ARTIGOS
Recepção: 08 Agosto 2022
Revised document received: 19 Outubro 2022
Aprovação: 15 Fevereiro 2023
DOI: https://doi.org/10.5433/2176-6665.2023v28n1e46584
Resumo: Crítico da imagem do pesquisador de campo como um ser dotado de extraordinária empatia pelos nativos, Clifford Geertz afirmava que a relação entre o antropólogo e as pessoas que estuda é inevitavelmente assimétrica, uma vez que as duas partes chegam ao encontro com origens, expectativas e propósitos diferentes. Com base neste pressuposto, o artigo discute os mútuos esforços de apropriação utilitária que, eventualmente, etnógrafo e nativo empreendem entre si. Para tanto, retoma reminiscências de uma pesquisa realizada entre católicos carismáticos, apontando como seus representantes buscavam impor sentidos ao trabalho etnográfico e, consequentemente, exercer algum nível de controle sobre os seus resultados. Antes, porém, passa em revista marcos históricos da pesquisa etnográfica e discorre sobre as polêmicas técnicas de pesquisa empregadas pelo antropólogo Marcel Griaule a fim de obter controle absoluto sobre seus informantes durante o processo etnográfico de produção da verdade.
Palavras-chave: Etnografia, relações de poder, alteridade, diferença, processos de produção da verdade.
Abstract: Of the image of the field researcher as endowed with extraordinary empathy for the natives, Clifford Geertz stated that the relationship between the anthropologist and the studied people is inevitably asymmetric since the two parties come to meet with different origins, expectations, and purposes. Based on this assumption, the article discusses the mutual efforts of utilitarian appropriation that, eventually, ethnographers and natives undertake among themselves. To this end, it resumes reminiscences of research conducted among charismatic Catholics, pointing out how their representatives sought to impose meanings on ethnographic work and, consequently, exercise some control over their results. Before, however, it goes through historical landmarks of ethnographic research and discusses the controversial research techniques employed by anthropologist Marcel Griaule to obtain absolute control over his informants during the ethnographic process of truth production.
Keywords: Ethnography, power relations, otherness, difference, truthproducing processes.
Introdução
Ao longo de décadas, ouvimos falar do caráter artesanal da Antropologia e de como a produção do conhecimento etnográfico está relacionada aos “humores, temperamentos, fobias e todos os outros ingredientes das pessoas e do contato humano” (MATTA, 1974, p. 27). Se tais “ingredientes” estão sempre prontos a emergir nos contextos de pesquisa, decerto, eles assumem contornos mais pronunciados em alguns casos que outros. Nesse sentido, o que haveria a se dizer do encontro ocorrido, na década de 1930, entre um antropólogo egresso das Forças Aéreas Francesas, socializado nos princípios militares da hierarquia e da disciplina, e os nativos de um povoado do Sudão francês, habituado a conviver com longos processos iniciáticos, sociedades secretas e tradições ocultas? E do caso de um jovem pesquisador brasileiro, interessado na expansão de uma denominação religiosa sediada no Nordeste do país, que se viu às voltas com um cotidiano institucional perpassado por jogos de poder, tentativas de cooptação e até mesmo sua mobilização como escriba ex-officio da comunidade pesquisada?
Pois bem, é justamente dessas situações de pesquisa que trata o presente artigo. A primeira situação, marcadamente colonial, envolve o antropólogo francês Marcel Griaule em uma trama de desconfianças mútuas que coloca, frente a frente, o pesquisador e os pesquisados. Nela, o etnógrafo, um europeu, aventureiro, explorador, capaz de expedições para salvar a si e os outros da ignorância, parte na obstinada busca de uma verdade escondida, protegida por nativos não-europeus que, uma vez acessada, seria reconhecida como uma genuína preciosidade ou relíquia. A pesquisa de campo configura-se, no caso, como uma relação de poder assimétrica, cabendo ao pesquisador a função de exploração e conquista de um universo que, embora seja vivido pelo nativo como “experiência”, pertenceria à humanidade como “saber”. Dado o caráter impositivo da situação, cabe ao nativo o papel de avesso e resistente à pesquisa e, por isso mesmo, desconfiado das intenções do etnógrafo, em geral, e da própria Antropologia, em particular.
A segunda situação de pesquisa diz respeito ao trabalho de campo realizado por um dos autores deste artigo junto a uma conhecida comunidade religiosa filiada ao movimento de Renovação Carismática Católica. Aqui, o universo da pesquisa já não é, por assim dizer, exótico, como ocorre nos contextos de co-presença entre europeus e não-europeus. No caso, o etnógrafo tem como interlocutores membros de uma denominação religiosa situada na zona nobre de uma capital brasileira, composta por sujeitos em sua maioria com escolaridade igual ou pouco inferior à do próprio pesquisador. O olhar lançado sobre ele não o identifica como uma ameaça ou coisa do gênero, mas como alguém “de fora” que, como tal, inspira a adoção de certo controle, o que o obriga a se dirigir, sempre que necessário, a “porta-vozes-chave” da instituição. Uma vez que dispõe de “livre acesso” às dependências da comunidade e às pessoas que nela atuam, em troca, precisa prestar contas do andamento do seu trabalho, dos seus interesses, do que anda escrevendo, enfim, deve mostrar-se disposto a retribuir, de diferentes maneiras, à “colaboração” recebida dos interlocutores ao longo da pesquisa de campo.
Considerando-se que, enquanto meio de produção do conhecimento, a etnografia envolve dimensões teóricas, práticas e éticas que, de um modo ou de outro, dialogam com relações de poder, aspirações e interesses, este artigo tem por objetivo (a) propor uma reflexão sobre os desafios reais ou imaginários com que se defronta o pesquisador durante o trabalho de campo, bem como sobre as estratégias utilizadas para lidar com eles e (b) discutir algumas mudanças sofridas pelos métodos de pesquisa etnográfica ao longo da história da Antropologia Social. Interessa-nos, mais particularmente, chamar a atenção para o fato de que os métodos de trabalho de campo empregados em Antropologia têm se mostrado porosos à diversidade dos contextos de pesquisa, o que, noutras palavras, significa que tais métodos não se encerram ou são definidos por diretrizes estritamente acadêmicas. Pelo contrário, não raro, são redimensionados considerando-se, entre outros fatores, a trajetória percorrida pelo etnógrafo, sua biografia, assim como disputas de poder locais e conjunturas de poder mais abrangentes.
Haja vista que em Antropologia parte substantiva dos conhecimentos é socializada através da literatura especializada, parece-nos crucial que, a exemplo do que se passa com os resultados das pesquisas, os etnógrafos se habituem a compartilhar informações sobre os processos que os geram, o que, salvo melhor juízo, pode não só contribuir para a formação das futuras gerações como promover refinamentos teórico-metodológicos da própria disciplina. Daí a importância de se discutir as formas de controle que os sujeitos envolvidos no trabalho de campo se impõem e/ou a que são submetidos, o caráter de mão dupla dos impactos do encontro entre pesquisador e nativo e, evidentemente, as transformações nos paradigmas de pesquisa etnográfica. Salvo engano, isso implicaria em trazer para dentro do texto etnográfico o relato de situações que, à primeira vista, podem soar desimportantes, mas que, conforme as circunstâncias, acabam definindo os rumos das pesquisas ou, pelo menos, exercendo algum tipo de influência sobre elas.
Em Busca do “Outro” Distante: Alteridade Radical e Fazer Etnográfico
Se não há dúvidas quanto ao lugar ocupado por Franz Boas como um dos fundadores da etnografia, o mesmo pode ser dito em relação ao papel desempenhado por Malinowski como precursor da pesquisa de campo intensiva, o que teria concorrido para erigir a Antropologia à condição de “ciência da alteridade”, dedicada ao estudo das lógicas particulares que regem as diferentes culturas. Como nota Peirano (2021, p. 381), com sua obra, Malinowski “criou padrões, definiu o trabalho etnográfico, favoreceu novas teorias, alimentou ideias e utopias”. Dentre essas utopias, cabe destacar a busca pelo “ponto de vista nativo”, algo que, conforme o propugnado paradigma, só se poderia alcançar por meio de um olhar “de perto e de dentro” (MAGNANI, 2002). Para empreender esse olhar, o etnógrafo deve ser capaz de mobilizar recursos como simpatia e tato, de modo a gerar uma relação de confiança e, por corolário, uma maior interação com os "seus" nativos, bem como uma boa receptividade à sua presença.
Muito embora este tenha se tornado um referencial típico-ideal bastante difundido entre os antropólogos, foi por meio de expedientes bem menos louváveis que se forjou a presença de pesquisadores europeus ou estadunidenses em espaços geográficos exteriores às áreas de influência da civilização ocidental – as chamadas sociedades “primitivas” (ameríndias, africanas, asiáticas). No que concerne ao final do século XIX e às primeiras décadas do século XX, essa presença só veio a se constituir numa possibilidade prática devido à estrutura de poder colonial, verdadeiramente crucial no sentido de tornar acessível e segura a proximidade física entre observadores e observados. Não obstante, conforme assinala Asad (1979, p. 92), a estrutura colonial "tornou possível o tipo de intimidade em que se baseia o trabalho de campo antropológico, mas assegurou que essa intimidade fosse unilateral e provisória". Em termos pragmáticos, isso significa que, no período em questão, o diálogo com a diferença, entendido como ontologicamente central no fazer e pensar antropológicos, tinha na assimetria das relações e, consequentemente, na desigualdade uma de suas marcas indeléveis.
Foi graças a uma paradoxal configuração – que tinha, de um lado, interesses político-econômicos manifestos e, de outro, um pretenso desejo de resgatar as culturas dos povos não-ocidentais antes que estes fossem "apagados” pelas aventuras de dominação euro-americanas (NADER, 2011) – que se desenharam os contornos iniciais dos diálogos entre a Antropologia e o colonialismo. No caso da Escola Britânica, em particular, há quem diga que, desde os seus primeiros dias, ela "sempre gostou de se apresentar como uma ciência que poderia ser útil na administração colonial" (KUPER, 1978, p. 121). Embora não fosse, de modo algum, uma propensão universal, a "disposição para se alistar na causa colonial", manteve-se viva até pelo menos as primeiras décadas do século XX, encontrando na figura de Alfred C. Haddon a representação do "vigoroso antropólogo colonial, em sua expressão mais simples" (KUPER, 1978, p. 122). Cerca de uma década após descobrir a sua vocação para o estudo do folclore de sociedades ágrafas, coube ao zoólogo organizar e conduzir, junto com nomes como Charles G. Seligman e William H. R. Rivers, a célebre Expedição ao Estreito de Torres, de 1898, que viria a se tornar modelar para os futuros antropólogos britânicos.
O empreendimento resultou em importantes inovações metodológicas, pondo em xeque a então hegemônica "antropologia de gabinete" e o convencional distanciamento geográfico que, durante a realização das pesquisas, separava os observadores daqueles que eram observados. Doravante, a pesquisa de campo, fundada no contato direto do etnógrafo com o grupo, a comunidade ou a sociedade que pretendia estudar, tornou-se uma espécie de imperativo praxiológico a ser seguido tanto pelos britânicos como pelos antropólogos em geral. Mais cedo ou mais tarde, tal imperativo se fez sentir, com maior ou menor intensidade, em diferentes partes do mundo, atravessando, inclusive, o Canal da Mancha para aportar num contexto nacional no qual, até então, a produção do conhecimento antropológico pouco ou nada dialogava com a tradição empirista inglesa. A guinada na Antropologia francesa teve como ponto de inflexão a conhecida Missão Etnográfica e Linguística Dakar-Djibouti que, entre os anos de 1931 e 1933, atravessou a África do Atlântico ao Mar Vermelho, ao longo da margem inferior do Saara, tendo como um de seus objetivos precípuos a coleta de artefatos para compor as coleções do Musée d'Ethnographie du Trocadéro, embrião do Musée del'Homme, de Paris.
Apontada como marco originário da etnografia francesa, a Missão Dakar-Djibouti ilustra com clareza a "associação estreita entre museus e poder colonial, entre fins do século XIX e inícios do XX”, que resultaria em "um modelo de investigação animado pelo afã colecionista e salvacionista" (PEIXOTO, 2007, p. 19). Com esse espírito, ao longo de vinte e um meses, a expedição ocupou-se do registro de elementos de cultura material, línguas, costumes, músicas, imagens rituais, etc., tendo à sua frente a figura reconhecidamente controversa de Marcel Griaule. Como aponta Apter (2005, p. 95), Griaule personificou a violência e a duplicidade da etnografia colonial, carregando em sua biografia "o melhor e o pior da nossa história disciplinar".
Ao longo do tempo, o "enérgico entusiasta do trabalho de campo” (CLIFFORD, 2002) acabaria por ser alternadamente representado, ora como "um herói da etnografia africanista francesa, com uma produção prodigiosa e uma ‘escola’ de prestígio", ora como "um anti-herói cuja simpatia pela África mascarava formas mais profundas de violência colonial" (APTER, 2005, p. 95). Além de abastecer o Musée du Trocadéro, a Missão Dakar-Djibouti tinha como propósito a realização, a longo prazo, de uma série de pesquisas em território africano. No caso de Griaule, as incursões etnográficas junto aos Dogon de Sanga (Mali) – com quem travou os primeiros contatos ainda na Dakar-Djibouti –, vieram a se prolongar por cerca de três anos ao longo de mais de dez expedições. Conforme assinala Clifford (2002, p. 181), foi “em visitas anuais ou bianuais à África Ocidental, concentrando-se cada vez mais nos Dogon, [que] ele desenvolveu um ‘método’ etnográfico específico”, com base no qual se dedicou a analisar, sobretudo, a cultura material, a cosmogonia, a religiosidade e a organização social desse grupo.
Diferentemente do mestre Marcel Mauss – reconhecidamente defensor das pesquisas etnográficas, mas que nunca chegou a realizar trabalho de campo –, Griaule era um praticante obstinado, de modo que o valor das suas indicações estaria fundado “no fato de que foram amplamente testadas por ele e pela equipe que liderou” (SAREVSKAJA, 1964, p. 592).
Foi justamente com base nesse conhecimento experiencial que se delineou o polêmico “Methode de l'ethnographie”, obra póstuma de 1957 contendo os registros do curso ministrado por Griaule no Instituto de Geografia da Universidade de Paris que, segundo a apreciação de Sarevskaja (1964, p. 591), corresponde a um genuíno programa científico, posto que contém a “mais completa, ainda que concisa, apresentação das concepções teóricas e metodológicas deste estudioso e da escola etnográfica que presidiu”. Preparado para publicação por sua filha e colaboradora Geneviève Calame-Griaule, o compêndio versa sobre as diversas técnicas de investigação científica adotadas pelo etnógrafo francês, dentre as quais uma interessa particularmente aos propósitos deste artigo: a verificação oral das informações recolhidas no trabalho de campo.
Com a publicação de “Argonautas do Pacífico Ocidental”, em 1922, popularizou-se na Antropologia a ideia de que o sucesso da pesquisa de campo depende da relação de empatia entre o etnógrafo e os nativos. Nessa representação, diferentemente do comerciante, missionário ou agente colonial, o etnógrafo figura como alguém capaz de “compreender as pessoas”, o que, sendo apreciado por elas, as predispõe a revelar seus pensamentos e sentimentos (GEERTZ, 1967). Definitivamente, nada poderia estar mais distante da maneira como Griaule encarava o fazer etnográfico. Contrariando a ideia do pesquisador de campo como "um milagre ambulante em empatia, tato, paciência e cosmopolitismo" (GEERTZ, 1997a, p. 85), ele partia do princípio de que existe uma clara oposição entre os interesses do etnógrafo e do nativo, razão pela qual os mesmos jamais poderiam se harmonizar. Isso porque, ao passo que aquele busca tomar conhecimento dos múltiplos e variados aspectos do universo pesquisado, este tende a lhe responder com mentiras, seja "por brincadeira, por venalidade, por desejo de agradar, ou por medo de vizinhos ou dos deuses" (GRIAULE, 1957, p. 56).
Cético quanto às possibilidades de colaboração espontânea na pesquisa de campo, Griaule sustentava que "investigar fatos humanos equivale, em muitos casos, a pedir a um acusado que faça amizade com o juiz de instrução" (GRIAULE, 1957, p. 14) – magistrado encarregado de investigações judiciais em casos criminais mais graves ou complexos que, dispondo de documentos suficientemente confiáveis, confronta as versões das testemunhas para, então, proceder o esclarecimento dos fatos. Carregada de forte simbolismo, a metáfora do juiz de instrução denota, por um lado, a importância conferida à ampla documentação que se deve produzir junto à cultura estudada – por meio de expedientes diversos, como coleta de objetos, fotografias, diagramas cartográficos, observação de cerimônias, festas, atos rituais, etc. – e, por outro, o lugar secundário ocupado pelos relatos orais no processo etnográfico de produção da verdade.
Griaule costumava se valer do exaustivo conjunto de informações acumuladas sobre os contextos pesquisados para, com base nelas, controlar o que os nativos diziam sobre sua cultura. Sobretudo nas investidas iniciais sobre os Dogon, tomava "as explicações dos informantes como comentários sobre comportamentos observados e sobre artefatos coletados” (CLIFFORD, 2002, p. 199). A verdade é que ele não confiava nos nativos. Tendo lidado por anos com sociedades atravessadas por longos processos de iniciação e que tinham na preservação de tradições ocultas uma marca característica, acreditava que aquilo que era sistematicamente escondido por uma cultura "só podia ser revelado por uma espécie de violência" (CLIFFORD, 2002, p. 194).
A confusão entre rigor científico e rigidez na aplicação das técnicas de pesquisa levou Griaule a desenvolver um método, no mínimo, inusitado para se apoderar dos "segredos" dos povos estudados. Suas táticas eram variadas, mas tinham em comum a adoção de "uma postura ativa, agressiva, não de todo diferente do processo judicial do interrogatório" (CLIFFORD, 2002, p. 202). Fascinado por táticas de inquérito oral, costumava equiparar o papel do etnógrafo ao de um detetive ou juiz examinador. Daí a significativa analogia com processos investigativos da qual se depreende que, na pesquisa de campo, "o fato é o crime, o interlocutor, o réu; todos os membros da sociedade são cúmplices” (GRIAULE, 1957, p. 59).
Como se vê, os esforços para desvendar os segredos do grupos estudados constituíam "um programa atraente e, na perspectiva de Griaule, tão possível quanto proveitoso” (BRUMANA, 2005, p. 258). Mas, tal conquista só poderia ser obtida "vencendo uma resistência, a dos seus possuidores originais” (BRUMANA, 2005, p. 256). Para superar tais obstáculos, o pesquisador não poderia hesitar: deveria pressionar os nativos de todas as formas possíveis, explorando quaisquer vantagens, quaisquer fontes de poder. A etnografia, nesse caso, era interpretada como um processo de extração de testemunhos ou confissões e a verdade cultural dos povos estudados, algo a ser exposto, descoberto, revelado.
A Missão Dakar-Djibouti que, como vimos, deu origem aos contatos entre Griaule e os Dogon, foi registrada por Michel Leiris no livro “A África fantasma”, diário de campo mantido pelo então "secretário-arquivista" que, entre relatos sobre o cotidiano da expedição, traz reflexões inusitadas, tais como: “Por que a investigação etnográfica com frequência me faz lembrar um interrogatório policial?" (LEIRIS, 2007, p. 297). A despeito da importância desse tipo de questionamento, o incômodo suscitado pela obra de Leiris não tinha a ver apenas com as controvertidas estratégias de pesquisa adotadas por Griaule e companhia. Antes, a obra evidenciava que, sob a capa de missão científico-civilizatória, a Dakar-Djibouti trazia no seu bojo um sem-número de atividades espúrias, dentre as quais o "rapto” ou “furto” de artefatos, inclusive sagrados.
Dado o seu caráter inconfidente e inoportuno, “A África fantasma” veio a significar o “primeiro golpe” desferido contra a amizade de Leiris e Griaule, uma vez que a publicação acabou por desservir “os etnógrafos junto aos europeus estabelecidos nos territórios coloniais" (LEIRIS, 2007, p. 47). Já se disse que, muitas vezes, o antropólogo se apresenta como “o último agente da sociedade colonial”, posto que “após a rapina dos bens, da força de trabalho e da terra segue o pesquisador para completar o inventário canibalístico: ele, portanto, busca as regras, os valores, as ideias – numa palavra, os imponderáveis da vida social que foi colonizada" (MATTA, 1974, p. 29).
Com base no exposto, pode-se dizer que, em se tratando de Griaule e do “amor incontrolável pelos produtos mais espetaculares das culturas que encontrou pelo caminho” (BRUMANA, 2005, p. 256), o quadro era, por diversas razões, um tanto mais complexo.
A despeito das críticas que lhe foram endereçadas, um dos aspectos dignos de nota em relação aos escritos de Griaule diz respeito à sua franqueza incomum “em retratar a pesquisa como inerentemente agonistica, teatral e atravessada pelo poder" (CLIFFORD, 2002, p. 186), o que situa sua obra, nitidamente, no período colonial. Como bem sabemos, nesse contexto, a presença do etnógrafo costumava ser imposta aos nativos, inclusive coercitivamente, sem que lhes fosse dada qualquer possibilidade de escolha. Mas, muito tempo se passou desde então e certas práticas d’antanho tornaram-se inconcebíveis. Hoje, questões ético-morais norteiam o fazer etnográfico em praticamente toda parte. A esse respeito, Cardoso de Oliveira (2004, p. 34) assinala que “quando o antropólogo faz a pesquisa de campo ele tem que negociar sua identidade e sua inserção na comunidade, fazendo com que sua permanência no campo e seus diálogos com os atores sejam, por definição, consentidos”. Essa negociação, por vezes, traz consequências inusitadas, como mostra a pesquisa de campo da qual trataremos a seguir.
“Os Meus, os Seus, os Nossos Interesses”: Quando a Presença do Etnógrafo não é Necessariamente Indesejável
A experiência etnográfica que servirá de base para a análise doravante empreendida foi realizada entre os anos de 2015 e 2018, tendo como campo uma Comunidade religiosa filiada ao catolicismo carismático, sediada em uma capital do Nordeste brasileiro3, mas que está presente em diversas cidades, do Brasil e do mundo. Fundada na primeira metade dos anos 1980, a sua importância se expressava, quando se decidiu tomá-la como “objeto” de estudo, ainda em 2014, no considerável quantitativo de membros efetivos (mais de cinco mil, naquele momento), número de cidades em que estava presente (mais de 50, contando com mais de uma “Casa de Missão”4 em algumas delas), sua expressão dentro do catolicismo (em número de sacerdotes a ela filiados, cantores destacados dentro do cenário musical religioso, livros escritos por seus membros etc) e pelo lugar de destaque que ocupa dentro do campo religioso da Renovação Carismática Católica (RCC).
A opção pela pesquisa junto a essa Comunidade exigia que alguns passos fossem dados de modo bastante pragmático. Quaisquer que fossem eles, não se podia abrir mão de tentativas de aproximação dos seus dois principais nomes: Armando, o fundador, e Ana Isabel, co-fundadora que operava como uma espécie de “vice” liderança no interior da Comunidade. Os dois ocupavam lugar de grande importância, numa complexa divisão social de trabalho religioso, mas também figuravam como personas distintas no universo mais amplo do movimento carismático católico. Neste último, aliás, Ana Isabel ocupava um lugar de maior destaque, seja por suas inúmeras pregações em eventos da RCC, seja pelos mais de 40 livros escritos para o segmento. Armando, por sua vez, dedicava-se ao que se poderia chamar de trabalhos internos da Comunidade.
Era necessário, portanto, traçar estratégias para chegar até eles e a outros que, naquele contexto, detivessem o reconhecido lugar de “memória”. A aquisição de alguns livros e materiais de formação produzidos pela Comunidade mostrou-se um importante movimento inicial, que se fez acompanhar de algumas idas a eventos promovidos para seus membros. Mas as dúvidas quanto à possibilidade de aproximação das lideranças seguiam inquietando o pesquisador. O auxílio de um amigo (que havia sido membro destacado da Comunidade e ainda mantinha laços de amizade com importantes autoridades de lá) foi, então, importante para o contato do etnógrafo com a co-fundadora que, àquela altura, revelava-se de mais fácil acesso que o fundador (em torno do qual, com o passar dos anos, ergueu-se uma verdadeira rede de proteção). Dispor do número de contato de Ana Isabel foi fundamental para que uma série de realizações dentro do escopo da pesquisa se concretizasse.
Ana Isabel residia numa cidade localizada na Região Metropolitana da capital do estado onde fica a sede administrativa da Comunidade. O encontro para a realização da primeira entrevista se deu lá, em seu escritório. Na ocasião, um duplo aspecto que condicionaria a realização da pesquisa já se apresentava claramente: por um lado, havia um movimento de colaboração “irrestrita” para com o trabalho do etnógrafo; por outro, existia o desejo de controlar o que seria escrito a partir dos relatos orais, como pode ser percebido na frase com a qual ela abriu a entrevista:
Nós, na Comunidade, não temos uma boa experiência com pesquisas de mestrado e doutorado. Porque as pessoas vêm aqui e, por vergonha ou por qualquer outro motivo, não nos perguntam tudo e vão embora com dúvidas ou falsas impressões. E, quando nossos seminaristas estão nas aulas, de repente recebem textos falando mal da Comunidade ou do nosso fundador. Então, tudo o que você quiser saber, tudo, pergunte! Não saia daqui sem nenhuma questão feita, ok?
No momento em que tais palavras foram proferidas, acreditava-se que a generosa oferta de colaboração estaria restrita àquela entrevista. Mas, para a surpresa do etnógrafo, vários desdobramentos acabaram por se seguir à ocasião: a duração da entrevista (que havia sido acordada em uma hora, acabou sendo de duas horas e meia); na sequência, houve o convite para almoçar com ela e seu marido (proporcionando mais uma hora de conversa) e; por fim, deu-se a sua gentil prontificação de receber dúvidas via WhatsApp, “sempre que necessário”. Embora aquelas palavras denotassem uma espécie de alerta acerca do que deveria ser escrito a partir da entrevista ou como produto final da tese, também sugeriam a existência de uma relação de confiança e empatia por parte da interlocutora. Era como se, por um lado, ela previsse o que seria registrado e quisesse controlar as impressões produzidas sobre a Comunidade, mas, ao mesmo tempo, quisesse deixar o pesquisador livre para consultá-la, a qualquer momento, acerca de qualquer informação que pudesse ser útil.
A exemplo do contato inicial com a co-fundadora, o fato de esta recomendar a realização de entrevistas com pessoas que julgava interessantes para a pesquisa se revestia de um caráter ambíguo, posto que, ao mesmo tempo que direcionava os passos e o olhar do etnógrafo, lhe possibilitava a vantagem da abertura de portas junto a vários interlocutores para os quais a informação “foi a Ana Isabel que me passou seu contato” tinha um efeito de legitimação da presença do pesquisador, produzindo na quase totalidade dos casos o assentimento à colaboração por meio de entrevistas. Nas vezes em que essa informação atuou como um “performativo feliz”, ou seja, quando a informação dada produziu o aceite da entrevista, era comum ouvir frases como: “Você esteve com Ana? Então, para quê eu preciso falar?”; “Você já ouviu quem precisava”; “Você não precisa ouvir mais ninguém”; “Oxe, não sou nem digna de desatar as sandálias dela”. Estar com o caminho traçado por ela aparecia, então, como um ato de autorização que colocava o pesquisador na condição de alguém digno de confiança frente a alguns dos entrevistados, sobretudo por, segundo se dizia, ela “saber de tudo”.
Daquela entrevista inicial nasceria uma relação de colaboração de Ana Isabel com a pesquisa que se efetivava, sobretudo, por meio de conversas e trocas de informações quase diárias, o que se estendeu por um período de aproximadamente três anos. Todas as vezes que surgiram dúvidas com relação a assuntos da Comunidade e com assuntos referentes à RCC – particularmente no que se referia a dados históricos que precisavam ser esclarecidos –, foram feitos contatos via WhatsApp. Sendo ela a segunda na escala hierárquica da Comunidade, funcionava como portadora de um discurso autorizado sobre o universo pesquisado, fornecendo importantes informações para a etnografia, além de, como já mencionado, operar como uma espécie de “abre portas” para outras entrevistas.
Em suma, Ana Isabel se constituiu numa importante interlocutora da pesquisa. Qualquer dúvida, histórica ou mistagógica, era por ela tirada. “Pergunte tudo”, dizia. Áudios longuíssimos eram enviados por WhatsApp. A troca de informações era constante.
Tudo ia bem até que, certo dia, o pesquisador foi assaltado e perdeu os contatos do celular. Era um domingo à noite. Como no dia seguinte haveria uma pregação em um evento para casais membros da Comunidade, o pesquisador lá esteve presente. Assim que a avistou, dirigiu-se a ela e lançou a sorte: “Ana, fui assaltado ontem e perdi os contatos. Se você puder, me dá um ‘oi’ no zap para eu salvar seu número”. Ao que a mesma respondeu: “Nossa! Que pena! Mas está tudo bem com você, não é? Assim que chegar em casa te contacto”. E assim o fez. Ser chamado por ela pelo nome e, ainda mais, na frente de tantas pessoas que a cercavam, seria decisivo naquele e em outros tantos momentos da pesquisa. Daí em diante, o etnógrafo passaria a figurar como um estranho não tão-estranho assim em relação ao qual se expressava certo conhecimento e confiança.
Dois interessantes aspectos do contexto de pesquisa, porém, só seriam percebidos algum tempo depois. O primeiro era que Ana Isabel estava plasmada em lutas internas da Comunidade que, naquele momento, a faziam estar em certo ocaso de importância em âmbito interno. Ela perdera parte do poder institucional dentro da Comunidade, o que culminaria com sua saída do cargo de “formadora geral” no ano de 2018. Em seu lugar se sucederiam nomes ligados ao fundador, que cada vez mais atuava para conquistar espaços de legitimação interna, antes ocupados por Ana Isabel, com destaque para a produção escrita à qual, de resto, nunca havia se dedicado.
Se, como mencionado, a aproximação com Ana Isabel abriu várias portas para o pesquisador, também fechou outras tantas. Ele não era bem-visto por aqueles mais próximos de Armando, o que, por consequência, os levava a não concederem entrevistas. Todos os contatos feitos com pessoas diretamente ligadas ao fundador da Comunidade foram recusados, uns de modo imediato, outros de modo disfarçado (fazendo-se demorar na negativa por meio de sucessivos “vamos marcar”, “entro em contato com você”). Inadvertidamente, o pesquisador foi envolvido nas lutas internas que se estabeleciam no campo, o que, de certo modo, acabou por lhe trazer alguns prejuízos no tocante à realização da pesquisa, uma vez que foi identificado com um dos lados das disputas.
A segunda coisa que só seria percebida muito tempo depois – na verdade, a mais importante no que se refere a este texto – era que Ana Isabel estava empenhada em tornar a pesquisa e o texto a ser produzido uma versão oficial dos fatos relativos à Comunidade, fazendo com que o que constasse ali fosse difundido como a voz legitimada da Comunidade ou, melhor dizendo, a sua versão acerca daquilo que seria a Comunidade. Daí todo o empenho em controlar o que era ou estava por ser escrito. Havia, pois, um seu interesse latente. Era notório o seu investimento quase que cotidiano no sentido de contribuir com informações para a pesquisa. Tanta colaboração vinda diretamente dela ou dos interlocutores por ela indicados operaria no sentido de produzir algo como a “verdade dos fatos”, uma única história possível e legítima da Comunidade.
Outro dado importante no que diz respeito à tentativa de controle interno do texto etnográfico foi o seguinte: por intermédio de Ana Isabel, realizou-se uma entrevista com a bibliotecária da Comunidade. Formada pela Universidade de Brasília, chegara há pouco tempo na sede da Comunidade e estava nos momentos iniciais de organização de um acervo geral da instituição (matérias de jornal, artigos, material acadêmico, entrevistas, pregações, formações etc). Parte desse material já havia sido apresentada ao etnógrafo quando da realização de uma entrevista intermediada por Ana Isabel (“será muito interessante para você conversar com a Beth”, dizia ela, passando o contato ao pesquisador). Tudo aquilo ali se mostrava como um “prato cheio” para o etnógrafo, razão pela qual indagou à bibliotecária sobre a possibilidade de analisar o material e debruçar-se sobre ele pelo tempo que se fizesse necessário. Sua resposta, porém, surpreendentemente, foi de que, àquela altura, a demanda não tinha como ser atendida, uma vez que o acervo estaria em “momento de catalogação”.
A despeito de sua negativa, a bibliotecária novamente surpreendeu o pesquisador, desta feita com um pedido inusitado: que todas as entrevistas realizadas ao longo da pesquisa fossem enviadas para ela “arquivar”5. Como já estava há algum tempo desenvolvendo a pesquisa e, portanto, fazendo entrevistas, o etnógrafo depreendeu que havia um nítido interesse dela em saber o que os membros da Comunidade lhe haviam dito, colher informações acerca do que havia sido perguntado e, obviamente, exercer uma fiscalização sobre o que seria posto no texto final. Todavia, em estrita observância à lógica da reciprocidade, o pedido também foi negado, numa contra-dádiva, com a informação de que aquilo constituía dados da pesquisa. No caso, uma mão secou a outra.
Outra tentativa de intervenção ou apropriação do texto da tese ocorreu quando, durante uma conversa com a secretária da Sede Administrativa, esta deu a entender que a tese poderia servir como um “importante mecanismo de conversão na universidade, pois o povo lá vai saber como Deus é poderoso”. A tese, no caso, operaria como uma narrativa mistagógica da Comunidade6. Esse interesse foi confirmado quando, após a tese ser defendida, uma pessoa escreveu ao autor, dizendo-se um membro da Comunidade residente nos EUA, que havia tomado conhecimento do trabalho por meio de Ana Isabel. Ele, então, pediu uma cópia para “distribuir entre os irmãos dos EUA para que eles vejam o poder do Espírito Santo na cidade”. No caso, a tese funcionaria como uma espécie de relato espiritual da história da Comunidade, sendo, portanto isso, e tão somente isso, o que se esperava como produto do tempo investido por membros da Comunidade na sua consecução. Nesse sentido, pode-se dizer que se Ana Isabel contribuiu efetivamente para o sucesso pesquisa, o fez a fim de tornar a tese um relato, nos seus termos, do que deveria constar ali7.
Tais situações levaram à consideração de dois elementos que acompanham a longa história da Antropologia e suas relações com os “outros” em situações de pesquisa: o primeiro deles, muito presente em diversas análises da disciplina, e ao qual nós mesmos já fizemos menção aqui, diz respeito à ideia de que os “nativos” elaboram imagens daquilo que acreditam ser o etnógrafo – um colonizador, um missionário, um espião, um colaborador e tantas outras possíveis figuras de um “outro”. No caso dos católicos carismáticos, o pesquisador podia ser representado como um intruso, como alguém sobre o qual se deveria exercer certa vigilância, que poderia ser convertido à sua fé ou, ainda, que poderia ser utilizado para legitimar academicamente a existência do grupo. Um segundo elemento, mais contemporâneo na história da disciplina, trazido à tona na pesquisa entre os carismáticos, refere-se às intencionalidades e expectativas dos “nativos” acerca da pesquisa e de seus resultados. A informação lançada de início pela co-fundadora (“não temos uma boa relação com pesquisas...”) já dava mostras de que aquela Comunidade não era, por assim dizer, um campo intocado, uma relíquia perdida no mundo social prestes a se extinguir; pelo contrário, as pessoas ali estavam acostumadas com o fato de serem alvos de pesquisas8, o que lhes permitia, sobretudo nas personas de suas altas autoridades, acionar representações prévias sobre como proceder frente a uma pesquisa de cunho acadêmico. Por essas e outras razões, inúmeras vezes as expectativas dos pesquisadores e dos pesquisados em relação ao produto final da pesquisa acabam por apresentar certa incompatibilidade. Há, pois, um contínuo trabalho, da parte do etnógrafo, de “gestão de impressões” (HAMMERSLEY; ATKINSON, 2022, p. 113) que vai desde a sua própria imagem diante dos sujeitos, passando pelos sentidos do trabalho de campo empreendido até à sua conclusão, com a produção do texto etnográfico, que muitas vezes não corresponde ao esperado pelas cosmovisões e investimentos dos “nativos”.
Considerações Finais
Desde que foi originalmente publicado, há cem anos, Argonautas do Pacífico Ocidental tem servido como uma referência fundamental para os interessados no fazer etnográfico. Em sua famosa introdução, Malinowski (1978, p. 33) argumenta que, para obter sucesso em tal empreitada, o pesquisador deve se orientar por certos princípios metodológicos, tais como: “possuir objetivos genuinamente científicos”, “conhecer os valores e critérios da etnografia moderna", “assegurar boas condições de pesquisa” e, não menos importante, "aplicar certos métodos especiais de coleta, manipulação e registro de evidência" (MALINOWSKI, 1978, p. 20).
Com base numa perspectiva igualmente criteriosa, o antropólogo francês Marcel Griaule desenvolveu um programa de pesquisas caracterizado pela rica e variada combinação de estratégias, dentre as quais julgamos interessante destacar, para os propósitos deste artigo, as técnicas inquisitoriais de entrevista. Por meio deste expediente, o etnógrafo buscava extrair o testemunho ou a confissão do “nativo” acerca dos “segredos” da tribo, o que, por conseguinte, lhe permitiria acessar “a Verdade de um edifício simbólico ou de uma realidade social” (BRUMANA, 2005, p. 258). Situado entre o pesquisador e o conteúdo cultural a ser revelado, caberia ao nativo, no caso, operar como uma espécie de objeto-meio para que aquele alcançasse determinados fins.
Das primeiras décadas do século XX pra cá, um sem-número de transformações teórico-metodológicas (e mesmo éticas) se processou no interior da Antropologia e áreas afins, de sorte que os modos de lidar entre pesquisador e pesquisado sofreram sensíveis e importantes alterações, como ilustra, por exemplo, a referida etnografia sobre uma comunidade religiosa nordestina. Ao passo que, em tempos pretéritos, as atividades de pesquisa giravam em torno da descrição e da busca de explicação dos modos de vida, hábitos e costumes de povos considerados geográfica ou culturalmente distantes do etnógrafo – supondo-se, pois, a existência de uma realidade objetiva passível de ser apreendida pelo seu olhar treinado e teoricamente orientado –, hoje parece mais apropriado se falar em descrição e compreensão dos fenômenos socio-culturais. Diferentemente do que preconiza o paradigma explicativo – que tem na metáfora do laboratório natural uma expressão esclarecedora – a adoção de uma perspectiva etnográfica compreensiva implica o estabelecimento de um tipo de relação entre observador e observado cujo fundamento reside na predisposição ao exercício de um tipo muito especial de comutação. Distantes, portanto, do modelo colonial, atualmente, os pressupostos teórico-metodológicos que norteiam as pesquisas de campo envolvem sujeitos que, a um só tempo, se observam e são observados, cada qual com os seus respectivos objetivos, aspirações, intencionalidades etc. Por essa razão, não cabe mais nos atermos apenas àquilo que, uma vez em campo, mobiliza as atenções do etnógrafo, fazendo-se necessário refletir, também, sobre o que levaria o observado a contribuir com a pesquisa e, por vezes, inclusive, desejar a presença do etnógrafo junto a si. Só assim, por meio de um olhar capaz de contemplar, concomitantemente, os fluxos e contra-fluxos de interesses em jogo seria possível entender, por exemplo, a eventual pretensão de um nativo estabelecer relações utilitárias com o pesquisador, buscando fazer dele um veículo para a satisfação dos seus propósitos.
Já faz algum tempo que a Antropologia deixou de ser representada como a ciência das sociedades primitivas, vindo a se tornar, por definição, uma disciplina dedicada à compreensão do “outro”. “Outro” este que foi se delineando por etapas a partir da delimitação de “desvios” ou “afastamentos diferenciais” (LÉVI-STRAUSS, 1967) que têm sido cada vez menos associados a distanciamentos espaço-temporais, possibilitando, assim, chegarmos a uma situação na qual, como diria Geertz (1997b), “agora somos todos nativos”. Se essa ruptura epistemológica teve impactos no fazer e pensar antropológicos, em geral, pode-se dizer que, guardadas as devidas proporções, algo parecido vem ocorrendo, no Brasil, desde a implementação das políticas de ação afirmativa. Isso porque, para além dos efeitos simbólicos que trazem consigo, sua adoção tem possibilitado que sujeitos individuais ou coletivos, outrora tomados exclusivamente como objetos de pesquisa, possam delas também participar como sujeitos observadores, algo que decerto contribuirá para o enriquecimento do conhecimento antropológico, tornando-o mais plural e diverso, propício, portanto, a favorecer o propósito de “expansão do universo do discurso humano” (GEERTZ, 1978).
Isto posto, à guisa de conclusão, resta dizer que, embora do ponto de vista disciplinar, tenhamos naturalizado a ideia de que o "outro" é o nativo, isto é, o sujeito observado, pragmaticamente, há que se reconhecer que somos nós, os etnógrafos, que, em maior ou menor escala, alteramos as paisagens sociais com a nossa presença. Se, entre fins do século XIX e primeiras décadas do XX, o contato com a diferença trouxe estupefação aos olhos euro-americanos, o que dizer dos impactos que esse contato teria legado às populações autóctones? Como desconsiderar que, durante mais de um século, vimos nos comportando como intrusos no mundo de outros sujeitos, como hóspedes não convidados, muitas vezes indesejados? Daí o título escolhido para este artigo, afinal, face ao exposto, torna-se patente o entendimento de que, via de regra, o estranho, o exótico, o diferente, somos nós, não eles!
Referências
APTER, Andrew, Griaule. Legacy: rethinking 'la parole claire' in dogon studies, Cahiers d'Études Africaines, Paris, v. 45, p. 95-129, 2005.
ASAD, Talal. Anthropology and the colonial encounter. In: HUIZER, Gerrit; MANNHEIM, Bruce (ed.). The politics of anthropology: from colonialism and sexism toward a view from below. Mouton: The Hague, 1979. p. 85-94.
BIELO, James. Antropologia da religião: fundamentos, conceitos e práticas. Petrópolis: Vozes, 2022.
BOURDIEU, Pierre. Sociólogos da crença e crenças de sociólogos. In: BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.
BRUMANA, Fernando Giobellina. Griaule, la etnografia del secreto. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 24, p. 255-295, 2005.
CLIFFORD, James. Poder e diálogo na etnografia: a iniciação de Marcel Griaule. In: A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. p. 179-226.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
GEERTZ, Clifford. Como pensamos hoje: a caminho de uma etnografia do pensamento moderno. In: GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997a. p. 220-245.
GEERTZ, Clifford. Do ponto de vista do nativo. In: O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997b. p. 85-107.
GEERTZ, Clifford. Under the mosquito net. New York: The New York Review, 1967.
GRIAULE, Marcel. Méthode de l'ethnographie. Paris: Presses Universitaires de France, 1957.
HAMMERSLEY, Martyn; ATKINSON, Paul. Etnografia: princípios em prática. Petrópolis: Vozes, 2022.
KUPER, Adam. Antropólogos e antropologia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.
LEIRIS, Michel. A África fantasma. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e história. In: LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. p. 328-366.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 11-29, 2002.
MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do pacífico ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné melanésia. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
MATTA, Roberto da. O ofício do etnólogo, ou como ter 'anthropological blues". In: NUNES, Edson Oliveira (org.). A aventura sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1974. p. 23-35.
NADER, Laura. Ethnography as theory. Hau Journal of Ethnographic Theory, [s. l.], v. 1, n. 1, p. 211-219, 2011.
OLIVEIRA, Luís Roberto Cardoso de. Pesquisa em versus pesquisas com seres humanos. In: VÍCTORA, Ceres; OLIVEN, Ruben George; MACIEL, Maria Eunice; ORO, Ari Pedro (org.). Antropologia e ética: o debate atual no Brasil. Niterói: EdUFF, 2004. p. 33-44.
PEIRANO, Mariza. Argonautas, cem anos depois. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 27, n. 61, p. 379-403, 2021.
PEIXOTO, Fernanda Arêas. A viagem como vocação: antropologia e literatura na obra de Michel Leiris. In: LEIRIS, Michel. África fantasma. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 19-33.
PIERUCCI, Antonio Flavio. Interesses religiosos dos sociólogos da religião. In: ORO, Ari Pedro; STEIL, Carlos Alberto (org.). Globalização e religião. Petrópolis: Vozes, 1997.
SAREVSKAJA, Berta Isaakovna. La methode de l'ethnographie de Marcel Griaule et les questions de méthodologie dans l'ethnographie française contemporaine. Cahiers d'Études africaines, Paris, v. 16, p. 590-602, 1964.
Notas
Autor notes