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Apresentação do Dossiê – Conhecimentos Canábicos: Práticas Sociopolíticas Emergentes de Pesquisa e de Produção de Conhecimentos
Victor Luiz Alves Mourão; Marco Vinicius de Castro
Victor Luiz Alves Mourão; Marco Vinicius de Castro
Apresentação do Dossiê – Conhecimentos Canábicos: Práticas Sociopolíticas Emergentes de Pesquisa e de Produção de Conhecimentos
Dossier Presentation – Cannabis Knowledge: Emerging Sociopolitical Practices of Research and Knowledge Production
Mediações - Revista de Ciências Sociais, vol. 28, núm. 3, e49170, 2023
Universidade Estadual de Londrina
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Resumo: A cannabis vem se tornando foco de atenção de pesquisas científicas, suscitando debates, ações e relações no âmbito da saúde, de movimentos sociais, do direito, das políticas públicas e de relações de classe. Esse processo se deu concomi-tantemente à emergência de novas maneiras de produzir conhecimentos sobre a planta, com especial ênfase no âmbito medicinal e terapêutico. Nesse sentido, a proposta desse texto introdutório e do dossiê que o acompanha é reunir pesquisas e reflexões oriundas de diferentes contextos internacionais, nacionais e locais que, inspiradas no campo transdisciplinar dos estudos sociais da ciência e tecnologia, têm como foco a produção de conhecimentos nas esferas sociais diversas nas quais a cannabis tem sido cientificamente ativada. Desse modo, o dossiê e esse artigo introdutório se propõem refletir sobre os processos de conformação de um campo científico emergente de conhecimentos canábicos que possuem conexões profundas com a militância antiproibicionista e com as transformações regulacionistas recentes.

Palavras-chave: Produção, conhecimento, ciência, tecnologia, cannabis.

Abstract: Cannabis has been the subject of countless techno-scientific pieces of research, raising debates, actions and relationships in the areas of health, law, public policies and class relations. This process occurred concomitantly with the emergence of new ways of producing knowledge about the plant, with special emphasis on the medicinal and therapeutic sphere. In this sense, the purpose of this introductory text and the dossier that accompanies it is to bring together research and reflections from different international, national and local contexts that, inspired by the transdisciplinary field of social studies of science and technology, focus on the production of knowledge in various social spheres in which cannabis has been an object of central interest. In this way, the dossier and this introductory article propose to reflect on the processes of shaping an emerging scientific field of cannabis knowledge that has deep connections with anti-prohibitionist activism and recent regulationist transformations.

Keywords: Production, knowledge, science, technology, cannabis.

Carátula del artículo

DOSSIÊ – Conhecimentos Canábicos: Práticas Sociopolíticas Emergentes

Apresentação do Dossiê – Conhecimentos Canábicos: Práticas Sociopolíticas Emergentes de Pesquisa e de Produção de Conhecimentos

Dossier Presentation – Cannabis Knowledge: Emerging Sociopolitical Practices of Research and Knowledge Production

Victor Luiz Alves Mourão*
Universidade Federal de Viçosa, Brasil
Marco Vinicius de Castro*
Universidade Federal de Juiz de Fora, Espanha
Mediações - Revista de Ciências Sociais, vol. 28, núm. 3, e49170, 2023
Universidade Estadual de Londrina

Recepção: 17 Outubro 2023

Revised document received: 25 Novembro 2023

Aprovação: 03 Dezembro 2023

Introdução

É de amplo conhecimento o nível de centralidade que a planta Cannabis sativa (e sua miríade de denominações) possui no cenário moral da sociedade contemporânea. Trata-se de uma planta que, ao longo do século proibicionista, passou a simbolizar aspectos de degradação social, de perda de controle comportamental, de rebeldia e insurreição familiar, de más companhias, escapismo, alienação, perda de liberdade e dependência, de causa de mortes e de ruína familiar. No entanto, essa imagem não é unívoca: movimentos contraculturais que se disseminaram nas décadas de 1960 e 1970 a tomaram como uma substância (dentre várias outras) que promove experiências no sentido do autoconhecimento e da busca por maior liberdade individual e coletiva. Não obstante, a configuração de uma estrutura proibicionista global – que estabeleceu em diversos níveis aparatos regulatórios e repressivos de combate a produção, posse, distribuição e consumo dessa planta – foi eficaz em manter o status proibido e marcadamente maléfico da imagem simbólica da planta. Em texto anterior, apontamos para a “saturação moral” que a impregna, configurando-a como um fato social total global (Mourão, 2021).

Em uma mirada histórica, o debate público sobre maconha/cannabis sofreu forte inflexão na última década. No Brasil, pesquisas anteriores identificaram, em uma abordagem histórica de longo prazo, vários ciclos de atenção no âmbito de uma “arena pública da maconha” que culminaram na consolidação de um paradigma proibicionista jurídico-securitário (Brandão, 2014, 2017), e isso estabilizou concepções morais sobre a planta no passado que podem estar arraigadas nas moralidades da sociedade brasileira até os dias de hoje, mas que paulatinamente têm apresentado algumas transformações dada sua eficácia terapêutica em tratamentos de algumas enfermidades (Castro, 2023a). Antes marcadas por movimentos contestatórios de corte liberal (como, por exemplo, Fiore, 2012), as lutas antiproibicionistas se transformaram a partir da disseminação de informações e práticas terapêuticas na grande mídia e nas redes sociais (Castro, 2023b; Mourão, 2023; Rodrigues, 2022; Rodrigues; Lopes; Mourão, 2021). Nesse sentido, além da demanda pela legalização do uso psicoativo da cannabis, cresceu a reivindicação pela regulação de sua utilização para fins terapêuticos (Barbosa, 2021; Carvalho; Brito; Gandra, 2017).

Esse processo se deu alinhado à emergência de novas maneiras de produzir conhecimentos sobre a planta. A literatura científica sobre o assunto reiteradamente destaca como as famílias de crianças com epilepsia refratária produziram uma expertise leiga perante a ausência de conhecimento consolidado nas classes médica, científica e institucional (Oliveira, F., 2016; Oliveira, M., 2016). De maneira associada, também se ressaltou como o movimento grower clandestino auxiliou essas famílias a ter acesso à substância no contexto proibicionista (Motta, 2019). Helen Caetano (2021) identificou que é possível observar na literatura científica duas abordagens fundamentais que não dialogam entre si: uma focada nos malefícios associados ao consumo intoxicante da planta, outra vinculada à emergente ciência canábica que propõe investigar propósitos terapêuticos da planta e de seus derivados. Essa ciência/medicina canábica estabeleceu uma agenda de pesquisa ao redor da noção de sistema endocanabinoide que logrou realizar um processo de canabização do humano e debelar, ao menos parcialmente, a configuração moral-simbólica da “erva do diabo” intoxicante do paradigma proibicionista (Mourão, no prelo). De maneira correlata, a discussão e as investigações sobre as subespécies da planta, os critérios fundamentais de sua distinção (em termos de composição de canabinoides), além das suas propriedades e aplicações industriais, energéticas, ambientais e alimentares, também apontam para a configuração de redes heterogêneas cujas controvérsias e atores centrais ainda estão por ser mapeados (Alt; Reinhardt, 1998; Deeley, 2002; Rehman et al., 2013).

Esse movimento de reenquadramento da questão no âmbito público foi acompanhado por debates nas esferas legislativas e regulatórias buscando reformar a legislação e produzir uma regulação mais apta ao uso medicinal da planta e derivados (Rezende; Fraga; Sol, 2022; Rezende; Rosa, 2023; Rodrigues; Silva; Mourão, 2020). O caso mais notório é o do Projeto de Lei 399/2015, de autoria do deputado Fábio Mitidieri, que teve tramitação concluída no âmbito de uma comissão especial com a aprovação, em 2021, de um texto substitutivo ao projeto original. No âmbito do Judiciário, é possível observar uma movimentação por parte de famílias e de associações que buscam conseguir salvo-condutos e habeas corpus para prosseguir com o cultivo de cannabis voltado aos cuidados aos pacientes que se utilizam de compostos derivados da cannabis (Castro, 2023b; Policarpo; Veríssimo; Figueiredo, 2017; Policarpo; Martins, 2020).

Trata-se, portanto, de um tema “quente”, que envolve esferas societais, científicas e institucionais da sociedade e aponta para uma nova configuração política e moral do tema (Policarpo, 2019; Mourão, 2023). Trata-se também de um tema transversal às áreas fundamentais que conformam as ciências sociais. Tradicionalmente vinculado à antropologia (sob perspectiva culturalista e/ou foucaultiana) e, em menor grau, à sociologia, que investigaram a gramática moral de atores que cultivam a própria cannabis para uso psicoativo, como emerge uma moralidade específica a partir de suas práticas (Castro, 2019; Castro; Fraga, 2022, 2023) e suas relações dissidentes com as regras formais e informais (Castro; Fraga, 2021), o tema tem também atraído reflexões no âmbito da ciência política em função das temáticas dos movimentos sociais pelo uso da cannabis, tanto psicoativo quanto medicinal, e pelos processos de mudanças legislativa/regulatória da área (Rezende; Fraga; Sol, 2022).

A partir dessas ideias, nos propomos aqui reunir pesquisas e reflexões que têm como foco a produção de conhecimentos nas esferas sociais diversas nas quais a cannabis tem sido objeto de interesse e na compreensão das trajetórias deproibicionistas diversas que têm metamorfoseado a institucionalidade proibicionista da cannabis. Desse modo, estamos interessados não apenas em contribuições voltadas para o âmbito nacional e local, mas também para experiências de outros países, de maneira isolada (estudo de caso) ou comparada. Logo, apresentamos aqui textos oriundos de trabalhos inspirados no campo transdisciplinar dos estudos sociais da ciência e tecnologia e que contribuam com esse campo de debate emergente sobre a produção de conhecimentos canábicos nas várias esferas em que essa produção se dá (saúde, religião, movimentos sociais, políticas públicas, etc.).

Campo CTS e Produção de Conhecimentos Científicos

O campo dos estudos sociais da ciência e tecnologia se conforma de maneira trans e interdisciplinar, agregando tanto pesquisadores e pesquisas marcadas pelo vínculo com as ciências sociais (em especial antropologia e sociologia) quanto por pesquisadores oriundos de outras áreas do saber e que, por várias razões, conformam trajetórias que se aproximam de questões “sociais” ou de abordagens “sociológicas” para desenvolver suas pesquisas e reflexões. Ainda que um retorno histórico ao processo de conformação desse campo ultrapasse os propósitos desse texto, nessa seção iremos nos debruçar sobre três abordagens/propostas de investigação afins a esse campo e que nos auxiliam a construir análises pertinentes ao tema deste dossiê. Trata-se, primeiro, da delimitação de uma proposta moral/normativa para a compreensão institucional da ciência moderna (Merton, 2013); em seguida, da emergência etnometodológica/etnográfica dos estudos sociais da ciência (Latour, 2000; Knorr-Cetina, 1981); e, por fim, da proposta analítico-conceitual da expertise leiga que busca pluralizar os atores aptos à produção do conhecimento científico para além dos pesquisadores tradicionalmente reconhecidos como especialistas (Collins; Evans; Silva, 2010).

Desde já, destacamos a centralidade da produção de Robert K. Merton (2013) no processo de configuração do campo da sociologia da ciência. Como é sabido, Merton se dedicou à produção de uma abordagem sociológica da ciência que colocou em relevo a importância dos valores para o funcionamento institucional da ciência moderna. Ao contrastar as experiências autoritárias soviética e nazista com as experiências ocidentais democráticas (notadamente EUA), Merton (2013) sustentou a existência de uma espécie de afinidade eletiva entre os valores democráticos e a busca pela verdade que caracteriza o empreendimento científico. Ao buscar delimitar as condições implícitas e tácitas no desenvolvimento das ciências (ordens, valores, instituições), Merton definiu o que pode ser chamado de estrutura normativa da ciência, da efetividade de valores para os propósitos científicos, conformando controles sociais que motivam as atividades científicas. Assim, a delimitação de um ethos científico – “complexo emocionalmente modulado de regras, prescrições, costumes, crenças, valores e pressuposições, que é mantido pelo compromisso do cientista” (Merton, 2013, p. 165) – se mostra como um aspecto fundamental para compreender como foi possível a emergência da ciência moderna em termos de normas, regras e obrigações que cientistas devem seguir ao levar adiante sua prática profissional.

A partir disso, Merton (2013) enumera quatro conjuntos de imperativos institucionais que compõem esse ethos: universalismo (critérios de validade do conhecimento científico são impessoais e objetivos), comunismo (ou comunalismo/ cosmopolitismo: bens científicos são de propriedade da comunidade, sendo acessíveis aos/às interessados/as), desinteresse (há impessoalidade e controles sociais rígidos contra atitudes egoístas de cientistas particulares, com exceção de prêmios de distinção/reconhecimento), ceticismo organizado (mandato metodológico: escrutínio generalizado de valores/crenças/fé por procedimentos científicos). Respeitando esses princípios institucionais, a autonomia da ciência é garantida.

Desse modo, Merton (2013) pôde identificar fontes de hostilidade à ciência quando resultados e métodos científicos são contrários a valores socialmente existentes, provocando, no limite, uma hostilidade pública à ciência. Isso ocorre especialmente quando há conflito entre fé/crença de grupos, comunidades ou da sociedade em geral e a institucionalidade cética da ciência. Conflitos de lealdade entre a ordem política e a ordem científica são também salientados em sua análise.

No caso aqui delimitado desse tema, podemos perceber quão central é essa vinculação entre normatividade social e as atividades científicas. Afinal, trata-se de um tema que, por décadas, teve sua investigação obstaculizada por questões legais e morais envolvendo aquilo que se convencionou chamar, dentro do campo científico-político, de proibicionismo. E, mais recentemente, passou a sofrer pressões por uma mudança regulatória envolvendo, do mesmo modo, valores morais de acesso a tratamento de saúde no âmbito familiar (Mourão, 2023). Assim, essa aliança entre movimentos sociais buscando acesso a medicamentos e pesquisadores visando implantar processos de pesquisa científica formou um bloco político fundamental para a transformação da regulação em torno da planta. Temos um tema que, desde já, e por sua “saturação moral”, mostra-se como algo que necessita de um trabalho político-moral para viabilizar a investigação científica. Complexificando esse quadro, e sob outro aspecto, os processos de privatização das pesquisas científicas medicinais também têm sido pautados, mostrando como a tensão entre comunalismo e privatismo, no âmbito científico-mercadológico, é algo central para entender os processos de produção de conhecimentos nessa seara (Caetano, 2021).

No segundo conjunto de abordagens, temos uma virada que se efetua no campo e que se volta, sob inspiração pragmática, para a observação in loco das atividades científicas, em especial nos laboratórios e outros espaços de produção do conhecimento científico. Aqui podemos mencionar os estudos pioneiros de Karin Knorr-Cetina (1981), Bruno Latour (2000) e Bruno Latour e Steve Woolgar (1997). Essa virada é particularmente profícua, pois permitiu, junto com a proposta simétrica do programa forte de David Bloor (2010), uma renovação epistemológica e analítica sobre práticas científicas que promoveu uma expansão forte do campo de pesquisa. Depois de um período relativamente duradouro em que a proposta de Merton (e também a proposta da Sociologia do Conhecimento de Karl Mannheim) hibernou, o campo dos estudos sociais da ciência e tecnologia se expandiu e se consolidou sob espírito rejuvenescido de pesquisas. Por um lado, o caráter convencional e socialmente situado dos processos de produção de conhecimento foi especialmente ressaltado.

Essa abordagem promoveu uma busca por “descrições densas” das atividades científicas, com a presença frequente e próxima de pesquisadores nos laboratórios, seguindo preceitos etnográficos de construção das análises sobre as práticas científicas. Por outro lado, essa renovação foi marcada pela etnometodologia garfinkeliana que trata os fenômenos sociais sob uma perspectiva que vincula, de maneira estrita, os processos cognitivos aos de ordenamento social. Desse modo, perceber a dinâmica fundamental que se estabelece entre os momentos quentes de controvérsia científica (em que a ciência está sendo feita, quando há discordância entre os cientistas sobre o caráter, os métodos e os conceitos apropriados para se referir à natureza) e os momentos frios (em que o consenso se estabeleceu, a “caixa-preta” se fechou) funcionou epistemologicamente para evidenciar como os processos de produção científica estão atrelados aos processos de constituição da naturalidade da realidade. A estabilização dos fatos científicos, a passagem do momento quente para o momento frio que fecha a caixa-preta dos fatos científicos, torna-se o foco da investigação analítica do pesquisador.

A partir dessas colocações, é notório no campo de pesquisa dedicado ao nosso tema que estamos, sob vários aspectos, em um momento quente da pesquisa científica sobre a cannabis. Por certo, há controvérsias mais públicas, gerais (existe cannabis medicinal? cannabis é – ou não – maconha? CBD é apenas bom, THC é sempre ruim?) e mais delimitadas, científicas (como classificar espécies/subespécies? quais os percentuais correlatos de THC, CBD, das diferentes subespécies? as flores são efetivamente inflorescências ou frutos partenocárpicos? como descrever e caracterizar o sistema endocanabinoide, e qual o rol de condições de saúde associadas a seu mau funcionamento?). No entanto, o processo de estabilização dos enunciados e das caixas-pretas está em aberto, ainda que algumas linhas gerais já estejam sendo esboçadas a partir da dinâmica dessas controvérsias (Mourão, 2021). Desse modo, temos um momento particularmente frutífero para empreender pesquisas sobre o tema, aspecto esse realçado pela saturação moral que o tema possui na sociedade de maneira mais geral, como ressaltado anteriormente.

Em um terceiro conjunto teórico, pontuamos a obra de Collins, Evans e Silva (2010), que se debruçaram sobre processos de construção de conhecimentos que envolvem uma heterogeneidade ampliada de atores. A teoria da expertise leiga coloca em questão as noções estabelecidas de autoridade e de validação científica ao abranger a importância de atores não profissionais e não especializados no processo de determinação interativa da validade dos conhecimentos científicos. Assim, associações entre pesquisadores profissionais e leigos interessados são centrais no processo de constituição dos conhecimentos em vários campos do saber, e os processos de negociação estabelecidos em zonas interativas entre leigos e especialistas são fundamentais para compreender essa dinâmica.

Aqui, uma das matrizes empíricas é aquela de ativistas californianos que se tornaram atores centrais no processo de produção de conhecimentos sobre a AIDS na década de 1980 e foram estudados por Epstein (1995) e retomados em Collins e Pinch (2010). Os autores colocam que “grupos não qualificados podem adquirir expertise por interação e até mesmo uma pitada de expertise contributiva” (Collins; Pinch, 2010, p. 161), configurando uma participação associativa positiva na construção das atividades científicas e de produção de conhecimentos. A abordagem da expertise leiga colocou em questão uma série de predicados: de que é necessária uma formação profissional para participar das associações que se voltam para a produção de conhecimento científico; que o interesse não científico, pessoal, no tema de pesquisa é necessariamente contrário à realização das boas práticas científicas. Politicamente, sua proposta tem um direcionamento no sentido de abrir as instituições científicas à permeabilidade interacional com os cidadãos, ativistas e pessoas comuns, de maneira a avançar o processo de construção de conhecimentos que, não obstante, não prescinde de um know-how científico consolidado e rigoroso para tanto. Pedagogicamente, sua abordagem aposta nos processos de construção de competências científicas por parte de leigos que estimulam a confiança pública na ciência, atuando na contramão dos negacionismos contemporâneos.

Essa perspectiva da expertise leiga ou aprendizagem por interação, envolvendo ativistas e cientistas, foi retomada por alguns trabalhos pioneiros sobre o uso de derivados de cannabis para fins medicinais (Oliveira, F., 2016; Oliveira, M., 2016). Esses trabalhos, ao identificarem processos ativos e sistemáticos de acompanhamento do uso de derivados de cannabis em pacientes com epilepsia, mostraram um intenso trânsito de informações entre familiares, pacientes, cientistas e médicos na compreensão dos efeitos da planta para fins terapêuticos, de modo que o proibicionismo acabou por conformar uma dinâmica em que os pacientes detinham conhecimentos, oriundos da experiência própria no cuidado terapêutico por meio do uso da planta, o que contrastava com a falta de informações e experiência de que os médicos e pesquisadores dispunham sobre os efeitos da planta. O processo de aprendizagem e de viabilização do tratamento ocorreu com via dupla de intensa de troca de informações, com aprendizados significativos dos atores envolvidos.

Diversidade, Complexidade, Conectividade: Campo de Investigação de Conhecimentos Canábicos

O dossiê aqui publicado apresenta uma diversidade grande de contribuições que mostra o espectro prismático amplo pelo qual a controvérsia em torno da planta se desdobra. Essa diversidade se apresenta de maneiras diversas: no rol metodológico variado, que abrange desde análises que envolvem propostas de entrevistas qualitativas e etnográficas até análises qualitativas documentais, propondo ainda procedimentos híbridos quali-quantitativos; nos espaços empíricos e de observação científica, contemplando órgãos públicos regulatórios, associações canábicas e para uso medicinal, e cursos pedagógicos de formação sobre aspectos medicinais da planta; no uso não dogmático das ferramentas conceituais, que não ocupam o plano central e são mobilizadas de maneira pontual para aprofundar as análises e descrições emergentes. No entanto, permanece o fio condutor proposto para esse compilado: trata-se de reflexões sobre esse novo momento, contemporâneo, da cannabis e as práticas que a atravessam, em especial aquelas que se voltam para a produção de conhecimentos sobre a planta, não prescindindo daquelas práticas adjacentes de cunho político, jurídico, cultural, educacional e social, inclusive de caráter híbrido, interespécies. Complementarmente, é notório que, nas análises apresentadas nos artigos, essa produção de conhecimentos se encontra imbricada ao processo de coordenação dos grupos sociais que se voltam para a planta em seus aspectos e potencialidades diversas.

Todo esse complexo diverso e híbrido aponta, assim, em uma primeira demanda atendida por esse dossiê, para produzir reflexões que consigam esboçar as características e identificar dinâmicas centrais desse novo mo(vi)mento, “pegando a contrapelo” esse processo histórico; e, em uma segunda demanda, para promover um encontro, uma densificação, dos processos de referência mútua dessas reflexões, de modo que elas não se deem de maneira isolada, mas que contribuam para o processo de formação de um campo de investigação sobre os aqui denominados conhecimentos canábicos, que envolvem a planta, pesquisadores, aparatos de pesquisa, instituições públicas e privadas diversas e movimentos sociais. A partir disso, pedimos licença para fazer uma rápida referência aos artigos, delineando aspectos e características que apresentam para tentar esboçar as conexões potenciais entre si.

Em seu trabalho intitulado “Cannabis e Ciência: identificação de redes de pesquisa com/sobre a cannabis a partir da plataforma de Currículos Lattes”, Ana Paula Rodrigues começa por contextualizar os estudos relacionados à cannabis no Brasil e no mundo ocidental. Em seguida, e partindo de um procedimento metodológico que seleciona currículos a partir da plataforma Lattes, a princípio a autora faz um levantamento bibliográfico para identificar autores influentes sobre o tema no Brasil. Posteriormente, analisa o banco de dados do Portal Brasileiro de Publicações e Dados Científicos em Acesso Aberto (Oasisbr), que engloba a produção científica e os dados de pesquisa em acesso aberto publicados em revistas científicas, repositórios digitais de publicações científicas, repositórios digitais de dados de pesquisa e bibliotecas digitais de teses e dissertações. Entretanto, como recorte analítico, Rodrigues opta por analisar somente os artigos, que são o produto central da produção científica contemporânea.

Desta forma, Rodrigues produz um panorama das pesquisas tecnocientíficas no Brasil, proporcionando um mapeamento das redes de produção de conhecimento sobre a cannabis a partir de uma perspectiva multifacetada da comunidade acadêmica, dos formuladores de políticas e da sociedade em geral. A primeira observação é em relação à origem das pesquisas, ou seja, em qual universidade ou instituição brasileira a produção de conhecimento foi realizada. A investigação demonstrou que os artigos disponíveis na plataforma Oasisbr foram produzidos também por pesquisadores de instituições como Fiocruz, UFRGS, PUC-RS, UEM, UFCSPA, UNESP, UFJF, UFPB, UFSM e UNIFESP. As áreas em que os estudos se inseriram com mais frequência foram Farmácia, Psiquiatria, Medicina, Psicologia, Direito, Fonoaudiologia, Neurociência, Química e Saúde coletiva.

O estudo do perfil dos pesquisadores e suas redes revela, na pesquisa de Rodrigues, um panorama diversificado e dinâmico no campo da pesquisa sobre a cannabis no Brasil, verificando quais instituições de ensino superior e profissionais de várias áreas do conhecimento, como medicina, farmácia, sociologia e psicologia, estão contribuindo, cada um à sua maneira, para o avanço do conhecimento sobre essa planta. Nesse sentido, a autora apresenta uma compreensão intensa e atualizada desse campo de estudo, observando as origens das pesquisas, os atores envolvidos e as instituições e universidades em que foram realizadas. Logo, Rodrigues mapeia e salienta como, cada uma a seu modo, essas redes atuam na construção do conhecimento canábico, seja pela identificação de tratamentos medicinais e terapêuticos a partir da planta, seja alertando para seus efeitos no organismo, sejam eles negativos ou não, os debates sobre as violências que cercam seus usuários, análises da política proibicionista, e aponta como essa produção de conhecimento fornece respostas aos questionamentos sociais, culturais, políticos, técnicos e científicos sobre o tema.

No trabalho de Mariana Palumbo, intitulado “Mamá Cultiva Argentina”, a autora explora a busca por uma regulamentação legal do cultivo de cannabis na Argentina, com destaque para o papel das mulheres nesse contexto. “Mamá Cultiva Argentina” é uma organização da sociedade civil que tem como objetivo conquistar um marco legal para o cultivo de cannabis no país. Partindo de uma perspectiva de gênero e diversidade, a pesquisa dedica-se a compreender como a organização “Mamá Cultiva Argentina” mobiliza uma retórica e prática feministas, utilizando os afetos como um meio de promover mudanças em relação aos tratamentos médicos hegemônicos tradicionais.

Segundo a autora, um fator que permitiu a visibilidade das mulheres no contexto da cannabis foi, especificamente, o papel das produtoras de solidariedade em relação aos membros da família, principalmente filhas e filhos. Nessa perspectiva, utilizando uma metodologia qualitativa, é realizada uma análise das primeiras abordagens e explorações do trabalho de campo desenvolvido no movimento “Mamá Cultiva Argentina” durante os anos de 2022 e 2023, com base em técnicas qualitativas, como entrevistas em profundidade, observação participante virtual e presencial, e consultas às informações disponíveis no site da organização. Dessa forma, a autora se concentra não apenas nas práticas de cuidado que essas mulheres oferecem aos seus familiares e entes queridos, mediadas pela planta, mas também nos cuidados que elas dispensam à planta e nas sensações e representações eróticas que essa relação gera nelas. Em resumo, Palumbo descreve e analisa os vínculos emocionais e os aspectos eróticos que surgem entre essas mulheres e a planta de cannabis.

Assim, é realizada uma análise do papel da planta na vida dessas mulheres, das formas de cuidado que praticam, bem como da relação dessas mães com a planta, destacando a dimensão do prazer e os efeitos desse sentimento em suas vidas. Por fim, Palumbo observa como o movimento “Mamá Cultiva Argentina” está ligado ao discurso e ao sistema médico hegemônico de duas maneiras: por um lado, critica-o por sua violência, maus-tratos e deficiências e, ao mesmo tempo, utiliza o seu discurso como uma estratégia de validação junto a outros atores, ou seja, estabelece conexões com diferentes profissionais de saúde que consideram eficazes as terapias canábicas, tornando acessíveis noções médicas e biológicas a um público inexperiente que busca compreender os benefícios e os efeitos da cannabis em seus próprios corpos. Portanto, a autora conclui que, para estudar a planta, essas mulheres recorrem a alguns métodos científicos, como observação, experimentação e sistematização, principalmente orientadas pela intuição e pelo carinho que desenvolvem com a planta, em busca de soluções e estados de bem-estar que ela pode proporcionar. Palumbo destaca que a liminaridade faz parte das interações entre o não humano e o humano, evidenciando elementos como a escuta, o carinho, a reciprocidade e a frustração ao não obter os resultados desejados após meses de cuidado.

No estudo intitulado “Os Clubes Sociais de Cannabis (CSCs) na Comunidade Autônoma do País Basco (CAPB), Espanha”, Guilherme Borges, Xabier Arana Berastegui e Franciele Cardoso examinam a cultura canábica na região do País Basco, no norte da Espanha, por meio de uma abordagem de construtivismo social. O trabalho analisa a origem e o desenvolvimento dos Clubes Sociais de Cannabis nesse contexto, destacando como as dinâmicas internas desses clubes são influenciadas pelo ambiente social e jurídico em constante evolução. Para isso, os autores produzem uma análise documental originária das atividades próprias dos atores imersos no contexto estudado, utilizando como principais fontes de consulta a Biblioteca del Campus de Gipuzkoa, localizada no Centro Carlos Santamaría, e a Biblioteca do Instituto Vasco de Criminología (IVAC-KREI), ambas situadas em Donostia (San Sebastian).

Por meio de uma análise criteriosa de suas dinâmicas internas, de suas interações com o contexto social mais amplo e de sua capacidade de adaptação diante de alterações no panorama social e jurídico, os autores analisam a figuração dessa rede de interações que definem os clubes, onde cada membro, embora autônomo, é parte de uma rede que influencia a identidade e operação do clube. Além disso, sugerem que essa rede está em contínua transformação e é continuamente reconfigurada pelos contextos sociais, políticos e jurídicos, acarretando uma simbiose entre o clube e a sociedade que repercute em transformações mútuas.

A partir desse estudo, os autores revelam como a gestão e regulamentação do consumo de maconha no norte da Espanha demonstram o empenho de uma sociedade em harmonizar os direitos individuais com a saúde pública e a segurança. Em suma, mesmo salientando as diferenças sociopolíticas e culturais entre o País Basco e o Brasil, Cardoso propõe que as estratégias bascas para o consumo informado e a minimização de danos se apresentam como diretrizes adaptáveis ao cenário brasileiro, ou seja, de modo que aprendizados e percepções do País Basco possam enriquecer o diálogo nacional, sugerindo abordagens renovadas e centradas no controle da planta, respaldadas pela cidadania, autonomia pessoal e direitos humanos.

No estudo intitulado “Un Recorrido Panorámico por Iniciativas Educativas sobre Cannabis en Argentina”, María Cecilia Díaz compartilha os resultados de sua pesquisa etnográfica realizada a partir de 2014. A pesquisa inicialmente se concentra nos esforços de politização em torno do acesso à cannabis para uso terapêutico na Argentina, com foco em organizações como a Associação Civil Cogollos Córdoba e o Movimento Nacional Manuel Belgrano pela Normalização da Cannabis. Em uma segunda etapa, a pesquisa explora a formação de redes de pesquisa sobre a cannabis e seus derivados no país.

Nesse trabalho de campo, também foram implementadas técnicas como entrevistas abertas não diretivas e observação participante. Partindo desse material, é feita uma análise das notas etnográficas de oficinas de cultivo, seminários sobre cannabis medicinal e um curso de pós-graduação, bem como documentos diversos (regulamentos, programas de cursos, relatórios e projetos) e entrevistas em profundidade. Com base nesse trabalho, María Cecilia Díaz oferece um panorama das iniciativas educativas que integraram os repertórios de organizações sociais de cannabis na Argentina, incluindo oficinas de cultivo e preparação, seminários e cursos sobre cannabis medicinal em nível universitário, entre outros.

Ao verificar que na América do Sul a regulamentação legal da cannabis tem acompanhado as tendências globais, que em grande parte se caracterizam por viabilizar o uso terapêutico da cannabis, com exceção do Uruguai, Díaz constata que na Argentina o atual marco regulatório sobre a cannabis se concentra em duas leis: a Lei nº 27.350 sobre “Pesquisa médica e científica sobre o uso medicinal, terapêutico e/ou paliativo da planta da cannabis e seus derivados”, aprovada em março de 2017 e regulamentada pela segunda vez em novembro de 2020, e a Lei nº 27.669, “Marco regulatório para o desenvolvimento da indústria da cannabis medicinal e do cânhamo industrial”, aprovada em maio de 2022 e regulamentada em agosto de 2023. Além disso, a autora verificou que as leis provinciais de adesão, portarias municipais, bem como as disposições de ministérios e organizações, também intervêm no acesso de usuários, profissionais de saúde, membros de organizações da sociedade civil, pesquisadores, produtores e empresários às diferentes modalidades de uso e produção da planta e seus derivados. Sendo assim, a regulamentação dos usos científicos, medicinais e industriais da cannabis mantém uma linha que divide os usos autorizados (lícitos) daqueles que não são (ilícitos).

Nesse sentido, a autora toma como ponto de partida a proliferação de cursos de formação sobre a planta na Argentina contemporânea e questiona suas condições de surgimento e possibilidades. Em sua análise, a autora considera fundamentais as contribuições feitas durante as últimas décadas por uma rede diversificada de atores sociais que inclui produtores, ativistas, usuários de cannabis terapêutica e suas famílias, profissionais de saúde e cientistas. Díaz conclui que o surgimento desses espaços educativos não deve ser visto como uma sucessão de traços que chegaram ao fim a partir de uma novidade, mas como delineamentos que coexistiram ou se integraram ao longo do tempo, como aconteceu com as oficinas de cultivo que, com variações, passaram a constituir aulas nos cursos oferecidos. Portanto, a autora demonstra como a construção e circulação do conhecimento sobre a cannabis durante o processo de regulamentação desta planta e seus derivados na Argentina ocorreram pela integração de um conjunto heterogêneo de espaços, dinâmicas e modos de transmissão de conhecimento.

No trabalho intitulado “Disputando as evidências, negando a pertinência: o processo para incorporação dos derivados de Cannabis no SUS”, Lucas Nishida e Roberta Cavedini concentram-se na incorporação dos derivados da Cannabis sativa para uso terapêutico no Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro. Seu objetivo é contribuir para o debate sobre a regulamentação de psicoativos no Brasil, incluindo a incorporação de derivados da cannabis no SUS. A pesquisa envolve uma análise dos documentos de avaliação dos produtos derivados de cannabis pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) e explora as políticas, legislações e resoluções que regulam esses derivados no Brasil. Os autores também realizam uma revisão bibliográfica de estudos relacionados ao uso medicinal dos derivados da cannabis no Brasil, particularmente aqueles no campo dos Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia.

Ao verificar a inadequação expressada pela Conitec sobre a avaliação dos derivados de cannabis, uma proposição de regulamentação alternativa presente nas consultas públicas era incorporar os produtos da cannabis por meio da Farmácia Viva. Isso poderia favorecer e legitimar um modo de produção, além de propiciar a geração de conhecimento e o uso terapêutico praticado pelas associações canábicas. Este programa iria dispor sobre o fomento e organização da produção e distribuição de plantas medicinais e fitoterápicas no SUS, e poderia enquadrar as associações canábicas. Essas propostas foram apresentadas à 17ª Conferência Nacional de Saúde, organizada pelo Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde. Entretanto, as propostas de inclusão da cannabis no SUS via Farmácia Viva não foram votadas, e a resolução aprovada parece solicitar um programa e uma regulamentação próprios para a cannabis, distintos dos demais fitoterápicos, que não passam pela apreciação e aprovação da Conitec.

De acordo com os autores, mesmo com mudanças regulatórias substanciais nos últimos anos, o acesso às terapias pelo SUS ainda é limitado. Nesse contexto, ao revelar as especificidades do acesso aos derivados de cannabis e dos processos que avaliam sua incorporação no SUS, os autores demonstram que os argumentos apresentados pelos defensores da incorporação não foram suficientes para a aprovação pela Conitec. Além disso, existem disputas nas consultas públicas que visam consolidar a aprovação da incorporação de derivados da cannabis no SUS em todo o território nacional. Todavia, Nishida e Cavedini apontam para um caminho alternativo, que seria pensar em regulamentações que permitam incluir no SUS os derivados da cannabis em sua multiplicidade de conformações, considerando a variedade de conhecimentos que a planta mobiliza.

A partir dessa breve referência sumária das produções, podemos identificar aqui artigos que se colocam como processos de reflexão dentro da proposta de redução de danos e de ampliação das liberdades individuais e associativas (i. e., “Os Clubes Sociais de Cannabis…”), enquanto outros se voltam para um novo horizonte associativo da cannabis medicinal (i. e., “Mamá Cultiva…”) e de disseminação dos conhecimentos medicinais da cannabis (“Un recorrido…”), enquanto outros ainda se voltam para um panorama das redes universitárias de pesquisa sobre o tema (i. e., “Cannabis e Ciência”). Outro, ainda, volta-se para uma disputa epistêmica dentro dos órgãos públicos de regulação (i. e., “Disputando as evidências…”) que aponta para uma trajetória alternativa para permitir incluir no SUS os derivados da cannabis em sua multiplicidade de conformações, sobretudo em relação à diversidade de conhecimentos que a planta mobiliza. Em resumo, esses estudos refletem a complexidade das questões relacionadas à cannabis, desde sua pesquisa científica e regulamentação até o ativismo e a educação. Cada trabalho contribui para a compreensão de diferentes aspectos dessa planta e de como ela afeta a sociedade e a política em contextos variados. Eles também apontam para desafios e oportunidades que podem influenciar a regulamentação e o uso da cannabis no futuro. Desse modo, e como colocado em momento anterior, essa complexidade apresentada em termos de abordagens metodológicas, de ancoragens empíricas e de esteios conceituais se mostra conectada em termos da postura contemporânea de refletir sobre algo que se desdobra perante os processos de observação e investigação científica, mas cujos procedimentos reflexivos e de produção de conhecimento efetivamente são atores e protagonistas dessas mesmas transformações que tais análises se voltam para detalhar. O caráter político desses estudos e do campo que se forma é, portanto, inequívoco: fazer ciência com/sobre um objeto interditado é ato político, conformando uma espécie de ativismo epistêmico propício não só a encontrar a verdade sobre os temas para cujas investigação se voltam, mas para transformar o complexo regulatório e moral que os conforma.

Conclusão e Apontamentos para o Futuro

Como colocado, esse dossiê busca promover a formação de um campo, ainda incipiente, mas que desde já conta com reflexões que apontam para conexões potenciais com temas, perspectivas e abordagens analíticas que logram captar esse novo momento histórico da cannabis no país e em nossa região. Sendo assim, apresentamos textos provenientes de trabalhos diversos e conectados pela transdisciplinaridade desse campo de estudo e que contribuem para sua densificação. Em suma, esses trabalhos versam sobre a produção de conhecimentos canábicos em várias esferas da sociedade, seja na saúde, perspectivas de gênero, políticas públicas, educação, justiça, entre outros.

Portanto, no campo dos conhecimentos canábicos há um processo fundamental a ser desvelado, examinando em minúcias as estratégias deproibicionistas, sobretudo no que tange à abertura de espaços para pesquisas com a planta. Sob tal perspectiva, deixamos algumas indagações: como viabilizar a pesquisa de uma planta interditada? Como conseguir construir proteções contra a repressão que marcou (e ainda marca) as práticas ao redor da planta? Aqui se vê que, por um lado, os pesquisadores e as pesquisas têm que lidar com o status proibido da planta (e precisam, portanto, elaborar maneiras de acessá-la, seja recorrendo a órgãos judiciais para salvo-conduto, seja a órgãos públicos de regulamentação da pesquisa, seja aos próprios órgãos de repressão que possuem estoques apreendidos de partes da planta, seja por meio de vínculos com associações ou indivíduos que possuem autorizações judiciais para uso medicinal, ou ainda recorrendo à saída do país para ter acesso ao objeto de pesquisa). No entanto, em retroatividade, eles promovem processos de validação e de legitimação dos usos da planta, contribuindo para a conformação de um novo horizonte moral de normalização dos diversos usos da planta, em especial aqueles de uso terapêutico e medicinal.

Os organizadores desse dossiê o veem como um punhado de sementes com potencial para auxiliar esses processos de transformação social de modo que esse novo momento possa configurar um aparelho regulatório mais inclusivo, democrático e livre, que combine processos rigorosos de investigação científica com demandas coletivas e associadas de grupos políticos diversos, evitando as armadilhas do negacionismo científico e da privatização e mercantilização do conhecimento. Desejamos a todas vocês uma boa leitura.

Material suplementar
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Notas
Autor notes
* Guilherme Borges. Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (2015). Professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural da Universidade Federal de Viçosa. Pesquisa financiada pela agência FAPEMIG. (Processo no. APQ-01152-22). E-mail: vmourao@ufv.br.
* Xabier Arana Berastegi. Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2019). Doutorando em Ciências Sociais no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: marco.castro@estudante.ufjf.br.
Editor(a) de Seção: Raquel Kritsch, https://orcid.org/0000-0002-5810-0704;
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