Resumo: Em virtude das recentes transições globais na gestão da maconha e reconhecendo a premente necessidade de inserir no debate brasileiro reflexões acerca dos variados modelos e estratégias jurídico-políticas postas à prova, objetivando apresentar alternativas à proibição e seus preocupantes impactos, o presente artigo almeja discorrer, respaldado por fontes bibliográficas e documentais, acerca dos seguintes pontos: o conjunto de premissas sociais e o contexto que propiciaram a instauração dos Clubes Sociais de Cannabis (CSCs) na Comunidade Autônoma do País Basco (CAPB); o florescimento da cultura canábica, o associativismo dos consumidores de maconha na mencionada região e os enfrentamentos jurídico-políticos com os quais estas instituições têm se confrontado nos últimos tempos; para concluir, focamos em particularidades atinentes às dinâmicas organizacionais e operacionais destes clubes. Destacamos as políticas de Redução de Danos (RD) e os esforços contínuos dos integrantes destas coletividades na promoção de uma abordagem responsável e consciente no tocante ao consumo de maconha entre a população basca.
Palavras-chave: Clubes sociais de cannabis, comunidade autônoma do País Basco, normalização canábica, política de drogas, redução de riscos e danos.
Abstract: Due to recent global transitions in the management of marijuana and recognizing the urgent need to incorporate reflections on diverse legal and political strategies into the Brazilian debate, aiming to present alternatives to prohibition and its worrisome impacts, this article seeks to discuss, supported by bibliographic and documentary sources, the following points: The set of social premises and the context that led to the establishment of Cannabis Social Clubs (CSCs) in the Autonomous Community of the Basque Country (CAPB); the flourishing of the cannabis culture, the marijuana consumer associations in the mentioned region, and the legal and political challenges these institutions have faced in recent times; finally, we focus on specific aspects related to the organizational and operational dynamics of these clubs. We highlight the Harm Reduction (HR) policies and the ongoing efforts of the members of these collectives to promote a responsible and conscious approach regarding marijuana consumption among the Basque population.
Keywords: Cannabis social clubs, Basque Autonomous Community, cannabis normalization, drug policy, risk and harm reduction.
DOSSIÊ – Conhecimentos Canábicos: Práticas Sociopolíticas Emergentes
Os Clubes Sociais de Cannabis (CSCs) na Comunidade Autônoma do País Basco (CAPB), Espanha: Trajetória e Obstáculos na Busca pela Normalização Canábica.
Cannabis Social Clubs (CSCs) in the Basque Autonomous Community (BAC), Spain: Trajectory and Challenges in the Quest for Cannabis Normalization.
Recepção: 31 Julho 2023
Revised document received: 17 Outubro 2023
Aprovação: 03 Dezembro 2023
Desde o alvorecer da segunda década do presente século, observamos transformações significativas no cenário global das políticas relativas às drogas, com destaque para aquelas voltadas ao controle e regulamentação da maconha e seus derivados. A reconfiguração da legislação e gestão concernente a esta planta tem suscitado ampla observação e especulação internacional, impulsionadas tanto pela perspectiva de estas novas medidas representarem alternativas aos mais preocupantes impactos do proibicionismo quanto pelas potenciais repercussões socioeconômicas que estas políticas podem gerar.
Em contraponto à predominante corrente proibicionista, mesmo antes da adoção plena de políticas de regulamentação da maconha por nações como o Uruguai e o Canadá, bem como por determinadas unidades federativas dos Estados Unidos, outros contextos, como a Holanda e a Espanha, já delineavam, desde as últimas décadas do século anterior, uma abordagem menos restritiva em relação à planta. Em outras palavras, ainda que inseridos em regimes proibicionistas – uma vez que não possuem uma regulamentação integral, do cultivo à distribuição – ambos os países instituíram estratégias político-sociais visando desvincular o consumidor do estigma criminal, exemplificadas pelos Coffeeshops holandeses e pelos Clubes Sociais de Cannabis (CSCs) espanhóis. No entanto, nesses territórios, a produção e comercialização da planta ainda se encontram sob o estatuto da criminalização, propiciando um terreno fértil para contendas judiciais. Essas disputas, muitas vezes, são mais influenciadas por convicções morais e interesses de mercado do que embasadas em evidências científicas contemporâneas e perspectivas de saúde alinhadas à realidade do consumo (Berastegi, 2012; Silva, 2019).
A Espanha ostenta o pioneirismo entre as nações por despenalizar o consumo de cannabis pelo indivíduo, ainda que sua posse e uso em espaços públicos resultem em sanções administrativas4. Curiosamente, a legislação não pune a posse de plantas canábicas em residências, tampouco apresenta diretrizes claras acerca do autocultivo, omitindo-se, por exemplo, sobre o número específico de plantas permitido por moradia ou usuário. Esta lacuna normativa, aliada ao impulso político dos consumidores de maconha para acessar a substância de maneira segura e ao fortalecimento do paradigma de Redução de Danos (RD) no país, culminou na proliferação de associações de usuários da erva pelo território espanhol.
A Comunidade Autônoma do País Basco (CAPB), integrante do mosaico de comunidades que compõem o Estado espanhol, tornou-se uma referência ao propor modelos inovadores no âmbito da auto-organização das pessoas usuárias de maconha. Essa proeminência se alicerça na singularidade cultural desta população, marcada por uma intensa participação nos processos políticos e por ser pioneira na concepção de projetos sociais voltados ao consumo de substâncias psicoativas. O zelo direcionado aos usuários de substâncias psicoativas na região emergiu antes mesmo da consolidação conceitual das políticas de RD. Ademais, Bilbao, situada no País Basco, abriga uma das primeiras e escassas salas de consumo higiênico de heroína no país5.
Neste contexto, emergem os Clubes Sociais de Cannabis (CSCs), entidades autogestionárias comprometidas em legalizar suas ações, contornando a necessidade de recorrer ao mercado clandestino para adquirir maconha e seus derivados. Essas associações pretendem promover alternativas para usos responsáveis da substância.
Através do construtivismo social, analisa-se a cultura canábica basca, enfocando a origem e evolução dos CSCs com base nos conceitos de figuração e processo propostos pelo sociólogo Norbert Elias (1994, 2006). A figuração ressalta a intrincada rede de interações que definem os clubes, onde cada membro, embora autônomo, é parte de uma rede que influencia a identidade e operação do clube. Esta rede está em contínua mudança e é moldada por contextos sociais, políticos e jurídicos, gerando uma simbiose entre o clube e a sociedade que repercute em transformações mútuas. Já o conceito de processo destaca a constante evolução dos clubes canábicos bascos, que se adaptam às mudanças do ambiente social e jurídico. Os CSCs refletem as características únicas de sua época e local, servindo como instrumento de análise da dinâmica sociocultural basca.
Para a execução de nossa análise, recorremos a uma série de documentos e materiais literários originários do próprio contexto em estudo, isto é, provenientes de atores que estão imersos e ativamente engajados na realidade canábica basca. Nossas principais fontes de consulta foram a Biblioteca del Campus de Gipuzkoa, localizada no Centro Carlos Santamaría, e a Biblioteca do Instituto Vasco de Criminología (IVAC-KREI), ambas situadas em Donostia (San Sebastian).
As obras que selecionamos para o estudo forneceram mais do que uma visão acerca de um contexto geográfico específico. De fato, elas emergiram como espelhos do investimento intenso de seus autores na compreensão profunda da cultura canábica e dos CSCs na CAPB. Este rico acervo proporcionou uma percepção minuciosa e multifacetada dos CSCs bascos, facultando-nos uma análise criteriosa de suas dinâmicas internas, de suas interações com o contexto social mais amplo e de sua capacidade de adaptação diante de alterações no panorama social e jurídico.
Cada documento, cada obra, cada fragmento literário consultado desempenhou um papel fundamental na compreensão abrangente que obtivemos da cultura canábica basca. Assim, cada peça deste intricado quebra-cabeça foi essencial para que pudéssemos construir um panorama nítido e integral desta realidade singular.
Com este propósito, o presente artigo visa elucidar, por meio de fontes bibliográficas e documentais6, as fundações e contextos sociais que viabilizaram o surgimento dos CSCs na CAPB; a evolução da cultura canábica e do associativismo entre consumidores de maconha na região; os desafios jurídicos e políticos que estas entidades enfrentam e, em continuidade, discorre sobre particularidades atinentes às dinâmicas organizacionais e operacionais destes clubes. Há um enfoque nas políticas de RD e nas iniciativas destas associações que visam a promoção de uma consciência tanto individual quanto coletiva acerca do uso da maconha na CAPB, em especial entre os membros associados aos CSCs.
A CAPB, situada no extremo nordeste da Cantábria e reconhecida como nacionalidade histórica pela Constituição Espanhola de 1978, abrange as províncias de Álava, Guipúscoa e Biscaia. No total, compreende 253 municípios com cerca de 2.213.000 habitantes (INE, 2021). Os bascos7 têm suas raízes na Península Ibérica desde aproximadamente 2.000 a.C. e, apesar de adversidades políticas, mantiveram sua cultura e tradições. Dentre elas, o euskara, língua viva mais antiga e única na Europa, persistiu, inclusive durante proibições na ditadura franquista (Granja et al., 2010).
As décadas de 1960 a 1980 em Euskadi – País Basco em euscara – foram cruciais para movimentos populares, marcando a transição da ditadura franquista para a democratização espanhola. Estas décadas viram o crescimento do ativismo trabalhista e das associações de bairro, sendo estas últimas foco deste estudo devido à sua influência na formação do movimento cidadão e associações de consumidores de cannabis.
Victor Urrutia Abaigar (1985) nota que, durante os anos 1960 no País Basco, diversas associações voluntárias emergiram, especialmente as de bairro, que promoveram a coesão social. Estas associações auxiliaram na integração entre residentes locais e imigrantes, fortalecendo a resistência à opressão franquista e promovendo a coesão, principalmente em áreas urbanas periféricas (Urrutia Abaigar, 1985).
Influenciadas por grupos católicos das paróquias locais, as associações deram origem às primeiras comissões de bairro em 1968, notavelmente em cidades como Madrid, Barcelona e Bilbao. Esta estruturação do movimento cidadão ganhou ímpeto em 1975, como destaca Javier Angulo Uribarri (1978).
Rafael Mendia (1986) salienta que, embora originado nas associações de vizinhança, o movimento cidadão engloba diversas entidades com gestão popular. Ele é reconhecido como tal quando enfrenta coletivamente desafios locais, busca soluções conjuntas para problemas de um bairro e quando suas ações refletem interesses mútuos entre variadas entidades.
No País Basco, este movimento alavancou desde a promoção da língua euskara e eventos culturais bascos até demandas por anistia de presos políticos, políticas de igualdade de gênero e pela implementação de universidades públicas e populares. Etxeberria e Mendía (2013) apontam ainda duas forças determinantes nesse período: a) o ímpeto dos movimentos culturais pós-Segunda Guerra Mundial, catalisados pelo Maio de 1968; e b) a influência das ideias pedagógicas de Paulo Freire, fomentando uma consciência crítica basca.
As vertentes em questão destacaram a necessidade de consolidar uma genuína cultura popular, não apenas criada para o povo, mas originada dele. A pedagogia do oprimido tornou-se uma ferramenta para os movimentos sociais, possibilitando aos bascos a reconquista de sua herança e a construção de sua identidade cultural. A busca pela iluminação cultural tinha o objetivo de promover um pensamento reflexivo entre os bascos, levando-os a uma leitura crítica do mundo e a mudanças concretas. Tal inspiração, segundo Etxeberria e Mendia (2013, p. 9), culminou num “processo de conscientização que uma comunidade faz diante da resolução de seus próprios problemas e de como se organizar para solucioná-los”.
Na transição da ditadura franquista para a autonomia da CAPB, emergiram diversas entidades associativas, assumindo funções anteriormente desempenhadas pelas associações de vizinhança. Com a adoção do Estatuto de Autonomia do País Basco em 1979 (Espanha, 1979), houve uma diminuição na colaboração entre essas associações devido à centralização das decisões políticas, atenuando as iniciativas cívicas.
Entretanto, apesar dessa evolução e da crescente autonomia associativa, a década de 1990 viu o surgimento de um novo associativismo no País Basco. Etxeberria e Mendia (2013) veem isso como resposta a demandas sociais para a retomada do protagonismo, percebendo o
Os CSCs emergem como uma das expressões mais palpáveis deste renovado ímpeto associativo, visando fortalecer a sociedade na gestão de problemas específicos na CAPB. A visibilidade dessas entidades se intensificou, primordialmente, no ocaso do século XX. No entanto, antes de nos debruçarmos sobre a dinâmica operacional destas associações, é imperativo que se faça uma contextualização, ainda que sucinta, acerca da evolução da cultura canábica na região, o advento dos CSCs e os entraves jurídico-políticos com os quais estas organizações se deparam desde sua concepção, sobretudo nos últimos tempos.
Na CAPB, assim como em diversas regiões ocidentais e ocidentalizadas, presencia-se uma expansão notória da cultura canábica, conforme observado por Matthews (2002). Tal movimento é perceptível pelo incremento no autocultivo, uma amplificada representação literária e digital acerca do assunto, a emergência de comércios voltados para a cannabis e a realização de feiras e eventos com perspectivas tanto científicas quanto mercadológicas. Ademais, várias cidades da CAPB e outras comunidades autônomas espanholas têm sido palco da proliferação de associações canábicas nas últimas décadas, refletindo uma transformação sociocultural e política profunda na relação entre os seres humanos e essa planta.
A origem do movimento canábico espanhol encontra-se na contracultura dos anos 1960 e 1970, conforme ilustrado por David Martínez Oró (2015). No entanto, foi apenas após a morte de Franco, na década de 1970, que as vozes clamando pela legalização ganharam força. Segundo Usó (1996), embora essa jornada tenha sido inicialmente alimentada por políticos de esquerda e meios de comunicação como a revista Ajoblanco, observaram-se oscilações na sua postura e reconhecimento perante a sociedade.
Na década de 1980, o entusiasmo pelo movimento pró-legalização da maconha sofreu um revés, em meio a uma crescente concepção das drogas como um problema social e à instituição de políticas antidrogas. Este era um período marcado por uma postura majoritariamente abstencionista e discursos proibicionistas, conforme discorre Romaní (2005). Já na década de 1990, a despeito de sua visibilidade restrita, notou-se um aumento de profissionais, acadêmicos e ativistas, muitos vinculados às políticas de RD, que desafiavam a vertente proibicionista. O cerne da discussão residia na concepção de que as políticas relativas à maconha negligenciavam os direitos dos usuários e, simultaneamente, desafiavam o proibicionismo enquanto estratégia governamental, alegando que seus efeitos colaterais eram mais prejudiciais do que os resultantes do próprio consumo, tanto para os consumidores quanto para a sociedade.
Concomitantemente, a cultura de consumo de maconha na Espanha se fortaleceu, incentivando campanhas pela sua legalização, gerando negócios ligados à planta e evidenciando um expressivo crescimento no autocultivo, bem como a rápida propagação de associações canábicas em várias comunidades autônomas da Espanha (Berastegi; Mancebo, 2002).
Em 1993, em Barcelona, a Asociación Ramón Santos de Estudios sobre el Cannabis (ARSEC) inaugurou uma inovadora plantação coletiva, delineando um marco primordial para os CSCs. De acordo com Martín Barriuso Alonso (2011), ao questionar as autoridades antidrogas acerca da legalidade deste cultivo coletivo destinado ao autoabastecimento de seus membros, a ARSEC recebeu a resposta de que, em princípio, não configurava delito. Contudo, a plantação foi posteriormente confiscada e seus responsáveis sentenciados, sob o argumento de que tal prática coletiva constituía uma ameaça social. Alonso (2011) sublinha que, a despeito dos reveses jurídicos, este episódio estabeleceu um importante precedente, permitindo a outras associações reivindicarem o direito ao cultivo em conjunto.
Segundo Madera (2017), no início dos anos 90, na CAPB, a aquisição de haxixe, uma forma de extração da cannabis, era mais comum que a da flor da maconha, embora seu preço fosse elevado e a qualidade inferior. A falta de acesso a sementes de cannabis e a ausência de growshops limitavam o autocultivo. Isso levou um grupo de jovens bascos a viajar ao Marrocos em busca de haxixe superior e à Holanda para adquirir sementes e equipamentos nos coffeeshops. Estas viagens propiciaram o desenvolvimento de uma cultura de autocultivo local, favorecendo a obtenção de um produto melhor e evitando o mercado ilícito. Tais mudanças sociais contribuíram para a emergência de uma cultura canábica mais visível na região da CAPB.
Com o fortalecimento da cultura canábica e embasada pelo marco legal estabelecido pela ARSEC, a associação Kalamudia, situada em Bilbao, na CAPB, organizou quatro plantações coletivas entre 1997 e 2000. No ano de 1997, inaugurou o pioneiro cultivo envolvendo 200 usuários. Embora o procurador-chefe, Jesus Cardeal, tenha sinalizado potenciais irregularidades, a plantação se desenvolveu de maneira pacífica e reivindicatória, culminando na distribuição das 600 plantas colhidas aos associados. Tal iniciativa gerou vasta repercussão na Espanha. Apesar de, num primeiro momento, a justiça ter impedido a colheita, subsequentemente o tribunal se posicionou favorável à associação, autorizando a distribuição. Em 1999, a Kalamudia deu continuidade a essa iniciativa com outra plantação que, assim como as que se seguiram a ela, não foi alvo de interferências judiciais.
Em um intervalo de quatro anos, o clube Kalamudia contabilizou um corpo associativo de mais de 2 mil membros, atestando sua envergadura política. Iker Val (2017) enfatiza que as plantações eram notificadas às autoridades e recebiam vasta cobertura da mídia espanhola, visando total transparência. Contudo, o acordo inicial entre os integrantes era de natureza singela, pautado meramente no estatuto de membro e na apresentação de um documento de identificação.
Uma determinação jurídica foi determinante para o êxito das plantações: o juiz Grande-Marlaska, posteriormente integrante do Conselho Geral do Poder Judiciário e atual ministro do Interior, entendeu que o cultivo coletivo proposto pela associação não tinha gravidade penal e, portanto, não deveria ser objeto de sanções. Essa deliberação redefiniu o entendimento sobre as associações canábicas tanto na CAPB quanto em toda a Espanha. Adicionalmente, a abordagem empregada pela associação Kalamudia estabeleceu as bases para os futuros CSCs.
Os CSCs surgiram como uma alternativa segura para os consumidores de maconha, minimizando os danos associados aos mercados clandestinos. Estas associações canábicas não somente materializaram um paradigma de autogestão, mas também representaram uma resposta política diante da proibição vigente. Elas transcenderam a mera desobediência civil em relação à maconha, evoluindo para uma auto-organização socioinstitucional e, consequentemente, contribuindo para atenuar o comércio ilícito nas vias urbanas da CAPB, graças à proteção ofertada aos associados e ao caráter altruísta das entidades (Val, 2017). Em 2014, na CAPB, existiam mais de 90 destas associações, evidenciando um esforço coletivo para sua uniformização, com ativistas e experts elaborando padrões e diretrizes homogêneas para os CSCs (Val, 2018).
No início, trabalhamos arduamente para estabelecer um framework de atuação consensual, mantendo elevados padrões nas normativas e estatutos internos. Consequentemente, compartilhamos instrumentos jurídicos, formulados por advogados solidários à causa, para estruturar a prática do autocultivo. Os grupos eram compactos e os critérios de adesão rigorosos, se comparados a outros agrupamentos, como as sociedades gastronômicas. Tais entidades atuavam de forma coordenada, promovendo encontros periódicos para intercâmbio de vivências e saberes
(Val, 2017, p. 162).Dentro do movimento de consolidação dos CSCs, destaca-se a iniciativa realizada por membros do Instituto Vasco de Criminología (IVAC-KREI) no Instituto Internacional de Sociología Jurídica de Oñati (IISJO), que, entre 2003 e 2004, orquestrou seminários envolvendo especialistas e líderes de associações, focando na auto-organização destes clubes.
Em 2008, em Murgía, sob patrocínio do Governo Basco e coordenação da European Coalition for Just and Effective Drug Policies (ENCOD), realizou-se o seminário “Drogas y Diplomacia”, culminando na obra Usos de drogas y participación democrática (ENCOD, 2009). A publicação sublinhava a necessidade de interlocução entre associações canábicas e esfera governamental, a garantia de liberdades políticas para o operar seguro destas associações e a advocacia por um consumo lúcido, embasado em estratégias de RD por parte dos CSCs (Val, 2017).
Em 2010, em Murgía, a Federación de Asociaciones Cannábicas de España (FAC) convocou uma reunião com mais de 30 CSCs para debater o panorama político, social e institucional dessas entidades e refletir sobre sua gestão autônoma. O evento também visava exaltar as vantagens desse sistema e alertar acerca de condutas potencialmente restritivas por parte das autoridades. Como desdobramento, foi concebida a primeira edição do “Guía práctica y legal para la constitución del Club Social de Cannabis”, aspirando guiar e harmonizar as condutas exemplares entre os clubes.
Reagindo à nova conjuntura, os membros dos CSCs na CAPB almejaram uma presença mais ativa em instâncias decisórias ligadas às políticas sobre drogas, como o Parlamento Basco. Em 2011, nasceu a Federación de Asociaciones de Usuarios de Cannabis de Euskadi (EUSFAC). A entidade defendeu a normatização das associações, representatividade, suporte jurídico, formulação de um Código de Boas Práticas, fomento a programas de prevenção e RD, ações culturais e educacionais, além da implementação de controles qualitativos para variedades de maconha. De forma sintética, a EUSFAC emergiu como um instrumento de colaboração interassociativa, refinando suas estruturas e robustecendo o modelo cooperativista (Val, 2017).
Em 2011, a EUSFAC se dirigiu à Comissão de Interior do Parlamento Basco, expondo as ambiguidades enfrentadas pelos CSCs. Em decorrência, a Defensoria de Justiça do Povo Basco, em parceria com o IVAC-KREI, convocou o encontro “Cannabis: usos, seguridad jurídica y políticas”. O propósito era discutir em âmbito local os desafios e estabelecer uma base jurídica sólida para todos os bascos, inclusive para os consumidores de drogas. No ano seguinte, destacados juristas, Díez Ripollés e Muñoz Sánchez (2012), ratificaram que as atuações das associações canábicas, sob determinadas premissas, estavam em consonância com a legislação penal e administrativa. Constataram que as medidas implementadas pelos clubes estavam em consonância com a proteção da saúde pública e a garantia da segurança dos cidadãos, ao argumentar que “a demanda por maconha é emancipada de seu controle pela oferta, prevenindo-se assim a difusão desenfreada da substância e atenuando os riscos e despesas associados ao seu consumo” (Berastegi, 2018b, p. 433).
Em 2013, a pedido da EUSFAC, o IVAC-KREI elaborou um parecer jurídico intitulado “Código de Buenas Prácticas para los Clubes Sociales de Cannabis” (Berastegi, 2018a). No ano subsequente, atendendo à solicitação da Fundación Renovatio, o mesmo instituto conduziu o estudo “Viabilidad legal de los CSC en la Comunidad Autónoma del País Vasco y Propuesta de Hoja de Ruta” (Berastegi, 2015). Os resultados foram apresentados no Parlamento Basco em 2015, propondo um caminho para a regulamentação das atividades dos CSCs. O relatório salientou:
Neste contexto de fracasso das políticas correntes sobre o consumo de maconha e outras substâncias, da imperativa demanda por políticas públicas voltadas à salvaguarda da saúde e dos direitos e liberdades inerentes a um Estado Social e Democrático de Direito, este Relatório Parlamentar sustenta que a regulamentação das atividades e cultivo dos CSCs visando ao consumo coletivo de seus associados, é factível no contexto basco, além servir para modernizar as políticas de drogas e assegurar que indivíduos adultos, sem diagnósticos de transtornos mentais, possam consumir em um ambiente juridicamente seguro, com direitos e deveres [claros]. Sob estas premissas, os CSCs, alinhados a uma filosofia de autorregulação / autogestão e dotados de um marco jurídico-administrativo próprio, poderão aderir aos princípios da redução de riscos e danos, tornando-se assim sujeitos corresponsáveis na proteção da saúde pública. Até que uma regulamentação com tais características seja efetivada, o Parlamento Basco insta os CSCs a instituírem mecanismos de autorregulação e boas práticas. [...] recomenda que as Administrações Públicas Bascas intensifiquem seus esforços para monitorar, coordenar e avaliar a aplicação das normativas dos CSCs
(Berastegi, 2015, p. 18 – tradução própria).Diversos documentos e subsídios produzidos por ativistas e especialistas buscaram trazer à tona soluções legais para as operações dos CSCs. Estes esforços foram determinantes para a inclusão de diretrizes relativas à regulamentação dos CSCs na “Ley de Adicciones y Drogodependencias” (Espanha, 2016). Essa legislação realçou a segurança jurídica das entidades, harmonizando-as com os princípios das políticas de RD e assegurando direitos e responsabilidades para os consumidores da substância.
A “Ley de Adicciones y Drogodependencias”, embora não detalhasse explicitamente a regulamentação dos CSCs, estabeleceu parâmetros expressivos quanto à forma de lidar com substâncias em ambientes democráticos. Ela reconheceu que nem toda interação com drogas é intrinsecamente prejudicial e ratificou o direito ao consumo individual consciente e responsável. Foi enfatizado que os integrantes das associações canábicas, sendo adultos, não deveriam sofrer discriminação pelo seu consumo ponderado. Além disso, a legislação robusteceu a voz dos consumidores nas políticas de drogas da CAPB, assegurando sua representação no Conselho Basco de Toxicodependência. Todavia, o artigo 83.1, que previa a regulamentação dos CSCs na CAPB sob determinadas diretrizes, enfrentou resistência do governo espanhol no Tribunal Constitucional, sob a alegação de ultrapassar as competências estatais em diversos âmbitos. Como consequência, o Tribunal, de forma cautelar, suspendeu o referido artigo (Berastegi, 2018b).
Os acontecimentos pós-2010 catalisaram modificações nas diretrizes de vários clubes canábicos. Estes começaram a inserir em seus estatutos provisões relativas ao cultivo coletivo e ao consumo colaborativo, embasando-se em decisões judiciais proferidas por cortes superiores. A evolução dos estatutos não se limitou apenas ao cultivo, mas expandiu-se para abranger funções administrativas, buscando promover maior transparência e alinhamento com preceitos democráticos e participativos (Val, 2018).
A despeito das evidências científicas indicarem os CSCs como ferramentas vitais na contenção do tráfico de maconha e na promoção da saúde pública e dos direitos humanos, desde 2011, observou-se um intenso movimento jurídico-midiático que ampliou estratégias repressivas contra tais clubes. Iker Val (2017) relata que o delegado do Governo para o Plano Nacional sobre Drogas orquestrou uma campanha midiática com a finalidade de criminalizar associações de consumidores de maconha na Espanha. Como reflexo, em 2013, a Procuradoria-Geral expediu a Instrução 02/2013, defendendo a criminalização de entidades engajadas no cultivo coletivo de maconha, chegando, em certas ocasiões, a categorizá-las como organizações criminosas. Isso proporcionou um estímulo
[...] para que as delegações territoriais dos promotores antidrogas lançassem um ataque sem precedentes contra essas entidades, fazendo tábula rasa de todas as associações. Em Euskadi, a consequência direta dessas ações resultou na intervenção em entidades consagradas, como a Associação Pannagh, cuja sede foi lacrada em novembro de 2011, ou a intervenção no Ganjazz Art Club em 2013. Estes episódios não se restringiram a estes clubes, chegando a ocasionar uma sobrecarga nos tribunais com mais de trinta CSCs enfrentando interdições e processos judiciais
(Val, 2017, p. 172).Em face dessas ações, o Ministério Público adotou posturas mais rígidas em relação aos membros dos CSCs processados, imputando-lhes acusações de contrabando e vínculos com organizações criminosas. Processos judiciais envolvendo associações como Ebers, Pannagh e Three Monkeys, que haviam obtido absolvição em primeira instância, foram alvo de recursos por parte dos promotores e subsequentemente conduzidos ao Supremo Tribunal.
De acordo com Berastegi (2018b), no período que se estende entre meados da década de 1990 até 2015, as decisões judiciais, em sua grande maioria, não categorizavam as atividades desenvolvidas pelas associações canábicas como ilícitas. Contudo, os três casos acima mencionados se destacaram por suas particularidades. Apesar dos Tribunais Provinciais terem exonerado membros dessas associações das acusações de crimes contra a saúde pública, apelações propostas pelo Ministério Público encaminharam os processos ao Supremo Tribunal. Este, por sua vez, proferiu condenações, percebendo riscos associados à disseminação da substância. No entanto, houve a ressalva de que a filiação aos CSCs não se assemelhava a uma associação criminosa, isentando-os desse específico crime (Muñoz Sánchez, 2015).
Em sequência a algumas deliberações do Supremo Tribunal, os condenados buscaram amparo no Tribunal Constitucional, invocando a vulneração de seus direitos fundamentais. Em dezembro de 2017, no emblemático Caso Ebers, o Tribunal Constitucional sustentou a decisão anterior, sentenciando um integrante a oito meses de reclusão e multa de € 5.000, enquanto os outros dois foram condenados a três meses de prisão.
Esta sequência de desdobramentos judiciais impactou substancialmente a atuação política dos CSCs e colocou em xeque a defesa da plena legalidade de seu modelo operacional. Frente a este cenário de fragilidade jurídica, os CSCs implementaram mudanças: diminuíram a quantidade de associados, passaram a cultivar em espaços fechados, como complexos industriais, e optaram por estabelecer-se em edificações sem qualquer identificação de que seja um clube, entre outros aspectos.
No intervalo de 2014 a 2017, foram promulgadas regulamentações para os CSCs nas regiões da Comunidade Foral Navarra (CFN), CAPB e Comunidade Autônoma da Catalunha (CAC). No entanto, somente o dispositivo legal da CAPB (2016) foi ratificado pelo Tribunal Constitucional. Tal entidade estipulou que a CAPB detém competência para normatizar os CSCs, desde que esteja em consonância com as diretrizes estabelecidas pelo Tribunal Supremo e pelo próprio Tribunal Constitucional.
Assim, embora a CAPB tenha – como reconhecido pelo Tribunal Constitucional – competências para legislar acerca da regulamentação dos CSC, essa regulamentação está sujeita às limitações impostas por este Tribunal às associações de pessoas consumidoras de maconha. No entanto, até o momento, mais de sete anos após a entrada em vigor da Lei 1/2016, “Ley de Adicciones y Drogodependencias” (Espanha, 2016), o regulamento para desenvolver as associações de pessoas consumidoras de maconha não foi implementado, gerando uma séria preocupação na maioria dos CSC da CAPV, principalmente devido à insegurança jurídica em que se encontram.
Recentemente, a Direção de Saúde Pública e Dependências do Governo Basco tem se dedicado à concepção de um regulamento direcionado aos CSCs. Prevê-se que essas entidades atuem conjuntamente com a gestão governamental em iniciativas de prevenção e RD. A expectativa é que, antes do fim de 2023, tal regulamentação seja sancionada.
Visando oferecer um panorama sobre o consumo de maconha na CAPB e sua interação com os CSCs, detalham-se aqui alguns indicativos estatísticos. Segundo o “Relatório Europeu sobre Drogas – Questões-Chave” (OEDT, 2020), na Espanha – nação à qual pertencem a CAPB e os CSCs em análise – a prevalência de consumo de maconha e seus derivados, ao menos uma vez na vida, atingiu 35,2% da população entre 15 e 64 anos. No contexto da CAPB, baseando-se no estudo “Experiencias de consumo y percepción social de la regulación del cannabis” (Martínez et al., 2017a), 57,2% dos indivíduos reportaram ter consumido maconha ou seus derivados em algum momento de suas vidas. Adicionalmente, 32% dos participantes do estudo afirmaram ter consumido a substância no último ano, e 24,8% no mês correspondente à pesquisa.
Quanto à periodicidade do consumo de maconha na CAPB no mês anterior à pesquisa, os dados são os seguintes: 43% dos usuários relataram consumo diário; 6,8% mencionaram de 5 a 6 vezes semanalmente; 9,9% de 3 a 4 vezes por semana; 4,6% de 1 a 2 vezes semanalmente; 9,9% apenas nos finais de semana; 6,1% de 2 a 3 vezes no mês; 7,2% somente uma vez no mês; e 12,5% não registraram consumo no mês precedente ao estudo. A pesquisa ainda apontou uma tendência majoritária no consumo de maconha associado ao tabaco.
O quadro jurídico que descriminaliza o uso de drogas reflete as transformações na percepção social acerca da maconha na CAPB. Em um levantamento focado na percepção social sobre drogas na sociedade espanhola (San Julián et al., 2014), observou-se uma transição na visão da sociedade: o consumo de maconha e seus derivados está, progressivamente, deixando de ser considerado um desvio ou problema social. Ao invés disso, é cada vez mais vinculado a diferentes contextos de uso, seja como opção terapêutica ou busca por lazer. Martínez, Astondoa e Berastegi (2017a) evidenciam que tanto consumidores quanto não consumidores identificam riscos e benefícios no uso da substância. No entanto, essa consciência é mais aguda entre os que a consomem. Segundo os autores, os resultados aludem ao surgimento de uma compreensão mais alinhada à realidade acerca do consumo de maconha, afastando-se de estigmas e concepções distorcidas.
Conforme identificado no relatório “Euskadi y Drogas” (SIIS, 2013), no contexto basco, existe a percepção de que os riscos associados ao consumo de maconha e seus derivados se assemelham, em grande medida, aos do tabaco, sobretudo em função da combustão resultante do ato de fumar. Em estudos subsequentes na CAPB, foi destacado que 70,8% dos entrevistados reconhecem que o proibicionismo não é eficaz para lidar com as questões decorrentes do consumo; 52,2% acreditam que os CSCs poderiam influenciar positivamente na regulamentação da planta. Adicionalmente, 62,7% do total dos respondentes se manifestaram a favor da regulamentação dos CSCs (Martínez et al., 2017a).
Dentro deste panorama de entendimento social sobre a maconha na CAPB e a avaliação positiva acerca dos clubes, é pertinente delinear a natureza dessas instituições.
Os CSCs representam associações de consumidores de maconha legalmente constituídas, incentivando o cultivo coletivo para suprir a demanda interna, distanciando-se do mercado ilícito. Seus integrantes são adultos, seja consumidores ou indivíduos com condições de saúde que possam se beneficiar da substância. A despeito da ausência de uma legislação específica no território espanhol, os clubes são norteados por regimentos internos e determinadas normativas regionais e municipais, orientadas por uma política canábica pautada na filosofia de RD e direitos humanos.
Em sua estrutura, os CSCs apresentam diversidade, abrangendo desde pequenos agrupamentos até grandes entidades com infraestrutura robusta e múltiplos membros. Val (2017, p. 151-152) os categoriza em
Modelo profissional: Coletivos de grande escala que disponibilizam variados serviços e atividades, contando com profissionais específicos para cultivo e gestão.
Cultivo administrado coletivamente: Associações de porte menor, onde a maioria dos membros se engaja ativamente no cultivo, compartilhando responsabilidades financeiras e resultados da colheita.
Compras conjuntas: Clubes alinhados ao modelo dos coffeeshops holandeses, ocasionalmente obtendo maconha através de produtores externos.
Autocultivo individual: Indivíduos que se dedicam ao cultivo para consumo pessoal.
Em linha com os propósitos estatutários e as normativas de boas práticas estabelecidas ao longo da evolução dos CSCs na CAPB, as associações implementaram rígidos protocolos de controle. Esses mecanismos englobam critérios de admissão específicos, uma distinção clara entre usuários terapêuticos e recreativos, além de enfatizar a participação ativa dos membros nas decisões e operações internas do clube. O informe 2015/16 do Observatorio de Cannabis (Martínez et al., 2017b) ressalta que estas associações contam com um Conselho de Administração e realizam assembleias periódicas, reforçando a participação e a transparência.
Esse mesmo informe propõe estratégias adicionais para fortalecer a transparência, como o incentivo a pagamentos eletrônicos, a observância das regras salariais, inspeções aleatórias e uma meticulosa manutenção de documentação. Os CSCs zelam pela manutenção de registros atualizados, englobando livros de atas, contabilidade, listagem de membros, consumo, previsões de colheitas e resultados associados ao cultivo.
Diante da ausência de uma regulamentação explícita, os CSCs se mobilizaram na implementação de mecanismos de autorregulação. Estes incluem assembleias frequentes, auditorias, protocolos e políticas de prevenção. As estratégias de RD se destacam como essenciais para os CSCs, enfatizando segurança, qualidade e responsabilidade, desviando-se de mercados clandestinos e atuando de maneira benéfica para a sociedade. Esse impacto social é evidenciado em aspectos como a arrecadação de impostos, restrição de acesso a menores de idade e garantia da qualidade dos produtos. A metodologia dos CSCs propõe um novo paradigma político ancorado na responsabilidade coletiva, em oposição à tradicional proibição.
Estas estratégias de RD são vitais para a concepção e operação dos CSCs. Além de proteger os usuários da necessidade de se vincularem a redes ilícitas, eles se desdobram em benefícios socioeconômicos, tais como contribuições fiscais, redução de despesas policiais e uma abordagem educativa voltada à juventude sobre drogas. Garantem também a excelência em todo o processo produtivo, provendo informações detalhadas sobre a composição e os efeitos das substâncias. Estas associações também facilitam a identificação e prevenção de consumos problemáticos entre seus membros, consolidando um setor econômico autogerido, democrático e sem fins lucrativos. Assim, oferecem uma perspectiva política renovada, fundamentada não na proibição, mas na responsabilidade coletiva, cujo mérito tem sido corroborado tanto em análises locais quanto internacionais.
Em sua análise crítico-científica sobre o consumo de drogas em ambientes proibicionistas, Martínez Oró e Berastegi (2015) afirmam que os indivíduos possuem o direito de escolher o que desejam consumir. Caso optem pelo consumo, é imperativo que estejam cientes dos riscos associados e, consequentemente, busquem mitigá-los. Observa-se nos CSCs um robusto esforço coletivo em direção ao fomento de uma consciência acerca do consumo responsável. O propósito é substituir o viés proibicionista por uma ênfase na autonomia e responsabilidade individual diante do uso de drogas (Berastegi; Mancebo, 2002).
É crucial ressaltar que, especialmente no que concerne à maconha, há uma complexidade intrínseca que precisa ser evidenciada a fim de se evitar armadilhas de cunho moral proibicionista. Assim, para uma compreensão holística sobre o fenômeno do uso de drogas, é imperativo abordá-lo sob a ótica de sua multifacetada natureza, considerando o usuário, a substância e o contexto ambiental do consumo.
As formas de consumo são diversas e nem todos os consumos se associam ao mesmo nível de risco ou danos. O nível de risco que se assume ao consumir uma substância depende de uma diversidade de fatores: as doses, a potência/toxicidade, a quantidade de pureza/adulteração das substâncias, a frequência, a dificuldade de acesso, a preparação do consumo (higiene ou não), a via de administração, o policonsumo, os cuidados posteriores, o estado físico e psicológico, o contexto de consumo, etc. A esses fatores cabe somar aspectos estruturais como a pobreza, o racismo, o sexismo, etc., que influenciam na vulnerabilidade das pessoas e dos grupos, e nas circunstâncias em que se dá este consumo. Quando se fala de danos se faz referência às consequências negativas que se produzem no nível físico, psicológico e social. Desde a perspectiva proibicionista se tem defendido o “não consumo” e se tem realizado um pesado investimento de décadas em busca de reduzir a oferta e a demanda. Contudo, esta tentativa não tem conseguido reduzir o consumo e nem os danos associados a ele, o que evidencia a importância de pôr em prática uma perspectiva que fomente o consumo responsável e a redução de danos e riscos
(Martínez Oró; Goméz, 2013, p. 47).Adotar medidas para minimizar riscos e prevenir danos é uma prática cotidianamente incorporada por muitos, tal como usar capacete ao andar de moto ou afivelar o cinto de segurança antes de dirigir (Berastegi, 2012). Reconhecendo a expressiva parcela da população que opta pelo consumo, conforme os dados deste artigo indicam, torna-se fundamental prover recursos e informações que capacitem os usuários a adotar um consumo responsável de maconha.
O consumo informado envolve prevenção e estratégias de RD, apresentando informações concretas e embasadas cientificamente sobre a substância e o comportamento associado ao seu uso. O objetivo é fortalecer a consciência dos usuários acerca de suas práticas, capacitando-os a gerenciar seu consumo, a fim de que possam zelar pela própria saúde. Entende-se que uma relação saudável com drogas é estabelecida quando o usuário possui pleno discernimento sobre a substância e seus potenciais efeitos. Dessa forma, defende-se que os CSCs sejam locais propícios para tratar e gerenciar tais questões. Afinal, os membros destas associações possuem acesso a informações e orientações especializadas, fundamentais para fomentar um consumo consciente e responsável de maconha.
Os CSCs impulsionam o uso responsável de maconha por meio de uma variedade de serviços e atividades, como enfatizam Martínez, Astondoa e Berastegi (2017b):
Orientação Terapêutica: Oferece informações relativas ao uso terapêutico da maconha, aconselhamento individualizado e materiais didáticos.
Pontos de Aquisição: Espaços nos CSCs onde os associados podem adquirir até 2 gramas de maconha por dia, promovendo um autocultivo controlado e monitorando o consumo.
Assistência Jurídica: Fornecem orientação especializada acerca da legislação da maconha, auxiliando os membros a compreenderem seus direitos e possíveis implicações legais.
Serviço de Informações: Uma biblioteca destinada a conscientizar os usuários acerca dos riscos do consumo de maconha, por meio de materiais escritos.
Workshop para Novos Membros: Introduz novos membros à filosofia, organização e operação dos CSCs.
Oficina de Degustação de Maconha: Educa os usuários a respeito dos diversos tipos de maconha disponíveis.
Workshop sobre Consumo Responsável: Incentiva a conscientização sobre o uso seguro da maconha, compartilhando experiências e estimulando a reflexão sobre os padrões de consumo.
Uma avaliação sobre o funcionamento dos CSCs e a informação acumulada pelos usuários membros dessas associações apresentada pela Fundación Renovatio (Martínez et al., 2017b), evidencia que: 1) os membros dessas entidades possuem um conhecimento mais vasto sobre a maconha do que a população em geral; 2) percebeu-se uma compreensão mais aprofundada acerca dos direitos e deveres dos usuários de drogas; 3) notou-se um aumento do acervo de informações sobre a maconha entre os usuários, portanto, eles adquiriram uma maior capacidade de reflexão sobre os riscos associados ao seu uso e os potenciais danos; e 4) constatou-se a adoção de uma série de estratégias comportamentais entre os usuários no sentido de reduzir os riscos e danos associados ao consumo da substância.
Conforme postulado por San Julián et al. (2008), pesquisas realizadas tanto na CAPB quanto em outras regiões espanholas evidenciam que, nas últimas décadas, uma perspectiva de normalização em relação ao consumo da planta vem se consolidando na região. Romaní (2005) sinaliza que tal perspectiva precede até mesmo os meios de comunicação e a política de drogas vigente. O conceito de normalização se refere a um processo que abrange o debate lúcido sobre o tema e práticas sociais sustentadas por comprovações científicas. Estas, por sua vez, contribuem para a revisão da percepção social acerca de tais substâncias e dos consumidores, bem como para a reconfiguração da legislação vigente, particularmente no caso da maconha e seus derivados. A intenção é, conforme Berastegi (2012, p. 374), “divergir dos critérios preestabelecidos, permitindo que tais substâncias e seus consumidores se distanciem da marginalidade, favorecendo uma maior aceitação e respeito social por escolhas de vida alternativas”.
O debate conduzido até aqui evidencia que a metamorfose na concepção acerca da maconha na CAPB tem como esteio o fortalecimento e institucionalização dos CSCs, pilares da auto-organização social e do enfrentamento ao proibicionismo. Estas organizações assumem um papel primordial no desenvolvimento de políticas e ações de RD, enquanto incentivam o consumo consciente entre seus afiliados.
O horizonte do ativismo canábico basco pós-pandemia converge para a preservação das conquistas e para o alargamento de sua influência em nível local, com olhos na reformulação legislativa no cenário nacional espanhol. Nesse contexto, ganham destaque diversas iniciativas, entre elas a do Grupo de Estudio de Políticas sobre el Cannabis (GEPCA), que propôs uma redefinição regulatória para a maconha na Espanha, englobando desde a legitimação das associações canábicas até a regulamentação integral da trajetória da planta, do plantio ao consumidor final (GEPCA, 2017a, 2017b). Conforme elucida Iker Val (2017), a revisão dos últimos anos, aliada ao reconhecimento dos direitos humanos, ressalta a tangibilidade de transformações, assegurando os direitos dos usuários de maconha em uma dimensão democrática.
Os fatos mencionados anteriormente – a Instrução 2/2013 da Procuradoria-Geral do Estado, as decisões do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal em casos envolvendo membros do CSCs – não estão relacionados apenas a essas pessoas, mas também às tentativas de regular os CSCs em várias Comunidades Autônomas (Navarra, Euskadi e Catalunya). Os efeitos colaterais da pandemia da COVID-19, marcados por confinamentos prolongados, aceleraram transformações no processo de normalização da maconha. Hoje, observa-se uma intensificação das ações de repressão por parte da polícia, Ministério Público e Judiciário contra os associados dos CSCs, culminando no fechamento ou inatividade de alguns clubes.
Posteriormente à pandemia, a cannabis se mantém relevante na esfera social e, tangencialmente, na política. A partir do verão de 2021, propostas de regulamentação da maconha emergiram no Congresso dos Deputados, mas sem aprovação. Todavia, em junho de 2022, um relatório favorável à regulamentação da cannabis medicinal foi divulgado pela subcomissão temática do Congresso. Com a subsequente aprovação da Comissão Parlamentar de Saúde, espera-se que a Agencia Española de Medicamentos y Productos Sanitarios (AEMPS) considere as recomendações do relatório, possibilitando que produtos medicinais e terapêuticos à base de cannabis sejam vendidos não somente em farmácias vinculadas a hospitais (Mancebo; Berastegi, 2022).
O estudo desenvolvido acerca dos CSCs bascos revela uma abordagem perspicaz sobre a gestão e regulamentação do consumo de maconha, demonstrando o empenho de uma sociedade em harmonizar os direitos individuais com a saúde pública e a segurança. Vale sublinhar que, mesmo diante das marcadas diferenças sociopolíticas e culturais entre o País Basco e o Brasil, as estratégias bascas para o consumo informado e a minimização de danos se apresentam como diretrizes adaptáveis ao cenário brasileiro.
Nossa pesquisa evidencia que os CSCs advogam um consumo de maconha pautado na responsabilidade, instituindo atividades e serviços que asseguram a plena compreensão dos riscos pelos usuários. Dada a intrincada e plural tessitura social brasileira, uma metodologia inspirada neste paradigma basco poderia se destacar como ferramenta valiosa no esclarecimento dos consumidores, incentivando um uso prudente e, simultaneamente, mitigando os perigos relacionados ao consumo não regularizado.
A trajetória dos CSCs bascos e espanhóis, mesmo diante dos obstáculos políticos que enfrentam na atualidade, ressalta a importância de abordar o consumo de maconha não só sob a égide da saúde pública, mas também enquanto extensão dos direitos humanos e da cidadania. Sob essa perspectiva, o Brasil, ancorado em sua matriz democrática – ainda que frente a desafios diversos –, se vê diante do imperativo de assegurar que as políticas voltadas à cannabis estejam lastreadas no respeito aos direitos individuais, com vistas à coletividade e ao bem-estar geral.
Com base nesse entendimento, aspiramos a que este artigo sirva de alicerce para a formulação de futuras diretrizes relacionadas à cannabis no Brasil. Os aprendizados e percepções aqui compartilhados têm o potencial de enriquecer o diálogo nacional, sugerindo abordagens renovadas e centradas no controle da planta, respaldadas pela cidadania, autonomia pessoal e direitos humanos. Em síntese, o exame dos CSCs na CAPB proporciona um arcabouço teórico que pode aprimorar e catalisar a discussão brasileira em torno da regulamentação da maconha, esboçando um horizonte voltado a práticas mais humanizadas, justas e pragmáticas.
Marco Vinicius de Castro, https://orcid.org/0000-0002-9916-7470