ARTIGOS
Determinantes Sociais da Saúde: Apontamentos para uma Abordagem Crítica
Social Determinants of Health: Notes for a Critical Approach
Determinantes Sociais da Saúde: Apontamentos para uma Abordagem Crítica
Mediações - Revista de Ciências Sociais, vol. 28, núm. 3, e47718, 2023
Universidade Estadual de Londrina
Recepção: 14 Março 2023
Revised document received: 19 Julho 2023
Aprovação: 03 Outubro 2023
Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar apontamentos que colaborem com o desenvolvimento de uma abordagem crítica e com a proposição de uma agenda que debata a necessidade de uma revisão conceitual da concepção de Determinantes Sociais da Saúde (DSS) a partir das ciências sociais. Os DSS, propostos pela Organização Mundial da Saúde, são fundamentais para a identificação de iniquidades em saúde e constituem orientação central para a produção de políticas de saúde justas. Poder, equidade, desigualdades e diferenças são seus conceitos basilares, categorias que precisam ser repensadas perante as transformações sociais contemporâneas, também como forma de contribuir com a reflexão sobre o processo saúde-doença e suas relações com o social. Para tal, propõe-se como ponto de partida a articulação de três perspectivas: a teoria crítica da justiça de Rainer Forst; as noções de articulação e identidade, propostas por Sergio Costa (2019); e a assunção da interseccionalidade como método e postulado político, ou, como colocam Patricia H. Collins e Sirma Bilge (2021), como uma forma de inteligência do mundo que busca explicar ascomplexidades do mundo, as pessoas e as experiências humanas.
Palavras-chave: Determinantes sociais da saúde, teorias da justiça, interseccionalidade, desigualdades e diferença.
Abstract: The objective of this article is to present notes that help to develop a critical approach and the proposition of an agenda that discusses the need for a conceptual review of the conception of Social Determinants of Health (SDH) from the social sciences. The SDH, proposed by the World Health Organization, are fundamental to identify health inequities and constitute a central orientation to produce fair health policies. Power, equity, inequalities, and differences are its basic concepts, and these categories must be rethought in the face of contemporary social transformations, also as a way of contributing to the reflection on the health-disease process and its relations with the social. To this end, we propose as a starting point the articulation of three perspectives: Rainer Forst’s critical theory of justice; the notion of articulation and identity, as proposed by Sergio Costa (2019); and the assumption of intersectionality as a method and political postulate, or, as Patricia Collins and Sirma Bilge (2021) put it, as a form of intelligence of the world that seeks to explain the complexities of the world as well as people and human experiences.
Keywords: Social determinants of health, theories of justice, intersectionality, inequalities and difference.
Introdução
Este artigo objetiva colaborar com o debate sobre os limites analíticos e políticos da abordagem dos determinantes sociais da saúde (DSS)2 e com a proposição de uma agenda que reflita sobre a necessidade de uma revisão conceitual desses determinantes a partir do campo das ciências sociais. Adota-se como ponto de partida para essa reflexão uma abordagem que considere as noções de desigualdade, identidade e diferenças em diálogo com as teorias críticas da justiça e com a interseccionalidade, tomada como método, enquanto ferramenta analítica e política para pensarmos o processo saúde-doença3. Entende-se que o debate acerca dos limites e possibilidades de se propor políticas de saúde justas a partir da abordagem dos DSS, tanto nos limites da academia como na práxis política, é tarefa crítica, desafiadora, que deve estar atenta às transformações sociais caracterizadoras do século XXI e corresponder à complexidade do tema.
Os DSS, tal como propostos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), constituem uma abordagem cujo cerne são as iniquidades em saúde. Seus pressupostos se fundam no reconhecimento da importância política da justiça social e da saúde, bem como na percepção de que todo indivíduo deve ser tratado com igual dignidade. Seu enquadramento conceitual se baseia em um entendimento do processo saúde-doença que visa conhecer o que a Comissão dos Determinantes Sociais da Saúde denominou de as “causas das causas”, ou seja, busca identificar as razões das condições de saúde de uma população em fatores que estão para além das causas imediatas e biológicas das doenças. Considera, portanto, “as estruturas globais e nacionais fundamentais da hierarquia social e das condições determinadas socialmente em que as pessoas crescem, vivem, trabalham e envelhecem” (WHO, 2008, p. 44).
Assim, as diferentes condições de saúde observadas entre diferentes segmentos populacionais são determinadas por fatores “sociais” inter-relacionados: nutrição e hábitos cotidianos; diferenças de gênero e étnico-raciais; ocupação, trabalho e renda; acesso desigual a cuidados e tecnologias de saúde e a recursos culturais e educacionais; ambientes insalubres e meios sociais precários e violentos. Mas também por determinantes de natureza macrossocial, como a política de saúde, a política macroeconômica, a organização do Estado etc., que formariam o contexto socioeconômico e político. Isso implica que as intervenções em saúde sejam orientadas por duas perspectivas: uma que abrange as circunstâncias da vida cotidiana e outra macroestrutural, dada pelo grau de desigualdade de uma determinada sociedade; por preconceitos, regras e valores; pelas políticas econômicas e sociais em nível global e nacional, e processos de gestão e administração pública em nível global, nacional e local (WHO, 2008, p. 44).
Há uma ampla literatura sobre a definição de DSS e seus limites práticos e políticos, no campo da saúde pública, coletiva e global. Este artigo tem como propósito, à luz do debate contemporâneo da teoria crítica nas ciências sociais, apresentar perspectivas analíticas e conceitos que possam colaborar com o debate crítico acerca dos limites da abordagem dos DSS e com o estabelecimento de uma agenda que reflita a necessidade de sua revisão conceitual preocupada com a prática política.
Pensar analítica e politicamente os determinantes sociais da saúde implica dialogar com e considerar a equidade e, portanto, a justiça social em uma dupla chave: (1) enquanto conceito articulador da cognição e identificação dos diferentes determinantes sociais da saúde, (2) como finalidade política prática, orientada pela produção e implementação de políticas públicas normativamente fundamentadas em uma concepção de saúde justa.
A justiça é conceito fundamental. Entretanto, é comum vermos menções à justiça social como finalidade política enquanto se evita o enfrentamento de seu debate teórico normativo. Esse debate é fundamental para a compreensão das concepções de justiça em disputa em temas controversos do nosso cotidiano, entre eles os sentidos e os limites das políticas públicas.
A reflexão sobre os DSS nos desafia a identificar as diversas injustiças sociais, ao mesmo tempo que promove nosso encontro com uma velha conhecida face da justiça: a da distribuição e redistribuição de renda, bens, riqueza e recursos sociais. O debate recente das ciências sociais acerca da justiça social contemplou exaustivamente o dilema entre a face da (re)distribuição e a do reconhecimento. É justamente esse dilema o fio condutor do conhecido debate entre Nancy Fraser e Axel Honneth (2003) e também presente na maneira como entendemos as reivindicações dos movimentos sociais, a proposição e defesa de direitos e a produção das políticas públicas4.
Esta é a face da justiça que também nos leva a questionar quem tem direito ao quê. Aqui, talvez inadvertidamente, como bem alerta Rainer Forst, corremos o risco de perceber as pessoas mais enquanto receptores de direitos, bens e recursos do que enquanto agentes demandantes (cidadãos e ativistas) e, quiçá, produtores da estrutura garantidora dessa distribuição. Tendemos também a pensar as injustiças a partir de uma perspectiva mais estrutural e determinada, caminho que permite a identificação de fatores e relações que podem (com limitações, claro) ser globalmente generalizadas, pois oriundas do capitalismo e da modernidade.
No que se refere ao processo saúde-doença, a perspectiva estrutural e o esforço de identificar desigualdades e iniquidades comuns aos países do Sul e do Norte global são, inclusive, exercício e artifício necessário para que possamos pensar orientações e normativas de políticas públicas em termos de saúde global. Essas orientações e normativas precisam ser localmente traduzidas e ajustadas aos contextos sociais, político-econômicos e, sobretudo, às relações intersubjetivas constitutivas de cada sociedade.
Mas é justamente no exercício de generalização e produção de indicadores e formas de medir iniquidades em saúde, fundamental para a produção das políticas públicas, que se concentra uma das principais críticas elaboradas pelo campo da saúde coletiva, mas também vindas da saúde pública e global, à noção de determinantes sociais da saúde. Os DSS foram instrumentalizados como uma perspectiva de aplicação prática; entretanto, isso fez com que se perdessem dimensões importantes do processo, como o entendimento dos caminhos e mecanismos através dos quais os DSS levam à produção de iniquidades em saúde e a compreensão da dimensão política do processo saúde-doença.
A instrumentalização do conceito e a perda dessas dimensões – ao mesmo tempo que são inerentes à prática da produção das políticas públicas – se explicam, em grande medida, pelo afastamento das ciências sociais do campo de debate sobre equidade e justiça em saúde5.
Autores como Breilh (2021) e Almeida-Filho (2021), vinculados à perspectiva marxista da determinação social da saúde, também tecem críticas aos DSS apontando para essa instrumentalização e esvaziamento do caráter crítico e emancipatório que inicialmente marcou o debate sobre o processo saúde-doença e o debate da saúde coletiva e da medicina social latino-americana sobre a determinação social da saúde (Mario, 2023). A noção de determinação social da saúde, de matriz althusseriana, compreende que a saúde é determinada (Breilh, 2021) ou sobredeterminada (Almeida-Filho, 2021) pelo social a partir de uma perspectiva estrutural e como resultante do processo de acumulação econômica e exclusão social capitalista.
Considerando tais críticas e, também, buscando alternativas para além da discussão entre “determinantes” versus “determinação” estabelecida no campo da saúde coletiva (Minayo, 2021), retoma-se aqui o debate sobre justiça social e desigualdades / diferenças a partir da teoria crítica e da adoção de uma perspectiva pós-colonial, cuidando para evitar, enquanto esforço analítico, uma leitura fundamentalmente estruturalista e essencialista.
Essa postura analítica é assumida enquanto possibilidade/alternativa para buscar respostas frente às transformações que têm marcado o mundo contemporâneo, cujos resultados impactam diretamente o processo saúde-doença e as políticas de saúde. São muitos os fatores que marcam essa transformação: a globalização; a fragmentação das identidades coletivas; a liquidez das relações e laços sociais; a velocidade e a circulação de pessoas e informações; as novas formas de relações de trabalho e a insegurança social que delas advém, obrigando-nos a repensar a proteção social; a crise da democracia; o neoliberalismo; o presenteísmo como forma de estar no mundo e sua impossibilidade de imaginar o futuro; o risco, tal como formulado por Ulrich Beck (2010).
Como, a partir desse cenário, pensar o processo saúde-doença e suas relações com o social?
Neste artigo, proponho como ponto de partida a articulação de três perspectivas teóricas críticas: a teoria crítica da justiça como justificação de Rainer Forst; as noções de articulação e identidade, tal como trabalhadas por Sergio Costa a partir de sua leitura de Homi Bhabha (1994) e Stuart Hall (1996); e a assunção da interseccionalidade como método e postulado político, ou, como colocam Patricia Collins e Sirma Bilge (2021), como uma forma de inteligência do mundo que busca explicar complexidades do mundo, as pessoas e as experiências humanas. A proposta se perfaz adotando uma postura epistemológica relacional e dialógica6.
A interseccionalidade está normalmente associada à análise das relações de poder a partir da intersecção de classe, raça e gênero. Proponho utilizá-la como um método que expande a análise das relações de poder para além dessas categorias, incluindo as interações entre as várias categorias de poder. Essas categorias também precisam ser socialmente contextualizadas (locais) e, ao mesmo tempo, pensadas em sua relação com o contexto social global, principalmente quando se trata de analisar tais relações no Sul Global. Como observam Collins e Bilge (2021), trata-se de uma perspectiva analítica multifacetada, capaz de incluir múltiplas dimensões das relações sociais e do poder, e relacional, sendo que a relacionalidade “abrange uma estrutura analítica que muda o foco da oposição entre categorias (por exemplo, as diferenças entre raça e gênero) para o exame de suas interconexões” (Collins; Bilge, 2021, p. 47)
O processo saúde-doença compreende questões específicas de contextos sociais específicos, mas é também influenciado pela política internacional e pelas relações de poder entre os Estados-nação, que possuem organizações institucionais e políticas públicas com diferentes capacidades de atuação sobre esse processo e sobre a multiplicidade de relações sociais e de poder que impactam a produção da saúde.
No caso brasileiro, vivenciamos nos últimos anos um aprofundamento da pobreza e das desigualdades sociais causado por uma crise e ruptura política que mudou radicalmente a concepção de justiça social que fundamenta(va) o papel do Estado e a produção de políticas públicas. Precisamos, portanto, também considerar a política (e o político) como categoria central para o processo saúde-doença, necessidade evidenciada durante a pandemia de COVID-19.
A política de saúde brasileira vem sofrendo importantes alterações e inflexões em seus sentidos (cujos efeitos começam a ser percebidos na prática), sob o signo do neoliberalismo e em resposta às pressões vindas de setores e grupos conservadores da sociedade (Mario, 2020b). Os impactos do neoliberalismo nas políticas de saúde são fenômeno global e precisam ser pensados a partir da relação local-global, como colocado acima. Como apontam Collins e Bilge (2021), a desigualdade social global, quando pensada em chave interseccional – principalmente quando a análise do poder do Estado-nação trabalha com diferentes filosofias e projetos políticos (como a social-democracia e o neoliberalismo) –, possibilita o desvelar de novas questões.
A interseccionalidade está também interconectada com a justiça. Como colocam as autoras, “certo compromisso com a justiça social influenciou historicamente grande parte da investigação e da práxis críticas da interseccionalidade. [...] O que faz com que um projeto seja interseccional crítico é sua conexão com a justiça social” (Collins; Bilge, 2021, p. 48).
Para esse projeto as teorias da justiça cumprem papel fundamental, pois servem de parâmetro analítico das relações de poder de justificação nos diferentes contextos de justiça, e das arbitrariedades e injustiças naturalizadas e politicamente não questionadas. Fornecem-nos parâmetros para a análise sociológica e histórica de questões que constituem o cerne de temas contemporâneos controversos afeitos aos direitos e deveres das instituições e cidadãos (Mario, 2020a).
Este artigo está estruturado em mais três itens além dessa introdução. No próximo item, apresento a teoria crítica da justiça proposta por Rainer Forst, buscando, de forma resumida, elucidar sua estrutura e os conceitos-chave que embasam uma concepção de justiça que se constrói para além das questões estruturais e das perspectivas distributivistas. Em seguida, discuto os conceitos de desigualdades, diferença e articulação adotando como ponto de partida a reflexão de Sérgio Costa, orientada pela perspectiva pós-colonial. Ao final, apresento minhas considerações.
Justiça Social e o Compromisso com a Emancipação
A teoria crítica da justiça proposta por Forst (2017) se desenvolve em duas dimensões, uma filosófica-normativa e a outra sociológica7. O autor sublinha que fazer teoria crítica implica uma conexão entre a filosofia e as ciências sociais informadas por um interesse emancipatório. Significa buscar uma ordem social razoável que seja historicamente possível e normativamente justificável em termos gerais e, ao mesmo tempo, questionar como as relações de poder em uma dada sociedade (e para além dela) impedem a emergência dessa ordem.
Razão e poder são conceitos fundamentais para uma teoria crítica. A razão é ao mesmo tempo a faculdade mais imanente e mais transcendente que o ser humano possui, sempre demandada contextual e recursivamente por aquilo que que se considera justificado e pelo que pode ser válido; entre uma coisa e outra, está o espaço para a crítica. Normativamente, argumenta Forst (2017, p. 4), aquilo que conta como justificável em cada caso não é determinado pelas condições sociais e históricas, mas sim por uma prática discursiva coletiva.
O poder deve ser entendido em termos processuais como a capacidade de determinar o “espaço da razão” para os outros, seja baseado no melhor argumento, em uma justificativa ideológica ou em um acordo. Nos termos do autor, “[…] social power does not have its ‘seat’ in certain means, institutions, or structures, but instead in the noumenal8 space in which struggles over hegemony take place” (Forst, 2017, p. 10). É tarefa da teoria crítica reconstruir as narrativas justificatórias que organizam e constituem a ordem normativa, buscando demonstrar se essa narrativa contém justificações falsas ou contraditórias.
O autor nos propõe uma teoria da justiça que adota uma abordagem pluralista, dinâmica, relacional e aberta, baseada na evolução histórica das narrativas de justificação. Em sua teoria, tanto as relações intersubjetivas como as estruturas são objeto da justiça, pois é preciso chegar às raízes das relações de injustiça. A arbitrariedade dessas relações se caracteriza pela aceitação de regras ou contingências que levam a assimetrias e relações de dominação aceitas como “fato inalterável” ou como “destino”.
No texto “Two Pictures of Justice”, Rainer Forst (2014) recupera as imagens da justiça, a exemplo da deusa justitia sempre vendada, representada em sua imparcialidade, garantindo igual tratamento a todos. De acordo com o autor, uma das imagens que habita o imaginário coletivo da justiça é construída pela ideia: a cada um o que lhe é devido. A questão central ensejada por essa imagem é aquela que nos leva a pensar a justiça a partir de uma relação meritória, buscando responder quais bens cada indivíduo deve ou merece receber (quem recebe o quê). Essa imagem, orientada pela relação distribuidor – receptor, levanta questões importantes a serem enfrentadas pela distribuição de bens, renda e recursos em sociedade, mas está centralmente preocupada com quais bens os indivíduos podem demandar e reduz a justiça distributiva a um problema de mera alocação de bens.
Para Forst, quando essa imagem é mobilizada, algumas questões são obscurecidas: a primeira delas é a de como os bens a serem distribuídos são produzidos; a segunda é uma questão política, que se refere a quem determina as estruturas de produção e distribuição, dado que essa estrutura é percebida como uma “grande máquina distribuidora” neutra, programada para atuar usando a “métrica da justiça”. Nessa imagem, os sujeitos tornam-se passivos receptores de bens, e não de justiça. A terceira questão negada por essa imagem é o fato de que demandas por justiça não existem simplesmente, elas são discursivamente construídas, em uma estrutura justificatória – requerimento fundamental da justiça. A quarta questão é a negação da injustiça em si, já que nessa perspectiva indivíduos vítimas de uma catástrofe ambiental que perderam todos os seus bens são tratados da mesma maneira que indivíduos privados de acesso a bens por relações de dominação e exploração.
Rainer Forst (2017) sublinha que justiça não diz respeito ao que você possui, mas à maneira como você é tratado. Justiça tem a ver com os deveres que as pessoas têm com os outros em contextos de justiça, tem a ver com pessoas sendo privadas de algo que elas têm razões em demandar, razões que não seriam geral e reciprocamente rejeitadas. Na prática, trata-se de acabar com a dominação e com regras arbitrárias, social e politicamente não justificáveis. Pensar em justificação significa pensar não apenas em “boas justificativas”, mas também naquelas que são socialmente efetivas.
Nesse cenário, as instituições e as normas que as orientam (que devem ser recíprocas e gerais) são fundamentais para pensarmos os processos de justificação da justiça. Para o autor, demandas por justiça devem ser expostas ao escrutínio público, e idealmente todos deveriam ter o direito de expor suas demandas, submetendo-as a um processo argumentativo, justificatório, democrático e abrangente, que decidirá quais demandas são ou não geral e reciprocamente justificáveis.
Não por acaso, Forst (2017, p. 122) afirma que o poder político é o bem prioritário da justiça. Para o autor, o poder tem sempre uma natureza discursiva (o que não significa afirmar que tenha uma natureza comunicativa no sentido habermasiano). Uma teoria crítica da justiça deve questionar quem tem o direito à autoridade justificatória, pois negá-lo a alguém significa violar a sua dignidade. A primeira questão da justiça é o quão justificáveis são as relações sociais e sua correspondente distribuição de poder justificatório em um contexto político.
Dessa maneira, qualquer forma de resolução de problemas deve ser democraticamente legítima. A democracia em sua teoria é entendida como um processo de crítica e justificação, que se dá dentro e fora das instituições, no qual aqueles que são submetidos às suas regras também se tornam seus coautores. Nessa concepção, democracia é a forma política da justiça. “Within a political normative order, no mode of ‘problem-solving’ can count as legitimate unless it assumes a democratic form or is democratically legitimized” (Forst, 2017, p. 11).
A questão do poder político e a da prática democrática levantam outra questão que é central para a teoria crítica, a da autonomia, pois para o exercício da justificação é preciso que as pessoas tenham poder e autonomia. Essa é uma questão marxiana construída por Rainer Forst a partir da reelaboração do conceito de alienação.
O argumento apresentado por Forst (2017) é de especial interesse para a justiça e para a análise da equidade em saúde. Em seu livro Normativity and Power (2017), ele recupera o debate sobre a alienação em Marx e propõe sua atualização para uma teoria da justiça pós-Marx. Preocupado em demonstrar se Marx é relevante para o pensamento filosófico contemporâneo sobre a justiça, seu ponto de partida é a ideia de que o atual debate normativo da justiça está em débito com Marx, não pelo uso que ele fez do termo justiça, mas sim pelos seus insights, intuições mais essenciais sobre o entendimento da justiça social e política.
Para que possamos reconstruir seu argumento, retomo a imagem da justiça orientada pela ideia de uma mera alocação de bens, baseada na relação distribuidor-receptor. Forst sustenta que é preciso evitá-la e reconhecer a face política da justiça. O autor afirma:
[…] justice must aim at intersubjective relations and structures, not at subjective or putatively objective states of provision of goods. Only in this way, by taking in consideration the first question of justice is a radical, critical conception of justice possible, one which gets to the root of relations of injustice
(Forst, 2017, p. 122).O impulso básico que nos opõe à injustiça é o de não mais querer ser dominado, comandado ou prejudicado enquanto um sujeito que tem demandas e o direito básico à justificação. Este reclamo contém a ideia de que nenhuma relação social ou política que não possa ser justificada deveria existir. Eis a essência política da justiça: “[…] the person who lacks certain goods should not be regarded as the primary victim of injustice, but instead the individual who does not count when it comes to producing and allocating goods” (Forst, 2017, p. 123).
Neste ponto chegamos a outro importante elemento da teoria da justiça de Forst: a justiça é sempre uma questão relacional. A pergunta a ser colocada não é sobre quais – e como – bens são distribuídos, ou se os mais pobres têm o suficiente para viver, mas devemos questionar se as relações entre os seres humanos são justificáveis, o que eles devem um para o outro, e por quais razões. “There is a major difference between someone being denied certain goods and opportunities unfairly and without justification and someone lacking certain goods for whatever reason” (Forst, 2017, p. 125).
O autor ressalta que Marx não desenvolveu uma discussão ou reflexão sobre a justiça, porém, ele tinha clareza sobre os sentidos e as causas da injustiça no capitalismo. Como ressaltou Rawls (2021), Marx partiu de uma determinada noção de justiça para a sua crítica, enquanto apontava para uma sociedade que estava para além da justiça.
O ponto central da crítica marxiana é a estrutura de produção e divisão social do trabalho. Forst resgata a crítica elaborada por Marx em “Crítica do Programa de Gotha”, texto em que Marx aponta a insuficiência da proposta social-democrata, cujo foco recai sobre a distribuição dos meios de consumo, marginalizando o cerne da questão: a organização e distribuição dos meios de produção.
Forst considera que Marx constrói sua crítica a partir da noção de coletivo, pois argumenta em termos de ação coletiva e autonomia sociopolítica. O primeiro ponto do argumento marxiano seria o de que as classes oprimidas devem ser tornar sujeitos autônomos e atores do processo de produção, em vez de figurarem como meros objetos desse processo. Tal questionamento permite a Forst conectar sua perspectiva de justiça ao argumento marxiano.
O autor sublinha que, embora Marx pensasse a autonomia social e econômica através da associação de homens livres, é difícil afirmar que essa seja uma perspectiva política, tal como por ele formulada em sua teoria da justiça. Buscando responder a questão sobre a possibilidade de uma dimensão política do argumento marxiano, Forst recupera o conceito de fetichismo da mercadoria no livro O Capital. De acordo com Marx, as relações sociais assumem a forma de relações entre coisas porque elas beneficiam apenas alguns indivíduos, enquanto outros são explorados, e por não serem transparentes, o que impede o debate e o controle social. O resultado é um mundo de relações assimétricas e baseadas na exploração que não é inteligível para aqueles que dele fazem parte. Indivíduos, portanto, alienados.
Forst considera que a ênfase da análise marxiana está, mais do que nas relações de classes, em uma forma mais global e anônima de dominação (de um mundo artificial de coisas que esconde as verdadeiras relações humanas e as aprisiona em um véu da ignorância ideológico).
Em suma, o que Marx critica seria a falta de transparência e controle, crítica que, para Forst, estaria fundamentada em uma noção de autonomia social como autonomia coletiva. A injustiça, nesse caso, está para além da perda que os trabalhadores explorados têm sobre o produto de seu trabalho, pois se trata de uma forma de relação que também os priva por completo da capacidade e oportunidade de determinar de forma autônoma a estrutura básica à qual estão submetidos.
Para o autor, a questão da autonomia em Marx seria mais social do que política. A distinção entre uma e outra estaria no fato de que, para Marx, as instituições políticas apenas são necessárias em sociedades onde o conflito em torno da produção está estabelecido, o que não acontece em sua visão de uma “sociedade pós-conflito”. Forst argumenta que esse ponto é fundamental para entendermos a noção de justiça em Marx, pois nela a superação da alienação seria essencialmente “apolítica”, resultante de uma leitura determinista das relações sociais9.
O problema desta leitura para a justiça é que demandas justificáveis não estão simplesmente “prontas” ou “dadas”, elas devem ser construídas; trata-se de uma construção que só é possível se uma forma discursiva da justiça se realizar. Essa forma é precondição social e política necessária que também permite desafiar (em sentido marxiano) uma noção fetichizada de que certas relações sociais e econômicas são inalteráveis e além da justificação.
Por fim, Forst assinala que outra importante dimensão de uma análise compreensiva e radical da justiça, e fundamental para a perspectiva marxiana, é a análise da injustiça. Essa análise demanda uma perspectiva histórica e permite distinguir aqueles que são vítimas de relações de exploração e opressão daqueles que sofrem por outras razões.
If one focuses only on recipients, and hence only takes clusters of goods or basic needs into account, then the differences between the respective forms of suffering are disregarded. Still, we need to take a nuanced view of the injustices that pervade individual societies and the transnational domain as well; they cannot be reduced to one central contradiction
(Forst, 2017, p. 129).Dessa forma, o autor argumenta que é essencial que a construção da justiça seja um trabalho autônomo, realizado por todos com ela envolvidos. Portanto, justiça é uma virtude reflexiva que se refere às suas próprias condições discursivas e submete suas normas a uma crítica permanente, na forma de uma crítica às relações de justificação. Forst (2017, p. 130) assinala:
Thus, Marx’s critique of alienated social forms and relations whose unjustifiable and asymmetrical real structure remains concealed from us by ideology has lost none of its topicality. Reconstructing it within the framework of a discourse theory of political and social justice remains an important task.
A Identidade como Articulação – Quando a Diferença É Desigualdade
O artigo “Desigualdade, Diferença, Articulação” de Sérgio Costa (2019) é o ponto de partida deste item. Em seus trabalhos recentes o autor vem questionando como o tema das desigualdades e diferenças está sendo abordado pelas ciências sociais e pela filosofia perante as transformações sociais que caracterizam a contemporaneidade. Costa (2019) questiona quando uma diferença se torna uma desigualdade e, recuperando o debate pós-colonial, centralmente a partir dos trabalhos de Homi Bhabha (1994) e Stuart Hall (1995), sobre identidade – diferença – desigualdade, argumenta contra a uma leitura estática, binária e essencialista das desigualdades.
Sabemos, por exemplo, que negros, quilombolas e indígenas e mulheres têm piores condições de saúde – por diferentes razões – do que brancos e homens. Trata-se de diferenças nas condições de saúde que se traduzem em desigualdades percebidas como injustas e que não podem ser explicadas a partir de uma perspectiva econômica ou culturalista, ou a partir da estrutura de classes. Esses são grupos cujas demandas podem ser apresentadas ou traduzidas nos termos da retórica da distribuição ou redistribuição de renda, bens e recursos sociais; também podem ser elaboradas a partir da gramática do reconhecimento, e ainda assim permanecerão. Permanecerão, pois são compreendidas e atendidas de forma incompleta, dado que sua origem é contingente, cambiável e elaborada nas múltiplas relações estabelecidas pelas pessoas com os outros e com a estrutura social.
As desigualdades em saúde podem ser entendidas de forma mais objetiva e estrutural (dadas pela falta de recursos materiais), mas também são subjetivas (dadas por uma desigualdade de acolhimento nos serviços de saúde, ou por questões identitárias e de reconhecimento, por exemplo). Como entender as práticas de violência obstétrica? Como entender os impactos da epidemia de Zika vírus na vida de mulheres e crianças brasileiras? Por que a COVID-19 vitimou mais negros e pobres do que brancos de classe média e alta no Brasil?
Analisando as desigualdades sociais contemporâneas e seu papel no desdobra-mento de nossas “paixões tristes”, Dubet (2020) trabalha com a hipótese de que os ressentimentos e indignações que afetam as pessoas e medeiam sua relação com a política, mais do que com a amplitude das desigualdades sociais, têm a ver com uma importante transformação do sistema de desigualdades.
As desigualdades, que antes pareciam incrustadas na estrutura social, num sistema tido como injusto, mas relativamente estável e compreensível agora se diversificam e se individualizam. Com o declínio das sociedades industriais, elas se multiplicam, mudam de natureza, transformando profundamente a experiência que temos delas
(Dubet, 2020, p. 8).Estamos lidando com desigualdades mais tênues e múltiplas, que geram uma heterogeneidade de situações, impedindo-nos de pensar as desigualdades a partir de uma sobreposição de clivagens, de posições dentro de uma escala de desigualdades (renda, formação, modos de vida), como podíamos fazer a partir de uma análise orientada pelo sistema de classes (Dubet, 2020). Por isso, também, a interseccionalidade ganha relevância política e teórica.
Na última década multiplicaram-se as análises e reflexões sobre os impactos do neoliberalismo nas sociedades contemporâneas: a crise das democracias, o movimento antipolítica, as mudanças no mundo do trabalho, as novas formas de sofrimento humano forjadas no coração das exigências impostas aos sujeitos sob o signo do neoliberalismo; mas não podemos perder do horizonte que essa é uma das facetas da atual crise do capitalismo. Embora não seja esse o objetivo deste artigo, é importante frisar que a contingência das desigualdades, a heterogeneidade de situações geradas, os conflitos delas oriundos e suas diversas contextualizações precisam ser enquadrados em um cenário mais amplo e complexo, dado por mudanças estruturais que estão no cerne da crise sistêmica do capitalismo que estamos atravessando.
Penso essa crise nos termos propostos por Fraser e Jaeggi (2020). O atual cenário não é marcado por “um conjunto de problemas pontuais, mas por uma disfunção estrutural alojada no coração de nossa forma de vida” (Fraser; Jaeggi, 2020, p. 14). Assim, para as autoras, o problema não é apenas econômico, a desigualdade, o desemprego, a má distribuição. O problema está para além da forma como a riqueza é distribuída; é preciso também questionar o que conta como riqueza e como essa riqueza é produzida (como também pontua Rainer Forst). Devemos questionar como o trabalho é organizado, o que ele demanda das pessoas e o que está fazendo com elas (as novas formas de sofrimento contemporâneo). As pessoas têm de lutar por trabalhos precários, cada vez com menos direitos, proteções e benefícios, com altos índices de endividamento. Nancy Fraser e Jaeggi (2020, p. 15) nos lembram:
Questões igualmente fundamentais giram em torno do aumento das tensões sobre a vida familiar: por que e como as pressões do trabalho assalariado e do endividamento estão alterando as condições de criação dos filhos, do cuidado dos idosos, as relações domésticas e os vínculos com a comunidade – em suma, toda a organização da reprodução social.
Esse conjunto de transformações que geram um sistema de desigualdades múltiplas também impacta na produção das políticas sociais, cujo processo de produção precisa estar cada vez mais atento à multiplicidade de desigualdades singulares sob o risco de perder uma visão mais ampla e sistêmica das relações sociais e de produção que estão no cerne dessas desigualdades. Como coloca Dubet (2020, p. 40), “as desigualdades se dividem em uma série de problemas particulares assumidos pelos atores especializados, correndo aí também o risco de acentuar uma concorrência entre as desigualdades”.
A multiplicidade e singularidade de desigualdades são vividas e politicamente elaboradas e reelaboradas pelas pessoas, são elas que sentem em suas trajetórias de vida o impacto da agregação de “pequenas desigualdades” entre pessoas de um mesmo grupo de renda, por exemplo. A essas desigualdades somam-se as diferenças identitárias, tão estruturais e políticas quanto o desemprego ou uma injusta distribuição de renda, bens e recursos.
[...] diferenças com referência a gênero, etnicidade, religião, raça etc. representam posicionalidades ou lugares de enunciação no âmbito de relações sociais hierárquicas. Seguindo essa linha de argumentação, aqueles que reclamam para si mesmos certa posicionalidade ou atribuem uma posicionalidade específica a outros se encontram em luta para conservar ou remover as hierarquias sociais existentes. Diferenças não se constroem, portanto, independentemente da estrutura social em algum lugar anterior ou fora da política. As diferenças são articuladas, politicamente, à luz da estrutura de desigualdades existentes
(Costa, 2019, p. 34).Dessa forma, Costa (2019, p. 38) trabalha com uma definição ampla de desigualdade social; segundo o autor,
[...] desigualdades sociais correspondem a distâncias entre posições ocupadas por indivíduos ou grupos de indivíduos na estrutura social em âmbito local, nacional ou global. Essa definição diz respeito a posições econômicas (definidas por renda, riqueza, controle de recursos, etc.) e assimetrias de poder em termos de direitos políticos, sociais e existenciais, influência política e também capacidades epistemológicas.
Apenas a partir de uma reflexão que se apoie em uma definição ampla de desigualdade e considere o cenário de crise sistêmica do capitalismo (indelevelmente marcado pelas transformações resultantes do predomínio da racionalidade neoliberal como forma de vida – atualmente realidade em diferentes países do Norte e do Sul global) é que faz sentido pensar as diferenças em relação com as desigualdades.
A noção de articulação é proposta por Homi Bhabha (1994) e Stuart Hall (1995) a partir de uma perspectiva discursiva. Para Bhabha (1994) e Hall (1995), as diferenças são discursivamente articuladas pelos sujeitos, são eles que elaboram e articulam socialmente as suas diferenças; ou seja, elas não estão a priori definidas como um reflexo de traços étnicos ou culturais, mas sim são negociadas de forma processual em determinados momentos de transformação histórica e, por isso, são contingentes.
Mas também são contingentes porque não é possível prever quais elementos serão discursivamente conectados e quando; “portanto, estudar articulações é uma maneira de se perguntar por que certos discursos se tornam relevantes para a constituição de certos sujeitos sob certas circunstâncias” (Costa, 2019, p. 38).
Para Sergio Costa (2019), o conceito de articulação é útil para superar tanto o economicismo como o culturalismo – e até mesmo sua combinação, tal como propõe Nancy Fraser em sua teoria dualista da justiça, na qual redistribuição e reconhecimento são complementares. Costa (2019, p. 38) argumenta que as lutas por justiça “são sempre uma articulação contingente de certa posição na estrutura social com certo discurso sobre a diferença. Ser contingente não significa ser aleatório ou arbitrário”.
São os mesmos grupos de pessoas que vivem os impactos das múltiplas desigualdades em suas trajetórias de vida que elaboram discursivamente desigualdades e diferenças. São os negros, as mulheres, os migrantes, os idosos, as pessoas com deficiência que as enunciam socialmente, seja para defender suas próprias posições nas hierarquias sociais, seja para demandar a mitigação das desigualdades. Nos termos de Costa (2019, p. 38-39),
Isso não implica, de forma alguma, crenças economicistas, como se diferenças pudessem emanar de posições sociais. Não são as posições estruturais em si, mas sim sua avaliação cultural e política – como justa ou injusta – que conta no processo de articular diferenças. O culturalismo também não tem lugar nesse entendimento. É claro que inclinações morais ou culturais anteriores desempenham um papel importante na mobilização a favor ou contra as desigualdades; entretanto, tais disposições constituem um amplo e sempre mutável repertório de possibilidades contingentemente articuladas de acordo com variáveis contextuais.
Considerações Finais
No cerne da noção de determinantes sociais da saúde estão os conceitos de equidade e desigualdade e a relação que podemos estabelecer entre as desigualdades sociais e a produção de iniquidades em saúde para a compreensão do processo saúde-doença. São variadas as críticas à concepção de DSS, e autores do campo da epidemiologia crítica, da medicina social latino-americana e da saúde coletiva comumente apontam para a insuficiência crítica e para o tímido potencial transformador da proposta, pois não incorpora a tarefa de transformar a estrutura social capitalista responsável pela produção das injustiças sociais e das iniquidades em saúde que se pretende combater com a abordagem dos DSS proposta pela OMS para a produção de políticas públicas em saúde.
Existem também críticas que se desenvolvem dentro do mesmo campo teórico metodológico e político no qual a concepção de DSS se construiu. Recentemente, tem-se discutido a ausência de uma perspectiva política, de um debate político e teórico que lide com os “determinantes políticos da saúde”. Ilona Kickbusch (2015), em editorial da BMJ Clinical Research, em 2015, chama a atenção para essa questão, argumentando que a saúde é política, pois é desigualmente distribuída; muitos determinantes sociais da saúde dependem de ação política, além de a saúde ser uma dimensão crítica dos direitos humanos e do exercício da cidadania.
Kickbusch (2015) lembra que muitos profissionais da saúde pública e saúde global têm argumentado que a saúde precisa estar no topo da agenda política e que as políticas de saúde precisam estar baseadas em evidências. Entretanto, a autora pontua que as organizações de saúde pública têm baixa influência política na maioria dos países, com uma capacidade de ação muito fragmentada em nível global. E afirma que
Public health research has yet to deliver (and get the financing for) more studies that can inform political choices by providing empirical evidence not only on the effect of political variables on population health but also on the effect of such decisions on politics
(Kickbusch, 2015, p. 1).Este artigo também traz a política como dimensão central para conhecer e compreender as iniquidades em saúde, porém a perspectiva trabalhada aqui é de natureza distinta da crítica formulada tanto pelos autores do campo da saúde global, como é o caso de Kickbusch (2015), quanto dos autores do campo da saúde coletiva, medicina social latino-americana e epidemiologia crítica, como é o caso de Breilh (2021) e Almeida-Filho (2021).
A noção de DSS na abordagem proposta pela OMS é analítica e politicamente articulada a partir da epidemiologia, o que significou atribuir ênfase a uma perspectiva que adota modelos de causalidade para identificar desigualdades e seus impactos sobre a saúde das pessoas, expressa pela ideia de se buscar “as causas das causas”, mas também à necessidade de construção de indicadores e busca de evidências, como sublinha Kickbusch (2015), que são insuficientes perante os desafios sociais contemporâneos.
A ideia de justiça na abordagem dos DSS está presente na noção de equidade em saúde, que embasa teoricamente a perspectiva proposta pela OMS. Solar e Irwin (2010) afirmam que considerar a saúde um fenômeno social significa que a saúde é uma questão de justiça social, e, portanto, a equidade em saúde deve se tornar um princípio. Os autores entendem que o papel do social em gerar desigualdades em saúde deve ser pensado a partir de duas considerações centrais: a primeira refere-se ao poder; a segunda, à importância de se clarear a distinção conceitual e prática entre as “causas sociais da saúde” e os “fatores determinantes dessas causas” entre os diferentes grupos sociais.
Considerando que poder, justiça e desigualdades são os três conceitos articuladores centrais, busquei apresentar abordagens teóricas e analíticas críticas que possibilitem repensar conceitualmente os DSS para além das dimensões trabalhadas tanto pelo debate vinculado à OMS como pelo campo da determinação social da saúde. A preocupação de fundo foi manter o compromisso fundante da noção de processo saúde-doença: a perspectiva emancipatória.
No que se refere à justiça, considero que é importante avançarmos no debate para além da perspectiva distributivista liberal-igualitária presente no debate sobre os DSS. A teoria da justiça como justificação atribui centralidade à noção de poder e, ao articular a ideia de construção discursiva da justiça e autonomia coletiva para determinar a estrutura básica à qual os sujeitos estão submetidos, extrapola as dimensões distributiva e do reconhecimento. Também considero que se trata de uma concepção de justiça que tem, por um lado, o potencial de transformar a forma como as políticas de saúde são produzidas e, por outro, alterar o entendimento sobre as desigualdades de acesso aos serviços de saúde e, consequentemente, dos resultados em saúde alcançados.
Sublinho que a teoria crítica da justiça de Rainer Forst, além de adotar uma perspectiva marxista, nos direciona para aspectos que até então estavam obscurecidos e pouco explorados pelos autores da teoria da justiça pós-John Rawls. Umas das chaves de sua teoria está no entendimento de que o poder político é o bem prioritário da justiça. Poder e autonomia são fundamentais para que as pessoas possam apresentar socialmente suas demandas, demandas que precisam ser coletivamente justificáveis.
Por isso, a justiça não diz respeito ao que as pessoas possuem, mas sim sobre como são tratadas; relaciona-se a pessoas sendo privadas de algo que elas têm razões para demandar. Dessa forma, Forst (2017) argumenta que as teorias da justiça precisam adotar uma abordagem pluralista, histórica, dinâmica e relacional. Afinal, não apenas a estrutura e as formas de distribuição, redistribuição de bens e recursos, mas também as relações intersubjetivas são objeto da justiça.
Trata-se de uma perspectiva para a qual o que é socialmente justificado é construído por uma prática discursiva coletiva, que não está dada, previamente determinada, e justamente porque demandas justificáveis precisam ser construídas é que a justiça é uma virtude reflexiva. Uma ideia de construção discursiva da justiça também está presente na leitura que Costa (2019) faz das desigualdades e sua articulação com as diferenças, contingentes porque articuladas pelos sujeitos de forma processual em determinados contextos históricos e porque não é possível prever quais elementos serão conectados e quando. Nesse processo estrutura e relações intersubjetivas se articulam, desigualdades e questões identitárias são estruturais e políticas, são contingentes.
Essas são contribuições que devem ser exploradas para pensar como a saúde é socialmente determinada e, principalmente, como as atuais ordens de justificação e as relações de poder podem ser transformadas visando garantir uma produção de políticas públicas e de saúde justas, capazes de articular as desigualdades e as diferenças.
Para a abordagem dos DSS, a adoção da perspectiva da noção de articulação, considerando que as desigualdades na contemporaneidade se configuram a partir de um sistema de desigualdades múltiplas, ao invés de simplesmente emanar das posições sociais dos sujeitos, requer repensar como identificar os fatores que determinam as causas sociais da saúde. Pois não se trata apenas de identificar posições dentro de uma escala de desigualdades e buscar relacioná-las para entender como impactam a saúde. É preciso entender como os sujeitos elaboram e articulam seu repertório a respeito da desigualdade e o que se torna relevante dentro de cada contexto. É justamente essa elaboração discursiva acerca das desigualdades e da justiça que permite a construção de formas de resistência às atuais ordens justificatórias que seguem permitindo a manutenção de relações injustas, como nos chama atenção Rainer Forst (2017).
A interseccionalidade tem o potencial de enriquecer a abordagem dos DSS ao possibilitar a compreensão de como as desigualdades se interseccionam, o que está diretamente relacionado com a incidência e com o estabelecimento das relações assimétricas de poder. Por fim, considero que é através da interseccionalidade assumida enquanto método, perspectiva analítica (e práxis crítica), que podemos, adotando uma postura metodológica relacional e dialógica, propor uma revisão e atualização da noção de determinantes sociais da saúde que seja capaz de lidar com as iniquidades em saúde: (1) politicamente enquanto exercício de poder e (2) na produção de políticas públicas justas e capazes de responder à multiplicidade de desigualdades e articulações de diferenças, contextuais e contingentes.
Trata-se de compreender que o processo saúde-doença é permeado e impactado por desigualdades sociais e diferenças multifacetadas e contingentes, em um processo fluido que se constrói na dinâmica das relações sociais e nas relações de poder. Ao mesmo tempo que é possível identificar desigualdades estruturais, que se apresentam de forma semelhante nos diferentes contextos (na justiça internacional, nos Estados nacionais, nas regiões e territórios), é preciso entender como essas desigualdades são sentidas ou percebidas e, então, política e socialmente articuladas pelos sujeitos.
Para tal, é necessário refletir sobre como entendemos a justiça social, e neste cenário a teoria crítica da justiça proposta por Rainer Forst nos abre uma chave teórico-analítica e de atuação política que possibilita ajustar nossa cognição do processo saúde-doença e das iniquidades em saúde adotando uma perspectiva crítica e emancipatória.
O foco na alienação política, seja no contexto da justiça internacional, seja nas relações de poder micro, propicia a identificação e compreensão das injustiças e desigualdades contingentes que precisam ser incorporadas no processo de produção das políticas públicas e das políticas de saúde quando o objetivo é a promoção da justiça em saúde.
O social segue determinante ou fundamental para o processo saúde-doença (na sua produção e na sua inteligência) e para a compreensão dos resultados em saúde e suas iniquidades. O que a teoria social e política crítica nos mostra é que é preciso repensar a compreensão da produção das desigualdades, o modo como diferenças e formas de resistência são articuladas, e definir claramente com qual concepção de justiça social estamos trabalhando, seja para a investigação, seja para a práxis.
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Notas
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