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Bourdieu in the City – Challenging Urban Theory, de Loïc Wacquant
Bourdieu in the City – Challenging Urban Theory, by Loïc Wacquant
Mediações - Revista de Ciências Sociais, vol. 28, núm. 3, e48411, 2023
Universidade Estadual de Londrina

RESENHAS

WACQUANT Loïc. Bourdieu in the city: challenging urban theory. 2023. Cambridge. Polity Press

Recepção: 14 Junho 2023

Revised document received: 10 Agosto 2023

Aprovação: 04 Setembro 2023

DOI: https://doi.org/10.5433/2176-6665.2023v28n3e48411

A obra foi publicada no início de 2023, mas o projeto de sistematizar uma teoria urbana bourdieusiana não é novo. Com a publicação do artigo do sociólogo britânico Mike Savage (2011), intitulado de The lost urban sociology of Pierre Bourdieu, Wacquant sentiu-se instigado. Ele se juntou a Savage no ano seguinte para organizar um evento que objetivou revelar o trabalho de Bourdieu como recurso teórico e metodológico para a sociologia urbana. O resultado foi um dossiê, publicado no International Journal of Urban and Regional Research, denominado Bourdieu Comes to Town (Wacquant, 2018) e que reuniu 12 artigos em dois volumes.

Como se sabe, Bourdieu nunca tomou a cidade como objeto privilegiado de análise. Para ele, a convenção das especialidades sociológicas – como a “sociologia urbana” – deveria dar lugar a um conhecimento topológico que constrói a sociedade como um espaço inteligível das práticas sociais. É o que Wacqcuant demonstra em Bourdieu in the city: a relevância da obra bourdieusiana como recurso para a sociologia urbana encontra-se essencialmente na sua concepção espacial e relacional da sociedade. Comparativamente, se a topografia física descreve um terreno e as posições dos seus acidentes naturais, a topografia social de Bourdieu se debruça sobre os posicionamentos dos agentes no espaço social e as propriedades que definem essas posições.

Mas o espaço urbano aparece na obra de Bourdieu desde seus escritos da juventude, como analisou Wacquant (2017), passando por períodos de maior ou menor ênfase. Nos anos 1990 encontramos a maior sistematização e, consequentemente, o maior número de publicações com esse recorte. É o caso dos sete artigos publicados com vários/as coautores/as na Actes de la Recherche en Sciences Sociales em 1990, em um número temático chamado L’économie de la maison (Bourdieu, 1990). Já em 1991, Bourdieu proferiu palestra em Paris, na ocasião de um evento sobre pobreza, imigração e marginalidade urbana, com base em um artigo de trabalho que sistematiza a trialética espacial do simbólico, do social e do físico.

No Brasil, aquela palestra foi traduzida e publicada como artigo sob o título Espaço físico, espaço social e espaço físico apropriado (Bourdieu, 2013). É nesse artigo que se encontra a ideia de que “[...] o espaço social tende a se retraduzir, de maneira mais ou menos rigorosa, no espaço físico sob a forma de um determinado arranjo distributivo dos agentes e das propriedades” (Bourdieu, 2013, p. 133). E, como resultado de um projeto financiado pelo governo francês, em 1993 é publicada La misère du monde, que contou com uma equipe de pesquisadores e pesquisadoras sob a direção de Bourdieu. É nessa obra que os conceitos são colocados em prática e os efeitos de lugar (Bourdieu, 1997) na periferia urbana francesa são analisados.

E é justamente esse o caminho perseguido por Wacquant, que, além de ser reconhecido como o comentador mais autorizado de Bourdieu, dedica-se desde os anos 1990 a pesquisas comparativas sobre marginalidade, etnicidade e penalidade nas metrópoles neoliberais. Assim, a leitura de Bourdieu in the city, obra dividida em três capítulos, com prólogo e epílogo especialmente eficazes para a linha argumentativa do autor, atinge dois objetivos simultaneamente. O primeiro é a sistematização didática de Bourdieu como teórico urbano, e o segundo é a demonstração do valor da teoria para a produção de objetos empíricos originais, exemplificados com as próprias obras de Wacquant. Todos os capítulos são intermediados por quadros com textos que detalham e exemplificam aspectos teóricos e empíricos. Há também, ao final de cada capítulo, uma seção de respostas do autor às críticas recebidas de interlocutores ao longo do tempo, em um esforço de elucidação tanto dos usos adequados do arcabouço teórico de Bourdieu quanto das interpretações da sua agenda de pesquisa.

Destaca-se o esforço ilustrativo encontrado em seis representações esquemáticas que objetivam transpor imageticamente a essência processual e relacional da sociologia bourdieusiana e do programa de pesquisa desenvolvido por Wacquant. Um exemplo é a figura que ilustra a característica multidimensional da trialética espacial de Bourdieu e o esquema que posiciona relacionalmente os elementos de uma “topologia da produção e do impacto da mácula territorial” (Wacquant, 2023, p. 82), com base nos eixos de volume e composição de capital, articulados nas disputas localizadas no campo de poder (concepção fundamental para a superação da noção substancialista de “classe dominante”).

É no prólogo e no capítulo 1, denominado Bourdieu in the urban crucible, que se encontram as contribuições essenciais da obra para a revelação do Bourdieu urbano. Com habilidade, Wacquant define a trialética espacial – que relaciona de forma interdependente o espaço simbólico (das categorias mentais por meio das quais os agentes percebem e organizam o mundo), o espaço social (da distribuição das diferentes formas de capital) e o espaço físico (como ambiente socialmente qualificado e apropriado) – como a principal chave teórica e metodológica do conhecimento praxiológico bourdieusiano em perspectiva urbana.

É importante notar que Wacquant transita entre os termos urbano e cidade de forma fluida, embora fique evidente, ao menos para os leitores mais acostumados com a literatura, que a concepção de urbano está filiada ao sentido do urbanismo como modo de vida de Wirth (1938), sobretudo em relação à heterogeneidade, e a cidade ao sentido de locus, como lugar das práticas dos agentes, já mais convergente com a sociologia praxiológica. A cidade é o local do surgimento e expansão de múltiplos capitais e campos e o ponto de encontro de habitus variados. A cidade é um multiverso.

Já no capítulo 1 percebe-se que a obra exige do leitor amplo conhecimento da sociologia de Bourdieu. Mas, ao mesmo tempo, é proveitosa a organização didática que Wacquant desenvolve, assumindo a postura científica que sempre defendeu ao comentar a teoria do seu mestre: é necessário colocar Bourdieu para trabalhar. Mesmo que partes da obra sejam dedicadas a momentos epistemológicos – como as páginas que sistematizam os pilares centrais do pensamento de Bourdieu em Bachelard, Weber, Leibniz, Durkheim e Cassirer –, o foco é sempre a sustentação e a eficácia da pesquisa colocada em prática.

Sendo a prática de pesquisa o foco, é menos evidente o debate com outras perspectivas teóricas do urbano. Mas há um interlocutor latente: o “direito à cidade”, não apenas em suas manifestações autorais com Lefebvre e Harvey, mas também em sua consolidação como paradigma acadêmico. Embora o termo e os autores marxistas sejam citados poucas vezes, é perceptível que Wacquant dá continuidade ao protagonismo de Bourdieu em romper com o substancialismo e com a ilusão intelectualista que projeta “classes no papel” (Bourdieu, 1989). Um exemplo é o quadro que se encontra nas páginas 44-46 denominado Where is the city of the rich and powerful? Nele, Wacquant critica a miopia dos estudiosos do urbano, alimentada por uma seletividade populista que ignora os espaços citadinos do poder e do privilégio pelo simples fato de que eles não apresentam “problemas sociais”.

A utilização das ferramentas bourdieusianas exige do pesquisador uma prática de pesquisa relacional e processual, colocando lado a lado os territórios de estigma e os de prestígio, a distribuição e o acesso a capitais, a multiplicidade de campos e habitus. Por exemplo, os processos de enobrecimento urbano são analisados como aqueles garantidores de lucros de localização, ou seja, o espaço físico enobrecido garante a apropriação de bens e serviços raros e desejáveis e, ao mesmo tempo, caracteriza-se como capital simbólico, distintivo. É necessário, em seguida, constituir o espaço dos pontos de vista (Bourdieu, 1997), ou seja, as categorias de percepção e apreciação que podem ser verificadas nas estratégias e práticas dos agentes em seu cotidiano no espaço urbano, como no consumo de espaços socialmente distintivos.

No mesmo sentido, pode-se falar em prejuízos de localização. Tenho trabalhado com essa perspectiva por meio da noção de ancoração socioespacial, compreendida como a experiência limitante de mobilidade socioespacial baseada na correlação entre a posição ocupada no espaço social e o lugar ocupado no espaço físico. Em um nível estrutural, este fenômeno está associado à distribuição de agentes e capitais no espaço social reificado e ao controle sobre os lugares urbanos. Já subjetivamente, liga-se à formação de categorias de percepção e apreciação socioespaciais, como “pontos de vista”, habitus. Acontece que cada lugar tem características limitantes próprias e, portanto, cabe verificar cada caso empiricamente.

É o que Wacquant faz nos capítulos 2 – The bitter taste of territorial taint – e 3 – Marginality, ethnicity, and penality in the neoliberal metropolis. Nesses capítulos o autor revela como utilizou a trialética espacial bourdieusiana como base conectora da trilogia de suas principais obras. Trata-se de Urban outcasts: a comparative sociology of advanced marginality (Wacquant, 2008)2; Punishing the poor: the neoliberal government of social insecurity (Wacquant, 2009)3 e Deadly symbiosis: race and the rise of the penal state (Wacquant, 2011). É possível que o leitor mais acostumado com as obras de Wacquant do que com as de Bourdieu estranhe a conectividade profícua da sua argumentação, uma vez que ela não é anunciada, nem mesmo é evidente, nas publicações originais.

Mas pode-se considerar que a noção de trialética espacial é original, desde que sejam guardadas as dimensões próprias de cada componente (simbólico, social e físico). Não se confunde, como alerta o próprio Wacquant, com a proposta de Lefebvre em relação às três dimensões do espaço geográfico (o vivido, o percebido e o concebido) justamente porque a tríade do marxista se reduz aos usos do espaço físico.

Assim, o ponto de partida empírico é com Urban outcasts, evidenciado no capítulo 2, que se apresenta como um exemplo eficaz dos prejuízos de localização provenientes da mácula territorial. Nele o autor atualiza o conceito de estigma territorial, formulado em conjunto com o de marginalidade avançada, demonstrando a força do poder simbólico como instrumento de dominação ao nomear, sobretudo via Estado, os atributos depreciativos da pobreza, da raça, da origem nacional, dentre outras diferenças depreciativas que estruturam as metrópoles neoliberais.

Wacquant recupera o conceito de estigma de Goffman, um dos principais interlocutores de Bourdieu, e o relaciona com o de poder simbólico, concepção basilar para o mapeamento do espaço simbólico, transmutado no espaço físico via espaço social. A chave interpretativa aqui é a dominação, concebida a partir do ponto de vista do estigmatizado, essa que foi uma das principais contribuições metodológicas de Goffman. Ao mesmo tempo, Wacquant trabalha os conceitos de poder simbólico, capital simbólico, violência simbólica, campo burocrático e campo de poder, incluindo assim a tardia análise de Bourdieu sobre o Estado.

O capítulo 3 dá continuidade aos princípios criativos do conceito de marginalidade avançada, baseado, segundo Wacquant, na sociologia genética da dominação de Bourdieu. Além de Urban outcasts, encontram-se nesse capítulo as conexões com Punishing the poor e Deadly symbiosis. Em uma espécie de triangulação, a questão da punição evidencia a ponta do Estado, enquanto as outras duas pontas são a raça e a classe. A simbiose mortal é, nessa triangulação, o fenômeno que caracteriza a divisão racial como elemento que acentua a estratificação de classes e a penalização estatal.

Implementando os conceitos de Bourdieu, Wacquant mostra que é no espaço simbólico que se encontra o poder de definição da realidade, operacionalizado como poder de nomeação que levanta fronteiras no espaço físico e contribui para a classificação dos grupos. É nesse poder que se apoia o Estado (como campo burocrático) para a “construção de grupos homogêneos de base espacial” (Bourdieu, 2013, p. 138), sobretudo quando ele analisa seu polo disciplinar – em oposição ao polo protetivo – e a racialização da punição.

O espaço social é evidenciado pela multidimensionalidade de posições, localizadas por meio das coordenadas de volume e composição de diferentes tipos de capital que determinam a hierarquia urbana. É o espaço das disputas de apropriação pelas propriedades provedoras de poder. Mas é também o espaço das práticas perpetradas por agentes com habitus variados, ou seja, com categorias mentais diversas que direcionam suas trajetórias no espaço social e físico.

Seria possível, com base no epílogo da obra, construir uma definição bourdieusiana de cidade e, de forma convergente, uma metodologia de pesquisa que a operacionalize. Bastaria justapor as características, evidenciadas por Wacquant, de um Bourdieu na cidade e da cidade em Bourdieu. Mas o leitor não encontrará uma definição nem um método pré-fabricado, pois não se trata de fazer uso de um “kit Bourdieu”, mas sim de pôr em prática o conhecimento topológico.

A obra é de amplo interesse dos estudiosos dos fenômenos urbanos e das cidades, principalmente aqueles mais flexíveis ou que buscam um marco teórico alternativo ao mainstream marxista. Mas, como já alertado, o aproveitamento da leitura está diretamente relacionado ao conhecimento da sociologia de Bourdieu e da agenda de pesquisa de Wacquant. Pois é raro, no Brasil, encontrar programas de disciplina sob o título de “Sociologia urbana” que não contenham alguma referência de Wacquant, mas que que listem alguma referência de Bourdieu. Essa obra tem potencial para mudar esse cenário.

Referências

BOURDIEU, Pierre (coord.). A miséria do mundo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

BOURDIEU, Pierre (dir.). L’économie de la maison. Actes de la recherche en sciences sociales, Paris, v. 81-82, p. 2-127, mar. 1990. E-ISSN 1955-2564

BOURDIEU, Pierre. Espaço físico, espaço social e espaço físico apropriado. Estudos Avançados, São Paulo, v. 79, n. 27, p. 133-144, 2013.

BOURDIEU, Pierre. Espaço social e gênese das classes. In: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. São Paulo: Difel, 1989. p. 133-161.

SAVAGE, Mike. The lost urban sociology of Pierre Bourdieu. In: BRIDGE, Gary; WATSON, Sophie (ed.). The new Blackwell companion to the city. Oxford: Wiley-Blackwell, 2011. p. 511-520.

WACQUANT, Loïc. Bourdieu comes to town: pertinence, principles, applications. IJUUR, Hoboken, v. 42, n. 1, p.90-105, jan. 2018.

WACQUANT, Loïc. Bourdieu in the city: challenging urban theory. Cambridge: Polity Press, 2023.

WACQUANT, Loïc. Bourdieu viene a la ciudad: pertinencia, principios, aplicaciones. EURE, Providencia, v. 43, n. 129, p. 279-304, mayo 2017.

WACQUANT, Loïc. Deadly symbiosis: race and the rise of the penal state. Cambridge: Polity Press, 2011.

WACQUANT, Loïc. Punishing the poor: the neoliberal government of social insecurity. Durham: Duke University Press, 2009.

WACQUANT, Loïc. Urban outcasts: a comparative sociology of advanced marginality. Cambridge: Polity Press, 2008.

WIRTH, Louis. Urbanism as way of life. The American Journal of Sociology, Chicago, v. 44, n. 1, p. 1-24, July 1938.

Notas

2 Versão anterior foi publicada no Brasil como Os condenados da cidade, em 2001, pela Editora Revan.
3 Versão anterior foi publicada no Brasil com o título Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos, em 2001, pela Editora Revan.

Autor notes

* Fernando Kulaitis. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (2013). Docente junto ao Departamento de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: fernandok@uel.br.
(a): Rodrigo Mayer, https://orcid.org/0000-0002-8611-2489


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