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“Ninguém Quer Ir para o Hospital” – Gramáticas Morais e Redes de Abortamento entre Mulheres no Brasil
“No One Wants to Go to the Hospital” – Moral Grammars and Abortion Networks among Women in Brazil
Mediações - Revista de Ciências Sociais, vol. 29, no. 1, e49134, 2024
Universidade Estadual de Londrina

DOSSIÊ – Mulheres e Política, e Políticas para Mulheres no Século XXI


Received: 13 October 2023

Accepted: 19 January 2024

Published: 28 March 2024

DOI: https://doi.org/10.5433/2176-6665.2024v29n1e49134

Resumo: Este texto tem como objetivo compreender as gramáticas morais por meio das redes de abortamento construídas por e entre mulheres no contexto brasileiro. Nosso intuito é analisar como a organização entre essas atrizes sociais é arquitetada nas omissões do Estado e nas insuficiências das políticas públicas. Para tanto, realizamos uma pesquisa empírica em rede (on e offline), considerando o fluxo de informações em plataformas de redes sociais e sites, a análise de cartilhas e materiais informativos e entrevistas com ativistas que atuam no atendimento de mulheres que desejam abortar. Notamos que as redes conduzidas por mulheres reconfiguram gramáticas morais em torno da noção de vítima, assim como evidenciam uma fronteira porosa entre legalidades e clandestinidades, uma vez que ocupam lacunas da realização de abortos legais, da educação em saúde reprodutiva e segurança jurídica, e da promoção de relações de gênero não vulnerabilizantes.

Palavras-chave: aborto, redes sociais, Estado, políticas públicas, ativismos.

Abstract: This text aims to understand moral grammars through abortion networks built by and between women in the Brazilian context. Our aim is to understand how the organization between these social actors is architected through the omissions of the State and the insufficiencies of public policies. To do this, we carried out empirical research in networks (on and offline), looking at the influx of information on social media platforms and websites, analyzing leaflets and information materials, as well as conducting interviews with activists working with women who want an abortion. We noticed that networks led by women reconfigure moral grammars around the notion of victim, as well as highlighting a porous border between legality and clandestinity, since activists occupy gaps concerning legal abortions, education in reproductive health and legal security, and the promotion of non-vulnerable gender relations.

Keywords: abortion, social networks, state, public policies, activism.

Introdução

A fala que dá nome a este texto foi extraída de uma entrevista com uma militante feminista que atua há quase dez anos auxiliando mulheres que desejam interromper a gestação no Estado do Paraná. O enunciado – “ninguém quer ir para o hospital” – se desdobra em uma reflexão acerca das dificuldades encontradas por mulheres que procuram os serviços de aborto legal em hospitais da região de Curitiba. Segundo ela, são inúmeros os casos de mulheres que, mesmo amparadas pela lei4, preferem realizar o aborto na clandestinidade.

Pudemos mapear, em longa conversa que tivemos, uma série de impeditivos para que as mulheres se sintam acolhidas pelo hospital: a mobilização, por parte dos profissionais da saúde, da objeção de consciência na recusa em realizar o aborto; a captura das mulheres por uma rede de burocracias que atrasam o processo, causando medos e impossibilidades; o receio da exposição pública e da ruptura do pacto em torno do sigilo; as negociações acerca do tempo de gestação; e os conflitos morais da relação médico-paciente ou com a equipe de enfermagem. O resultado é que mesmo mulheres que podem abortar legalmente no país acabam por recorrer à clandestinidade, borrando as fronteiras entre a busca por aborto legal e clandestino no Brasil.

Na cidade de Curitiba – onde se origina a pesquisa que tem este texto como um de seus frutos – notamos, por meio de um panfleto informativo produzido por um conjunto de instituições, que o aborto legal, no contexto da pandemia, esteve vinculado ao Instituto Médico Legal (IML). Este aspecto, por si, denota uma dificuldade da capital paranaense – uma das capitais economicamente mais desenvolvidas do país – de criar ambientes próprios para esse tipo de atendimento (Mesmo [...], 2022)5. Vincular o aborto à morte, por meio de um espaço como o IML, responsável por necrópsias e laudos cadavéricos, é algo corrente no senso comum e nos discursos dos movimentos antiaborto, que postulam a necessidade absoluta de manutenção da vida do embrião até o nascimento.

Esses arranjos conduzem as mulheres por uma trama paralela ao hospital, que envolve uma rede de ativistas, militantes, profissionais da saúde, curiosas, educadoras e pessoas interessadas. A necessidade de interrupção da gravidez, seja nos casos permitidos por lei, seja naqueles atravessados por dinâmicas de clandestinidade, enreda sujeitos que atuam nas omissões e fragilidades do Estado e da política pública de saúde, em um contexto que criminaliza a autonomia das mulheres em relação a seus corpos.

Nesse sentido, a análise aqui proposta busca compreender as redes online e offline constituídas por mulheres, bem como as gramáticas morais que ocorrem nas fronteiras entre legalidade e clandestinidade e, sobretudo, nas situações em que o Estado brasileiro se mostra insuficiente. Vale ressaltar que este texto é resultado de um conjunto de pesquisas que visaram compreender o acesso ao aborto legal, bem como a situação das redes de abortamento legal e clandestino no Brasil.

O projeto de pesquisa que dá origem aos desdobramentos aqui contidos é coordenado pela professora Taysa Schiocchet, intitulado Impactos da pandemia do Covid-196 no acesso ao aborto legal por meninas e mulheres usuárias do SUS: avaliação diagnóstica e estratégias de atuação na perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos, e foi contemplado pelo Programa CAPES-EPIDEMIAS – Programa Estratégico Emergencial de Prevenção e Combate a Surtos, Endemias, Epidemias e Pandemias. Este projeto, compreendido como projeto guarda-chuva, engloba a pesquisa Mídias Digitais nas fronteiras entre abortamento legal e clandestino no Brasil, coordenada pela professora Lara Facioli, ambas desenvolvidas na Universidade Federal do Paraná (UFPR), pela Clínica de Direitos Humanos (CDH) e pelo Núcleo de Estudos de Gênero (NEG). Vale ressaltar que as demais autoras desse texto desenvolveram pesquisas de Iniciação Científica cuja temática se concentrou na compreensão das redes on e offline de abortamento em contexto brasileiro.

Muito embora o foco contextual da pesquisa-eixo seja o momento da Pandemia da Covid-19, a observação das postagens em plataformas se expandiu para momentos anteriores, que se estendem desde 2017 até o ano de 2023, marcos que acompanham, respectivamente, a entrada massiva de parte das organizações feministas na plataforma do Instagram e o período mais próximo aos prazos de escrita dos resultados de pesquisa, de modo a mantê-los atualizados. Tratou-se de uma estratégia que se apropria das características da ferramenta digital de manutenção deste passado online, com vistas a compreender os fluxos de informação que compõem a atuação dos coletivos de mulheres e das redes analisadas.

Os posts identificados nesse intervalo de tempo (200, aproximadamente) foram catalogados com base em sua temática norteadora (se referente ao acesso ao aborto ou a outra questão social correlata) e nos sujeitos mobilizados (se direcionado e vinculado a articulações com outros grupos, a um público profissional e ativista, e/ou a mulheres em busca do serviço). O período de catalogação e análise compreendeu os meses de janeiro a outubro de 2023. Consultamos também duas cartilhas de orientação produzidas por organizações cuja identificação colocamos a seguir tendo em vista seu aporte legal, juridicamente embasado, que assegura o não comprometimento das envolvidas. Foram elas: o “Guia de Defesa Popular da Justiça Reprodutiva” (Coletivo Margarida Alves, 2020) e o “Guia de Boas Práticas de Cobertura Feminista sobre Aborto no Brasil” (Carvalho; Vella; Assis, 2023).

Na frente online, nossa observação se dedicou a acompanhar o fluxo dos sujeitos em rede, o que envolveu observação das plataformas diversas, em suas múltiplas funcionalidades, desde postagens em stories e linha do tempo até bate-papos privados. Realizamos a observação de interações em páginas do Instagram e em sites de coletivos feministas e organizações não governamentais (ONGs) que atuam no auxílio a mulheres que necessitam interromper a gestação. Também acompanhamos redes clandestinas de abortamento que se iniciam em páginas do Instagram e do Facebook e prosseguem via WhatsApp. Por fim, realizamos quatro entrevistas com militantes e ativistas feministas que atuam diretamente nas frentes pela legalização do aborto no Brasil, bem como auxiliam mulheres que procuram pelo aborto legal, principalmente7.

Quando nos propomos a analisar as redes de mulheres, referimo-nos à noção de rede em termos amplos, não restrita somente às redes sociais digitais, embora essas sejam centrais na constituição do que estamos observando aqui. São redes on e offline que, juntas, possuem como características não somente “[...] criar ligações entre indivíduos ou comunidades separadas em diferentes espaços” (Martino, 2014, p. 61), mas também estabelecer ambientes de acolhimento, informação e acompanhamento livre e atento, que rompem com o pressuposto de vitimização das mulheres. Dessa forma, não existe uma cisão real entre as esferas on e offline, pois elas são mutuamente constituídas. Neste texto, marcamos certa separação de modo didático para tornar claros para a leitora e o leitor os espaços nos quais a pesquisa foi conduzida.

As Redes entre Mulheres e as Fronteiras Porosas entre Legalidade e Clandestinidade

Na internet, cresce a presença online de coletivos que se mobilizam em torno da questão do aborto, no sentido de acolher e informar mulheres a respeito dos processos legais e políticos que envolvem a realidade legal brasileira. É o caso das ONGs que atuam tanto em território brasileiro, informando sobre os caminhos médicos possíveis para os casos previstos por lei, como também daquelas que instruem e encaminham pessoas interessadas em realizar o abortamento em países latino-americanos nos quais a prática é um direito garantido pela legislação. No caso dos abortos clandestinos, as condutas das ONGs têm sido de intervir visando garantir que as mulheres façam o procedimento com a maior segurança possível e de reforçar o uso do misoprostol como método benéfico, assegurado para a prática, desde 2005, pela própria OMS.

Essas orientações, relações, discussões e exposições de informação ocorrem em plataformas como o Instagram, o Twitter, o Facebook e, mais recentemente, o TikTok. Diferentes páginas, publicações e perfis ativistas têm como proposta “tirar o aborto do armário”, o que significa não só falar abertamente sobre a questão, mas também compartilhar relatos frequentes de mulheres que decidem interromper a gravidez e conseguem finalizar o procedimento, de forma segura, através do auxílio oferecido.

A dinâmica do “armário”, neste caso, pode ser entendida nos termos de Eve Sedgwick (2007), que discutiu as relações de afeto entre pessoas do mesmo sexo. Para a autora, o armário é um regulador da vida social, um modo de pensar a realidade e mover-se nela. De forma semelhante ao que acontece em relações de sexualidade, a prática do aborto envolve estratégias subjetivas de exposição e ocultamento8. As negociações em torno de como e para quem dizer estão atravessadas por uma tentativa, por parte das mulheres, de não causar para si e para as pessoas próximas danos psicológicos, emocionais e físicos adicionais aos que a criminalização do aborto no contexto brasileiro já acarreta. Ao contrário do que afirma o senso comum, o sofrimento do processo de abortamento se espraia para circuitos familiares e de amigos e para as relações que as mulheres estabelecem com outras pessoas (Simões, 2019).

Conforme explica a pesquisadora argentina Barbara Sutton (2017), os enquadramentos morais que movimentam esses silenciamentos são operados sob uma dinâmica biopolítica9, composta pela conjugação das economias políticas dos Estados com as moralidades religiosas. Tutela-se a capacidade de intervenção de sujeitos gestantes sobre si, fazendo a interdição das interrupções gestacionais figurar como o impedimento de um ato de violência contra o corpo cidadão presente e futuro. Lançar as mulheres à criminalidade assegura, assim, uma relação de envergonhamento pela penalização social. A culpabilização introjetada por quem aborta tende a minar o entendimento de aborto como um direito, fazendo do silêncio, por vezes, a saída menos degradante (Sutton, 2017, p. 895).

Nesse itinerário normativo, é o sofrimento o fator que autoriza a fala. Ou seja, escuta-se quem se encaixa no perfil de vítima ideal de violações sexuais e que, posteriormente, passa a requerer um aborto; quem sofre fisicamente, ou psiquicamente, pela inviabilidade de seu feto; e, nas narrativas da clandestinidade, quem confessa uma contínua dor moral decorrente de seus atos. Portanto, podemos delimitar que as economias morais do sofrimento, em suas vertentes jurídicas, midiáticas e biomédicas, compõem um regime constritivo de cidadania sexual (Sabsay, 2016).

“Tirar o aborto do armário”, na direção de produzir um conjunto de informações que contribua para deixar de vê-lo como tabu, não encontra correspondente nas condutas das mulheres que necessitam interromper a gestação, seja na esfera legal ou clandestina, uma vez que para elas, neste atual contexto de criminalização, guardar segredo e esquecer o que foi feito é algo urgente e necessário, que pode impedir confrontos, julgamentos e efeitos judiciais.

Para George Simmel (1999), o segredo permite o alargamento da vida social, a manutenção de alguns laços e a possibilidade de criação de um segundo mundo baseado em estratégias de exposição e gerenciamento de si. No caso das mulheres, a estratégia do segredo permite, no limite, a manutenção da liberdade nos termos da lei e a confiança de não ser submetida diariamente a rótulos morais como o de “aborteira”, “assassina”, entre outros.

Pensar na construção de redes de abortamento entre mulheres pressupõe compreendê-las a partir da circulação de pessoas, de dinheiro, de valores simbólicos, de informação, de relações interpessoais, de redes de cuidado e de gramáticas morais. E, nesse sentido, a constituição dessas redes, de forma a escapar à dicotomia legal/ilegal, pode ser pensada a partir da noção de gestão dos ilegalismos, elaborada por Michel Foucault (2016).

A ideia de ilegalismos enquanto operador analítico rompe com uma narrativa que entende a gestão do crime como mera reação estatal à constatação de ilegalidades (Salle, 2014). A gestão daquilo que é considerado uma prática criminosa ou ilegal, nessa perspectiva, se produz por meio de relações e jogos de poder (Pimentel; Pinho, 2022) que envolvem a própria lei e os aparatos jurídicos, não por meio de uma diferenciação evidente e consolidada entre o legal e o ilegal. Em outros termos, essas fronteiras são nebulosas e podemos nos questionar sobre como as mulheres transitam por elas, bem como a forma que lidam com essa permeabilidade, a partir das redes que se constituem on e offline.

A elaboração acerca da “gestão diferencial dos ilegalismos” de Michel Foucault (2007) parte do pressuposto de que a lei não é feita para impedir determinados tipos de comportamento, mas para diferenciar as maneiras de burlar a própria lei e para impor limites à própria ilegalidade. Leis, codificações e regras formais, de acordo com Vera Telles (2010, p. 101), “[...] têm efeitos de poder, circunscrevem campos de força e é em relação a elas que essa transitividade de pessoas, bens e mercadorias precisa ser situada”. Não se trata, portanto, de uma oposição entre o formal e informal, legal e ilegal. Na verdade, é em suas dobras que se circunscrevem jogos de poder, relações de força, campos de disputa e desigualdades. 

Nesse sentido, informadas por tais reflexões, optamos por utilizar as categorias de legal e clandestino a fim de matizar os meios pelos quais os abortamentos passam a habitar essas dobras. Acreditamos que enfatizar a clandestinidade, ao invés da “ilegalidade”, de alguns dos procedimentos ajuda a tensionar a pretensa coerência e complementaridade entre ilegalidade e criminalização dos abortos que não cumprem os critérios de exclusão da lei. Além disso, oferece ferramentas para compreender os caminhos trilhados por mulheres que iniciam suas demandas por interrupção legal de gestação nos serviços de saúde, mas que, por quaisquer que sejam as motivações, os concretizam por vias outras que não as instâncias oficiais e legítimas. 

Por tais razões, sustentamos que a categoria de clandestinidade propicia a elaboração de uma perspectiva que explicita um emaranhado de relações (legais e ilegais) que estão às margens do Estado. Em termos mais claros, não é totalmente possível separar as esferas da legalidade exclusiva e da clandestinidade na busca por aborto no Brasil, uma vez que mesmo aquelas mulheres cuja ação está assegurada por lei podem, por inúmeros motivos, recorrer a métodos clandestinos dos mais diversos, sejam eles seguros ou não, com vistas a acelerar o processo, passar por menos exposição e humilhação ou, simplesmente, conseguir abortar10.

Isto posto, optamos neste artigo por colocar sob uma mesma chave relatos e histórias sobre abortamentos legais e clandestinos, contados pelas ativistas ou postados em rede social, de forma que não cabe uma comparação entre os diferentes casos. No caso de abortamentos que não envolvem as três prerrogativas legais, é também a omissão do Estado que está posta, no que tange aos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres. Em outros termos, o fato é que a criminalização do aborto cerceia o agenciamento de mulheres que desejam não gestar11, do mesmo modo que impulsiona a consolidação de formas avessas e inseguras de encerrar gestações12.

O que constatamos a partir da pesquisa empírica é que redes feministas de acompanhamento para abortar atuam entre as linhas borradas das instâncias oficiais e as omissões da política pública no sentido de atender e tentar viabilizar a segurança física, emocional e financeira das mulheres, em diferentes situações de legalidade, que se sentem desamparadas pela saúde pública. Uma publicação de itinerário abortivo coletada na página virtual de uma organização feminista diz terem sido fundamentais as orientações recebidas sobre os meios possíveis de realizar o aborto, bem como o suporte para que a sua realização acontecesse de forma segura e legal – que neste caso se realizou dentro das exclusões da lei brasileira. Dizia a narradora: “Pude correr atrás do meu direito sem medo!”, tendo passado pelo acolhimento da organização.

Para este texto, nas dobras, fronteiras e relações que se estabelecem entre o legal e o clandestino, pudemos compreender a importância de tais redes para a manutenção da vida, no alívio ao sofrimento e no compartilhamento de informações. É isso que nos interessa reforçar, no sentido de apontar, neste complexo momento histórico em que vivemos13, as negociações, agenciamentos e efeitos de um Estado omisso, insuficiente e que segue criminalizando as práticas de abortamento entre mulheres.

É nesse contexto que observamos uma prática de “redução de danos”, termo usado por um coletivo feminista ao justificar o ato de “compartilhar informações justas e seguras”, em uma postagem em rede online. Esse aspecto traduz bem o trabalho que os circuitos de ajuda mútua vêm desempenhando em território nacional.

Um Olhar sobre as Redes Feministas em Torno da Questão do Aborto: o Digital como Relação

Na esteira dos estudos das estratégias de ativismos feministas em defesa do aborto, abordamos algumas das tendências da sociologia que têm sido tecidas em relação aos processos de articulação dos movimentos sociais, fundamentalmente a partir de redes sociais da internet. Conforme analisa Rodrigo Nunes (2023, p. 19), com base no exame de trabalhos sobre os movimentos Occupy e a Primavera Árabe, a propulsão de ações coordenadas a partir de esferas digitais vem sendo inserida em interpretações segmentadas acerca dos modos de organização política. Elas atribuem às virtualidades uma posição de espaço mobilizatório.

Essa problemática coloca em cena questões em torno dos chamados ciberfeminismos. Eles designam uma série de manifestações produzidas a partir da década de 1990, que se opunham ao essencialismo tecnológico das feministas radicais de 1970 e 1980, para quem os aparatos digitais, dado seu desenho masculino, seriam necessariamente falocêntricos (Paasonen, 2005).

Ainda assim, segundo explica Susanna Paasonen (2005), é importante que não criemos um entendimento contingente acerca da categoria dos ciberfeminismos, sem reduzi-la a um mero marcador geracional, nem, tampouco, equipará-la aos usos e criações tecnológicas por mulheres. Um caminho profícuo é colocado por Judy Wajcman (2010, p. 149), teórica tecnofeminista, que defende “[...] conceber a tecnologia como fonte e consequência das relações de gênero”. Sua perspectiva retoma abordagens dos feminismos socialistas (Wajcman, 2010, p. 147), que deslocaram o conceito de tecnologia de um equipamento técnico altamente inventivo para o reconhecimento dos artefatos sociotécnicos do cotidiano pensados a partir da modelagem social da tecnologia (Social Shaping of Technology).

Esta abordagem busca examinar e compreender a tecnologia tomada tanto por fatores sociais variados – sejam eles econômicos, políticos e culturais – quanto por sua dimensão técnica. A visão do senso comum tende à ideia de que a mudança técnica é a causa primária da mudança social e que fatores sociais e humanos apenas medeiam o processo considerado “natural” da revolução tecnológica. Já para a concepção da modelagem social da tecnologia, uma ferramenta técnica não pode ser pensada deslocada de seus contextos.

Em outros termos, essas redes de mulheres nada têm de espontâneas; trata-se de um campo de forças criado em relação constante com o Estado para lidar com os efeitos da omissão deste na lida com políticas de saúde e de manutenção da vida das mulheres. São redes arregimentadas pela nossa própria cultura política e social que impediu grupos historicamente subalternizados de acessar não somente direitos fundamentais, mas também condições de escolha em torno da própria vida e do próprio corpo.

Preocupadas não apenas com a situação legal do aborto no Brasil, uma das publicações de organizações feministas coletadas no Instagram, por exemplo, perguntava o que viria “depois da descriminalização”. A resposta vinha em seguida: construir redes de apoio para combater o estigma e lutar para concretizar o acesso gratuito e justo ao aborto. A legenda da imagem continua afirmando que a população brasileira tende a rechaçar a interrupção da gravidez por “noções políticas, religiosas ou morais”, negando que o diálogo sobre o tema seja rejeitado apenas por se enquadrar como um “crime”.

Como demonstram os exemplos, as redes digitais de abortamento, embora sejam gestadas em conjunturas nacionais específicas, são utilizadas contextualmente, de forma que o digital marca não uma esfera separada do “real”, mas constituída em consonância com e a partir dele. Isto é, digital não é um espaço abstrato, mas uma trama de relações sociais que incorporam contextos locais, nacionais e, por vezes, globais.

Em que pese o fato de lidarmos com o espaço institucional de ONGs que atuam, fundamentalmente, na esfera da legalidade, é importante mencionar que redes absolutamente clandestinas, mercadológicas e, por vezes, golpistas, cuja atuação coloca a vida das mulheres em risco, compartilham do mesmo espaço digital, on e offline, na disputa em torno das práticas de abortamento.

São inúmeros os grupos na internet em que mulheres compartilham experiências de abortamentos de risco e, principalmente, de golpes que envolvem a venda de misoprostol falsificado. Geralmente, o circuito por onde passam essas mulheres envolve um fluxo que sai do Instagram para espaços privados, como as conversas do WhatsApp. Neste último, em total anonimato, mulheres e vendedores de medicamentos barganham o processo de abortamento – sem segurança e garantia alguma para elas14.

Essas redes online podem alcançar esferas e dinâmicas presenciais, culminando em clínicas clandestinas inseguras ou mesmo na possibilidade de cruzar fronteiras nacionais com vistas à realização de aborto legal e seguro em outros países. Ou seja, trata-se da trama de uma rede cujos elementos e nós vinculam a internet às dinâmicas contextuais e regimes jurídicos impeditivos.

A Arquitetura das Redes: entre Feminismos, Institucionalidade e Mercado

Podemos compreender os circuitos feministas de acesso ao aborto como atravessados por disputas em torno dos itinerários de abortamento com grupos clandestinos que agem tanto on – considerando aqui as páginas mercadológicas de venda remota do misoprostol – quanto offline, se tomarmos em conta clínicas e pontos clandestinos de entrega do medicamento. Nesses espaços, as vendedoras e vendedores clandestinos podem assumir a tarefa de encaminhar a forma de uso correta dos remédios abortivos, podendo apresentar mais ou menos cuidado e compreensão com a situação das mulheres que os procuram. Apontamentos feitos por Diniz e Madeiro (2012) e Porto e Souza (2017) em pesquisas etnográficas acerca de itinerários abortivos, realizadas em diferentes localidades brasileiras, mostram que a postura dos intermediários comerciais varia de acordo com o contexto. De todo modo, os trabalhos sugerem que a ação desses agentes está vinculada, sobretudo, à intenção mercadológica de venda de produto, como também ao temor da denúncia (Porto; Souza, 2017, p. 602).

Em outra via, parte do potencial de acolhimento das redes de mulheres se estrutura mediante o comprometimento com uma política militante transnacional. Seja nas entrevistas coletadas, seja nos campos etnográficos via Instagram, notamos a recorrência da presença de organizações brasileiras em encontros ativistas e seminários internacionais sediados pelos movimentos dos países vizinhos. Em 2019, representantes de uma das ONGs participaram do “1º Simpósio sobre Arte, Política e Feminismo”15, promovido pelas Socorristas en Red16, coligação de coletivos atuantes na distribuição de abortivos e no acompanhamento das interrupções. Segundo manifestado pelas organizadoras e ecoado pelas brasileiras, estando há um ano do histórico debate no Congresso Nacional, o espaço serviu como convite para pensar e refletir sobre a descriminalização e legalização do aborto, com a intenção de contribuir para a ampliação do repertório de imagens e narrativas “outras” que permitam transformar e desconstruir os sentidos sociais cristalizados sobre o aborto, os direitos sexuais (não) reprodutivos e as autonomias corporais.

Apesar de sua contundência temporal, focada no acirramento do embate legislativo argentino, a iniciativa socorrista reúne o aprofundamento de diálogos intercontinentais determinantes à formação das experiências de ativismo e de formatação das enunciações de defesa do aborto. Essa mesma ONG mantinha contato com participantes do 14º Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho (EFLAC), realizado em 2017 no Uruguai. A obra de Álvarez et al. (2003), histórica feminista argentina, ao lado de pesquisas mais recentes, como a de Julia Kumpera (2021), enfatiza que os EFLACs têm servido como terreno de negociação e encaminhamento dos grupos desde sua consolidação na década de 1990.

Alguns dos zines e cartazes produzidos em 2017, com frases como “abortar é um ato político” e “educação sexual para decidir, aborto livre para não morrer”, serviram de inspiração para a chamada do Festival pela Vida das Mulheres, realizado em Brasília, em 2018. Nele, o entrecruzamento de debates é o sentido que parece predominar, com lenços verdes pelo aborto legal se sobressaindo em rodas de conversa sobre sexualidades dissidentes. Tal compromisso com uma politização antinormativa do aborto é simultaneamente construído por meio de alianças de comunicação digital e artística.

Assim, é constituinte da arquitetura das redes por aborto certa transitividade, de acordo com a qual a materialidade de posturas e publicizações do aborto vai sendo costurada em pontilhados que se abrem ao nacional e transnacional. Para tanto, há a penetração em mídias digitais, que contam com a permeabilidade de públicos e com a reverberação da mensagem. Todavia, permanece o risco constante imposto pelas “paredes” da institucionalidade: “Você pode descobrir a dureza da parede pelo que acontece com o que foi arremessado contra ela: uma parede pode ser marcada pelo encontro com o objeto” (Ahmed, 2022, p. 232).

As paredes da criminalização fazem funcionar barreiras que enclausuram e confrontam as alternativas de distribuição do misoprostol por vias de acusações dolosas com base no registro de atividades online e a intercepção sistemática de encomendas após denúncias aos Correios. Esta última medida causou, inclusive, o encerramento de uma das principais infraestruturas de fornecimento internacional do abortivo para uso caseiro no Brasil. A partir de 2019, uma das organizações que acompanhamos, sediada no Norte Global e com entradas em países latino-americanos, teve que encerrar seus envios ao Brasil, após sucessivos casos de revista e despejo dos pacotes que enviavam.

Daí em diante, essa mesma organização adotou a estratégia que também tem sido o foco das ativistas brasileiras. Em face do risco das denúncias internas de perseguição política e prisão, elas pautam o desenvolvimento de guias de abortamento seguro e de defesa jurídica para as pessoas que desejam interromper uma gestação. Os materiais operam uma instrumentalização da matriz jurídica para abaular os poderes punitivos: “para que haja acusação da prática do aborto, é necessário que se prove o estado fisiológico de gravidez através de perícia, bem como que o aborto foi provocado e não natural”; e “o direito à não autoincriminação significa que ninguém é obrigada a se autoincriminar ou a produzir prova contra si mesma” são exemplos das diretrizes comumente reforçadas pelas cartilhas.

Em último nível, tanto as cartilhas quanto os guias que determinam as posologias recomendadas pela Organização Mundial da Saúde produzem um enraizamento simbiótico entre legal e ilegal, já que, reverberando horizontes oficialmente situados na licitude, blindam quem aborta na clandestinidade contra os dispositivos de confessionalismo dos regimes de criminalização e, com isso, alargam as margens de segurança para agir na suspensão dos limites legais.

Finalmente, o limite de licitude da não comercialização direta do misoprostol também é tensionado. Mesmo que as ONGs optem por não o fazer, para garantir a continuidade de suas operações, usuárias ocupam as áreas de comentários das publicações em favor da descriminalização ou de compartilhamento dos guias ora com palavras curtas que remetem ao socorrismo, ora com a indicação de fornecedores que, de acordo com suas experiências pessoais, teriam se mostrado confiáveis. 

Essa ampla rede de relações denota a assídua proximidade entre institucionalidades do terceiro setor – presentes em eventos jornalísticos e reuniões de ativismos; enlaces numerosos de circulação de saberes dos estudos de gênero e de saúde com perspectiva de gênero – pelo conceito de direitos sexuais e reprodutivos e o apoio ao aborto medicamentoso; e mediadoras da comercialização informal.

Se, como articula Ahmed (2022, p. 32), nossas possibilidades de vida e produção subjetiva dependem das posicionalidades, a dinâmica das redes de abortamento consegue delimitar posições diversas construindo outros caminhos pelos quais seguir: os que permitem desviar da sombra hospitalar, da clínica clandestina e das salas de inquérito e boletim de ocorrência.

Sofrimento e Dor, as Gramáticas Morais do Aborto

No caso brasileiro, o que se verifica é como a jurisdição que regula o acesso ao aborto em sua forma atual parte de uma noção de direitos reprodutivos e saúde pública operacionalizada sob o pressuposto de um estado esperado de infortúnio e violência. Partindo dessa perspectiva, vemos que as mulheres que podem abortar são aquelas que assumem o status de vítimas. Isto é, a mulher capaz de interromper uma gravidez legalmente é aquela que: 1) sofreu violência sexual, estando vulnerável, em estado de trauma; 2) no desenrolar de uma gestação desejada, o feto desenvolve uma situação clínica que impede sua sobrevivência, o que acarreta um pesar relacionado à perda do embrião; e 3) a pessoa grávida é vitimizada pelo próprio desenvolvimento gestacional, o qual acarreta risco à sua vida e ao seu potencial reprodutivo.

Assim, o desenho das permissões e negações em torno da capacidade reprodutiva da mulher se cristaliza em leis e políticas públicas que atuam por meio de exceções, a fim de conceder “amparo” às vítimas de situações em que a gravidez é impraticável. 

A misoginia estrutural que permeia o aborto no Brasil pode ser verificada a partir das condutas e posições assumidas por diferentes agentes políticos nas esferas pública e privada. Podemos mencionar como exemplo o constante reforço das mulheres como aquelas mais aptas ou responsáveis pelo cuidado dos filhos, tal como fica explícito mesmo em dinâmicas nas quais a guarda é compartilhada17. Nas práticas e discursos a respeito do aborto não é diferente, na medida em que ocorre a invisibilidade do homem como corresponsável por aquela gestação, seja ela concretizada em situações violentas ou não.

Com as movimentações neoconservadoras e sua atuação no Poder Legislativo brasileiro nas últimas duas décadas, vemos ainda a forte tentativa de reintrodução de valores tradicionais de proeminência masculina na sociedade e na política. A ação feroz desses grupos vem atacando sobretudo os direitos da população LGBTQIAP+ e os direitos reprodutivos – dos quais se pretende eliminar todas as exceções em que fica lícito o aborto legal, tornando-o fato hediondo, pecado absoluto. Como aponta a antropóloga Lia Zanotta Machado (2017, p. 31), ao almejar o controle da sexualidade e reprodução feminina, os defensores da pauta “[...] não falam dos direitos das mulheres, mas falam do dever. As mulheres, uma vez fecundadas, devem ser obrigatoriamente mães”.

Conforme explica Maria das Dores Machado (2018), a sobreposição dessas duas frentes persecutórias – contra direitos reprodutivos e os da população LGBTQIAP+ – tem sido central no espraiamento das representações institucionais conservadoras. Embora setores do conservadorismo católico tenham recrudescido seu ataque às formas de contracepção e autonomia sexual desde 1990, é a aprovação, em 2002, do II Programa Nacional de Direitos Humanos, alinhado ao combate da homofobia e à implementação de políticas específicas para a população LGBTQIAP+, o principal fator de motivação de bancadas católicas e evangélicas em interditarem projetos de educação sexual e alimentarem os pânicos morais da ideologia de gênero e da “sexualização infantil” nas duas últimas décadas.

Na década de 1990, o êxito de organizações feministas em incluírem a problemática de gênero nos programas e resoluções da Organização das Nações Unidas incitou uma primeira mudança de política discursiva, conduzida pela Igreja Católica. Discordando dos desdobramentos que as agendas de equidade institucional e saúde reprodutiva trariam ao modelo familiar nuclear patriarcal, a Igreja Católica passou a legitimar suas posições a partir do biologismo, argumentando a naturalidade do binarismo sexual e da complementação de papéis masculinos e femininos. A promoção de direitos civis a pessoas LGBTQIAP+, de 2000 em diante, intensificou esse senso de ameaça ao consolidar o reconhecimento e a viabilidade política de sujeitos de sexualidades desviantes, abrindo espaços para a normalização do sexo não heterossexual e não reprodutivo. As perspectivas ultraconservadoras se orientam por um sentido de classificação da homossexualidade como desvio patológico, o que, segundo o aparato moral cristão de cisheteronormatividade e negativação do prazer, implica condutas sempre promíscuas e, por esse motivo, reprimíveis.

Nesse sentido, o aborto, enquanto mecanismo que elimina o teor fatalista e de risco das práticas sexuais quando não se quer ter filhos, foi identificado como uma ameaça correlata à ordem da sexualidade casta, baluarte da cisheteronormatividade reprodutivista.

Recentemente, em outubro de 2023, no debate da Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial da Câmara Federal, o deputado Tadeu Vereni (Partido dos Trabalhadores), ao rebater os argumentos do deputado Nikolas Ferreira (Partido Liberal) sobre um suposto desejo das mulheres de abortar, apontou que “se homens engravidassem, o aborto não seria uma questão em discussão e muitos daqueles que, inclusive, o condenam, talvez fossem favoráveis (Se homem [...], 2023)”. Em outros termos, a responsabilização da mulher por uma situação de abortamento evidencia relações absolutamente desiguais no campo das questões de gênero.

Soma-se a isso o fato de que os interesses e estruturas do modelo de reprodução dominante, juntamente com o quadro jurídico que regula o acesso ao abortamento, reforçam em suas condicionantes a ideia de que o aborto é naturalmente insalubre, arriscado, violento e, necessariamente, mortal. Ou seja, no sentido explorado por Didier Fassin (2019), isso demonstra um sistema de economias morais que se realiza nas práticas e nas percepções de uma comunidade.

Ao deslocar o enfoque para a configuração dos sentimentos morais, a partir da vinculação com normas e valores no espaço público em um dado momento histórico (Fassin, 2019, p. 71), verificamos como o corpo da mulher é tomado enquanto espaço responsável e sujeitado obrigatoriamente à reprodução da vida por meio da manutenção absoluta da gravidez. A proeminência de atores religiosos no debate político sobre o aborto reforça, inclusive, a aproximação do tema à pauta moral e de costumes. Naara Luna e Rozeli Porto (2023, p. 153) lembram que é contra esse movimento que se volta o esforço dos movimentos pela descriminalização em colocar o tópico sobre uma “lógica discursiva distinta: a da saúde pública”.

Dada a centralidade dos sentimentos morais e normativos no que tange às relações que configuram o acesso à interrupção da gestação, a categoria de Fassin (2019), dos sentimentos e gramáticas morais, torna-se elemento central para entender a importância da constituição de lugares outros, em que se possam estabelecer relações que atravessam o desejo de abortar a partir de um conjunto diferente de valores.

Sobre os espaços institucionais de atendimento ao aborto ocorreram falas comuns entre as militantes e ativistas que apontaram para o fato de que há uma procura numerosa de mulheres em situação de legalidade que entram em contato com as redes com o intuito de saber como se portar no hospital, a fim de que não desconfiem de sua palavra e, assim, o procedimento seja realizado. Existe, portanto, uma percepção compartilhada de que é necessário ser vítima o suficiente para não ser desqualificada ou denunciada à polícia nesse momento.

Amparadas pelas memórias narradas, podemos apontar que é a partir da atenção para o que é considerado aceitável ou não que se torna possível avaliar as dificuldades de ampliar o debate sobre descriminalização do aborto no Brasil, mesmo considerando o contexto concreto de realização massiva de procedimentos desse tipo – seja dentro da legalidade ou, especialmente, pelas suas beiradas.

Em síntese, somam-se dois fatores fundamentais que envolvem relações de gênero nas buscas por abortamento em nosso contexto: por um lado, mulheres brasileiras são as principais responsáveis pelo cuidado de pessoas e lares (IBGE, 2019); e, por outro, atribui-se social e judicialmente ilegitimidade à interrupção da gravidez fora dos casos previstos em lei18. Isto denuncia como, por meio do controle dos corpos e das populações, ocorre a configuração de uma identidade feminina forçada, atrelada à maternidade compulsória e ao falso desejo natural de querer gestar e cuidar de crianças (Costa; Soares, 2022).

Sobre as emoções cabíveis, vimos que o olhar moral das instituições para as exceções comportadas em casos de abortamento é pautado pelo enquadramento da mulher na posição de vítima. Nesse sentido, Cynthia Sarti (2011) detalha em sua obra como a produção da vítima contemporânea está vinculada à experiência de guerra e às políticas de reparação oriundas desse contexto, bem como às ferramentas de qualificação de vítimas criadas pela psiquiatria, por meio da categoria clínica de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT).

Por meio da atuação da psiquiatria, a possibilidade de diagnóstico do sofrimento de setores específicos da sociedade se universaliza. Dessa forma, a condição de vítima recebe uma legitimidade moral e clínica a partir da demonstração, seguida de qualificação, do sofrimento psíquico. Nessa lógica, o que ocorre é que, por meio da exposição desse sofrer, aquele que está vitimizado por algo estará legitimado a reivindicar demandas sociais atreladas à sua condição.

Assim, no caso do aborto, o que fizemos foi percorrer as fronteiras das gramáticas morais que sustentam as conceções dadas pelo Estado e os valores hegemônicos da população, a fim de avistar as subjetividades que são invalidadas ao apresentar características que não seguem o esperado. Isto é, ao contrapor o entendimento do normal àquilo considerado anômalo, temos um quadro que expressa como emoções que extrapolam o sofrimento – tais como alívio, felicidade, indiferença e medo – são excluídas do repertório emocional esperado de uma pessoa que busca pelo processo de abortamento.

Isso ocorre porque, de acordo com as ativistas, as mulheres precisam performar, no hospital, uma conduta não somente de quem foi vítima de uma violência explícita, mas também demonstrar estarem arrasadas pela necessidade de não poderem tocar a gravidez adiante. Trata-se de incorporar certa tristeza pela perda de um feto, pela impossibilidade de exercício da maternidade e demonstrar, de antemão, que aquilo deve ser carregado como um fardo, um trauma, algo que não pode ser repetido, falado ou retomado.

Circuitos de Ajuda Mútua entre Mulheres e os Confrontos com a Noção de Vítima

Dado o contexto de ilegalidade institucional e estigma popular que criminaliza mulheres que não desejam a maternidade, o olhar para as redes feministas de acompanhamento do abortar expõe a garantia de outra possibilidade de agência feminina. Seja ao assegurar o acesso à informação validada pela ciência, seja apontando o estado legal e a possibilidade de acesso ao procedimento na respectiva região, as redes de mulheres online atuam, moldadas socialmente, nas lacunas da política pública.

Em publicação na linha do tempo do Instagram, um coletivo feminista que se dedica a auxiliar mulheres e meninas a acessar direitos reprodutivos no Brasil e no exterior, uma leitora questiona: “Em caso de abuso sexual, você sabe como ter acesso ao aborto legal?”. Em formato carrossel, a publicação evidencia a amplitude do que a lei considera violência sexual, afirma a necessidade de relato de penetração desprotegida indesejada, a fim de conseguir o aborto, e detalha como a violência pode acontecer a qualquer momento da relação, assim que o parceiro imponha algo que não foi acordado – mesmo que o início da relação tenha sido consentido. Em termos claros e acessíveis, o texto das imagens continua com instruções de onde buscar ajuda, com a indicação dos atendimentos multiprofissionais pelos quais se é encaminhada ao SUS, bem como da não obrigatoriedade de apresentar documentos policiais e judiciais para a “comprovação” da violência. O coletivo faz questão de afirmar que o relato da mulher basta e que a equipe do projeto está disponível para tirar dúvidas e acolher.

Por meio de publicações como essa, fica claro que em coletivos de mulheres com presença online, no esforço de “tirar o aborto do armário”, estimula-se um ambiente em que outras moralidades – como autonomia reprodutiva, dignidade feminina e sexualidade livre – direcionam o discurso e a prática efetiva das militantes. As redes de mulheres ativistas e militantes atuam desde a elaboração de páginas e cartilhas de orientação sobre abortamento seguro até a criação de mecanismos diversos, em redes sociais, para chamar a atenção da audiência.

Em uma página do Instagram, por exemplo, uma postagem diz que “Cytotec é mais seguro que Rivotril”. A legenda da publicação menciona a pesquisa à qual se refere (Pedroso, 2012; Lazarus, 1985), de forma a embasar cientificamente os argumentos explicitados – de que interromper a gestação costuma ser menos traumático do que tocar adiante uma gravidez indesejada –, o que evidencia a preocupação informativa dos circuitos de ajuda19. Outro site, que se dispõe a ajudar mulheres que buscam o abortamento nas tramas da clandestinidade, disponibiliza espaço para que elas possam relatar seus percursos, mas também seus sentimentos, sensações e motivações para a prática. Esse circuito se constitui como uma prática de ajuda mútua em rede, que extrapola uma busca solitária pela resolução de um problema (Facioli, 2017).

Sobre isso, um dos casos coletados em publicações de relatos no Instagram reforça a noção de abertura e de ampliação de sentidos que as redes de acompanhamento feminista criam. A mulher em questão narra que, pelo “acolhimento e cuidado” recebido das ativistas da rede, percebia estar sendo agraciada por uma “obra de Deus”, ao conseguir realizar o aborto em segurança. Segunda ela, portadora de uma fé religiosa embasada na figura de Deus, muitas pessoas comentam que aborto não é “coisa de Deus”, que “Deus não ajuda quem faz aborto”. Em seguida, afirma que chegou à conclusão de que essas coisas ditas são todas mentirosas, uma vez que ela estava vivenciando, após o procedimento, profundo alívio.

As redes parecem ampliar possibilidades de compreensão da própria experiência que não pelos arranjos morais punitivistas que enquadram as mulheres como criminosas ou vítimas. Ser acolhida, informada e conduzida a um procedimento seguro é movimento gerador de bem-estar, de segurança, de ressignificação da própria crença religiosa e de dimensões morais que se inscrevem no ato de abortamento.

O acompanhamento feminista em rede trata o abortamento como um procedimento de saúde. Ele humaniza o debate sobre a importância da legalização da interrupção clínica de gravidez ao expor o empenho das políticas públicas em criminalizar e marginalizar corpos e subjetividades de mulheres e pessoas que gestam. Isto é, ao informar sobre a agência punitiva do Estado; ao modelar o uso de redes online a fim de promover a manutenção da vida das mulheres; ao assumir o lugar de braço cuidadoso do Estado, realiza-se uma frente paralela que permite o reconhecimento das omissões na legislação e política brasileira.

Além de ferramentas informativas mobilizadas em postagens de acesso público, o acompanhamento e instrução individual oferecido pelas redes monitoradas podem ser entendidos com uma inserção em nível pessoal e afetivo na vida das mulheres, ou seja, no desenrolar da vontade e das possibilidades de interromper a gravidez de cada mulher atendida.

Enfim, a perspectiva e o modo de atuação adotados por militantes e ativistas que acompanham mulheres em processos de abortamento permitem uma expansão das maneiras de viver o acontecimento a partir de outras chaves de moralidade, que se diferenciam das expectativas e circuncisões dos espaços públicos de atendimento ao aborto legal. Há uma ruptura com noções estreitas de vítima e gramáticas emocionais esperadas, gerando um espaço de acolhimento, de fala e de possibilidade de escuta, que permitem a expressão de emoções diversas.

O que vemos é que, dentro de redes de acompanhamento, mulheres adquirem maior capacidade de agenciarem suas escolhas e se sentirem seguras em expressar tristeza, medo, alívio, felicidade, insegurança e o que surgir, subjetivamente, em termos de sentimentos relacionados ao procedimento de aborto. Uma seção de postagens de depoimentos de mulheres que entraram em contato com uma página que acompanhamos retrata essa diversidade. Uma delas narra nunca ter sido contrária ao aborto, e ser uma “apoiadora da causa”. De acordo com suas palavras, o fato de ter enfrentado uma situação de gravidez indesejada fez com que, apesar da certeza de seu desejo em abortar, sentisse muito medo. Em outra publicação se lê o relato de uma mãe de dois filhos que se sente bem com a decisão de interromper a gravidez que lhe ocorreu de maneira indesejada. Ela diz já estar em casa no momento e não se arrepender do procedimento. Agradece, por fim, o apoio e as orientações da organização feminista. Ao se depararem, portanto, com as beiras da criminalidade pelo desejo e pela impossibilidade de não maternar, são as redes – e as militantes por trás e à frente delas – que acolhem, ensinam e conduzem as pessoas que as procuram, antes do Estado, antes mesmo de enfrentar as omissões da política pública.

Considerações Finais – dos Desafios e Possibilidades para um Futuro de Direitos para as Mulheres

“Eu me sinto exausta, não de ajudar, porque é gratificante ver as mulheres em segurança, mas me sinto cansada de não conseguirmos avançar em termos de legalização”, foi a fala proferida por uma das ativistas entrevistadas, que lamentou a legislação ultrapassada do Brasil, mesmo em comparação com alguns outros países da América Latina20.

Pudemos perceber neste texto que o cansaço se explica devido à complexidade de uma atuação política que se situa nos confrontos com o Estado e, mais do que isso, que enfrenta cotidianamente arranjos morais embasados em relações desiguais de gênero, em um processo de subalternização e silenciamento das mulheres.

Existe um esforço significativo de fazer frente à ausência de informações a respeito do aborto, mesmo em contexto brasileiro no qual existe a possibilidade de acessar aquela prática garantida por lei. As ativistas relataram que mulheres na esfera da legalidade as procuram sem qualquer informação a respeito das possibilidades legais de realizar o aborto, o que implica a mobilização de um conjunto de informações dedicadas a esclarecer as circunstâncias que as atravessam21.

Percebemos também a necessidade fundamental de orientar as mulheres a respeito das próprias relações de gênero que enredam a situação da gestação, ao mesmo tempo que a extrapolam. Ou seja, tratar do aborto com quem quer que seja pressupõe falar de como as relações entre homens e mulheres são gestadas por profundas desigualdades, o que conduz algumas mulheres a sequer se darem conta das formas de violência que podem ter vivenciado nas barganhas com o genitor do embrião.

Essa é uma lacuna para a qual os grupos feministas analisados também direcionam seus esforços. Por meio de stories e publicações recorrentes, elas orientam sobre os serviços a serem procurados em caso de violência sexual e estupro, incentivando o uso do disque 100, linha para a denúncia de violações de direitos humanos, sem deixar de precaver as usuárias do Instagram acerca das dinâmicas de revitimização e descredibilização frequentemente perpetradas pelos órgãos de investigação e atendimento: “O que fazer em caso de violência sexual? A mulher precisa ser acolhida no ambiente policial de forma respeitosa para que se sinta segura para narrar os momentos vividos”.

Aqui vale ressaltar outra dimensão que envolve as responsabilidades do Estado, qual seja, a caçada, nos últimos anos, ao debate de gênero no contexto da sala de aula22. De acordo com Fernando Balieiro, na última década, “[...] empreendedores morais diversos foram responsáveis por disseminar um pânico moral contra materiais didáticos escolares, programas educacionais que incluíam a abordagem das diferenças de gênero e sexualidade” (Balieiro, 2018, p. 1). Esse processo culminou, por força de bancadas religiosas e conservadoras do Congresso e das Câmaras Municipais, na retirada do debate do gênero das escolas, o que implica diretamente as questões em torno do aborto e dos direitos reprodutivos23.

Como disponibilizar para as jovens informações sobre direitos sexuais e reprodutivos, também acerca do aborto legal no Brasil? Ao que parece, a escola surge como espaço fundamental para tratar dessas temáticas, principalmente, em um país onde a família se mostra a principal concretizadora de violências contra crianças e adolescentes24.

Outro aspecto que podemos mencionar a partir dos resultados obtidos diz respeito exatamente às gramáticas morais que, no espaço social e, principalmente, no hospitalar, consolidam visões fixas de sujeito, o que impede as mulheres de o procurarem, mesmo quando permeadas pela legalidade, na efetuação do aborto. As mulheres preferem, muitas vezes, atuar na clandestinidade a enfrentar uma moral que as julga pela gravidez, que dificulta o acesso ao aborto e que demanda delas uma performance totalmente vinculada à identidade de vítima. Isto é, no hospital, as mulheres não podem falar.

De acordo com Gayatri Spivak (2010, p. 12), o processo de consolidação da subalternidade ocorre em meio às “[...] camadas mais baixas da sociedade, constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante”. Segundo a autora, quando este processo se institui, ocorre uma impossibilidade do subalterno falar.

Podemos refletir sobre as mulheres dessa pesquisa, fundamentalmente aquelas que procuram espaços para concretizar o aborto, e como elas são impedidas de falar ou, quando falam, como não são ouvidas, o que fica claro em relatos de campo quando ativistas retratam abordagens hospitalares de mulheres em serviços de aborto legal. Questionamentos que colocam em dúvida as violências sofridas; falas pejorativas sobre a vida sexual das vítimas de violência; pedidos de boletim de ocorrência ou exames de corpo de delito como pré-requisito para a prática de aborto; ou ainda, performances que envolvem a necessidade do sofrimento da mulher são as restrições impostas por arranjos morais que só permitem qualquer possibilidade de elocução ou agência feminina quando vinculada a uma identidade vitimizada e culposa.

A possibilidade de acessar essas redes permite, além de colher auxílio e informações, contar suas experiências, angústias, medos e anseios. Essa dinâmica também realoca a “mudez” feminina, na medida em que configura um exercício de fala e de reposicionamento da mulher no espaço social.

É importante mencionar que, em meio às redes constituídas nas bordas e ausências das políticas públicas do Estado, as mulheres estão também submetidas à possibilidade de golpes financeiros ou mesmo de um processo que pode levá-las à morte. Nesse sentido, as redes de militantes e ativistas se desdobram para evitar que as mulheres acessem redes golpistas e sejam expostas a perigos físicos, emocionais e financeiros.

Resta-nos saber e compreender que, mesmo com a descriminalização do aborto no Brasil, o ativismo feminista seguirá ocupando um espaço importante para enfrentar as insuficiências do Estado, uma vez que o acesso à possibilidade de não ser presa ao abortar não significa a eficácia das políticas públicas.

Dessa forma, para que as mulheres entendam o hospital como espaço de acolhimento ou para não haver uma sobrecarga de outras mulheres, por meio de uma atuação que visa dar conta das omissões do Estado, é preciso uma transformação profunda em nossos repertórios de gênero e na forma como consolidamos as políticas para grupos historicamente subalternizados no Brasil.

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Notes

4 As condicionantes que possibilitam o acesso à interrupção legal da gravidez atualmente são três: 1) gravidez que apresenta risco à vida da gestante; 2) gravidez resultante de violência sexual, até a 20ª semana de gestação; e 3) em casos de anencefalia fetal – conforme a decisão do Supremo Tribunal Federal de 2012.
5 Notícia da Prefeitura de Curitiba (2022) diz, segundo pesquisa do IBGE divulgada em 16 de dezembro de 2022, que a cidade tem o maior Produto Interno Bruno (PIB) do Sul do país, ocupando a sexta posição no ranking nacional da mesma variável.
6 A pandemia de COVID-19, também conhecida como pandemia de coronavírus, é uma pandemia causada pela síndrome respiratória aguda grave do vírus SARS-CoV-2. No Brasil, a primeira morte em decorrência do coronavírus aconteceu em 12 de março de 2020, e foram contabilizadas mais de 700 mil mortes até o ano de 2023.
7 Tendo em vista o cenário de perseguição de mulheres e ativistas feministas, optamos por não fazer menções que expusessem as interlocutoras dos relatos colhidos de entrevistas e publicações de rede social digital. Dessa forma, neste artigo, não mencionamos nomes e não expomos a literalidade das falas ditas em redes sociais, para evitar qualquer possibilidade de localização das pessoas por meio de ferramentas de busca. Optamos, para menção das falas, pela substituição de termos e palavras de tal forma que seu conteúdo não seja alterado.
8 Para um aprofundamento da relação entre os dispositivos de armário e a questão do aborto, ver também Luna; Gomes (2024).
9 Ao longo do texto, empregamos o conceito de biopolítica acompanhando os diagnósticos de Michel Foucault. No curso “Em defesa da sociedade”, Foucault a designa como a tecnologia de poder que institui a forma moderna de governamentalidade, invertendo o paradigma de “fazer morrer, deixar viver” dos regimes de soberania monárquica pré-século XVIII para a máxima “fazer viver, deixar morrer” (Foucault, 2005, p. 286). Ela retoma o princípio de governo pela individualização, da pastoral cristã, coadunando-se com os poderes disciplinares do mesmo período de modo a garantir, junto com o controle de cada corpo, a gestão dos indivíduos como espécie biológica, a qual estabelece o domínio da “população” enquanto objeto de governo. Nos termos do autor, “a nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem a corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc.” (Foucault, 2005, p. 289). A reprodução sexual insere-se, portanto, entre essas esferas da regulação biopolítica, com intersecções diretas sobre as políticas raciais e sexuais, conforme desenvolvem obras de autoras feministas dos estudos anticoloniais (cf. McClintock, 2010).
10 Recentemente, em janeiro de 2024, um hospital de São Paulo ,o de Vila Nova Cachoeirinha, teve o serviço de aborto legal suspenso pela prefeitura, apesar de ser hospital referência no processo na capital paulista. Vinte garotas e mulheres tiveram atendimentos descontinuados ou não conseguiram assistência médica na unidade Cachoeirinha, segundo a advogada e fundadora do Projeto Vivas, Rebeca Mendes. Dentre as 20 mulheres, algumas tiveram que ser encaminhadas para outros Estados ou outros hospitais da cidade, distantes de seus locais de moradia. Trata-se de um exemplo significativo dos enfrentamentos que as mulheres que buscam abortar legalmente no Brasil encaram e de como o trabalho das ONGs atua para que as mulheres não recorram a métodos clandestinos. Para maiores informações sobre a matéria, acessar Lara e Koyama (2024).
11 Neste texto, quando nos referimos a “mulheres que não desejam gestar”, estamos considerando tanto aquelas mulheres que não apresentam a gestação como projeto de vida quanto as que, por algum motivo, não querem gestar naquele momento específico. Como aponta Martha Celia Ramírez (2015), as situações de decisão de aborto voluntário são contextuais e não podem ser consideradas a partir de circunstâncias absolutas.
12 Como mostra a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), realizada em 2021, uma em cada sete mulheres com idade próxima aos 40 anos já fez pelo menos um aborto no Brasil. Há também um recorte de classe e cor entre as mais propensas a correr perigos e a morrer: essas são as mulheres pobres e negras. A PNA 2021 mapeou taxas de incidência de 11% na realização de abortos entre mulheres pretas e pardas e de 17% entre as mulheres indígenas, métricas superiores à média das mulheres brancas (9%). As perguntas acerca da reincidência dos abortos reforçam essa desigualdade, uma vez que 74% daquelas que abortaram uma segunda vez (21% do total pesquisado) eram negras. Entre os perfis de classe, prevalece um cenário semelhante de diferenciação, com uma taxa de 13% entre mulheres do menor estrato de orçamento mensal (até 233 dólares), aproximadamente 33% maior do que a média geral de prática do aborto entre o público pesquisado (10%) (Diniz; Medeiros; Madeiro, 2023).
13 A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) de número 442, que pauta a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, foi protocolada no STF em 2017 pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), com apoio da Anis Instituto de Bioética. Depois de cinco anos sem movimentações, às vésperas de uma aposentadoria compulsória, a ministra Rosa Weber se manifestou a favor da ação, em 22 de setembro de 2023. Em sequência, o atual presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, suspendeu a votação no plenário virtual ao pedir destaque para a pauta – o que leva o julgamento para o plenário presencial, o qual ainda se encontra, em outubro de 2023, sem data marcada para acontecer.
14 Os vendedores, ocultados pela própria dinâmica da rede, assumem diversas funções, tais como fazer chegar até as mulheres o comprimido (que pode ser verdadeiro ou feito de farinha); acompanhar o processo de abortamento; e disponibilizar informações sobre o que fazer e aonde ir, caso algum problema aconteça. No caso de vendas de remédios falsificados, enfim, as mulheres acabam bloqueadas no WhatsApp, sem ter a possibilidade de qualquer tipo de reclamação ou de reaver o dinheiro investido no processo. Pior do que isso, enfrentam o grande desgaste e preocupação de não terem seu problema sanado e prosseguirem com a gravidez indesejada.
15 Para maiores informações sobre o evento, acessar: https://drive.google.com/file/d/1RLkw7I2aqm-Cmz7G1_JiXx0EDAgCSSjy/view.
16 Para maiores informações sobre a atuação do coletivo, acessar Socorristas en Red (2022).
17 Pesquisas no campo das Ciências Jurídicas apontam que mesmo que os magistrados apliquem a guarda compartilhada por entenderem que é dever de ambos os pais, de forma igualitária, o compartilhamento dos direitos e obrigações referentes ao filho – participando da sua educação, criação e cuidado – na visão das famílias, a mãe desenvolve melhor a função de cuidadora e o pai de provedor (Toledo; Loreto, 2020), o que reforça desigualdades de gênero.
18 Os casos previstos em contexto brasileiro são: abortamento em caso de estupro, abortamento de fetos anencefálicos e abortamento em gestações que pressupõem o risco da saúde da mulher.
19 A postagem veio acompanhada da seguinte legenda: “A criminalização do aborto causa sofrimento mental. Esse lambe não é só uma frase de efeito, é uma verdade. Gestantes forçadas a seguir com uma gravidez indesejada sofrem consequências psicológicas intensas, como ansiedade e depressão. Pesquisas já mostraram que as respostas psicológicas ao aborto são bem menos graves do que aquelas sofridas por mulheres que levam sua gestação indesejada a termo e decidem entregar a criança para adoção”.
20 Atualmente, o aborto é descriminalizado nos seguintes países latino-americanos: Porto Rico (1937), Cuba (1965), Guiana Francesa (1975), Guiana (1995), Uruguai (2012), Argentina (2020), Colômbia (2022) e México (2023) (Silva, 2022). Os três últimos casos, em especial, estão associados à emergência da chamada “maré verde”, onda de protestos e pressões legislativas coordenada pelos movimentos feministas da região e difusora dos pañuelos verdes, forma de defesa visual do aborto. Para mais informações sobre o panorama latino-americano e a posição brasileira na cena regional, vale conferir o documentário Verde Esperança (Maria Lutterbach, 2022) e o Mapa do Aborto na América Latina (Silva, 2022). O documentário, embora não esteja disponível para download gratuito, tem sido exibido em espaços públicos pelo território brasileiro, fundamentalmente, em universidades. Também é possível alugá-lo, pelo valor de R$ 5,90 no site, ver (Verde [...], 2023).
21 Grande parte das vezes, além de informá-las, as ativistas precisam realizar acompanhamentos jurídicos que podem envolver até mesmo processos judiciais, o que demanda das ONGs e dos coletivos parcerias com advogadas e advogados que defendem a causa.
22 Entre os anos de 2014 e 2015, ao longo das discussões dos Planos Nacionais, Estaduais e Municipais de Educação, criou-se um pânico moral que barrou os avanços em torno dos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil, bem como ameaçou liberdades intelectuais e artísticas, da mesma forma que criminalizou a figura do professor.
23 Mesmo com as ações do STF, que instituíram a inconstitucionalidade dos projetos de lei que retiraram gênero da escola, o efeito perverso de perseguição de professoras e professores se consolidou e ainda é vivenciado. Um episódio que questiona o posicionamento do STF e ressalta o cenário de perseguição e censura aos professores é a análise corrente do projeto de lei do vereador Eder Borges (Partido Progressista), da Câmara Municipal de Curitiba, que visa permitir que pais proíbam seus filhos de participarem de aulas e atividades pedagógicas que envolvam discussão de gênero e sexualidade. O objetivo do vereador seria “evitar a doutrinação nas escolas” e preservar o “pátrio poder” no exercício pleno da criação dos filhos, exigindo que esses “lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios da sua idade e condição” (Garcia, 2023).
24 De acordo com o Anuário de Segurança Pública de 2023, 75,8% dos estupros cometidos no Brasil entre 2021 e 2022 acometeram meninos e meninas vulneráveis, menores de 14 anos de idade, e pessoas consideradas incapazes de consentir, seja por alguma deficiência ou enfermidade. Além disso, 82,7% das vítimas de estupro e estupro de vulnerável tinham algum tipo de vínculo com o agressor, seja parentesco, relação romântica ou amizade, entre outras. O dado que o Anuário nos mostra, e que enfatiza a importância de tratar de gênero e educação sexual nas escolas, é: dos casos denunciados à polícia, seis em cada dez vítimas são vulneráveis com idade entre 0 e 13 anos que têm em seu agressor algum familiar ou conhecido.

Author notes

Editoras de Seção: Daniela Tonelli Manica, https://orcid.org/0000-0001-8014-9996; Martha Celia Ramirez Gálvez, https://orcid.org/0000-0003-3802-393X.


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