Resumo: Se o interesse precípuo da teoria crítica é por uma sociedade mais livre de suas formas de dominação, caberia fazermos a seguinte pergunta: quem são os grupos oprimidos em nosso tempo? Embora não haja resposta uníssona, Fraser e Benhabib vêm acusando a tradição da teoria crítica de preservar uma cegueira em relação ao gênero. Fraser formulou uma concepção de teoria crítica pensada a partir da conciliação entre feminismo e pós-modernismo. Em suma, trata-se de uma teoria política filosoficamente pragmática e normativamente esmorecida. Os esforços teóricos empreendidos por Benhabib vão no sentido de sanar os déficits de gênero da teoria crítica, reafirmando a importância e o lugar a ser assumido pela filosofia política quando se fala da emancipação feminina em uma sociedade democrática. O objetivo deste trabalho é explorar tais diferenças e similitudes teóricas, bem como as suas consequências para uma teoria feminista ou para uma teoria crítica, duas ideias que aparecem fundidas nas obras das autoras.
Palavras-chave: Teoria feminista, teoria crítica, teoria política, Nancy Fraser, Seyla Benhabib.
Abstract: If the main interest of critical theory is for a society to be free of domination, the fundamental question is: who are the oppressed groups currently? Although there is no single answer, both Fraser and Benhabib accuse traditional critical theory of being blind to gender. Fraser formulates a conception of critical theory thought from the reconciliation between feminism and post-modernism: it is a politically and philosophically pragmatic and normatively weakened theory. The theoretical efforts undertaken by Benhabib seek to remedy the gender deficits of critical theory by reaffirming the importance and place that a political philosophy can take to think about the emancipation of women in a democratic society. Exploring these theoretical differences and similarities and their consequences for a feminist theory or a critical theory, two ideas amalgamated for both authors’ works, is the aim of this paper.
Keywords: Feminist theory, critical theory, political theory, Nancy Fraser, Seyla Benhabib.
ARTIGOS
Pragmatismo e Normatividade: (Re)Pensando a Crítica no Debate Entre Fraser e Benhabib
Pragmatism and Normativity: Rethinking Criticism in the Debate Between Fraser and Benhabib
Recepção: 13 Maio 2022
Revised document received: 03 Novembro 2022
Aprovação: 10 Abril 2023
O que é uma teoria crítica da sociedade? A questão inaugurada por Horkheimer (1983a, 1983b) parece para muitos superada, contudo, ainda hoje, os diversos modos como buscamos respondê-la podem revelar profundas divergências epistemológicas e diferentes compromissos políticos. Aqui, ela também nos serve como um posto privilegiado de observação e de comparação entre duas autoras que se reconhecem, ou são reconhecidas, como teóricas críticas da sociedade.
Para responder à pergunta de Horkheimer, muito esforço intelectual já foi empreendido, contudo, o tempo não foi capaz de produzir grandes consensos, de modo que, ainda hoje, a questão segue ecoando na teoria crítica. Assim, o objetivo precípuo deste trabalho é analisar o modo como duas de suas mais destacáveis representantes vêm buscando responder à questão: o que é, e como podemos “produzir”, uma teoria crítica da sociedade? É no âmbito das respostas oferecidas por Nancy Fraser e Seyla Benhabib que se descortinam algumas das diferenças fundamentais que marcam os seus modelos teóricos. Desse modo, a questão aventada servirá também de fio condutor para a reconstrução do debate entre as autoras, encampado, principalmente, durante os anos de 1990.
A retomada desse debate se justifica menos por um viés histórico ou exegético ora assumido e mais pelo fato de os modelos colocados em disputa pelas autoras à época (por meio de suas mútuas acusações, críticas, defesas e provocações) evidenciarem importantes diferenças entre paradigmas teóricos ainda disponíveis para novas gerações de pesquisadoras. Paradigmas estes que, portanto, continuam gerando debates relevantes, principalmente no Brasil, onde se obteve, recentemente, uma tradução dos Debates Feministas2 (2018) e, mais recentemente, do livro de Benhabib (2021), Situando o Self. Vale salientarmos que este artigo, no entanto, não se restringe às publicações traduzidas dos referidos volumes.
Em uma primeira aproximação, podemos definir a teoria crítica como uma teoria comprometida com determinada imagem de mundo futuro, surgida dos anseios por libertação que emergem das lutas e das reivindicações contidas na sociedade do presente (HORKHEIMER, 1983b, p. 139). Ainda que o termo “crítica” possa sugerir diferentes sentidos, mesmo entre as autoras que se identificam com a teoria crítica, Nobre (2004, p. 9) salienta que, se existe um sentido fundamental e comum, ele reside na ideia de que não é possível mostrar “como as coisas são” senão mediante uma perspectiva sobre como as coisas “deveriam ser”. Nas palavras do autor: “Crítica significa, antes de mais nada, dizer o que é em vista do que ainda não é mas pode ser” (NOBRE, 2004, p. 10).
Ao definir a teoria crítica em oposição ao que chamou de teoria tradicional, Horkheimer (1983a, p. 156) salientou que uma teoria que se pretenda crítica da sociedade não deve ser concebida como mera hipótese de trabalho útil para a manutenção e o funcionamento do sistema dominante, mas como um momento inseparável do esforço histórico de criar um mundo capaz de se reconciliar com as necessidades e as forças da humanidade. Com isso, a teoria crítica não se interessa apenas por expandir o saber, quer dizer, seu compromisso primeiro é a emancipação humana das situações de dominação no presente (HORKHEIMER, 1983a, p. 158).
Assim, um dos legados da teoria crítica é o seu compromisso com a transformação da sociedade, uma vez que não a enxerga como mero produto da natureza, ou como resultado de “forças opacas e irracionais”. Ao contrário, almeja tornar transparentes as suas engrenagens interiores para devolver aos indivíduos a possibilidade de reorganizar racionalmente a ordem social. Esse é o sentido que a teoria crítica confere à ideia central de emancipação (PINZANI, 2017, p. 80).
Há, portanto, uma tensão insolúvel no interior da teoria crítica entre presente e futuro, prática e teoria. Se o seu interesse, primeiro, é por uma sociedade mais livre de suas formas de dominação do presente, ou mesmo pela emancipação dos grupos socialmente oprimidos, caberia fazermos a seguinte pergunta (nada retórica): quem são os grupos oprimidos em nosso tempo? Ainda que não haja resposta uníssona, autoras como Fraser e Benhabib vêm acusando a tradição da teoria crítica de preservar certa cegueira em relação ao gênero. Isto é, ao não levar em conta o lugar particular ocupado pelas mulheres nas sociedades contemporâneas, tais teorias comportariam, em seus diagnósticos e preocupações, um déficit em relação a essa forma particular de dominação. Conforme salienta Matos (2017, p. 59), se o compromisso da teoria crítica é com a superação das formas de dominação do presente, tendo em vista à realização de uma sociedade mais emancipada, é fundamental que leve em conta a superação da dominação de gênero.
Autoras como Fraser e Benhabib, entre outras que vêm se empenhando em sanar esse déficit, comumente têm suas obras identificadas como teoria crítica feminista. Contudo, tal denominação, de acordo com Matos (2017, p. 59), soa redundante se levarmos a sério os compromissos assumidos, desde sempre, pela teoria crítica. Para a autora, a inclusão da preocupação com a dominação sofrida pelas mulheres não deve representar uma nova categoria no interior da teoria crítica. Ao contrário, pensar as possibilidades de superação da dominação de gênero é uma tarefa fundamental para toda a teoria crítica comprometida, de fato, com a emancipação da sociedade. Assim, não pode haver uma teoria crítica que não seja feminista se isso significar um compromisso com a superação dessa forma de dominação. Em suma, uma teoria crítica da sociedade deve ser capaz de responder aos problemas de gênero.
Ao comentar os déficits de gênero presentes nas mais diversas abordagens da teoria política, dos clássicos aos contemporâneos, Benhabib (2021, p. 54) salienta que uma teoria não pode simplesmente “ignorar” as mulheres, como um defeito que possa ser corrigido posteriormente, como se bastasse inseri-las, depois, nas lacunas deixadas. A não inclusão das mulheres em formulações filosóficas seria responsável por algumas das mais graves distorções categoriais, tornando essas teorias sistematicamente enviesadas: “A exclusão das mulheres e de seus pontos de vista não é só uma omissão política e um ponto cego moral, mas constitui também um déficit epistemológico” (BENHABIB, 2021, p. 54).
O compromisso político e teórico que marca as obras de Fraser e Benhabib, que se traduz em uma busca por sanar a cegueira de gênero na teoria crítica, leva as autoras a desenvolverem teorias marcadas por interpretações epistemológicas profundamente divergentes. Explorar essas diferenças e similitudes é o nosso objetivo aqui. Para tanto, este artigo se encontra dividido em duas seções. Na primeira, buscaremos apresentar e discutir o modo particular como Nancy Fraser formulou uma concepção de teoria crítica pensada a partir da conciliação entre feminismo e pós-modernismo. Trata-se de uma concepção política pragmática e normativamente esmorecida. Depois, enfocaremos os esforços teóricos empreendidos por Benhabib, que busca tanto sanar os déficits de gênero da teoria crítica quanto responder à proposta fraseriana, reafirmando a importância e o papel que a filosofia política pode desempenhar em se tratando da emancipação das mulheres em uma sociedade radicalmente democrática e inclusiva.
Um último adendo se faz necessário. Neste artigo, a exposição do que seriam os “modelos” teóricos de Fraser e Benhabib advém da leitura de textos fundamentais das autoras, publicados entre o final dos anos de 1980 e início dos anos 2000. No entanto, a nossa abordagem não representa uma antologia do que poderia ser chamado genericamente de “teoria feminista da época”. Tal pretensão causaria arrepios às próprias autoras. Tampouco almejamos argumentar que o referido debate epistemológico entre as autoras constitui o alicerce das suas teorias hoje, quer dizer, não cremos que ambas continuem fiéis a essas proposições. Explorar suas diferenças, porém, ainda parece teoricamente útil, seja para explicitar um ponto de partida para aqueles e aquelas que almejam traçar linhagens mais longínquas do pensamento das autoras, ou porque o modo de teorização apresentado por Fraser e Benhabib na virada do século XX ainda são modelos influentes de teorização crítica. Em resumo, além da preocupação política com a opressão de gênero, a retomada do debate entre Fraser e Benhabib é uma oportunidade para pensarmos questões teóricas e embates epistemológicos surgidos em torno de alguns termos caros ao exercício crítico, como a relação entre filosofia e ciências sociais, teoria e prática ou diagnóstico e prognóstico.
Boa parte da visão compartilhada por Fraser e Benhabib, de que a teoria crítica herda uma cegueira em relação à dominação de gênero, parte da reconstrução do já mencionado déficit nos escritos de Jürgen Habermas. Em um de seus trabalhos mais emblemáticos, Fraser assume essa interlocução com a obra do filósofo alemão à luz de uma questão fundamental para todo pensamento de aspiração crítica, e que dá nome ao texto da autora, a saber: “o que é crítico na teoria crítica?”. A questão é respondida por Fraser de forma categórica, logo nas primeiras linhas de seu texto, em passagem bem conhecida e cuja citação se tornou recorrente desde então, seja pela clareza de sua formulação, seja pelas possibilidades de desacordos que suscita:
Em minha opinião, ninguém melhorou até agora a definição de teoria crítica dada por Marx, em 1843, como “a auto-clarificação das lutas e das vontades da época”. O que é apelativo nesta definição é o seu caráter político. Não reclama nenhum estatuto epistemológico especial, partindo antes do princípio de que não há diferença filosoficamente interessante entre uma teoria crítica da sociedade e uma teoria acrítica, no que diz respeito à justificação. No entanto, pode identificar-se, de acordo com esta definição, uma importante diferença política
(FRASER, 2003, p. 57).Ao comentar a definição oferecida por Fraser, Silva (2008, p. 208) destaca dois elementos que marcam profundamente o modelo crítico defendido pela autora até, pelo menos, o final da década de 1990. Em primeiro lugar, a definição de Fraser estabelece uma distinção clara entre a teoria crítica e as demais teorias, dizendo que aquela tem caráter político. Isso significa, em segundo lugar, que uma teoria crítica deve escapar ao canto das sereias dos debates teóricos que terminam em disputas sobre fundamentações filosóficas, ou então em especulações normativas sobre o “devir histórico”, a “justiça” ou a “razão humana” que obliteram as reivindicações reais de grupos oprimidos. Deve, ainda, evitar assumir uma perspectiva epistemológica privilegiada em relação ao conhecimento social, acessível somente às filósofas e teóricas. Esse esvaziamento das ambições filosóficas do interior da teoria crítica é o que pode vir a ser, segundo a própria autora, as vias para uma “crítica social sem filosofia”.
A ideia de uma crítica social sem filosofia surge para Fraser e Nicholson (1989) como a possibilidade de conciliação do que consideram ser duas das mais influentes perspectivas do pensamento político do século XX: o feminismo e o pós-modernismo. Apesar das disputas e pluralidades que marcam esses dois corpora teóricos, haveria, segundo Fraser e Nicholson (1989), boas razões para apostar na aproximação entre esses dois pontos de vista, sobretudo quando analisados os compromissos teóricos que assumem. Quer dizer, ambos estabelecem uma relação profundamente crítica com os paradigmas filosóficos modernos e, paralelamente, buscam repensar a relação entre filosofia e crítica social, de modo a desenvolver uma teoria que não seja dependente de fundamentações últimas ou de pressupostos essencialistas. Se, por um lado, feminismo e pós-modernismo são questionadores da filosofia fundacional, o lugar que essa crítica ocupa na crítica social marca a diferença entre as duas perspectivas e explica as distintas conclusões a que chegam.
Partindo de Lyotard (2000), em seu A condição pós-moderna, Fraser e Nicholson (1989, p. 87) argumentam que o que marca o pós-modernismo é a reflexão sobre o atual estado da filosofia, isto é, se ela ainda é possível e confiável em seu modo transcendental e universalista de proceder. Assim, segundo as autoras, Lyotard se voltaria contra algumas das principais teses da filosofia moderna, as quais se encontram assentadas sobre grandes narrativas acerca da história geral da humanidade, tal como a filosofia de Hegel e as teorias de Marx. Em comum, essas teses relegam à filosofia a legitimação de práticas e de normas na política, ou seja, é a partir dos parâmetros teóricos oferecidos por essas “metanarrativas” que se pode avaliar o que é, por exemplo, justo e verdadeiro.
Na “condição pós-moderna”, os processos de legitimação não podem mais recorrer a qualquer tipo de fundamentação transcendente ou a reivindicações de validade universal. Ao contrário, o que caracterizaria essa nova era é a pluralidade assumida pelos processos discursivos em busca de legitimação, que devem ser pensados no âmbito local e de modo imanente, de maneira que tais processos desçam ao nível das práticas situadas. Em suma, explica Fraser (2018b, p. 233), deve-se compreender o pós-modernismo como:
[...] uma transformação histórica na filosofia e na teoria social de uma problemática epistemológica, na qual a mente é concebida como refletindo ou espelhando a realidade, para uma problemática discursiva, em que significados sociais culturalmente construídos ganham peso. 3
Se a filosofia, em seu sentido moderno, já não oferece mais parâmetros suficientes para uma teoria que almeje a crítica social, isso não deve significar o abandono de pretensões críticas, apenas a necessidade de forjar um novo modo de proceder criticamente, este assentado sobre novos elementos, como a história situada, pequena e localizada. De acordo com Fraser e Nicholson (1989, p. 89), um subgênero de crítica social pós-moderna são as narrativas locais, relativamente discretas e pequenas sobre o surgimento, a transformação e o eventual desaparecimento de práticas discursivas diversas.
De forma semelhante ao pós-modernismo, diferentes formulações e matrizes teóricas feministas vêm dirigindo críticas potentes à filosofia moderna, especialmente em relação a seus pressupostos epistêmicos, expondo seu caráter parcial de proceder por intermédio de uma suposta racionalidade e em nome de uma moralidade neutra, desencarnada, universal e a-histórica. Fraser e Nicholson (1989, p. 92), no entanto, salientam que, enquanto o pós-modernismo foi atraído para esse tipo de debate por uma preocupação precípua com o status da filosofia, as teóricas feministas foram levadas a ele por meio de demandas políticas concretas. Na visão das autoras, essa preocupação prática que orienta a crítica feminista permitiu que suas representantes se esquivassem de muitos dos equívocos pós-modernos.
A luta concreta das mulheres contra a dominação de gênero, que sempre orientou a teoria feminista, impediu que suas autoras abandonassem ferramentas políticas que pudessem ser úteis na prática, apenas em nome de compromissos filosóficos. Por outro lado, esse compromisso com a crítica e com a transformação social conduziu muitas das teorias feministas ao modelo de teorização que caracterizou a modernidade – fazendo-a incorrer em essencialismos, fundacionismos e em meta-narrativas –, tão criticado pelo pós-modernismo.
Os vestígios de uma forma de teorização moderna que ecoaram na teoria feminista foram alvos de um conjunto de críticas e pressões no interior do debate. Dessa forma, ainda hoje se diz que esse modo de proceder filosoficamente não é suficiente para responder às demandas por reconhecimento das diferenças entre as próprias mulheres. Em outras palavras, as teóricas tiveram de conviver com a acusação de que suas teorizações alargadas sobre o “ser mulher” obliteraram as experiências concretas de mulheres postas às margens devido à sua classe social, raça ou sexualidade, e que não se viram representadas nas referidas metanarrativas feministas.
Nesse sentido, Fraser e Nicholson (1989, p. 100) assinalam que o intercâmbio filosófico nos estudos feministas aponta para, e convivem com, tendências conflitantes. Por um lado, seria inequívoco reconhecimento da crítica às grandes teorias sociais e filosóficas da modernidade, bem como o apoio à uma orientação para questões mais localizadas. Por outro, nota-se, ainda, a permanência residual de essencialismos no uso comum de termos a-históricos, sem uma reflexão sistemática sobre o surgimento e o emprego dessas categorias ao longo do tempo.
Enquanto os pós-modernismos tendem a enfatizar a dimensão filosófica do problema, partindo de uma crítica à filosofia moderna para a elaboração de uma perspectiva teórica antifundacional, as teóricas feministas, por sua vez, tendem a relegar o debate metafilosófico a um segundo plano de discussão, assumindo a crítica social como o seu interesse mais fundamental. Assim, os pós-modernismos vêm oferecendo críticas sofisticadas ao essencialismo e ao fundacionismo da filosofia, mas não são capazes de oferecer uma concepção igualmente robusta e sofisticada para uma crítica social que almeje lidar com os problemas práticos da política cotidiana, como a luta contra a dominação de gênero. Já os feminismos, e este é o diagnóstico de Fraser, seguem elaborando uma concepção robusta e sofisticada de crítica social, mas incorrem em essencialismos. Em suma, o projeto fraseriano busca a superação dessas mútuas fragilidades pela via daquilo que a autora chamou de feminismo pós-moderno: “Nicholson e eu concluímos que o resultado seria um modo de teoria feminista pós-modernista, pragmática, falibilística, que preserva a força emancipatória social-crítica mesmo quando evitasse fundações filosóficas” (FRASER, 2018a, p. 98).
Esse projeto teórico híbrido e eclético, que busca superar as tensões e limites postos pelas abordagens do feminismo e do pós-modernismo, é descrito por Fraser (2018b, p. 235) como uma abordagem neopragmática. Um primeiro passo em sua direção envolve reconhecer, contra as aspirações pós-modernas, a validade de grandes narrativas históricas, uma vez que o “sexismo” e a dominação de gênero possuem uma longa história, estando profundamente enraizados e difundidos nas estruturas das sociedades contemporâneas. Desse modo, Fraser reabilita a possibilidade de uma crítica assentada sobre macroestruturas, ou mesmo sobre grandes narrativas, como forma necessária para lidar com os problemas políticos enfrentados pela teoria feminista. Entretanto, conforme adverte a autora, isso não deve significar uma teoria que se encerra nas aspirações teóricas de uma “meta-história”. É preciso que uma teoria feminista pós-moderna seja capaz de olhar para esses problemas estruturais assumindo uma perspectiva situada, isto é, culturalmente especificada e sensível à temporalidade.
Além disso, o modelo de Fraser recusa o universalismo: quando a crítica assumir a forma transcultural, o seu intuito deve ser comparativo e não universalista. Por fim, a formulação pós-moderna do feminismo fraseriano rejeita a ideia de sujeito da história e os termos desencarnados que parecem abrigar as pretensões transcendentes, como concepções unitárias de “mulher” e “identidade de gênero feminina”, tendo em vista à valorização da pluralidade de identidades sociais possíveis, onde o gênero figura entre uma das categorias mais importantes, estando ao lado de outras igualmente fundamentais, como classe e raça.
A descrição do projeto de Fraser (2018a, 2018b) como uma teoria crítica pós-moderna e feminista ganha descrição ligeiramente distinta no debate da autora com Benhabib (2018a, 2018b) e Butler (2018a, 2018b). Na ocasião, Fraser descreveu seu projeto como uma outra via de teorização feminista, capaz de aparar as arestas e contornar os desacordos suscitados pelas propostas de cada uma de suas interlocutoras que, cegas por certos purismos filosóficos, continuariam prezas às amarras de seus modelos e às heranças respectivamente de Habermas e Foucault.4 Contudo, acusa Fraser, o desacordo que Benhabib e Butler reconhecem entre seus compromissos teóricos seria apenas aparente.
A saída encontrada para a superação do que Fraser chamou de falsas antíteses5 é uma abordagem híbrida que consegue unir matrizes teóricos muito diferentes – mas que Fraser acredita serem complementares – em nome dos compromissos políticos compartilhados. Aqui, a via que Fraser busca desenvolver assume a forma de neopragmatismo: “isso significa adotar concepções teóricas que permitam tanto a crítica desreificante quanto a crítica normativa, assim como a geração de novas significações emancipatórias” (FRASER, 2018b, p. 250). A chave da sua proposta seria evitar “embaralhamentos metafísicos” por meio do reconhecimento pragmático de que há uma pluralidade de pontos de vista possíveis na análise de um mesmo fenômeno sociocultural. Ademais, a seleção do melhor ponto de vista não deve ser de antemão orientada por um modelo teórico-filosófico, mas pelos propósitos políticos assumidos em cada caso:
A minha própria posição é que contextualizar a narrativa histórica é frequentemente mais útil do que a análise conceitual abstrata. Na medida em que a reflexão conceitual “pura”, sem mancha de conteúdo empírico, ocupa-se de justificar princípios de, digamos, democracia e igualdade, ela lida com abstrações relativamente incontroversas e evita as questões difíceis sobre como aplicar tais princípios na vida social. Essas questões são tratadas de maneira mais satisfatória por meio de esforços interdisciplinares “impuros” que integram considerações normativas e empíricas. Mas esse tipo de reflexão combinada empírico-normativa não é claramente separado da crítica social de primeira ordem; ele é imanente autoelucidação dessa última
(FRASER, 2018a, p. 103).Apesar das descrições e ênfases diferentes nos aspectos teóricos, parece haver continuidades marcantes entre um feminismo pós-moderno e a via neopragmática para uma teoria crítica: em ambos os casos, Fraser assume como ponto de partida uma recusa a compromissos filosóficos com qualquer matriz ou tradição em particular. Depois, a busca por acomodações teóricas entre as diferentes tradições de pensamento que se apresentam são avaliados menos do ponto de vista teórico-filosófico e mais do ponto de vista político: “permaneço convencida de que a crítica social sem filosofia é possível, se o que entendemos por filosofia é o que eu e Linda Nicholson definimos, ou seja, um discurso a-histórico, transcendental, que afirma articular os critérios de validade para todos os outros discursos” (FRASER, 2018a, p. 104).
Uma vez que Fraser parece negar qualquer lugar no interior da filosofia que lhe permita avaliar matrizes e respostas à luz de sua própria tradição, a autora assume mais radicalmente, como o seu lugar de análise, as próprias demandas políticas, perguntando-se: quais aspectos dessa teoria servem à luta contra a dominação de gênero?
Assim, se há algum ponto que atravessa o projeto crítico de Fraser e que nos permite unir as aspirações expressas nas suas diferentes formulações, ele certamente deve estar na forma como a autora articula seu projeto em torno da definição de teoria crítica, preocupando-se menos com suas teses substantivas e mais com um compromisso radicalmente político. As vantagens residiriam nas possibilidades de lidar de modo mais abrangente com um número maior e mais variado de processos socioculturais de significação e de contestação do gênero e das formas de dominação sofrida pelas mulheres. As desvantagens parecem ter sido apreendidas no debate com Benhabib, conforme buscaremos demonstrar a seguir.
O esforço empreendido pela teoria crítica de Seyla Benhabib representa, em grande medida, uma tentativa de sanar o déficit de gênero visto na teoria crítica desde Marx, herdada por frankfurtianos como Adorno e Horkheimer, e que chega até Habermas. Nesse sentido, ela busca oferecer uma alternativa teórica capaz de conciliar os pressupostos epistemológicos de uma teoria crítica e a preocupação política com o problema da dominação de gênero e da inclusão sob as bases de uma teoria democrática.
Conforme salienta Matos (2017, p. 52), as proposições críticas de Benhabib assumem a forma de uma intricada relação entre teoria democrática e teoria moral:
Essa é a solução que a autora encontra para permitir que as demandas dos oprimidos sejam ouvidas, mantendo, porém, um critério de validade transcendente aos contextos, através do qual elas podem ser avaliadas. Ou seja, a sua teoria democrática busca a inclusão de todas as demandas no espaço público, enquanto a sua teoria moral oferece a fundamentação normativa para a avaliação dessas reivindicações
(MATOS, 2017, p. 52).A presença de uma teoria moral, responsável por oferecer os parâmetros normativos para a avaliação de práticas e reivindicações que emergem na esfera pública, é uma das características teóricas de Benhabib, bem como a diferença fundamental entre o seu projeto e o de Fraser.
O ponto de partida de Benhabib (2007, p. 56) é a avaliação do pluralismo de valores, doutrinas e concepções de bem como um dado das sociedades modernas, além de um pressuposto inescapável a uma teoria política e filosófica que busca encarar os problemas do presente. O desafio passa a ser então oferecer uma teoria sensível à diversidade de visões de mundo existentes, capaz de alicerçar uma democracia constitucional. Em outras palavras, o diagnóstico largamente compartilhado pela teoria política, o que John Rawls (2011) chamou de fato do pluralismo, tornou insatisfatório qualquer justificação pública pretensamente legítima para as sociedades democráticas que esteja exclusivamente vinculada a uma doutrina substantiva, que não seja partilhada por todos os cidadãos aos quais é endereçada. A negligência de tal fato pode levar à imposição arbitrária de uma concepção de bem sobre as demais.
A pretensão compartilhada por Fraser e Nicholson (1989), inspirada pelo pós-modernismo, busca derivar das narrativas situadas os critérios que orientam a crítica, como uma forma de negar a necessidade de fundamentação filosófica. Benhabib (2018a, p. 53), no entanto, argumenta que tal aspiração teórica pressupõe um “monismo hermenêutico do significado”, isto é, “a crença de que as narrativas de nossa cultura são tão inequívocas e incontroversas que, ao fazer uso delas, fica-se isento da tarefa de reconstrução de tipo ideal e avaliativa” (BENAHABIB, 2018a, p. 53).6 Na visão de Benhabib (2018a, p. 49-50), essa seria uma diferença incontornável entre seu modelo de teorização crítica e aquele apresentado e defendido por Fraser, especialmente no que concerne ao modo como entendem os vínculos de seu projeto com a própria filosofia:
No momento em que destranscendentalizamos, contextualizamos, historiamos e determinamos gênero ao sujeito do conhecimento, ao contexto da pesquisa e até aos métodos de justificação, o que sobra da filosofia? A filosofia não se torna uma forma de crítica dos regimes de discurso e poder que se sucedem em interminável monotonia histórica? [...] Ou talvez tudo o que resta da filosofia seja uma forma de sociologia do conhecimento que, em vez de examinar as condições de validação do conhecimento e da ação, investiga as condições empíricas sob as quais comunidades de interpretação geram tais reivindicações de validação?
(BENHABIB, 2018a, p. 49-50).É sob o contexto do pluralismo moral e de valores que a filosofia se torna indispensável à atividade crítica. É justamente por conta do caráter profundamente conflitivo e irreconciliável dos valores que atravessam as sociedades plurais que a justificação filosófica deve assumir como sua a tarefa de ordenar as prioridades normativas e os valores em nome do qual a teoria fala, não podendo, simplesmente, derivar os seus critérios de legitimação de narrativas situadas. Assim, contra Fraser, Benhabib (2018a, p. 50) afirma: “A crítica social sem filosofia não é possível e, sem crítica social, o projeto de uma teoria feminista, igualmente comprometida com o conhecimento e com os interesses emancipatórios das mulheres é inconcebível”
A própria escolha das narrativas situadas que a teoria busca representar ou vociferar já revela um conjunto de pressuposições metodológicas, normativas e epistemológicas que, embora inescapáveis, exigem a sua explicitação e justificação. Ao optar por lançar tais pressupostos na penumbra, a crítica coloca suas preferências como inquestionáveis ou autoevidentes, isentando-as da justificação filosófica e afirmando-as de forma dogmática (SILVA, 2008, p. 217). Querer negar a necessidade de fundamentações normativas da crítica social seria “como pretender saltar sobre nossa própria sombra” (BENHABIB, 2018b, p. 186).
A segunda objeção de Benhabib ao projeto de uma teoria crítica feminista sem filosofia, pensada à luz dos critérios diretamente retirados das narrativas situadas, diz respeito à disponibilidade e à adequação da projeção dos valores e normas de um tempo como critério normativo ou parâmetro crítico, conforme ela explica: “O segundo defeito da “crítica situada” é assumir que as normas constitutivas de determinada cultura, sociedade e tradição serão suficientes para permitir que a crítica seja exercida em nome de um futuro desejado.” (BENHABIB, 2018a, p. 54).
Pode haver momentos na história política da humanidade em que uma cultura, sociedade ou tradição encontra-se paralisada ou dominada por forças opressoras que tornam os debates opacos e as conversações rarefeitas. Com isso, tornam-se raras as possibilidades de emergir movimentos de contestação da ordem vigente. Em nome do que a teoria de Fraser poderia falar se, por algum motivo, os movimentos sociais e a luta feminista fossem silenciados? Em casos de movimentos que se afirmam feministas e cujos interesses e pautas colidem entre si, qual critério nos permitiria avaliá-los?
Nesse caso, a própria teórica crítica deve se colocar como uma exilada. Ao invocar a metáfora do exílio, Benhabib (2018a, p. 54) destaca a importância do distanciamento para a crítica social. Esse distanciamento não é necessariamente geográfico, é se colocar de fora das próprias tradições, certezas e valores de uma sociedade para que se possa avaliá-la, reafirmá-la ou criticá-la. É nesse sentido que o papel da teórica deve ser mais de exilada do que de alguém que nunca partiu.7
A metáfora do exílio não sugere à filósofa falar de lugar nenhum, mas exige dela o afastamento do seu cotidiano, como alguém capaz de se colocar de fora dos discursos e valores dominantes em um dado momento. Já a crítica situada, argumenta Benhabib (2018a, p. 55), representa a “nostalgia do lar”, a certeza e o conforto de uma sociedade em que os valores e as práticas culturais não colidem. Contudo, essa é a nostalgia de um lugar que não está disponível para a crítica, uma vez que as sociedades modernas se caracterizam fundamentalmente pelo pluralismo. Benhabib (2018a, p. 55), diante disso, indaga: “quando culturas e sociedades se batem, onde nos colocamos enquanto feministas, críticos sociais e ativistas políticas?”
Em suma, tanto a crítica do “monismo hermenêutico do significado”, quanto a exigência de uma teórica social “exilada” partem do diagnóstico de que o pluralismo de valores e de concepções de bem impuseram-se como pressupostos fundamentais ao pensamento filosófico, de modo que somente pelas vias de uma justificação normativa é possível ordenar os princípios em disputa e elencar os parâmetros em nome do qual a teoria se coloca.
Ao não explicitar seus pressupostos normativos, uma teoria pode tornar a crítica impotente ou ser levada à complacência com estados de conformismo e de dominação ao assumir discursos situados como autoevidentes, únicos ou verdadeiros. Por outro lado, ao reconhecer a importância de explicitação e justificação dos pressupostos normativos, uma teoria não estaria recorrendo a “embaralhamentos metafísicos”, como acusou Fraser, mas colocando seus parâmetros em campo aberto, permitindo a todos acessá-los e debatê-los. Assim, conclui Benhabib, de forma enfática:
Eu discordo de forma explícita e veemente da sugestão feita por Linda Nicholson e Nancy Fraser de que a crítica social sem filosofia é possível e rejeito a estratégia de uma crítica social unicamente situada, imanente, precisamente porque eu acredito que “reivindicações de validade que transcendem o contexto” são essenciais para a tarefa de uma crítica social rigorosa
(BENHABIB, 1994, p. 178, tradução nossa).Isso não significa o abandono das preocupações e demandas oriundas das narrativas situadas em nome de uma teoria de caráter transcendental.8 A crítica social rigorosa deve articular esses dois momentos fundamentais: de um lado, é indispensável que a crítica social esteja atenta aos influxos da sociedade civil que emergem nos espaços públicos sob a forma de reivindicações, lutas e demandas dos movimentos sociais, sendo essa a fonte empírica essencial da tarefa da crítica; por outro lado, os parâmetros que permitem à teórica avaliar a justiça e a adequação de tais reivindicações não podem ter outra origem senão uma fundamentação moral que lhe permita ordenar as prioridades e valores em uma sociedade plural.
Em Critique, Norm and Utopia,Benhabib (1986, p. 2) articula esses dois momentos indispensáveis à uma teoria crítica a partir da relação particular que a filosofia e as ciências sociais assumem em seu projeto. Para a autora, a teoria crítica representa uma tentativa de combinar filosofia prática e ciências sociais, ainda que isso incorra em reformulações nas intenções iniciais de ambos. Da sociologia, a teoria crítica herda a necessidade de uma análise da realidade social e da forma como ela aparece ou é percebida pelos indivíduos. Nesse sentido, a teoria crítica coloca-se também como crítica das ideologias dominantes. Todavia, ela se afasta da sociologia positivista em função da dimensão normativa que assume. A análise científica do mundo social não representa para a teoria crítica um fim em si mesmo, esse é apenas um momento de diagnóstico necessário à prática, com vista à superação das mazelas vigentes no momento presente: essa é sua dimensão normativa, que se aproxima das intenções da filosofia prática que objetiva uma forma mais adequada de existência humana e a iluminação de suas vias. Assim, para Benhabib (1986, p. 4), a teoria crítica possuiria um momento imanente e transcendente: “como um aspecto humano de sua existência material, a consciência é imanente e dependente do presente estágio da sociedade. Mas, desde que assume um conteúdo utópico de verdade que se projeta para além dos limites do presente, a consciência é transcendente” (BENHABIB, 1986, p. 4, tradução nossa).
Esses dois momentos também podem ser apreendidos quando olhamos para a relação intricada com que Benhabib costura teoria moral e teoria democrática:
A democracia segundo meu ponto de vista, é melhor entendida como um modelo para a organização do exercício público e coletivo do poder nas principais instituições de uma sociedade com base no princípio segundo o qual as decisões que atingem o bem-estar de uma coletividade podem ser vistas como o resultado de um procedimento de deliberação livre e racional entre indivíduos considerados iguais política e moralmente
(BENHABIB, 2007, p. 48).O modelo de democracia deliberativa defendido por Benhabib, sobretudo ao longo dos anos de 1990, busca oferecer uma teoria democrática alinhada com suas preocupações de inclusão e participação no processo de formação da opinião e da vontade política no contexto das sociedades plurais. Conforme salienta Matos (2017, p. 52), no modelo crítico de Benhabib, a teoria democrática de base procedimental é responsável pela inclusão de todas as demandas que emergem na esfera pública, enquanto a sua teoria moral é responsável por oferecer os princípios e os parâmetros normativos que permitem a avaliação dessas reivindicações. A ideia de legitimidade democrática funciona, então, como o nexo, ou a dobradiça, que permite à autora articular essas duas dimensões de sua teoria.
Benhabib (2007) defende um princípio procedimental de legitimidade democrática que valida apenas as normas e metas políticas capazes de serem aceitas por todos os seus atingidos em meio a procedimentos deliberativos imparciais: é a obediência a tal procedimento imparcial que sustenta a expectativa de resultados justos. Ou seja, somente podem ser consideradas moralmente vinculantes as normas – entendidas como as regras de orientação da ação e responsáveis pelo ordenamento dos arranjos institucionais – que recebem o consentimento de todos aqueles atingidos por ela, de modo que esse acordo deveria ser alcançado pelas vias de um procedimento deliberativo inclusivo, igualitário e imparcial.
Tal “imparcialidade” refere-se, em primeiro lugar, à necessidade de um processo inclusivo, tanto em relação aos participantes, quanto em relação à agenda, isso é, que todas as vozes possam estar presentes e que possam levantar todos os temas para discutir sem restrições. Em segundo lugar, essa pretensão por imparcialidade exige que os cidadãos sejam tratados como livres e iguais. É dessa segunda exigência que a autora vincula a necessidade de uma distribuição igualitária de direitos fundamentais entre todos (SILVA, 2008).
A adoção de um princípio de legitimidade democrática vinculada à aceitação da norma pelos concernidos impõe um processo de formação da opinião e da vontade política que só pode se desenrolar na esfera pública: a busca pelos acordos legítimos exige de nós a adoção de uma postura argumentativa na deliberação pública, onde, ao formular nossas propostas, nos colocamos no lugar do outro, buscando articular nossas posições e avaliá-las do ponto de vista de todos os envolvidos. Com isso, o diálogo e a interação pública se tornam indispensáveis, exigindo dos cidadãos que deliberem com base em um tipo de racionalidade que Benhabib (2007, p. 55), citando Hannah Arendt, chamou de “mentalidade ampliada”.
Um aspecto fundamental da concepção procedimentalista de democracia defendida por Benhabib é a impossibilidade de derivar, de sua teoria, metas políticas substantivas. Seu modelo deliberativo procedimental não permite que ela predefina a natureza e o conteúdo das questões a serem discutidas na esfera pública pelos cidadãos. Tais decisões só surgem como resultado de um processo discursivo de formação da opinião e da vontade que deve permanecer sempre aberto às iniciativas dos próprios concernidos. O procedimentalismo é, para Benhabib (2007, p. 56), uma resposta racional ao conflito incontornável de valores no âmbito substantivo.
A intenção de Benhabib, portanto, é formular as condições para uma sociedade mais democrática e reflexiva, composta de homens e mulheres igualmente livres. Seu objetivo não é apenas fornecer uma descrição mais precisa dos processos políticos de formação da opinião e da vontade pensados no interior das arenas decisórias, mas, também, oferecer princípios que possam orientar uma crítica das práticas, normas e instituições vigentes, em razão da capacidade de seus procedimentos incorporarem as elaborações e as demandas políticas provenientes dos debates públicos articulados no seio da sociedade civil.
Benhabib (2018a, p. 58) reabilita, com isso, a ideia de utopia como uma esperança nas possibilidades reais de transformação da sociedade. Ou, como a autora formula em Situando o Self, a utopia como um anseio pelo “inteiramente outro”, por aquilo que ainda não é, mas pode ser, convertendo-se também em um imperativo prático-moral: “Sem um tal princípio de esperança regulador, são impensáveis tanto a moralidade como a transformação radical” (BENHABIB, 2021, p. 477).
A reabilitação da utopia é, ainda, uma resposta de Benhabib (2021, p. 478) à tendência de algumas teóricas feministas que, influenciadas pelas críticas pós-modernas, passaram a converter em “embustes essencialistas” qualquer tentativa de formular uma teoria política feminista filosoficamente acurada. Embora se reconheça os méritos das formulações do “pós-modernismo” para denunciar as ciladas filosóficas comuns a algumas utopias e ao pensamento fundacionalista do século XX, isso não deve significar o fim da utopia. Os grupos socialmente oprimidos do nosso tempo, em especial a preocupação compartilhada pelas teóricas feministas com a subordinação de gênero, teriam muito a perder com o fim das esperanças utópicas no inteiramente outro.
No entanto, cabe ainda uma última advertência: o compromisso com uma imagem de futuro emancipada não deve autorizar o instrumentalismo ou a arbitrariedade no presente, ou privar da crítica as estratégias antidemocráticas. Uma vez mais os seus compromissos com o devir se orientam por uma teoria moral e democrática que serve como ponto fixo para a avaliação das práticas políticas, de modo que indaga Benhabib (2018a, p. 58):
Enquanto projeto de uma ética que deve nos guiar no futuro, somos capazes de propor uma visão melhor do que a síntese do pensamento da justiça autônoma e da atenção empática? [...] Enquanto visão de política feminista, somos capazes de articular um mundo melhor para o futuro do que um sistema de governo radicalmente democrático que também promova os valores da ecologia, do não militarismo e da solidariedade entre os povos?
Desse modo, a imagem de uma sociedade futura, livre da dominação de gênero, só pode surgir da realização radical dos princípios democráticos como a inclusão e a igualdade.
Um dos grandes méritos teóricos dos debates encampados pelas teorias feministas é a atenção e o questionamento constante às asserções, pressupostos e epistemologias consagradas ao longo do tempo no pensamento filosófico, sobretudo, na modernidade, apontando muitas de suas falhas e limites para lidar com reivindicações que marcam nosso tempo, como a dominação de gênero.
Esse é também o desafio compartilhado por Fraser e Benhabib que, orientadas por preocupações políticas comuns, buscam estabelecer um diálogo crítico, questionando-se acerca da possibilidade de a filosofia oferecer as ferramentas para uma teoria política feminista. Ou, ainda, pelas formas possíveis de combinação entre filosofia e ciências sociais, teoria e prática, diagnóstico e prognóstico. Pertencentes a tradição de pensamento crítico, as autoras assumem como herança a busca por uma teoria politicamente engajada e comprometida com a emancipação dos grupos oprimidos, seja à luz dos escritos de Marx, seja por intermédio dos Frankfurtianos, como Adorno, Horkheimer e Habermas, de modo que as disputas protagonizadas por Fraser e Benhabib, como a última sugere, ganha os contornos de um debate “intra-paradigmático”, embora a teoria crítica seja compreendida por elas de modo distinto (BENHABIB, 2018b, p. 173).
Sob a rubrica do neopragmatismo ou do pós-modernismo, o movimento de Fraser é o de acomodação de diferentes matrizes teóricas, resultando em uma perspectiva híbrida e eclética (conforme define a autora), que assume como seu lugar privilegiado a luta política. Assim, a autora se apropria instrumentalmente de aspectos relevantes de outras matrizes em nome dos compromissos políticos. Ao reconhecer o triunfo da política sob a filosofia, o projeto fraseriano se desobriga de fundamentações ou fidelidades teóricas, buscando os parâmetros críticos que orientam sua teoria nos próprios movimentos e grupos que a autora tenta dar voz, o que torna seus diagnósticos mais dinâmicos.
A busca pelos critérios imanentes leva ao acoplamento da fundamentação ao diagnóstico, isto é, é a partir do diagnóstico do tempo que se estabelece os critérios e princípios que norteiam a teoria. A vantagem disso, como já dito, é o dinamismo assumido pelos seus diagnósticos, por outro lado, os custos para uma teoria pensada instrumentalmente é o seu esvaziamento filosófico, isto é, a perda de sistematicidade e o esmorecimento da fundamentação.
Aproximando-se da proposta de Fraser e Nicholson, Benhabib (2021, p. 457) descreve esse projeto teórico dinâmico de mobilização de teorias e métodos segundo as tarefas práticas impostas por cada caso como um modelo equilibrado e sensato, disposta a lançar mão da multiplicidade de abordagens e renunciando os embaralhamentos metafísicos impostos por fidelidades teóricas ou pelo reconhecimento de uma única epistemologia feminista. Contudo, esse projeto só é possível porque, embora utilizem como termos intercambiáveis, a proposta de Fraser e Nicholson parece mais pragmática do que necessariamente pós-moderna.
Benhabib, por sua vez, concebe um projeto crítico filosoficamente rigoroso que busca construir, pelas vias da filosofia, uma teoria capaz de responder às demandas e problemas que caracterizam as lutas emancipatórias no presente. A autora oferece, assim, uma demarcação mais nítida entre teoria e prática, a qual, embora intricada, representa momentos distintos da atividade crítica. À teórica cabe uma dupla atividade: de um lado, deve ser capaz de apreender os movimentos e reivindicações que emergem na esfera pública, de outro, deve analisar filosoficamente os princípios em nome do qual essas lutas e demandas falam, reafirmando, assim, a necessidade de uma fundamentação normativa dos parâmetros pelos quais a crítica se dirige. A vantagem dessa estratégia é a clareza de seus pressupostos e princípios, além de lançá-los no campo aberto das disputas e debates, uma vez que não os reconhece como absolutos ou autoevidentes, mas como valores que podem ser preferíveis a outros em um contexto em que as disputas políticas se mostram irreconciliáveis ou mutuamente excludentes.
Essas diferenças explicitam não apenas dois modelos de teoria crítica, mas, nos termos de Ana Claudia Lopes Silveira (2019, p.190), os desacordos entre Nancy Fraser e Seyla Benhabib revelam uma divergência mais profunda entre o modo como cada autora compreende a própria filosofia. Ao responder Benhabib, Fraser (2018a, p. 104) conclui: “permaneço convencida de que a crítica social sem filosofia é possível, se o que entendemos por filosofia é o que eu e Linda Nicholson definimos, ou seja, um discurso a-histórico, transcendental, que afirma articular os critérios de validade para todos os outros discursos”. Fraser afirma que “se” filosofia significa um exercício criteriológico e fundacionalista, a crítica pode abrir mão da filosofia. Mas, como destaca Silveira (2019, p.190), a condicional utilizada por Fraser em sua definição poderia deixar em aberto a possibilidade de compreendermos a filosofia em outros termos, não fosse a conclusão de que a filosofia é transcendental e a-histórica, recusando toda abordagem filosófica identificada com o fundacionalismo, razão pela qual o exercício crítico não pode abrir mão da crítica situada e de abordagens comparativas.
Benhabib (2021, p. 472) reage com uma pergunta à definição oferecida por Fraser: Por que deveríamos entender a filosofia desse modo tão exígua? Ou ainda, por que deveríamos entender a filosofia de forma tão restrita se muito da filosofia moderna, pelo menos desde Hegel, é também crítica a a-históricidade e ao transcendentalismo, ao mesmo tempo em que reconhece a filosofia como um discurso de legitimação empenhado na autorreflexão crítica, em geral, ausente em outros discursos? Uma definição tão estreita de filosofia é para Benhabib algo implausível, além de expressar uma visão pobre da história intelectual, ao passo que a concepção adotada por Fraser e Nicholson reduz o termo “filosofia” e sua história a uma caricatura, uma espécie de espantalho, para, então, recusá-la.
A teoria crítica ligada ao Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt sempre se concebeu como uma articulação entre teoria e prática, um esforço interdisciplinar essencialmente assentado nas fronteiras disciplinares, não só, mas sobretudo, entre filosofia e ciência social. Fraser, de alguma forma, reivindica o pertencimento a essa tradição, porém dispensa um dos seus termos, a saber, a filosofia (SILVEIRA, 2019, p. 193-194).