Resumo: O objetivo deste artigo C) demonstrar como a pauta da menstruaC'C#o esteve, por dC)cadas, fora da agenda pC:blica. Mesmo tendo sido criado recentemente o Programa de ProteC'C#o e PromoC'C#o da SaC:de e Dignidade Menstrual, as pautas ampliadas em torno da menstruaC'C#o, propostas por ativistas menstruais e militantes pela dignidade menstrual, permanecem fora do debate e das polC-ticas pC:blicas, que centralizam suas aC'C5es na distribuiC'C#o de absorventes higiC*nicos. Por meio de metodologias de revisC#o narrativa e anC!lise documental, realizou-se um levantamento das polC-ticas pC:blicas para a saC:de das mulheres, dos projetos de lei sobre a dignidade menstrual e da atuaC'C#o de movimentos sociais da menstruaC'C#o no Brasil. Como resultado, observa-se que as polC-ticas pC:blicas sobre menstruaC'C#o podem ser beneficiadas ao se incorporarem C s reivindicaC'C5es dos movimentos sociais analisados, com vistas C equidade de gC*nero, C emancipaC'C#o de meninas, mulheres e demais pessoas que menstruam e, ainda, para a superaC'C#o do tabu menstrual.
Palavras-chave: MenstruaC'C#o, feminismo, saC:de da mulher, polC-tica pC:blica, ativismo.
Abstract: The objective of this article is to demonstrate how the issue of menstruation was, for decades, off the public agenda and, although the Menstrual Health and Dignity Protection and Promotion Program was recently created, the expanded agendas surrounding menstruation, proposed by menstrual activists and militants for menstrual dignity, remain outside the debate and public policies, which center their actions on the distribution of sanitary pads. Using methodologies of narrative review and documentary analysis, a survey of public policies for womenbs health, bills on menstrual dignity and the activities of social movements regarding menstruation in Brazil was carried out. As a result, the article discusses how public policies on menstruation can benefit from incorporating the demands of the analyzed social movements, with a view to gender equity, the emancipation of girls, women and other people who menstruate and overcoming the menstrual taboo.
Keywords: Menstruation, feminism, women's health, public policy, activism.
DOSSIÊ – Mulheres e Política, e Políticas para Mulheres no Século XXI
Políticas Públicas sobre a SaC:de Menstrual no Brasil: Olhares pelas Lentes dos Movimentos Sociais da MenstruaC'C#o
Public Policies on Menstrual Health in Brazil: Perspectives through the Lens of Menstrual Social Movements
Received: 15 October 2023
Accepted: 20 December 2023
Published: 22 March 2024
A menstruaC'C#o C) concebida, social e culturalmente, como uma experiC*ncia atrelada a inC:meros tabus, estigmas e desigualdades, sustentados pela lC3gica patriarcal e capitalista. NC#o obstante, a experiC*ncia de menstruar C) atravessada pelo machismo e pela misoginia, assim como pela pobreza, pelo racismo e pela desigualdade de gC*nero (CC"ndido; Saliba, 2022).
A temC!tica da dignidade menstrual ganhou projeC'C#o no Brasil a partir das denC:ncias referentes C pobreza menstrual, sobretudo no que se refere C precariedade menstrual vivenciada por mulheres e outras pessoas que menstruam em privaC'C#o de liberdade, C alta taxaC'C#o de impostos sobre os produtos de higiene menstrual, bem como em relaC'C#o ao absenteC-smo escolar de meninas durante o perC-odo menstrual (UNFPA, 2022; UNICEF, 2021). Essas denC:ncias comeC'aram a ser feitas por agC*ncias que jC! pautavam a temC!tica em outros paC-ses, como o Fundo Internacional de EmergC*ncia das NaC'C5es Unidas para a InfC"ncia (UNICEF) e a OrganizaC'C#o das NaC'C5es Unidas (ONU), passando a ser tambC)m pautada por grupos e instC"ncias sociais diversos, que vC#o desde ativistas e militantes da menstruaC'C#o, ao que nos referimos neste artigo como movimentos sociais da menstruaC'C#o, atC) empresas multinacionais fabricantes de produtos de higiene e absorventes.
A pobreza menstrual, enquanto fenC4meno multidimensional (CC"ndido; Saliba, 2022), caracteriza-se por uma extensa lista de violaC'C5es de direitos fundamentais que impedem que o ciclo menstrual seja vivenciado de forma digna e segura, como a falta de acesso a produtos adequados para o cuidado da higiene menstrual, tais como absorventes descartC!veis, papel higiC*nico e sabonete. QuestC5es estruturais como a ausC*ncia de banheiros seguros e em bom estado de conservaC'C#o, saneamento bC!sico (C!gua encanada e esgotamento sanitC!rio), coleta de lixo, falta de acesso a medicamentos para administrar problemas menstruais e/ou carC*ncia de serviC'os de saC:de, insuficiC*ncia de binformaC'C5es sobre a saC:de menstrual e autoconhecimento sobre o corpo e os ciclos menstruais, bem como tabus e preconceitos sobre a menstruaC'C#o que resultam na segregaC'C#o de pessoas que menstruam de diversas C!reas da vida socialb (UNICEF, 2021, p. 11), entre outros aspectos, resultam no que se define como pobreza menstrual.
Como forma de enfrentar a pobreza menstrual, a dignidade menstrual C) constituC-da de um conjunto de estratC)gias que objetivam garantir o acesso a produtos, insumos, infraestrutura e informaC'C5es concernentes C menstruaC'C#o. Dentre essas estratC)gias, destacam-se as leis e as polC-ticas pC:blicas como forma de responsabilizar o Estado por prover esses direitos, que abarcam desde os direitos humanos atC) o direito C saC:de (UNFPA, 2022).
Este artigo tem como objetivo destacar a contribuiC'C#o de ativistas menstruais e movimentos sociais pela dignidade menstrual para a inclusC#o dessa pauta na agenda pC:blica e para que a temC!tica nC#o se restrinja C distribuiC'C#o de absorventes higiC*nicos, corroborando pautas mais ampliadas referentes C equidade de gC*nero e C emancipaC'C#o social. A metodologia utilizada para o levantamento dos dados foi a revisC#o narrativa de artigos cientC-ficos, teses, dissertaC'C5es e livros que abordam a temC!tica em foco (Rother, 2007), bem como a anC!lise documental de polC-ticas pC:blicas em saC:de, legislaC'C5es, decretos governamentais e relatC3rios de organismos nC#o governamentais. Ademais, foram analisados materiais provenientes de sites, redes sociais e grupos virtuais de ativistas e educadoras menstruais do Brasil e AmC)rica Latina2.
O desenvolvimento do artigo C) apresentado em dois tC3picos. O primeiro deles procede a um resgate sC3cio-histC3rico das polC-ticas pC:blicas brasileiras sobre a saC:de das mulheres e evidencia a invisibilidade do tema da menstruaC'C#o nessas polC-ticas. Ainda no primeiro tC3pico, sC#o apresentadas as iniciativas legislativas acerca do tema, que contaram com a participaC'C#o de movimentos sociais para que a pauta chegasse atC) a instC"ncia federal, sendo instituC-do o Programa de ProteC'C#o e PromoC'C#o da SaC:de Menstrual por meio da Lei 14.214 (Brasil, 2021), posteriormente regulamentada pelo Decreto n. 11.432, de 8 de marC'o de 2023 (Brasil, 2023a).
O segundo tC3pico pretende demonstrar a importC"ncia dos ativismos menstruais para a construC'C#o de agendas mais inclusivas e abrangentes acerca da dignidade menstrual, sobretudo no que se refere ao processo de resistC*ncia C mercantilizaC'C#o da menstruaC'C#o e C lC3gica colonialista sobre os corpos que menstruam. Por definiC'C#o, os ativismos menstruais sC#o movimentos sociais feministas, difusos e heterogC*neos, transitando entre a segunda e a terceira ondas do feminismo, sendo que, por meio dele, se
[...] articulam posicionamentos polC-ticos onde os discursos feministas se conectam com discursos ecologistas e anticapitalistas, e, por sua vez, o discurso sobre empoderamento individual vinculado ao autoconhecimento, C saC:de e ao bem-estar permite vislumbrar prC!ticas coletivas de emancipaC'C#o social
(Nicolau; Arocas, 2020, p. 158, traduC'C#o prC3pria).Doravante, sC#o apresentadas as formas de atuaC'C#o dos movimentos sociais da menstruaC'C#o no Brasil e na AmC)rica Latina, com vistas a ampliar as pautas em torno da menstruaC'C#o e pela efetiva implementaC'C#o das polC-ticas pC:blicas de saC:de menstrual nos territC3rios. Neste tC3pico, destacam-se as atuaC'C5es dos movimentos sociais pela menstruaC'C#o em seus territC3rios e na internet, espaC'os profC-cuos para os debates em torno de temas como direitos menstruais, gestC#o menstrual sustentC!vel, polC-ticas pC:blicas inclusivas, pedagogia menstrual, entre outros.
Visibilizar a temC!tica da dignidade menstrual pelo olhar dos movimentos sociais da menstruaC'C#o representa, neste texto, a colaboraC'C#o na construC'C#o de uma nova cultura de menstruar, que nasce concomitantemente ao fim do tabu menstrual e segue aliada C s lutas pela garantia de direitos fundamentais e pela equidade de gC*nero.
O enfoque de gC*nero nas polC-ticas pC:blicas em saC:de voltadas para as mulheres teve seu marco histC3rico inicial na regulaC'C#o, normatizaC'C#o e controle desses corpos, sobretudo no que se refere C reproduC'C#o e C sexualidade, seguindo a construC'C#o das bases cientC-ficas e biopolC-ticas do saber hegemC4nico. NC#o obstante, a saC:de materna e a saC:de infantil estiveram historicamente interligadas, bem como a ginecologia e a obstetrC-cia.
Na dC)cada de 1950, sob a influC*ncia dos Welfare States europeus, as polC-ticas pC:blicas no Brasil foram direcionadas C s mulheres mais vulnerC!veis e com o objetivo de proteger a maternidade para favorecer o desenvolvimento econC4mico, que se dava no C"mbito do trabalho masculino. Nesse perC-odo, ocorreram as primeiras aC'C5es de combate C desnutriC'C#o infantil e de planejamento familiar que, nos paC-ses do bterceiro mundob, deram-se sob a lC3gica higienista e racista do controle de natalidade da populaC'C#o pobre, perifC)rica e preta, por meio da interferC*ncia internacional, principalmente dos Estados Unidos e de outros paC-ses do norte global que bresponsabilizavam o crescimento populacional dos paC-ses do Sul pela misC)ria e pelo desequilC-brio ecolC3gicob (Medeiros, 2023, p. 6).
JC! na dC)cada de 1970, organismos internacionais passaram a se interessar no controle de natalidade da populaC'C#o brasileira. O crescimento demogrC!fico brasileiro representava uma ameaC'a geopolC-tica, seja pelo interesse em recursos minerais presentes no territC3rio, seja por dinC"micas polC-ticas ligadas C Guerra Fria e C s preocupaC'C5es com a bameaC'a comunistab na AmC)rica Latina. Por meio de atuaC'C#o de ONGs, financiadas pelo capital estrangeiro e que, por sua vez, realizavam bprojetos de controle populacional e/ou de planejamento familiar no paC-sb (Medeiros, 2023, p. 6), iniciou-se no Brasil uma sC)rie de procedimentos voltados C contracepC'C#o de longa duraC'C#o ou irreversC-vel, como a esterilizaC'C#o em massa de mulheres. Em 1991, por iniciativa da deputada Benedita da Silva (PT/RJ), foi aberta uma ComissC#o Parlamentar Mista de InquC)rito (CPMI), no Congresso Nacional, com o objetivo de investigar essa alta incidC*ncia, aC'C#o que culminou na criaC'C#o da Lei n. 9.263/96, conhecida como a Lei de Planejamento Familiar (Medeiros, 2023).
Ainda nos anos 1970, a influC*ncia dos movimentos feministas para o enfoque na equidade de gC*nero nas aC'C5es em saC:de culminou com o desenvolvimento e a elaboraC'C#o de planos nacionais, como o Plano da DC)cada da Mulher (1976-1985). Conforme observado na ConferC*ncia do Ano Internacional da Mulher (1975), os objetivos passaram a ser a integraC'C#o das mulheres no processo de desenvolvimento do paC-s, por meio de retC3ricas pela autonomia polC-tica e econC4mica e pela reduC'C#o da desigualdade em relaC'C#o aos homens. Essa questC#o, em tese, serviu para a criaC'C#o de uma bpseudobimagem de libertaC'C#o das mulheres do ambiente domC)stico e para a geraC'C#o de novos papC)is e demandas sociais para as mulheres (Biroli, 2018).
Para dar conta dessa extensa jornada de trabalho domC)stico e externo, o corpo produtivo das mulheres precisou ser enquadrado em uma lC3gica linear, para que estivesse sempre apto para as diversas exploraC'C5es e violC*ncias C s quais ele foi historicamente submetido, quais sejam, a exploraC'C#o sexual, reprodutiva, a maternidade, o trabalho domC)stico nC#o remunerado e o trabalho externo mal remunerado e precarizado. Para as mulheres negras, somam-se a elas o trabalho escravo e o racismo estrutural.
Dessa forma e para corresponder ao ciclo de exploraC'C#o acima descrito, os corpos femininos foram, subjetiva e simbolicamente, impedidos de vivenciar o ciclo hormonal fisiolC3gico e passaram a compor o projeto de linearidade dos corpos (re)produtivos. NC#o obstante, os temas do ciclo menstrual/ovulatC3rio sempre estiveram ausentes das agendas pC:blicas e privadas, assim como das polC-ticas pC:blicas, que, ao contrC!rio, corroboraram a agenda da indC:stria mC)dico-farmacC*utica para a difusC#o massiva de produtos e medicamentos que, progressivamente, tornaram-se dispositivos para a manutenC'C#o do tabu menstrual e da ocultaC'C#o de qualquer vestC-gio de menstruaC'C#o (Tarzibachi, 2017).
A exemplo dos anticoncepcionais e dos absorventes/tampC5es descartC!veis, que sC#o de suma importC"ncia para a autonomia sexual e menstrual, bem como para o tratamento de algumas doenC'as, observa-se, porC)m, que esses produtos e medicamentos foram, progressivamente, sendo utilizados sem critC)rios confiC!veis de seguranC'a e sustentabilidade ecolC3gica. Esse procedimento gerou um imenso mercado de consumo feminino que atende ao grande capital externo e serve como dispositivo de invisibilizaC'C#o do ciclo menstrual/ovulatC3rio e manutenC'C#o de corpos a-menstruais (Tarzibachi, 2017), gerando um apagamento da ciclicidade, da pluralidade dos corpos e das diversas experiC*ncias de se viver em corpos femininos/menstruantes.
No que tange C construC'C#o de programas e polC-ticas para a saC:de das mulheres, um resgate sC3cio-histC3rico da participaC'C#o das mulheres e movimentos sociais remonta ao protagonismo da organizaC'C#o dos movimentos de mulheres nos anos 1980 como ponto de partida para a inclusC#o de pautas mais abrangentes nas polC-ticas de saC:de.
A construC'C#o do Programa de AtenC'C#o Integral C SaC:de da Mulher (PAISM), do MinistC)rio da SaC:de, lanC'ado em 1983, gerou uma importante mudanC'a de olhares sobre a saC:de das mulheres, deslocando-os desde um C"mbito privado, individual e restrito sobre as prC!ticas de natalidade e reproduC'C#o para a instC"ncia pC:blica. Aspectos de cidadania e direitos trabalhistas, sexuais e reprodutivos (incluindo a pauta da descriminalizaC'C#o do aborto) passaram a ser pautados pelo poder e pelas polC-ticas pC:blicas sob uma C3tica coletiva, pC:blica e, no C"mbito da saC:de, numa perspectiva integral e coletiva.
Contrapondo-se C s tendC*ncias da C)poca na C*nfase em polC-ticas de controle demogrC!fico, o movimento feminista dos anos 1980, somado ao efervescente movimento pela Reforma SanitC!ria Brasileira (Costa; Bahia; Conte, 2007), ofereceu um novo direcionamento do olhar pC:blico sobre a saC:de das mulheres, ao propor
[...] a valorizaC'C#o da crC-tica e autonomia das mulheres em relaC'C#o aos profissionais e serviC'os de saC:de, reduzindo a assimetria do poder entre as usuC!rias e refletindo na medicalizaC'C#o. EstC#o inclusas, ainda, as propostas de um cardC!pio com mais diversidade de alternativas assistenciais, de acordo com a complexidade das questC5es relacionadas C saC:de feminina nas diferentes regiC5es do paC-s
(Costa; Bahia; Conte, 2007, p. 16).Tais aspectos, somados C politizaC'C#o da saC:de das mulheres, C s premissas da 8B* ConferC*ncia Nacional de SaC:de, ao processo de redemocratizaC'C#o do paC-s com a criaC'C#o da constituiC'C#o de 1988 e C s primeiras leis e diretrizes que culminaram na criaC'C#o do SUS no inC-cio dos anos 1990, possibilitaram a operacionalizaC'C#o do conceito de SaC:de Integral da Mulher (Costa; Bahia; Conte, 2007), mesmo com o avanC'o do projeto neoliberal no Brasil, emergente C C)poca.
Calcados nesse conceito ampliado de saC:de e sob a assunC'C#o das determinaC'C5es sociais da saC:de, os programas assistenciais do governo passaram a incluir abordagens para o planejamento familiar, aC'C5es educativas, preventivas, diagnC3sticas e para o tratamento ginecolC3gico das infecC'C5es sexualmente transmissC-veis (ISTs), cC"ncer do colo de C:tero e mama. AlC)m disso, havia ainda assistC*ncia ao prC)-natal, ao parto, ao puerpC)rio e C menopausa, entre outros, ficando de fora os temas relacionados ao ciclo menstrual/ovulatC3rio. Tais aC'C5es avanC'aram nas esferas municipais na AtenC'C#o BC!sica, principalmente por meio do Programa SaC:de da FamC-lia, hoje denominado de EstratC)gia SaC:de da FamC-lia.
JC! nos anos 2000, a frente esquerdista na esfera federal possibilitou a inclusC#o de atores e representaC'C5es sociais nas formulaC'C5es de polC-ticas pC:blicas, quando houve a introduC'C#o das pautas raciais, por exemplo. Mesmo assim, a representaC'C#o feminina manteve-se baixa, inclusive nas instC"ncias dos Conselhos Municipais de SaC:de (Costa; Bahia; Conte, 2007, p. 21).
Em 2004, com o advento da 1B* ConferC*ncia Nacional de PolC-ticas para Mulheres, primou-se pelo enfoque de gC*nero e pelas especificidades das mulheres negras, indC-genas, lC)sbicas e profissionais do sexo, culminando na formulaC'C#o da PolC-tica Nacional de AtenC'C#o Integral C SaC:de da Mulher (PNAISM) (Brasil, 2004). Fundamentada nos princC-pios do SUS, a PNAISM alicerC'ou-se na integralidade, universalidade de acesso e equidade para as aC'C5es de promoC'C#o, prevenC'C#o e tratamento de cC"ncer, direitos sexuais e reprodutivos, combate C violC*ncia domC)stica e sexual, tratamento de HIV/AIDS, doenC'as crC4nicas nC#o transmissC-veis, maternidade, entre outras (Brasil, 2004).
A partir da PNAIMS foi possC-vel introduzir as necessidades em saC:de das mulheres que, atC) entC#o, permaneciam sem visibilidade social e que estavam ausentes das polC-ticas pC:blicas. Assim foi possC-vel discutir tambC)m a transversalidade de gC*nero, o recorte C)tnico-racial e as especificidades das mulheres lC)sbicas ou bissexuais. Ainda foi viC!vel definir fontes de recursos e responsabilidades nos diversos nC-veis do sistema, de acordo com as diretrizes do SUS e os instrumentos de gestC#o adotados pelo MinistC)rio da SaC:de (Brasil, 2015).
Vigente hC! quase 20 anos e atC) entC#o sem atualizaC'C5es, a PNAISM representou um grande avanC'o para a efetivaC'C#o da atenC'C#o e do cuidado da saC:de das mulheres no paC-s. Entretanto, no que tange ao reconhecimento da menstruaC'C#o/ovulaC'C#o como eventos que merecem atenC'C#o e desestigmatizaC'C#o, a PNAISM nC#o contempla nenhuma abordagem de cuidado. Assim, as palavras bmenstruaC'C#ob e bovulaC'C#ob nC#o aparecem nenhuma vez no documento sobre a polC-tica, tampouco qualquer menC'C#o sobre esses eventos que acontecem cerca de 400 vezes na vida de mulheres/pessoas que ciclam. A C:nica etapa do processo menstrual/ovulatC3rio abordada pela PNAISM C) o climatC)rio. A menarca, ou seja, a primeira menstruaC'C#o, por sua vez, tambC)m nC#o C) abordada.
Em 2015, no governo da presidenta Dilma Rousseff, o MinistC)rio da SaC:de apresentou um documento intitulado bMonitoramento e Acompanhamento da PolC-tica Nacional de AtenC'C#o Integral C SaC:de da Mulher (PNAISM) e do Plano Nacional de PolC-ticas para as Mulheres 2013-2015b (Brasil, 2015), criado para subsidiar as gestoras dos Organismos de PolC-ticas para as Mulheres. Esse foi o C:ltimo documento lanC'ado pelo MinistC)rio da SaC:de sobre a polC-tica de saC:de das mulheres, reforC'ando os objetivos da PNAISM. Apesar de nC#o trazer qualquer atualizaC'C#o referente C citada PolC-tica, esse documento ministerial enfatizou o compromisso da gestC#o federal, C C)poca, com o respeito C diversidade entre mulheres:
[...] negras, brancas, indC-genas, quilombolas, lC)sbicas, bissexuais, transexuais, em situaC'C#o de prisC#o, mulheres do campo, da floresta e das C!guas, com deficiC*ncia, em situaC'C#o de rua, com sofrimento psC-quico, e nos diferentes ciclos de vida, com C*nfase nos processos de climatC)rio e envelhecimento
(Brasil, 2015, p. 9).Mesmo o Brasil tendo um sistema de saC:de pC:blico e universal desde 1990, o SUS demorou 31 anos para incluir a pauta da menstruaC'C#o como tema de saC:de pC:blica. A temC!tica da saC:de menstrual permaneceu alijada das polC-ticas em saC:de atC) por volta dos anos de 2019 e 2020, quando os temas relacionados C menstruaC'C#o ganharam mais enfoque na mC-dia e na agenda pC:blica internacional, disparados pela reivindicaC'C#o dos movimentos sociais (feministas em sua maioria). Esse enfoque aconteceu, principalmente, devido C ausC*ncia ou dificuldade de acesso a produtos e insumos para o perC-odo menstrual, como absorventes, C!gua e banheiro, sobretudo para mulheres e pessoas em situaC'C#o de vulnerabilidade social, privadas de liberdade, em situaC'C#o de rua e estudantes de escolas pC:blicas, sendo bastante difundido o termo bpobreza menstrualb, fato que ocorre nos nC-veis material e simbC3lico da vida de crianC'as, adolescentes, mulheres e outras pessoas que menstruam.
A pobreza menstrual engloba desde a desigualdade no acesso a produtos de gestC#o menstrual, como os absorventes descartC!veis, C!gua potC!vel para higiene C-ntima e igualdade de oportunidades para a percepC'C#o e respeito das necessidades corporais no ciclo menstrual, atC) os aspectos simbC3licos, sociais e culturalmente construC-dos sobre a menstruaC'C#o, sobretudo em relaC'C#o ao tabu menstrual, ou seja, ao imaginC!rio coletivo de que esse C) um perC-odo sujo, nojento, doloroso e vergonhoso da vida das meninas, mulheres e demais pessoas que menstruam (Tarzibachi, 2017).
JC! nos paC-ses do norte global, a terminologia bhigiene menstrualb C) a mais utilizada nos termos da advocacia menstrual e dos direitos humanos, que se vinculam para bgarantir a gratuidade de tecnologias de gestC#o menstrual para pessoas em situaC'C#o de vulnerabilidade socialb (Tarzibachi, 2017, p. 283), bem como o acesso C C!gua e ao saneamento para a realizaC'C#o da higiene menstrual3 de forma digna e segura. PaC-ses como os Estados Unidos e a Alemanha tC*m difundido a Menstrual Hygiene Management (GestC#o da Higiene Menstrual) como um beixo de poderosas intervenC'C5es de diferentes organismos internacionais e organizaC'C5es nC#o governamentais dirigidas a meninas e adolescentes em paC-ses de baixa rendab (Tarzibachi, 2017, p. 292), principalmente paC-ses africanos, na C ndia, Nepal, entre outros. Essa pauta tornou-se uma agenda global de grandes organismos internacionais, como o Banco Mundial4, a OrganizaC'C#o Mundial de SaC:de (OMS), o UNICEF, a OrganizaC'C#o das NaC'C5es Unidas para a EducaC'C#o, a CiC*ncia e a Cultura (UNESCO), assim como organizaC'C5es do terceiro setor de grande escala, como a Save the Children e a Bill & Melinda Gates Foundation (Tarzibachi, 2017, p. 294). OrganizaC'C5es nC#o governamentais tambC)m se envolveram nessa questC#o, como a WASH United5, com sede em Berlim, que reC:ne mais de 400 ONGs internacionais nessa agenda e coordena o Dia da Higiene Menstrual6, que tem como principal patrocinadora a multinacional americana Procter & Gamble (P&G) de produtos de higiene e absorventes.
Entre os anos de 2017 e 2022, projetos de lei em vC!rios estados e municC-pios brasileiros pautaram a questC#o da dignidade e da pobreza menstrual, dados que estC#o amplamente descritos no estudo do Fundo de PopulaC'C#o das NaC'C5es Unidas (UNFPA, 2022), material que apresenta o mapeamento de iniciativas legislativas para a dignidade menstrual. Conforme o relatC3rio, no Congresso Nacional, nos anos 2017 e 2018, nenhuma proposiC'C#o analisada abrangia diretamente o tema por meio das palavras-chave dignidade e pobreza menstrual. A partir dos anos seguintes, C) visC-vel um aumento significativo de projetos de lei e outras proposiC'C5es legislativas acerca do tema: em 2020, quatro proposiC'C5es legislativas foram apresentadas, e, em 2021, foram 46. Nos Legislativos estaduais, o relatC3rio demonstra que, entre os anos de 2019 e 2021, houve a apresentaC'C#o de 211 proposiC'C5es legislativas nos Estados e no Distrito Federal.
Durante sC)culos (quiC'C! milC*nios), o tema da menstruaC'C#o esteve fora do debate e da agenda pC:blica, sendo um tema oculto atC) mesmo no C"mbito domC)stico e escolar. Esse cenC!rio evidencia a profunda invisibilidade e obscurantismo da questC#o e das discussC5es em torno dela, tC#o necessC!rias para a construC'C#o da equidade de gC*nero nas sociedades do sC)culo XXI.B
No C"mbito acadC*mico brasileiro, estudos crC-ticos relacionados C supressC#o da menstruaC'C#o pelos anticoncepcionais comeC'aram a ser realizados no inC-cio dos anos 2000 pela pesquisadora Daniela Manica (2003, 2011), e diversas pesquisas acadC*micas sobre a menstruaC'C#o e sua abordagem socioantropolC3gica e polC-tica vC*m sendo desenvolvidas7. Teses e dissertaC'C5es relacionadas C dignidade e C pobreza menstrual comeC'aram a ser registradas a partir do ano de 20218, mesmo ano em que este tema passou a ter maior visibilidade midiC!tica, principalmente pela omissC#o do governo que atuava em nC-vel federal na C)poca em debater a pauta de maneira ampliada, conforme reivindicavam militantes pela dignidade menstrual e, sobretudo, por vetar o projeto de lei que previa a distribuiC'C#o gratuita de absorventes para pessoas em situaC'C#o de vulnerabilidade (Bolsonaro [...], 2021).
Entre os grupos e movimentos que militam pela dignidade menstrual no Brasil9, podemos citar o Girl Up Brasil, que se denomina como bum movimento que treina, inspira e conecta meninas para que sejam lC-deres e ativistas pela igualdade de gC*nerob10. Esse grupo apoiou um outro grupo de meninas no Rio de Janeiro, que se mobilizou e persuadiu o deputado estadual Renan Ferreirinha a apresentar um projeto de lei (PL), aprovado em 2020, que reduziu a tributaC'C#o sobre absorventes. No C"mbito federal, o projeto de lei de autoria da deputada federal TC!bata Amaral, que propunha a distribuiC'C#o gratuita dos absorventes em espaC'os pC:blicos, tambC)m teve a participaC'C#o desse grupo, assim como em SC#o Paulo, por iniciativa da deputada estadual Marina Helou, do PL, que propunha a distribuiC'C#o gratuita, reduC'C#o tributC!ria e bpreconiza iniciativas relacionadas C educaC'C#o menstrual, o incentivo C produC'C#o de absorventes de baixo custo e o fomento C pesquisab (Bahia, 2021, p. 22). Cabe ressaltar que atualmente o grupo Girl Up Brasil recebe apoio da marca de absorvente Always, da multinacional americana P&G, que atua no ramo de produtos de higiene pessoal.
A dignidade menstrual demorou para entrar na pauta federal do Legislativo e do Executivo brasileiro. Foi apenas a partir de 2019, quando o Projeto de Lei n. 4.968/2019 (Brasil, 2019), de autoria da deputada MarC-lia Arraes, do Partido dos Trabalhadores (PT), foi apresentado na CC"mara Legislativa Federal. Depois e, mais intensamente, em 2020 e 2021, em meio a uma forte onda conservadora no Brasil e concomitantemente C pandemia da Covid-19, essa pauta recebeu atenC'C#o nas esferas federais, apC3s crescente reivindicaC'C#o de movimentos sociais de mulheres militantes do tema da dignidade menstrual, pautado nesse perC-odo tambC)m pela UNICEF (2021).
Inicialmente vetado pelo presidente na C)poca, Jair Bolsonaro11 e, depois de grande repercussC#o midiC!tica, o Projeto de Lei n. 4.968/2019 (Brasil, 2019) b que previa a distribuiC'C#o gratuita de absorventes higiC*nicos para estudantes dos ensinos fundamental e mC)dio de escolas pC:blicas, mulheres em situaC'C#o de vulnerabilidade e privadas de liberdade b foi aprovado em 2021, e resultou na criaC'C#o do Programa de ProteC'C#o e PromoC'C#o da SaC:de Menstrual no Brasil com a Lei n. 14.214 (Brasil, 2021). Apesar de ainda nC#o contemplar a amplitude do debate em relaC'C#o C dignidade e C saC:de menstrual, esse Programa significou um primeiro passo em relaC'C#o ao cuidado e ao direito C saC:de menstrual no Brasil. Todavia, ele nC#o contemplou as mulheres privadas de liberdade nem os homens trans, pessoas nC#o binC!rias e pessoas intersexo, e tampouco continha diretrizes claras de como seria implementado, reduzindo o debate ao que podemos chamar de um paternalismo assistencial do Estado para com os corpos menstruantes, e que, num governo conservador de direita, pode remeter C mercantilizaC'C#o da menstruaC'C#o, beneficiando as empresas fabricantes de absorventes higiC*nicos.
Em 2023, o governo do presidente Lula nomeou a primeira mulher como ministra da SaC:de no paC-s desde a criaC'C#o do MinistC)rio da SaC:de, em 1953. Logo no inC-cio de seus mandatos, NC-sia Trindade e Lula, entre outros 18 ministC)rios, como os MinistC)rios das Mulheres e dos Direitos Humanos, regulamentaram a Lei n. 14.214. Por meio do Decreto n. 11.432, de 8 de marC'o de 2023 (Brasil, 2023a), o instrumento ampliou a perspectiva sobre o debate e contemplou a inclusC#o da terminologia bdignidade menstrualb no Programa, assim como a inclusC#o de outras pessoas que menstruam alC)m das mulheres cisgC*nero, quando a expressC#o bpessoas que menstruamb passou a ser mencionada no Programa12.
Outras aC'C5es importantes ganharam destaque nessa Lei, como a promoC'C#o da saC:de integral relacionada ao ciclo menstrual, o enfrentamento C s vulnerabilidades na C!rea da saC:de menstrual, a formaC'C#o de agentes pC:blicos na C!rea da saC:de menstrual, entre outros aspectos que ampliaram, sobremaneira, a responsabilidade do Estado sobre a saC:de e a dignidade menstrual das mulheres e pessoas que menstruam. Segundo o governo federal, mais de 24 milhC5es de mulheres e pessoas com C:tero serC#o beneficiadas com o programa por meio de investimentos de mais de R$ 400 milhC5es por ano na C!rea da SaC:de Menstrual (Brasil, 2023c).
Uma vez instituC-do o Decreto n. 11.432/2023, coube ao governo federal, por meio da Portaria Interministerial n. 729, de 13 de junho de 2023 (Brasil, 2023b), dispor sobre a implementaC'C#o do Programa de ProteC'C#o e PromoC'C#o da SaC:de e Dignidade Menstrual. Essa norma definiu os critC)rios para a distribuiC'C#o dos absorventes, sendo as pessoas beneficiadas pelo Programa, conforme apresentado na Portaria, aquelas matriculadas na rede pC:blica de ensino e que pertenC'am a famC-lias que estejam inscritas no Cadastro Cnico para Programas Sociais (CadCnico) e sejam classificadas como de baixa renda, na qual estC#o inclusas as pessoas em situaC'C#o de rua, recolhidas em unidades do sistema prisional e em cumprimento de medidas socioeducativas.
Considerando os critC)rios acima descritos, C) possC-vel afirmar que a maioria das pessoas beneficiadas pelo Programa sC#o as pretas e pardas. Portanto, um aspecto importante suscitado quando se aborda a questC#o do combate C pobreza menstrual C) o recorte de raC'a, de classe e o racismo estrutural imbricado na falta de acesso ao conjunto de fatores que a caracterizam (CC"ndido; Saliba, 2022). Para esses aspectos, o relatC3rio da UNICEF (2021) sobre a Pobreza Menstrual no Brasil demonstra que a precariedade menstrual C) ainda mais profunda para as meninas pretas e pardas, representando essas um total de 66,1% das que nC#o tC*m acesso a papel higiC*nico; 13% das que tC*m mais probabilidade de nC#o ter acesso a saneamento bC!sico e trC*s vezes mais chance do que uma menina branca de nC#o possuir banheiro em casa; 62,6% das meninas que nC#o tC*m acesso a pia e sabC#o na escola sC#o pretas e pardas e 19% delas tC*m menos acesso a informaC'C5es sobre educaC'C#o menstrual, quando comparadas a meninas brancas. As meninas pretas e pardas representam 76% do total de meninas sem acesso C energia elC)trica em casa.
O acesso aos produtos de gestC#o menstrual para as pessoas que menstruam e que nC#o tC*m acesso a eles C) uma dC-vida histC3rica dos paC-ses pobres/em desenvolvimento no cuidado para com sua populaC'C#o menstruante e, por isso, o ressarcimento dessa dC-vida devem ser o acesso e a oferta inadiC!veis, por parte dos poderes pC:blicos, de todos os insumos e serviC'os para a gestC#o menstrual disponC-veis atualmente.B
Destarte, questC5es como o acesso C C!gua potC!vel, o saneamento bC!sico e a educaC'C#o libertC!ria e emancipatC3ria para a saC:de menstrual, sexual, ginecolC3gica e reprodutiva sC#o inerentes C pauta da dignidade menstrual e suscitadas pelos movimentos sociais da menstruaC'C#o, que tambC)m reivindicam a necessidade de se avanC'ar nos debates sobre outros direitos menstruais, como a licenC'a menstrual, fatores esses que, somados, garantiriam o que se define por dignidade menstrual em sua perspectiva mais abrangente.
Os programas sobre saC:de menstrual no Brasil podem ser uma porta, uma abertura para um debate mais amplo sobre corpos polC-ticos, gC*nero e sexualidade, conforme as pautas levantadas pelos ativismos menstruais, movimento feminista que define a menstruaC'C#o como um caminho para a emancipaC'C#o social de meninas, mulheres e pessoas que menstruam (Nicolau; Arocas, 2020).
A autora Chris Bobel (2010), uma das principais pesquisadoras sobre ativismos menstruais no mundo, alude C perspectiva de blutar contra a narrativa cultural dominante da menstruaC'C#o que constrC3i um processo corporal normal especC-fico das mulheres como nojento, irritante, tabu, que acha melhor mantC*-lo fora de vista e fora da menteb (Bobel, 2010, p. 6, traduC'C#o prC3pria). JC! para a autora Miren Guillo Arakistain (2013, p. 234), os ativismos menstruais ressignificam o ciclo menstrual como um bespaC'o de resistC*ncia ao modelo mC)dico-cientC-fico e ao modelo culturalb, possibilitando C s pessoas que menstruam uma forma de reivindicarem a condiC'C#o de sujeitos polC-ticos, para alC)m de sua suposta essC*ncia natural feminina (Nicolau; Arocas, 2020).
No Brasil, os movimentos sociais pela dignidade e ativismo menstrual compC5em coletivos, ONGs e projetos sociais, majoritariamente independentes e formados a partir de iniciativas prC3prias e de interesses polC-ticos e feministas13. TambC)m sC#o observadas iniciativas para a promoC'C#o da dignidade menstrual dentro de escolas e universidades brasileiras, por meio da abordagem e da discussC#o dessa temC!tica, bem como mediante iniciativas de confecC'C#o e distribuiC'C#o de kits de higiene menstrual para grupos vulnerC!veis.
Alguns desses movimentos sC#o formados por mulheres que se denominam educadoras menstruais, pois, alC)m de militarem pela dignidade menstrual, tambC)m trabalham na perspectiva de uma pedagogia para o que chamam de balfabetizaC'C#o menstrual e corporalb. Dessa forma, atuam principalmente com o pC:blico escolar, desenvolvendo conteC:do e material educativo sobre o ciclo menstrual/ovulatC3rio, menarca, mudanC'as corporais, emocionais e psC-quicas durante o ciclo hormonal, anatomia dos C3rgC#os femininos e desestigmatizaC'C#o da menstruaC'C#o.
Ora, se as pautas dos movimentos sociais, denominados por Bobel (2010) de ativismos menstruais radicais, nC#o forem incluC-das nos debates sobre a dignidade menstrual, esse pode se restringir, conforme alude a autora, ao debate pC3s-feminista, ou seja, C queles cujos valores se alinham aos do neoliberalismo. Bobel caracteriza os ativismos menstruais radicais como aqueles que combinam teorias do feminismo de terceira onda com o
[...] ativismo pela saC:de e ecologista [...], um ativismo antiessencialista que nC#o somente desafiarC! o estigma da menstruaC'C#o como tambC)m exercerC! uma crC-tica radical C indC:stria de higiene feminina por suas prC!ticas de acumulaC'C#o de capital que pC5em continuamente em risco os corpos das mulheres e o meio ambiente
(Bobel apudNicolau; Arocas, 2020, p. 158).Mais precisamente, se o debate de dignidade menstrual se restringir C distribuiC'C#o gratuita de absorventes para uma parcela da populaC'C#o que menstrua, alC)m de a pauta permanecer na esfera do tabu menstrual, ela ainda servirC! de fonte lucro apenas para as empresas que fabricam os absorventes descartC!veis, ou seja, de grandes corporaC'C5es internacionais, permanecendo os corpos menstruantes na lC3gica colonialista: corpos explorados com vistas ao lucro e C acumulaC'C#o do capital externo. Ou ainda, na lC3gica da mercantilizaC'C#o da menstruaC'C#o e do produtivismo dos corpos menstruantes, pela exploraC'C#o do trabalho (Nicolau; Arocas, 2020), sobretudo quando se invisibiliza a menstruaC'C#o como um momento em que o corpo necessita de pausa e descanso14 e cria-se um imaginC!rio de que, com um bom absorvente e com um bom analgC)sico especC-fico para esse perC-odo, a menstruaC'C#o pode ser vivida em corpos ativos, produtivos, dentro de padrC5es estC)ticos impostos pelo mercado, e, por fim, mantendo esses corpos submetidos C lC3gica biomC)dica, sobretudo por meio da utilizaC'C#o massiva e prolongada de medicamentos hormonais sintC)ticos para a supressC#o da ovulaC'C#o e, consequentemente, da menstruaC'C#o.
Sendo assim, atravC)s da crC-tica ao complexo industrial-higiC*nico-farmacolC3gico, ao produtivismo e C s lC3gicas de exploraC'C#o e autoexploraC'C#o, bem como ao modelo biomC)dico e C medicina alopC!tica (Nicolau; Arocas, 2020), o movimento dos ativismos menstruais instiga reflexC5es mais profundas sobre a saC:de menstrual e sua abordagem no C"mbito pC:blico, aludindo ao que a pesquisadora NC:ria Sala (2019) chama de menstruaC'C#o decolonial.
O movimento decolonial, que ascendeu na AmC)rica Latina a partir dos estudos de AnC-bal Quijano (2005), Maria Lugones (2020) e RamC3n Grosfoguel (2008), entre outros pesquisadores, exerceu forte influC*ncia para se pensar a menstruaC'C#o como um processo decolonial. Conforme propC5e Sala (2019), a menstruaC'C#o decolonial sugere que as pessoas que menstruam necessitam de acesso a conhecimentos sobre seus corpos e ciclos menstruais/ovulatC3rios, bem como sobre as diversas possibilidades e ferramentas disponC-veis para a gestC#o menstrual, para que possam fazer escolhas informadas e conscientes sobre quais ferramentas atendem melhor C s suas necessidades menstruais e, com isso, tornar a experiC*ncia menstrual um processo emancipatC3rio (VC!squez, 2022). Nesse sentido, torna-se possC-vel pensar em emancipaC'C#o e soberania menstrual, conceitos que tC*m como foco as mulheres e outras pessoas que menstruam na pauta da menstruaC'C#o, como perspectivas ampliadas e mais abrangentes do que exclusivamente o combate C pobreza menstrual.
A ideia da menstruaC'C#o decolonial tem sido protagonizada por ativistas e educadoras menstruais na AmC)rica Latina, ou em Abya Yala15, nome dado pelo povo kuna, do norte da ColC4mbia, para o seu territC3rio e que, no idioma original, significa terra madura, terra viva, que floresce (Grondin; Viezzer, 2021).
Destarte, dentro do escopo da menstruaC'C#o decolonial, o debate da dignidade menstrual estC! contemplado como uma categoria de referC*ncia nC#o apenas em relaC'C#o ao combate C pobreza menstrual (ou precariedade menstrual, como preferem denominar as ativistas menstruais), como tambC)m a uma gama de questC5es inexorC!veis ao tema da soberania sobre a menstruaC'C#o.
Entre essas questC5es, ativistas menstruais levantam a temC!tica da menstruaC'C#o sustentC!vel, reivindicando que as multinacionais de produtos de higiene menstrual sejam responsabilizadas pelo impacto ambiental na fabricaC'C#o de seus produtos, bem como por meio do incentivo C utilizaC'C#o de tecnologias de gestC#o menstrual ecolC3gicas, como as calcinhas e absorventes reutilizC!veis e os coletores menstruais. Entre as ativistas, esse tema vem, seguramente, acompanhado da reflexC#o crC-tica sobre quem sC#o as pessoas que tC*m acesso a esses produtos ecolC3gicos, por meio do recorte interseccional de raC'a e classe, das pessoas que tC*m condiC'C5es socioeconC4micas de adquirir e manter a utilizaC'C#o desses produtos16.
JC! no viC)s da politizaC'C#o da menstruaC'C#o, considerando que o tabu menstrual C) uma forma de misoginia, os movimentos sociais pela dignidade e ativismos menstruais lutam para que nenhuma menina, mulher e pessoa que menstrua seja violentada, excluC-da ou envergonhada por menstruar (VC!squez, 2022). Ainda considerando que menstruar C) um ato polC-tico, os movimentos sociais da menstruaC'C#o reclamam pelo fim da mercantilizaC'C#o da menstruaC'C#o, por entes pC:blicos e privados, e dos impostos sobre os insumos menstruais, bem como pela gratuidade de produtos de gestC#o menstrual em presC-dios, escolas pC:blicas e para populaC'C5es vulnerC!veis.
Outra pauta suscitada pelos movimentos sociais e que amplia, sobremaneira, a abordagem dos direitos humanos e em saC:de relacionada C menstruaC'C#o refere-se C realizaC'C#o da educaC'C#o menstrual como componente dos currC-culos escolares, oferecendo proteC'C#o e cuidado, especialmente, com a menarca. Para Carolina RamC-rez VC!squez (2022), a educaC'C#o menstrual nC#o apenas oferece uma gama de conhecimentos e informaC'C5es sobre o corpo, o ciclo e a gestC#o menstrual, mas, sobretudo, desmantela os discursos higienistas, biologicistas, medicalizantes e patologizantes sobre o ciclo menstrual.
O tema da introduC'C#o precoce de medicamentos contraceptivos, sobretudo em crianC'as, que menstruam cada vez mais cedo devido C s atuais condiC'C5es de vida e de alimentaC'C#o, tambC)m C) debatido criticamente por algumas ativistas que questionam os efeitos colaterais desses medicamentos a longo prazo17.
Outros temas relativos C inclusC#o social estC#o sendo levantados pelos movimentos sociais da menstruaC'C#o, como a questC#o do capacitismo e da inclusC#o de pessoas com deficiC*ncia nesse debate. A diversidade de gC*nero, quando nC#o mais se relaciona a menstruaC'C#o apenas C s meninas e mulheres, mas sC#o incluC-dos outros gC*neros nesse escopo, como os homens trans, pessoas nC#o binC!rias e intersexos, tambC)m tem sido debatida.
Contribuindo com o fim do tabu menstrual, os discursos dos ativismos menstruais, observados na revisC#o narrativa deste artigo e por meio da participaC'C#o da autora em grupos e encontros de ativistas menstruais, referem-se aos esforC'os desses grupos em criar relatos mais positivos em relaC'C#o ao perC-odo menstrual, fortemente marcado por narrativas depreciativas e traumatizantes, sobretudo no que se refere C primeira menstruaC'C#o. Segundo Tarzibachi (2017), a depreciaC'C#o da menstruaC'C#o pertence ao projeto do patriarcado de desqualificar, desvalorizar e inferiorizar os corpos e os processos fisiolC3gicos femininos, tornando-os processos defeituosos, como que erros da natureza. Para a autora, a desconstruC'C#o desse imaginC!rio patriarcal dependeria do reconhecimento e da valorizaC'C#o de toda a estrutura anatC4mica, fisiolC3gica, social e polC-tica dos corpos com C:tero, ovC!rios e que sangram.
Longe de romantizar o ciclo menstrual, mas ressignificando a menstruaC'C#o, baseando-se em um conjunto de posicionamentos polC-ticos, sociais, ambientais e econC4micos, as contribuiC'C5es dos movimentos sociais para a construC'C#o de pautas ampliadas sobre a menstruaC'C#o, em seu viC)s pC:blico e polC-tico, configuram-se, sobretudo, em organizar processos de resistC*ncia ao modelo sistC*mico e de btransformaC'C#o das relaC'C5es com a prC3pria corporalidade [...] localizando o ciclo menstrual como elemento-chave para a articulaC'C#o de polC-ticas feministasb (Nicolau; Arocas, 2020, p. 167, traduC'C#o prC3pria).
Atualmente, o tema da dignidade menstrual estC!, majoritariamente, inserido no campo dos direitos humanos e, no caso brasileiro, tambC)m no campo do direito e acesso universal C saC:de. C possC-vel afirmar que a garantia de direitos bC!sicos como o acesso C C!gua potC!vel, saneamento bC!sico, moradia segura, educaC'C#o de qualidade, bem como o acesso universal a serviC'os de saC:de pC:blicos e de qualidade estC#o diretamente relacionados C garantia dos direitos, da dignidade e da justiC'a menstrual.
Ainda que tenhamos avanC'ado na criaC'C#o de leis federais, estaduais e municipais em relaC'C#o C dignidade menstrual e C distribuiC'C#o gratuita de absorventes para populaC'C5es vulnerC!veis, cabe ao poder pC:blico garantir que as leis sejam cumpridas e os insumos para a gestC#o menstrual cheguem, de fato, C s pessoas que necessitam, por meio da implementaC'C#o do Programa de PromoC'C#o e ProteC'C#o da SaC:de e Dignidade Menstrual nos Estados e municC-pios, bem como de sua ampliaC'C#o e fortalecimento mediante a participaC'C#o social dos movimentos pela dignidade e ativismos menstruais. Considera-se, para isso, que os desafios para a efetivaC'C#o dessas leis relacionam-se a problemas estruturais da polC-tica brasileira, como a corrupC'C#o, os interesses das empresas privadas, a misoginia, a necropolC-tica e a burocracia do Estado brasileiro.
C luz dos avanC'os tecnolC3gicos em que vivemos no sC)culo XXI, C) assustador pensar que muitas mulheres e pessoas que menstruam ainda utilizam trapos de panos, jornais ou miolo de pC#o para absorver o sangue menstrual, realidade de milhares de mulheres e outras pessoas que menstruam em situaC'C#o de rua, privadas de liberdade ou em extrema pobreza. A falta do absorvente higiC*nico e demais insumos para a gestC#o menstrual, assim como a vergonha de relatar essa falta, gera grande absenteC-smo escolar para centenas de estudantes brasileiras que, muitas vezes, tambC)m nC#o possuem condiC'C5es mC-nimas de higiene e infraestrutura nos banheiros escolares, a exemplo da C!gua, sabC#o, papel higiC*nico e portas nos banheiros (UNICEF, 2021).
Em nC-veis subjetivos, a misoginia C) expressa cotidianamente sobre o ciclo menstrual, a exemplo dos estereC3tipos relacionados C tensC#o prC)-menstrual (TPM) ou quando um vazamento de sangue cria uma mancha na roupa de quem estC! menstruando. A dor, o desconforto ou a necessidade de recolhimento nos perC-odos menstrual e prC)-menstrual sC#o sabidamente negligenciados e subestimados em nossas sociedades. Para as mulheres negras, soma-se C misoginia o racismo, considerando que a maioria das pessoas que realizam o trabalho domC)stico remunerado e o nC#o remunerado, como as trabalhadoras domC)sticas e pessoas que se ocupam de serviC'os de higiene, limpeza e/ou no cuidado com crianC'as e idosos, sC#o mulheres negras (Biroli, 2018), trabalhando em contextos de exploraC'C#o do corpo e realizando trabalhos pesados, sangrando-menstruando, muitas vezes de pC)s descalC'os em C!guas frias, inalando produtos quC-micos e em situaC'C5es de inseguranC'a fC-sica e alimentar.
As iniquidades e desigualdades de gC*nero refletidas no tabu e na precariedade menstrual demonstram a urgC*ncia da ampliaC'C#o desse debate em todas as esferas sociais e da ressonC"ncia das vozes das ativistas e dos movimentos sociais pela visibilizaC'C#o da dignidade menstrual em prol da equidade de gC*nero, da emancipaC'C#o e soberania de mulheres e demais pessoas que menstruam.
Corroborando as premissas do movimento pela descriminalizaC'C#o do aborto, bmeu corpo, minhas regrasb e bnenhuma a menosb, os movimentos pela dignidade e ativismos menstruais dizem: bmeu corpo e meu C:tero me pertencemb, bmenstruar C) polC-ticob, bmenstruaC'C#o digna C) meu direitob. Este artigo pretendeu ecoar essas vozes para que sejam integradas entre grupos acadC*micos, comissC5es gestoras, parlamentares e demais instC"ncias que debatem a saC:de e a dignidade menstrual e contribuem com a formulaC'C#o de polC-ticas pC:blicas para as mulheres, bem como para problematizar e refletir sobre o longo caminho que ainda temos para que meninas, mulheres, homens transgC*nero, pessoas intersexos e demais pessoas que menstruam vivam com dignidade seus ciclos menstruais.