ARTIGOS

Credibilidade Pública, Saberes Localizados: Disputa Epistêmica Sobre o Dispositivo Essure no Distrito Federal

Public Credibility, Situated Knowledge: Epistemic Dispute Over the Essure Device in the Brazilian Federal District

Ana Carolina Lessa Dantas *
Universidade de Brasília, Brasil

Credibilidade Pública, Saberes Localizados: Disputa Epistêmica Sobre o Dispositivo Essure no Distrito Federal

Mediações - Revista de Ciências Sociais, vol. 28, núm. 3, e47895, 2023

Universidade Estadual de Londrina

Recepção: 05 Abril 2023

Revised document received: 19 Julho 2023

Aprovação: 05 Setembro 2023

Resumo: Entre 2012 e 2016, cerca de 2.500 mulheres tiveram o dispositivo contraceptivo Essure implantado no serviço público do Distrito Federal. Embora tenham inicialmente confiado na avaliação dos profissionais da Secretaria de Saúde distrital, as pacientes foram submetidas a reiteradas situações de injustiça epistêmica ao queixar-se de efeitos adversos atribuídos ao dispositivo. Neste trabalho, analiso dois eventos públicos e argumento que, em resposta à quebra de confiança na Secretaria, as mulheres vítimas do Essure passaram a reivindicar um espaço de credibilidade no debate sobre essa tecnologia, questionando a autoridade técnico-científica da instituição e tensionando as relações epistêmicas estabelecidas.

Palavras-chave: Essure, credibilidade, injustiça epistêmica, saberes localizados.

Abstract: Between 2012 and 2016, approximately 2,500 women had the Essure contra-ceptive device implanted at the public service of the Federal District of Brazil. Although they initially trusted the evaluation of the District’s Health Department professionals, patients were subjected to repeated situations of epistemic injustice when complaining about adverse effects attributed to the device. In this paper, I analyze two public events and argue that, in response to the gap of trust in the Department, the victims of Essure began to claim a space of credibility in the debate about this technology, questioning the technical-scientific authority of the institution and tensioning the established epistemic relations.

Keywords: Essure, credibility, epistemic injustice, situated knowledge.

Introdução

As decisões e os procedimentos que circundam a esterilização permanente – uma das formas de contracepção mais acessadas no Brasil – são temas clássicos nas investigações de justiça reprodutiva (Brandão; Cabral, 2021). Nos anos 2010, um novo agente se tornou objeto de estudo deste campo: o dispositivo contraceptivo Essure, implantado em milhares de mulheres brasileiras, em 11 diferentes estados da Federação.

O Essure chegou ao mercado de dispositivos médicos em 2002, após a Food and Drug Administration – FDA, dos Estados Unidos, submetê-lo a uma “revisão expressa” (Sheffield, 2019). No Brasil, ele teve licença emitida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa sete anos depois, em 2009. Até ser retirado de circulação, em 2018 (Anvisa, 2017)2, estima-se que 750 mil kits Essure foram utilizados no mundo (Sheffield, 2019).

Embora não tenha sido adquirido de forma centralizada pelo Sistema Único de Saúde, o Governo do Distrito Federal – GDF comprou 4.673 unidades do kit para implantação do Essure (Brasil, 2019). Cerca de 600 desses kits foram destinados aos Mutirões de Laqueaduras Tubárias, organizados pela Secretaria de Saúde do DF – SES em 2012 e em 2013, e parte do restante seguiu sendo inserida em hospitais públicos até 2016.

As controvérsias em torno do dispositivo começaram quando, após a implantação, uma série de mulheres procurou os serviços de saúde para relatar sintomas – de queda de cabelo a sangramentos intensos e ininterruptos – possivelmente associados ao Essure. A recepção destas queixas pela SES, contudo, não foi acolhedora: a narrativa das mulheres foi desacreditada, contemporizada e, em alguns casos, respondida com insultos verbais. Como forma de estabelecer uma rede de acolhimento e de reivindicar um tratamento digno do Estado, as pacientes afetadas criaram a Associação de Mulheres Vítimas do Essure Brasil – AMVEB.

Neste trabalho, tento compreender uma dimensão desse conflito, a saber, a produção e a legitimação de conhecimento público a respeito do Essure3. Parto, para isso, da análise de dois eventos transmitidos virtualmente: uma Audiência Pública da Câmara Legislativa do Distrito Federal, promovida pelo deputado distrital Fábio Félix (PSOL) em 26 de abril de 2021, e uma mesa redonda intitulada Manhã de Conhecimento, organizada pelo Instituto Todde/Todde Advogados e Consultores Associados, em 5 agosto de 2022. Enquanto o primeiro promoveu um espaço de debate (e de confronto) entre diferentes atores envolvidos no problema – como órgãos do Judiciário, membros da SES e representantes da AMVEB –, o segundo reuniu profissionais notadamente favoráveis à causa das mulheres vítimas.

Inicialmente, apresento a chegada do Essure ao Distrito Federal e descrevo como a relação de confiança que as pacientes tinham com a Secretaria de Saúde distrital foi sendo desgastada em razão de episódios de assédio moral e de exclusão discursiva. Em sequência, classifico esses episódios como casos de injustiça epistêmica (Fricker, 2007), cuja raiz está ligada à perpetuação do poder identitário e à desconsideração das mulheres vítimas enquanto sujeitos dignos de credibilidade epistêmica.

Olhando para os desacordos entre mulheres vítimas e técnicos da Secretaria, argumento que as pacientes produzem formas de conhecimentos localizados (Haraway, 1995) fundamentais à compreensão do que é o Essure e que a exclusão discursiva e a estigmatização, sob a acusação de anticientificismo, comprometem não só a formulação de políticas públicas, mas a própria qualidade do entendimento técnico-científico sobre o dispositivo.

I. A Construção do Conflito Sobre o Essure no Distrito Federal

Em setembro de 2012, o Governo do Distrito Federal convocou cerca de 200 mulheres para o primeiro Mutirão de Laqueaduras Tubárias do Programa Saúde para Todos. O objetivo da ação, que contou com outras duas edições, era zerar a lista de espera por esterilizações femininas no sistema público de saúde. Para isso, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal contava com um importante recurso: o recém-adquirido dispositivo contraceptivo Essure (Distrito Federal, 2012; Mendonça, 2013; Mutirão […], 2012).

O Essure é uma forma de anticoncepção permanente, composta por um kit de molas metálicas da espessura de um fio de cabelo. De acordo com a fabricante Conceptus Inc. – adquirida pela Bayer em 2013 –, as molas deveriam ser inseridas no interior das tubas uterinas através do canal vaginal. Uma vez posicionadas, elas provocariam uma reação de cicatrização controlada, levando o corpo a ocluir completamente as tubas e, consequentemente, a impedir o encontro entre espermatozoide e ovócito (Brasil, 2021).

Comparado aos métodos tradicionais de laqueadura, o Essure apresentava-se como uma alternativa segura, rápida e indolor, uma vez que poderia ser implantado no ambulatório, sem necessidade de anestesia ou de procedimentos cirúrgicos invasivos. Antes da inserção dos dispositivos, que levaria cerca de 15 minutos, as mulheres precisariam apenas assistir a uma palestra sobre planejamento familiar e assinar um termo de consentimento livre e esclarecido. O acompanhamento recomendado consistia na realização de um exame de histerossalpingografia – um tipo de radiografia realizada com o uso de contraste, a fim de visualizar possíveis obstruções das trompas uterinas – três meses após a colocação (Osthoff et al., 2015). No Distrito Federal, porém, os protocolos adotados não seguiram exatamente a indicação.

Kelli Patrícia da Luz é uma das 2.522 mulheres do DF que receberam o dispositivo4. Como costuma acontecer a outras mães e mulheres negras da periferia de Brasília, ela teve de passar sete anos na fila de espera por uma laqueadura tradicional, até ser chamada para um mutirão em 2012. No dia do mutirão, Kelli e as demais mulheres presentes foram encaminhadas para uma palestra, na qual ouviram que o método de esterilização utilizado seria o Essure. Em depoimento para o evento Manhã de Conhecimento5, realizado em 05 de agosto de 2022, ela completou:

[...] só nos informaram, nessa palestra, que seria um método indolor, rápido, sem precisar de método cirúrgico. [Que,] no outro dia, estaríamos à disposição do serviço, da casa, dos filhos… e que a gente estaria ali consciente de que a gente não teria mais possibilidades de ter filhos, e que a retirada dele só poderia ser feita com a retirada total do útero. Essa foi a única informação que foi nos passada nessas palestras… não assinamos nenhum termo [de consentimento sobre o Essure]

(Manhã [...], 2022)

Nem Kelli nem outras mulheres tinham razão para, naquele momento, contestar a utilização do dispositivo. A literatura médica apresentava resultados promissores, como baixas taxas de complicação na inserção e alta efetividade para prevenção da gravidez (Cooper et al., 2003; Duffy et al., 2005; Connor, 2009; Hurskainen et al., 2010). No Brasil, o Essure chegou a ser enquadrado, na revista de divulgação científica do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, como “uma revolução” na esterilização feminina, capaz de driblar as complicações e os custos de uma laqueadura cirúrgica (Depes et al., 2009). Mais importante que isso, porém, era o fato de que o método era recomendado e utilizado por um hospital de referência da SES. Como colocado por Elmo Ferreira, médico que acompanha algumas pacientes com Essure e palestrante convidado para o Manhã de Conhecimento6, “se a Secretaria, que é uma instituição respeitável, recomenda um produto, é natural que as pessoas acatem e confiem” (Manhã [...], 2022).

De acordo com Elaine Brandão e Ana Cristina Pimentel (2020), embora tenha sido articulado como uma inovação tecnológica, o Essure beneficiou-se da legitimidade social das laqueaduras, que há muito eram utilizadas no sistema público e privado de saúde. Não à toa, nas ações e nos documentos de divulgação da SES, Essure e laqueadura são mencionados de modo intercambiável (Distrito Federal, 2012), como se seguissem uma mesma linha do tempo de modernização do controle reprodutivo. Em um contexto de privação de recursos e de longas esperas, o dispositivo revolucionário-porém-familiar era a solução perfeita para médicos, gestores de saúde e, claro, para as mulheres. Como a pílula-mágica dos processos de farmaceuticalização (Biehl, 2007), o Essure poderia solucionar rapidamente a demanda por esterilizações sem necessidade de modificações estruturais nos cuidados em saúde.

Alguns meses depois da inserção do dispositivo, Kelli voltou a procurar o Hospital Materno Infantil de Brasília – HMIB, onde acontecera o mutirão, para se queixar de mal-estar e de dores pélvicas e lombares. Ouviu que os sintomas não tinham “nada a ver” com o dispositivo e foi mandada de volta para casa (Manhã [...], 2022). Como ela, centenas de outras mulheres relatam ter feito, após a colocação do Essure, peregrinações a hospitais e a unidades básicas de saúde para tentar tratar sintomas que, além de dores, incluem sangramento vaginal irregular, cefaleia, insônia, formigamento dos membros inferiores, queda de cabelo, reações alérgicas, inchaço no abdômen e alterações no ciclo menstrual (Anjos, 2018; Garzon, 2021). Em muitos casos, as queixas levadas aos consultórios foram desconsideradas ou tratadas com desdém, e as mulheres, estigmatizadas. De acordo com Kelli,

[...] nos encaminhavam para nutricionistas, porque falavam que nossas dores eram devido à obesidade, passavam exames para saber se nós tínhamos adenomiose, endometriose. Muitas mulheres não têm nenhuma dessas duas doenças e mesmo assim têm aquele sangramento constante, aquelas dores lombares constantes. Até desacreditar dos nossos sintomas… porque, se você não tem nada disso e você continua sentindo essas dores, então é loucura, né! Então, praticamente todas eram encaminhadas para psicólogos, psiquiatras [...]. Adquirimos um apelido horrível, “as loucas do Essure”, aqui em Brasília, porque nenhum médico conseguia descobrir o que nós estamos sentindo. Então, até passar por todo esse processo de exame, [ouvimos] “não, vocês não têm nada, vamos tratar a obesidade, vamos tratar o problema psicológico, a ansiedade, porque vocês não têm nada!”

(Manhã [...], 2022).

Por conta das limitações impostas pelos sintomas físicos, muitas mulheres mencionam ter perdido o emprego e sofrido abalos na vida social e conjugal. O adoecimento mental, principalmente ligado a casos de ansiedade, depressão e síndrome do pânico, também é um tema recorrente nos relatos de pacientes do Essure. As acusações de loucura mencionadas por Kelli, contudo, não dizem respeito apenas a estes casos. Elas são uma forma de deslegitimar a forma como as mulheres narram os seus corpos e suas enfermidades, promovendo uma forma de exclusão discursiva (Oliveira, 2020).

Os assédios verbais ouvidos em consultórios médicos e em corredores de hospitais não cessaram mesmo depois que Kelli se juntou a outras pacientes para fundar a Associação de Mulheres Vítimas do Essure Brasil. Durante audiência pública da Câmara Legislativa do Distrito Federal, promovida pelo deputado distrital Fábio Félix (PSOL) em 26 de abril de 20217, Kelli relatou que, cansada de ser tratada como louca, juntou-se a outras pacientes: “[...] criamos a Associação para buscar um direito único, que é o direito à saúde, que é constitucional. E hoje, pelos corredores do HMIB, [...] a gente é tachada como uma associaçãozinha de mulheres à toa [...], como se a gente não tivesse o que fazer” (Vítimas [...], 2021).

Como em outros países (Lindheim; Madeira; Petrozza, 2019; Sheffield, 2019), a ideia de se organizar politicamente na forma de uma Associação surgiu, entre as mulheres do Distrito Federal, a partir de encontros em grupos de Facebook, como o “Essure Problems”, inicialmente focado nos casos dos Estados Unidos, e o “Problemas com Essure BRASIL e PORTUGAL”. Em 2019, foi criado o “vítimas do essure Brasília (AMVEB )”8, que reúne depoimentos de mulheres, além de notícias e convites para eventos e manifestações relacionados ao dispositivo. Também são comuns, no grupo, compartilhamentos de publicações do médico Julio Novoa, ginecologista obstetra norte-americano fundador da plataforma NoEssure.com. Em seus vídeos e textos, comumente publicados em inglês e espanhol, Julio comenta sobre aspectos técnicos do dispositivo. Na audiência pública da CLDF, um vídeo em que ele responde a perguntas sobre a remoção cirúrgica do Essure, gravado especialmente para a ocasião, foi transmitido por Kelli.

As experiências clínicas de médicos como Elmo e Julio dão suporte às reivindicações das mulheres vítimas do Essure e são acionadas por elas no debate público. A SES, porém, demonstra não reconhecer a legitimidade deste tipo de argumento. Durante sua participação na audiência pública, Marta de Betânia, médica e representante da Coordenação de Referência Técnica em Ginecologia e Obstetrícia e da Câmara Técnica da SES-DF, frisou que a Câmara Técnica da Secretaria realizou um levantamento sobre o caso Essure, mas não encontrou “nenhuma problemática no processo de inserção, nem na parte técnica, nem na parte documental, nem na parte de aquisição” (Vítimas [...], 2021). Enfatizou, ainda, que sua equipe realizou um trabalho “eminentemente técnico” e “bastante exaustivo” do ponto de vista de pesquisa bibliográfica – que compreendeu a análise de 2 mil prontuários e de “mais de 226 fontes bibliográficas, inclusive internacionais” (Vítimas [...], 2021) –, chegando à conclusão de que não há relação de causa e efeito entre sintomas relatados pelas pacientes e o dispositivo.

Gislaine Medeiros, uma das mulheres vítimas presentes na audiência, foi enfática ao afirmar que o estudo da SES “não foi feito com dignidade e com respeito às mulheres”. Para ela e para Kelli, profissionais da Secretaria insinuam – e, por vezes, verbalizam – que as mulheres não conseguem compreender os próprios sintomas, sendo levadas pelas redes sociais a associar erroneamente suas dores ao dispositivo (Vítimas [...], 2021). Este argumento não é exatamente novo: em 2019, dois artigos de opinião na Fertility and Sterility, importante publicação na área de saúde reprodutiva, atribuíam as controvérsias em torno do Essure a falsas crenças e a vieses de confirmação estimulados pelas redes sociais (Lindheim et al., 2019; Lindheim; Madeira; Petrozza, 2019). Para Steven Lindheim, Jody Madeira e John C. Petrozza (2019), a exposição das mulheres ao conteúdo sobre Essure nas redes sociais pode tê-las levado a cair no “lado errado da ciência”.

Compreender a postura das mulheres vítimas como anticientífica, porém, parece-me um erro por dois motivos. Primeiramente, porque desconsidera a existência de trabalhos que subsidiam ou fortalecem esta postura. Para além das críticas ao processo de aprovação expressa do dispositivo9, o estudo de vigilância pós-mercado do Essure, custeado pela Bayer e monitorado pela FDA10, por exemplo, indica que, entre as mulheres que tiveram o Essure implantado, há taxas consideravelmente altas de abordagens cirúrgicas posteriores à esterilização (20,8%), de sangramento uterino anormal (20,5%) e de dor abdominal e/ou pélvica crônica (12,5%) (FDA, 2022). Além disso, artigos recentes documentam a redução ou o desaparecimento dos sintomas ginecológicos e a melhora da qualidade de vida de mulheres que passaram pela cirurgia de remoção do dispositivo (Bideau et al., 2023; Clark et al., 2022; Francini et al., 2021; Leleu et al., 2021; Merviel et al., 2019). Embora ainda não se saiba exatamente que fatores provocam o surgimento dos sintomas, níveis anormais de metais como estanho, níquel e crômio foram detectados no fluido peritoneal e nos tecidos de mulheres que tiveram o Essure removido cirurgicamente, o que pode sugerir uma correlação entre a degradação do dispositivo e o surgimento de efeitos adversos (Catinon et al., 2020; Parant et al., 2020; Parant et al., 2022).

Em segundo lugar, atribuir um caráter de anticientificismo à posição das pacientes pode fazer parecer que elas são hostis à produção científica, o que não é o caso. As mulheres vítimas demandam, ao contrário, a produção de mais evidências, incluindo estudos que compreendam as circunstâncias locais, realizados com as mulheres do Distrito Federal (Vítimas [...], 2021). Kelli acredita, por exemplo, que os erros que a SES cometeu ao disponibilizar e ao inserir o dispositivo nas mulheres, tornam “muito complicado, hoje, comprovar que o que passamos é por conta do dispositivo”, em especial “se a Secretaria de Saúde não se empenha em fazer um estudo [empírico]” sobre ele (Vítimas [...], 2021). Em sua visão, parece haver uma expectativa de que, com os estudos adequados – isto é, que considerem os casos local e historicamente situados –, seja possível revelar o que está por trás dessas realidades que já são vividas, que já estão inscritas no corpo11.

A divisão do debate entre um campo “eminentemente técnico”, para usar as palavras de Marta, e um campo leigo, supostamente orientado por interesses morais e contaminado por falsas crenças, cria um desequilíbrio quase intransponível no espaço público. Elaine Brandão e Ana Cristina Pimentel (2020, p. 10) definem bem a situação:

No contexto brasileiro, aparecem dois mundos que não se encontram. Um deles informa a regulamentação e a semântica científica; o outro fala sobre dificuldades, riscos e sofrimentos encontrados pelas mulheres que foram submetidas ao procedimento com Essure. Os questionamentos apresentados pelas mulheres não encontraram os mesmos mecanismos de aceitação, rotinização e busca de soluções que os procedimentos de regulação do Essure.

Políticas de saúde reprodutiva passam, necessariamente, por decisões sobre que tipo de conhecimentos são legítimos na orientação da atividade pública. O atrito entre a Associação de mulheres vítimas e a Secretaria de Saúde do Distrito Federal coloca em evidência os gaps de credibilidade e a disparidade de poder epistêmico estabelecida no debate em torno do Essure. No tópico a seguir, avalio como esta disparidade não só promove injustiças epistêmicas e afasta as mulheres da formulação e da análise das políticas públicas, mas tende a gerar conhecimentos menos qualificados para a compreensão do problema.

II. Credibilidade, Racionalidade e Injustiças Epistêmicas: Quem Pode Falar Sobre o Essure?

Em seu livro A Social History of Truth, Steven Shapin (1994) investiga o desenvolvimento da filosofia experimental, a saber, a construção de experimentos e métodos que buscavam apreender fatos naturais, na sociedade inglesa do século XVII. Para atestar a validade de uma experiência, um seleto grupo de indivíduos respeitáveis era convidado a assistir a ela e a testemunhar os resultados obtidos modestamente – isto é, a apagar dos experimentos qualquer traço de subjetividade. Um homem modesto era aquele cujos relatos poderiam ser tomados como um espelho da realidade, aquele no qual se poderia confiar (Shapin; Schaffer, 1985). A transmissão dos resultados dos experimentos e, consequentemente, a narração sobre as verdades do mundo dependiam diretamente da credibilidade destes homens. Shapin argumenta que, embora os experimentos tenham se modernizado e os métodos se complexificado, praticamente tudo que sabemos sobre ciências naturais ainda advém de relações sociais de confiança e da atribuição de credibilidade a determinados interlocutores (Shapin, 1994).

Revisitando os eventos narrados por Shapin, Donna Haraway (2018) chama atenção para um aspecto da filosofia experimental menos explorado pelo autor: o fato de que mulheres eram vedadas nos espaços em que as experimentações eram realizadas. Como exemplo, a autora comenta o experimento paradigmático da bomba de ar, realizado por Robert Boyle e narrado por Shapin e Schaffer (1985). Para avaliar os efeitos do ar (e de sua ausência, o vácuo) nos seres vivos, Boyle inseria, em uma câmara de vidro, pequenos animais. Aos poucos, ia retirando o oxigênio da câmara, levando os espécimes à morte. Em uma ocasião, porém, um grupo de mulheres de classe média interveio no experimento, demandando que a passagem de ar fosse liberada e os animais, salvos. Deste momento em diante, Boyle teria passado a admitir apenas homens em seu laboratório12 (Haraway, 2018).

Independentemente deste episódio, para Haraway, a admissão – física ou epistêmica – de mulheres nos espaços da ciência era uma impossibilidade porque elas sempre foram os corpos contaminados pela particularidade. Mulheres nunca poderiam ser consideradas como testemunhas modestas, porque o corpo em si é um viés, um subjetivador do mundo – e a subjetividade não é digna de confiança. Neste sentido, é paradigmático que, na visão de Boyle, não seja o cientista, e tampouco os homens, que matam os animais; quem mata é a máquina. Os homens são apenas os porta-vozes do experimento e, portanto, da verdade objetiva (Haraway, 2018).

Acredito que confiança e credibilidade são chaves pertinentes para ler o debate sobre o Essure no Distrito Federal. Se, como apresentado no tópico anterior, a posição das mulheres vítimas não pode ser compreendida como uma negação da técnica e da ciência, é necessário refletir sobre outras explicações para o estabelecimento da hostilidade entre a AMVEB e a Secretaria de Saúde. Assim como Brian Wynne (1992), parto do pressuposto de que a confiança e a credibilidade na informação técnico-científica não são valores dados de partida e tampouco frutos de um processo puramente intelectual. Elas são melhor compreendidas enquanto variáveis contingentes, que se estabelecem a partir de relações sociais, redes e identidades.

Quando o Essure surgiu como alternativa para a esterilização há muito aguardada, muitas mulheres confiaram na avaliação da Secretaria de que o produto ofertado era uma opção mais rápida, segura e indolor à laqueadura. Como colocado por Elmo Ferreira, era natural que as pessoas acatassem a recomendação de uma instituição como a SES, principal autoridade em saúde pública no âmbito distrital. A partir do momento em que os sintomas atribuídos ao Essure surgiram e se intensificaram, porém, muitas mulheres passaram a ver nos profissionais da SES pessoas incapazes de dar respostas satisfatórias aos problemas vividos – e, pior, pessoas incapazes de ouvi-las. Os casos de assédio verbal sofridos em ambiente hospitalar, por exemplo, foram denunciados às instâncias de controle da Secretaria, como à ouvidoria e ao próprio gabinete do secretário, mas a gravidade da situação foi contemporizada.

As violências morais sofridas, somadas à inabilidade dos gestores e dos técnicos da SES de ouvir as mulheres de forma empática e compreensiva, fizeram com que se estabelecesse um gap de credibilidade (Wynne, 1992) entre a SES e as mulheres vítimas. Uma vez quebrada a confiança, qualquer informação vinda da Secretaria – mesmo um estudo “eminentemente técnico” – passa a ser colocada sob suspeição.

A desconfiança, neste caso, é uma via de mão dupla. Mas, ao contrário do que aconteceu com a Secretaria – que foi perdendo sua credibilidade ao longo do tempo –, argumento que as mulheres vítimas e suas formas de associação nunca foram vistas pelos profissionais da SES como merecedoras de credibilidade epistêmica.

Miranda Fricker (2007) cunhou o termo “injustiça epistêmica” para se referir a atos de desrespeito a um indivíduo, ou a um grupo de indivíduos, em sua condição de sujeito de conhecimento (knower). Para além da distribuição desigual de “bens epistêmicos”, como educação e informação, a autora identifica que a injustiça epistêmica frequentemente é derivada de um preconceito que associa ao sujeito injustiçado a incapacidade de contribuir para trocas epistêmicas. Não raro, Fricker (2007) argumenta, este preconceito tem caráter identitário, isto é, está associado a estereótipos negativos a respeito do grupo social em que o falante se insere13. É o caso, por exemplo, da presunção de que mulheres sejam menos racionais que homens.

Fricker classifica os atos injustos em duas categorias: a injustiça testemunhal e a injustiça hermenêutica. A primeira ocorre quando o preconceito faz com que o ouvinte atribua um nível reduzido de credibilidade à palavra do interlocutor. A segunda, por sua vez, se dá em um estágio anterior, quando uma lacuna nos recursos interpretativos coletivos – por exemplo, a ausência de termos específicos para expressar uma determinada experiência – coloca uma pessoa numa situação de desvantagem na hora de descrever ou de compreender fenômenos sociais (Fricker, 2007). Ian Kidd e Havi Carel (2017) notam que, entre pessoas acometidas por doenças e enfermidades, a injustiça epistêmica costuma assumir a forma de uma dupla injúria: a marginalização de seus recursos e estilos expressivos – como a linguagem pouco técnica ou marcada por vícios de expressão – exacerba os já consideráveis desafios para expressar claramente aquilo que se sente ou que se deseja14.

As mulheres que foram convocadas para o Mutirão de Laqueaduras Tubárias – e que ouviram que, no dia seguinte à implantação, estariam à disposição do serviço, da casa e dos filhos (Manhã [...], 2022) – são mães, trabalhadoras e moradoras das periferias do Distrito Federal. Seus corpos, como colocaria Haraway (2018), estão marcados pela particularidade não só do gênero, mas também da raça e da classe.

Quando começaram a expor seus sintomas em hospitais e consultórios, estas mulheres tiveram seus relatos e suas preocupações desconsiderados pelos profissionais de saúde. Do direcionamento a especialidades como nutrição e psiquiatria até a sugestão de que estariam incorrendo em anticientificismo, as pacientes foram submetidas a sucessivos episódios de exclusão discursiva e de discriminação oriundos do preconceito identitário, que caracterizam a injustiça testemunhal descrita por Fricker (2007). A qualificação das mulheres vítimas como “loucas” e, posteriormente, como “desocupadas” também é uma forma de deslegitimar a participação delas no espaço político, enquanto cidadãs que acionam o poder público em busca da efetivação de direitos e da proposição de políticas15.

Por sua vez, é possível considerar que a injustiça hermenêutica se fez – e vem se fazendo – igualmente presente no caso do Essure. As mulheres vítimas parecem não dispor dos recursos necessários para expressar o tipo de sofrimento que advém da descredibilização de suas experiências. Embora tenham tentado expressar as violências epistêmicas sofridas de diversas formas (por exemplo, ao indicar que os médicos “desacreditam dos sintomas” ou atribuem as queixas ao campo da psiquiatria), isso não implica que haja uma compreensão compartilhada sobre o que o fenômeno representa – e nem, muito menos, que exista um termo para se referir a ele. Outras formas de violência já nomeadas, como violência obstétrica ou violência psicológica, não parecem indicar apropriadamente o que as mulheres vítimas do Essure viveram no contato com a SES. Suas experiências parecem se encontrar justamente no estágio de que fala Fricker (2007), isto é, quando faltam ao vocabulário palavras apropriadas para descrever adequadamente uma experiência.

Desde que criaram a Associação, Kelli e suas companheiras buscam formas de conferir credibilidade ao argumento de que o Essure é responsável pelos efeitos adversos vividos pelas mulheres. Como mencionei no tópico anterior, elas acionam médicos sensíveis à causa e correlacionam os achados clínicos comuns entre as pacientes. Diante da impossibilidade de produzir, elas mesmas, pesquisas científicas16, também cobram que a SES e outras instituições o façam. Ao agir dessa forma, elas estabelecem um tensionamento epistêmico com a Secretaria, disputando o lugar de autoridade no conhecimento sobre o dispositivo.

Contudo, a contribuição mais importante que elas oferecem para a compreensão do Essure talvez seja, também, a mais desprezada em termos epistêmicos. Apenas elas, mulheres vítimas do dispositivo, conseguem informar – para o público geral, para os médicos e, principalmente, para outras pacientes – sobre o Essure corporificado e sobre as formas de viver com ele. Elas detêm o conhecimento do paciente (Pols, 2010), a experiência vivida da doença (Kidd; Carel, 2017). Embora não pretenda ser científico, este tipo de conhecimento é valioso e deve ser tomado como um entendimento legítimo para o processo de avaliação do dispositivo e de construção de políticas públicas para aquelas que sofrem com os efeitos adversos dele.

Retomo, aqui, o argumento de Donna Haraway. Em contraposição à concepção de conhecimento amparada na racionalidade neutra, gerada pela descorporificação da visão do homem branco, a autora propõe uma objetividade feminista que trata “do conhecimento localizado, não da transcendência e da divisão entre sujeito e objeto” (Haraway, 1995, p. 21). Em sua concepção, apenas uma perspectiva parcial promete visão objetiva. A parcialidade, aqui, não significa apenas um conhecimento advindo do “eu”, uma identidade, mas um posicionamento crítico que compreende seu lugar nas relações com o mundo. Neste sentido, afirma Haraway, a política e a ética são a base de lutas pela contestação daquilo que pode ser considerado como conhecimento racional.

A partir da racionalidade posicionada, a ciência deixa de ser um modelo de fechamento para ser um modelo paradigmático daquilo que é contestável, da prestação de contas, da responsabilidade por traduções do mundo e das solidariedades que vinculam visões cacofônicas (Haraway, 1995). A ciência pode, enfim, ouvir (e confiar) no testemunho imodesto das mulheres vítimas do Essure.

III. Considerações Finais

Os possíveis efeitos adversos provocados pelo Essure deram origem a um impasse entre a Secretaria de Saúde do Distrito Federal e mulheres que se consideram vítimas do dispositivo. Os depoimentos na Audiência Pública da CLDF e no evento Manhã de Conhecimento denunciam um cenário de persistentes injustiças epistêmicas contra as pacientes e deixam entrever um estado de desconfiança sobre a atuação da Secretaria. Neste contexto, a Associação de Mulheres Vítimas do Essure Brasil surge não apenas para oferecer acolhimento às mulheres, mas também para contestar a posição de neutralidade técnico-científica reivindicada pela SES.

Além de reclamar cuidados em saúde e reparação pelos danos sofridos, as pacientes reivindicam que a SES assuma uma postura de escuta e produza conhecimentos “com dignidade e respeito às mulheres”. Em lugar de rejeitá-las sob o estigma de anticientificismo, acredito que as críticas apresentadas à Secretaria devem ser vistas como contribuições sérias, legítimas, ao processo técnico-científico de fabricação, testagem e disponibilização de um dispositivo biomédico. As queixas evidenciam a demanda por produtos seguros, por cuidados adequados e por comunicações honestas.

Mesmo que não sejam – e nem se coloquem como – cientistas, as mulheres vítimas também são importantes interlocutoras na produção de conhecimento sobre o Essure. Elas informam sobre o problema corporificado, o “dispositivo no corpo”, bem como sobre as formas de lidar com ele. Quando colocada no debate público, esta forma de saber localizado, para usar o termo de Donna Haraway, tensiona as relações epistêmicas estabelecidas até então.

Proponho que este tensionamento não enfraquece a posição científica, mas a qualifica. A compreensão do que o Essure é – das consequências que ele provoca, das relações que ele estabelece – não pode prescindir de análises multidimensionais. Confiar na perspectiva parcial, marcada pela particularidade, das mulheres vítimas talvez seja o único modo de chegar à visão objetiva do problema.

Referências

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Notas

2 Diante da não apresentação dos estudos de controle pós-mercado, a Anvisa determinou a suspensão da importação, da distribuição e da comercialização, do uso e da divulgação do Essure em 17 de fevereiro de 2017. Embora a determinação tenha sido revogada alguns meses depois, a Bayer anunciou a retirada do dispositivo dos mercados brasileiros em 2017. Ao final de 2018, o produto deixou de ser comercializado também nos Estados Unidos (Brandão; Pimentel, 2020; Firth, 2018; Pluchino, 2020).
3 Gostaria de agradecer à leitura atenta de Tiago Ribeiro Duarte e Elaine Reis Brandão, bem como ao apoio de Janaína Lima Penalva e das integrantes do Cravinas – Prática em Direitos Humanos e Direitos Sexuais e Reprodutivos (UnB) para a realização desta pesquisa.
4 A informação sobre o número total de mulheres que tiveram o Essure implantado no sistema público do DF foi obtida pelo Projeto Cravinas – Clínica de Direitos Sexuais e Reprodutivos (UnB), através de Pedido de Acesso à Informação respondido pela SES no Despacho SES/SAIS/CATES/DUAEC 74950809 (Distrito Federal, 2021).
5 O evento Manhã de Conhecimento é produzido pelo Instituto Todde, ligado ao escritório de advocacia Todde Advogados e Consultores Associados, que representa judicialmente dezenas de mulheres vítimas do Essure no Distrito Federal em ações para retirada do dispositivo e para indenização por danos morais e materiais. No dia 5 de agosto de 2022, a mesa teve como tema “Essure – Método Contraceptivo – Responsabilidade civil e da iniciativa privada em decorrência do vício do produto”, e foram convidados, além de Kelli, dois advogados e um médico. Na ocasião, o nome de Kelli foi grafado com “y” ao final; neste trabalho, optei pela grafia com “i”, utilizada por ela nas redes sociais e em outros eventos.
6 No início do evento, Elmo foi apresentado como médico formado em ginecologia e obstetrícia pela Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, tendo atuado como diretor médico do Hospital Municipal Nogueira de Souza, de Casimiro de Abreu-RJ, e como oficial médico do Exército. Em 1996, ele prestou concurso para a Secretaria de Saúde do Distrito Federal, por meio da qual trabalhou no Hospital Regional de Ceilândia (HRC), no Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB), em um posto de saúde e na Central de Regulação de Leitos de UTI. Aposentou-se em 2017 e, desde então, tem exercido a medicina em uma clínica privada.
7 Além do deputado e das integrantes da AMVEB e da SES, também estavam presentes, na Audiência, membros do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios e da Defensoria Pública do Distrito Federal. Ambas as instituições têm desempenhado importante papel na assessoria jurídica das mulheres vítimas e na mediação do conflito com a SES.
8 Em 01 de fevereiro de 2023, o grupo reunia mais de 1.300 membros. Por ser classificado como Grupo Público, todas as publicações, reações e comentários do “vítimas do essure Brasília (AMVEB)” estão visíveis aos usuários do Facebook.
9 O processo de revisão expressa (expedited review) está associado à aprovação pré-mercado (premarket approval – PMA) de dispositivos biomédicos. No caso do Essure, para expedição de licença, a FDA considerou dois estudos clínicos realizados pela Conceptus Inc., recomendando a realização posterior de estudos pós-mercado. Para Sanket Dhruva, Joseph Ross e Aileen Gariepy (2015), porém, os resultados apresentados pela fabricante não passaram por avaliação duplo-cega e eram baseados em testes não randomizados e sem grupo controle. Os autores acreditam que, se houvesse avaliações pré e pós-mercado de maior qualidade e divulgações mais transparentes dos resultados dos estudos, problemas com a eficácia e com a segurança do dispositivo poderiam ter sido detectados mais cedo.
10 A respeito dos estudos de vigilância pós-mercado e das queixas apresentadas por usuárias do dispositivo à FDA, vide FDA (2022) e Bayer (2021).
11 Para uma discussão sobre a “doença no corpo” nas teorias sociais e na biomedicina, vide Pols (2010). Sobre a relação entre movimentos sociais e mudanças tecnológicas, gaps no financiamento de pesquisas e ciência “não feita”, vide Hess (2015).
12 A respeito do trabalho de Robert Boyle e de suas intersecções com debates sobre gênero e ciências, vide Potter (2001).
13 Neste sentido, é importante pontuar que as relações epistêmicas são, na compreensão de Fricker (2007), relações situadas de poder. A autora utiliza o termo “poder identitário” para identificar episódios em que este poder se ancora nas concepções socioimaginativas compartilhadas sobre as identidades sociais dos sujeitos da relação.
14 Para mais aportes sobre injustiças epistêmicas em relações de cuidados em saúde, vide: Bell (2014), Gabriel e Santos (2020), Narruhn e Clark (2020) e Wardrope (2014).
15 Importante destacar, aqui, que Fricker (2017) argumenta em favor de uma interpretação estrita da injustiça testemunhal, de forma que a categoria abarque apenas atos não intencionais. Neste sentido, atos que tentam deslegitimar deliberadamente o testemunho das mulheres vítimas do Essure, como os insultos, poderiam ser melhor compreendidos a partir de categorias como manipulação, assédio moral ou gaslighting. Sobre as possibilidades de interseção entre gaslighting e injustiça epistêmica, vide McKinnon (2017).
16 Diferentemente do que foi documentado por Steven Epstein (1995) a respeito dos ativistas que viviam com AIDS nos Estados Unidos, capazes de aprender a linguagem dos estudos clínicos e ingressar nos espaços da produção científica sobre medicamentos anti-HIV, as mulheres vítimas do Essure não partem de um histórico de formação acadêmica e de prestígio social. Para elas, esta via de construção da credibilidade é praticamente inacessível.

Autor notes

* Ana Carolina Lessa Dantas. Mestra em Direito pela Universidade de Brasília (2021). Doutoranda em Direito junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. E-mail: anacarolinaldantas@gmail.com.
Editor(a) de Seção: Raquel Kritsch, https://orcid.org/0000-0002-5810-0704
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