, cadáveres e espíritos, formam, em relação aos vivos, um mundo à parte” (MAUSS, 2015b, p. 151). Exorcizar as forças sociais dos mortos é objetivo dos ritos funerários que tentam, de inúmeras maneiras (incineração, embalsamamento, mumificação, dispersão, inumação, exposição, ingestão etc.), sobrepujar os perigos que o cadáver retém.
Por isso tratamos o corpo cuidadosamente depois de sua morte: vestimo-lo, fechamo-lhe os olhos, obturamo-lhe todos os orifícios pelos quais ele pode manifestar alguma atividade de uma natureza escapada do domínio da coletividade
(RODRIGUES, 2006b, p. 60).Vê-se, então, que o cadáver não passa despercebido; melhor, ele dificilmente se deixa passar despercebido. Isso porque todo cadáver não é apenas o corpo de um “ex-vivo”, bem como uma pessoa antes embrenhada por familiares e amigos, que existia sob o signo de uma comunidade. Edgar Morin explica: “Não se deve julgar que o fenômeno da putrefação, em si, implique terror [...] O horror não é a carcaça, mas sim a carcaça do semelhante, e é a impureza desse cadáver que é contagiosa” (MORIN, 1997, p. 32). As impressões que se tem do cadáver variam conforme as relações que os vivos tinham com a pessoa falecida, “cujo espectro maléfico, ligado ao cadáver que apodrece, persegue os vivos” (MORIN, 1997, p. 28).
O cadáver aterroriza porque ele evoca uma desordem que desestabiliza a vida. “Sem dúvida, o aspecto de um cadáver exclui com força a ideia banal da vida”, nos diz o escritor Léon Bloy (2017, p. 27). No entanto, não basta dizer que uma pessoa morta seja, a princípio, “aterradora” – ela também é “suja”. Quanto a isso, os trabalhos de Mary Douglas (2014) são relevantes ao mostrar que a morte e os mortos são fenômenos “poluidores” que exercem “pressões externas” sobre a ordem e estrutura social. “A reflexão sobre a sujeira envolve reflexão sobre a relação entre a ordem e a desordem, ser e não ser, forma e não forma, vida e morte” (DOUGLAS, 2014, p. 16). Toda sociedade se acomoda num sistema de classificação de exclusão e inclusão, criando padrões de reflexão e sensação. Nesse sentido, a sujeira do cadáver é tanto física quanto simbólica. Por ser externo ao sistema de classificação, ele denota ambiguidade, estranheza; algo nele é refratário à assimilação, permanecendo numa zona anômala. Por outro lado, o ímpeto classificatório defendido por Douglas é mais que mero recurso mental:
Grosso modo, tudo o que tomamos conhecimento é pré-selecionado e organizado no próprio ato da percepção. Dividimos com outros animais uma espécie de mecanismo filtrador que primeiramente deixa entrar sensações que sabemos como usar
(DOUGLAS, 2014, p. 52).Douglas nos conduz ao “ato da percepção”, revelando a interface entre os pressupostos de “ordem”, “pureza/impureza” e “perigo” e os fatos (in)determinados que subsistem na realidade social, causadores de sensações que sabemos, ou não, como usar. Como argumenta a autora, as sociedades contemporâneas continuam a perseguir as sujeiras das coisas, entretanto, com duas grandes diferenças: (a) o conhecimento do puro/impuro está alinhado à patogênese biomédica; (b) os ideais de pureza e limpeza tangem mais aos aspectos estético-higiênicos do que religiosos. Analisemos estas diferenças.
O Cadáver na Modernidade – o Caso da Tanatopraxia
Atualmente, a morte é assunto da medicina. E para “a medicina, o corpo de referência é o cadáver [...] É ele que reproduz a medicina em seu exercício realizado, sob o signo da preservação da vida” (BAUDRILLARD, 1996, p. 155). Isto não quer dizer a medicina detenha o monopólio absoluto dos mortos, mas que o discurso oficial acerca da morte é médico e a própria definição dela, um ato legalmente médico. Um dos fatores que impulsionaram essa mudança, de acordo com Michel Foucault (2006), foi o surgimento da anatomia-patológica enquanto ciência responsável pelo desenvolvimento de um novo método clínico, baseado no esquadrinhamento do corpo através da dissecação de cadáveres humanos. Por mais irônico que possa parecer, a medicina se fez moderna tomando o cadáver como recurso de análise das doenças, extraindo dele o conhecimento sobre a vida em si. “A noite viva se dissipa na claridade da morte”, escreveu Foucault (2006, p. 162), e o corpo sem vida que antes era objeto inaudito, cujas propriedades e transformações permaneciam à revelia do olhar médico, torna-se agora objeto de um olhar que atravessa a pele e alcança os órgãos e tecidos, encontrando aí, no fundo das entranhas, a verdade do ser vivo.
Soma-se à anátomoclínica as preocupações político-higiênicas surgidas no decorrer do século XIX, que revelaram os riscos existentes, para a saúde pública, a convivência que os vivos mantinham como os mortos, principalmente nos cemitérios das grandes cidades. Philipe Ariès (2012) assinalou que o contato com os mortos era diário até o século XVIII, especialmente nos cemitérios. Impulsionada pela industrialização e pela urbanização, a medicina passa a combater essa situação, problematizando a influência nefasta dos cadáveres para o ar, solo e saúde das populações, indicando a necessidade de os mortos serem “tão bem classificados quanto os vivos ou melhor, se possível. [...] Pois é preciso esquadrinhar, analisar e reduzir esse perigo perpétuo que os mortos constituem” (FOUCAULT, 2016, p. 158).
Seja por razões clínicas ou sanitárias, a mentalidade médica, em seu impulso “higiênico”, encapsulou a morte e delimitou o cadáver aos hospitais e às periferias metropolitanas, contribuindo assim para a dissolução dos laços sociais que uniam os vivos aos mortos tais como se configurava. As cerimônias, homenagens, sacrifícios, festejos etc. dedicados a estes foram obliterados; os rituais e a simbologia da morte, no decorrer dos últimos séculos, se desvaneceram. Hoje, aos mortos foi reservado, ainda que ambiguamente, outro lugar, separado do mundo dos vivos: enclausurados em salas de IML, agências funerárias, laboratórios de anatomia, capsulas criogênicas e cemitérios-jardim, eles “são rejeitados, jogados para fora da circulação simbólica do grupo. Não são seres integrais, parceiros dignos da troca e fazemos que se deem conta disso ao proscrevê-los para cada vez mais longe” (BAUDRILLARD, 1996, p. 173).
No entanto, apesar de existirem à parte da realidade cotidiana, os mortos continuam de um jeito ou de outro a ter relações com os vivos, mas dessa vez como objetos manipulados por indivíduos qualificados. São os peritos criminais, médicos legistas, auxiliares de necropsia, agentes funerários, papiloscopistas, entre outros, que diariamente estão em contato com os mortos, conservando assim uma convivência constante com os cadáveres. Para Thomas (1991), o tratamento contemporâneo da morte, sob influência do progresso técnico e dos ideais de praticidade e rentabilidade, se constitui enquanto um rito profissionalizado, realizado por especialistas que detêm uma prática sensorial diferenciada. Os propósitos dessas atividades atendem as exigências “político-sanitários de respeito aos vivos”, e não as razões “teológico-religiosas de respeito ao cadáver” (FOUCAULT, 2016, p. 158), eliminado o perigo dos mortos por meio de práticas assépticas e racionalistas.
A tanatopraxia é um dos muitos serviços criados para se lidar com os mortos. Etimologicamente, tanato vem do grego thanatos, que significa “morte”, e praxia vem do grego práxis, que significa “prática habitual”. A conservação tanatoprática atualmente utilizada foi elaborada em meados do século XIX, na França, pelas mãos do farmacêutico, químico e inventor, Jean-Nicolas Gannal, cuja técnica “revolucionária” consistia na utilização de métodos artesanais mais ou menos inspirados por práticas mortuárias antigas (THOMAS, 1989). Contudo, foi em Cincinnati, Ohio, que a primeira escola especializada em embalsamento e tanatopraxia se formou, em 1882, sob o nome de Cincinnati College of Mortuary Science. De lá para cá, a técnica se modernizou, chegando no Brasil somente em 1994, através de empresários paulistas e paraenses que procuravam inovar o mercado funerário (REIS, 2019). Hoje, trata-se de uma prática que está entre os principais serviços funerários ofertados no país, possuindo diferentes regimes de prestação, executáveis tanto por particulares como pelo monopólio municipal ou estatal.
Embora tenha adquirido contornos únicos nas sociedades modernas, por outro lado, a tanatopraxia é uma técnica que guarda similaridades com outras ao redor do mundo (mumificação, embalsamento etc.), podendo todas serem ordenadas em torno de uma característica comum: “conservar intacto o cadáver durante o maior tempo possível” (THOMAS, 1989, p. 197). Tendo isto em vista, os tanatopráticos fazem da morte uma rotina de precauções: sentir os cadáveres constitui uma parte considerável de suas vidas, ao passo que atuam na “sensação de limpeza da civilização [...] resolvendo os problemas que representam os mortos nas cidades superpopulosas e atarefadas, onde não existe tempo e nem lugar para consagrá-los” (THOMAS, 1989, p. 209). Em agências funerárias e clínicas tanatopráticas, eles ficam “distantes de qualquer contato com o público externo”; são os “preparadores” (NEVES; DAMO, 2016, p. 12). O convívio que têm com os mortos, entretanto, não é o mesmo que os médicos legistas e agentes funerários possuem. Inclusive, o que eles sentem diante dos cadáveres é algo diferente, estando de acordo, sobretudo, com valores higiênicos e estéticos específicos.
Primeiro, a tanatopraxia difere da necropsia e outras técnicas mortuárias atuais na medida que busca limpar o cadáver, cuidando dos vasos sanguíneos, vedando cavidades, extraindo líquidos, aplicando compostos químicos que retardam a putrefação, e assim por diante. Mas não nos enganemos: tratar essa limpeza como puramente “higiênica” é um equívoco. Ainda que existam preocupações sanitárias, de saúde pública, em questão, o que a higienização realmente facilita é o “começo do trabalho de luto daqueles que velam o defunto e a conservação de uma imagem decorosa, compatível com o respeito que se tem por ele” (THOMAS, 1991, p. 130). Imagem que sensibiliza, evidentemente, precisando por isso ser confeccionada pelas mãos dos tanatopráticos a fim adquirir, aos olhos dos enlutados, uma expressão digna. A tanatopraxia, portanto, cumpre uma função tanto higiênica-sanitária quanto estética (do grego aisthésis, que significa “experiência”, “sensibilidade”, “percepção”, “sensação”). Suas práticas tanato-estéticas constituem um novo ritual de passagem que “ajuda os enlutados a elaborar suas relações com o falecido” (TESTONI et al., 2020, p. 12, tradução nossa).
Em seu estudo sobre a indústria holandesa dos cuidados com a morte, Brenda Mathijssen (2021) defende que é precisamente a dimensão estética (e também terapêutica, segundo a autora) que vem sendo negligenciada nos estudos acerca das práticas mortuárias. “Pouca atenção tem sido dada para a experiência vivida e as práticas corporais daqueles que lidam com o morto atualmente” (MATHIJSSEN, 2021, p. 2, tradução nossa). Porém, no momento em que consideramos as relações entre vivos e mortos sob um paradigma fenomenológico, preenchemos essa lacuna, visto que o cadáver passa a ter uma materialidade, uma biografia e autorreferência (MATHIJSSEN, 2021), tendo o potencial de se engajar nas relações humanas, provocar sensações – mormente negativas, como vimos – na vida daqueles que o circundam. Consequentemente, limpá-lo é reagir às suas ações, à sua aparência; é embelezá-lo e enobrecê-lo para aqueles o veem, o tocam, suspendendo momentaneamente a decomposição. Esses cuidados com o cadáver podem
[...] reconfortar os enlutados, que se tornam capazes de fazer algo pelo falecido. Além disso, é através desses atos que se melhora experiência e o bem-estar do morto, frequentemente entendido como um ser autoconsciente
(MATHIJSSEN, 2021, p. 13).Talvez sejam os cuidados voltados para a aparência do cadáver a melhor ilustração disto. Porque a tanatopraxia compreende outro aspecto importante, referente à aparência do morto: além da aplicação de produtos químicos, visando a sua desinfecção e o retardamento da decomposição, ela também prepara as feições para o momento em que será velado, implicando numa busca estética que “deve, na medida do possível, restituir ao cadáver a aparência de vida. É aqui onde técnica se vincula à arte” (THOMAS, 1989, p. 206, grifo do autor). Através de maquiagem, cremes, massagens, correções estéticas e reconstituição facial, a pessoa morta adquire outro feitio; o corpo e a face são modulados com o propósito de incutir no cadáver uma sensação – deveras emulada – de vitalidade, facilitando dessa maneira o processo de identificação.
Através de um envolvimento estético com o cadáver, a putrefação do corpo morto é obscurecida e a identidade do falecido fica impressa no corpo. O corpo torna-se um local de biografia e, no sentido social, é um instrumento para manter o falecido vivo
(MATHIJSSEN, 2021, p. 13).Num estudo realizado com enlutados católicos do norte da Itália, Ines Testoni et al. (2020) verifica que as intervenções estéticas são reconhecidas por todos como salutares para o processo de luto. A “oportunidade de ver o falecido por certo tempo era útil na preservação da memória final” (TESTONI et al., 2020, p. 10). O serviço tanatoprático corrobora, então, para a criação de um objeto artístico, suscetível de ser contemplado: perceber o cadáver é aperceber algo limpo, belo e, especialmente, aprazível de ser futuramente recordado.
A intervenção tanato-estética permite observar [o cadáver] sem horror e repugnância, causando assim uma negociação que se desenrola entre desalento, dor e o desejo de negar a morte. Isto permite os enlutados retraçar as memórias e restaurar a identidade familiar do falecido
(TESTONI et al., 2020, p. 12).Dos tanatopráticos se requer uma percepção apurada: eles são profissionais eminentemente sensíveis, por assim dizer, já que lidam diretamente com aquilo que as demais pessoas sentem – horror e contentamento, repugnância e atração. As “técnicas de percepção” (HOWES, 1991b, tradução nossa) que utilizam ensejam sensações menos aversivas, mais sociáveis, habilitando os vivos de tocarem a pessoa amada que se foi. A tanatopraxia pode ser, sim, “dominada pelo conhecimento de organismos patogê-nicos” (DOUGLAS, 2014, p. 50). Mas, para além do fundamento funcional-racionalista da profissão, encontramos no exercício tanatoprático qualquer coisa artística. Ora, “arte” vem do grego techne, que significa “técnica”. No fundo, a tanatopraxia é uma atividade artística: modificar as formas, estilizar a matéria, imbuir de sentido aquilo que, a princípio, carece de um... Eis o que os profissionais da área fazem. Para tanto, é preciso sentir o cadáver, percebê-lo como algo horroroso, mas também reversível. No quê? Em um corpo belo, perceptivelmente belo. Para Mathijssen (2021, p. 5), é nessa beleza “das disposições práticas, [que] podemos ver então o senso social de responsabilidade e obrigatoriedade moral para com o falecido e os vivos”.
Os profissionais de tanatopraxia formam um certo domínio cultural, portanto, com responsabilidade e obrigatoriedade particulares idem. E todos os domínios culturais têm algo “para nos dizer sobre como os sentidos são usados na prática. Eles também nos dizem como os sentidos são imaginariamente operados, o que é igualmente relevante para nosso conhecimento de suas práxis” (HOWES, 1991b, p. 170). A tanatopraxia engloba uma sensibilidade correspondente não só a um certo modo de vida, mas também a um determinado pano de fundo cultural. “Beleza”, “asco” e “asseio”... somente fazem sentido caso apreendidas como instâncias de uma um sistema de comunicação, onde tanatopráticos e cadáveres dividem um tipo de linguagem sinestésica, sensual, trocando impressões entre si (LE BRETON, 2012, 2016); se comportando como agentes ora primários, ora secundários (HARPER, 2010; MEDEIROS, 2016), que se vinculam através de uma rede de percepções sensoriais, performando uma série de “formas fundamentais que podemos chamar de modo de vida, modus, tonus, ‘matéria’, ‘maneiras’, ‘feição’” (MAUSS, 2015b, p. 409).
Lembremos de Merleau-Ponty: “a experiência do mundo tal como ele nos aparece enquanto estamos no mundo por nosso corpo, enquanto percebemos o mundo com nosso corpo” (MERLEAU-PONTY, 2018, p. 278). É imprescindível ter isto em vista se quisermos lidar com a percepção dos tanatopráticos. Atuando às escuras, à revelia do público em geral, eles dispõem de um conjunto de técnicas sobremaneira corporais, perceptivas, que denotam uma certa experiência de mundo, um jeito de carnalmente vivenciá-lo. Perceber cadáveres é incorporá-los, é transformá-los em uma pessoa aprazível, passível de ser esteticamente admirada, feito obra de arte. O objetivo final da tanatopraxia é sempre a superação do horror evocado pelo cadáver, “culminando numa certa sacralização do corpo-cadáver; este adquire um aspecto mais solene, ‘mais vivo’, mais digno [...] o cadáver assim tratado não provoca temor, horror ou rejeição” (THOMAS, 1991, p. 130). Nada disso é alcançado caso o morto não seja antes tratado via procedimentos que o embelezem, através de associações que embalem os sentidos dos sujeitos; nada disso é alcançado caso o cadáver não seja um agente produtor impressões.
Desse modo, vê-se que a ocupação tanatoprática levanta importantes questões referentes à percepção da morte e dos mortos, propícias de serem investigadas etnograficamente através de um engajamento do pesquisador no ambiente e nas relações onde executada. Práticas mortuárias como ela urgem por uma antropologia dos sentidos da morte.
Considerações Finais
Os vivos sentem os mortos ao relacionarem-se com eles: eis o que busquei demonstrar neste artigo. E mais: essas relações estão, em grande medida, sedimentadas nas sensações que o cadáver lhes proporciona. É demasiadamente evidente que uma pessoa morta impacta qualquer um, existindo inúmeros registros disto: os Diola do Senegal apertam o ventre do cadáver a fim de evitar flatulências e inchaços, além de realizarem incisões abdominais; os Sakalava de Madagascar se preocupam em eliminar o pus; os Torajans da Indonésia esfregam ervas e folhas especiais; os tanatopráticos aplicam formol e cosméticos... (THOMAS, 1991). Porém, tratar das impressões que os mortos suscitam enquanto propriedades da cultura, parece-me algo que ainda pouco explorado. Pois da vida e morte muito já se disse, e Bloy corretamente pontuou que “Todo mundo pensa ou acredita pensar que somente essas palavras [vida] e morte têm um sentido preciso e indiscutível. Mas os imaginativos e os poetas abusaram delas de tal modo que ninguém mais sabe exatamente o que significam” (BLOY, 2017, p. 27). É preciso, nesse sentido, que a antropologia se volte para o que há de concreto e tangível na morte, realizando aquilo que sempre lhe fora incumbido: rastrear empiricamente o que as pessoas fazem e dizem – no caso, o que fazem e dizem diante de um corpo sem vida, de um cadáver que segundo a segundo apodrece, deixando vestígios que exalam odores nauseantes e imagens aterradoras.
Enfim, uma antropologia dos sentidos da morte se atém às ações corporais dos indivíduos, ao “mundo vívido” das relações que compartilham, tomando o “sentido de dependência” entre vivos e mortos, de Radcliffe-Brown, enquanto fenômeno sensorial. Talvez seja mais acertado dizer que ela lida com “os sentidos de dependência”, problematizando a sensorialidade dos vivos em suas relações com o corpo morto, as configurações da visão, do olfato, do tato, e assim por diante, frente ao “horror da decomposição do cadáver” (MORIN, 1997, p. 28, grifo do autor).
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Notas
Autor notes