ARTIGOS
Received: 12 August 2023
Accepted: 15 February 2024
Published: 19 April 2024
DOI: https://doi.org/10.5433/2176-6665.2024v29n1e48739
Resumo: Este artigo analisa uma visita escolar muito especial com alunos do ensino médio a um museu que é a antiga prisão em Nice (França) e apresenta a exposição Liberté, Liberté Chérie, sobre o conceito de Liberdade. Após apresentar as opções museográficas e cenográficas dessa exposição, a reflexão propõe uma orientação teórica e ferramentas metodológicas que definem uma abordagem etnodidática e permitem analisar como a recepção da exposição e das obras de arte é construída individual e coletivamente.
Palavras-chave: Museu, exposição, recepção, liberdade e perda da liberdade.
Abstract: This article analyses a very special school visit with high school students to a museum that is the former prison in Nice (France) and which presents the exhibition, Liberté, Liberté Cherie, on the concept of Freedom. After presenting the museographic and scenographic options of this exhibition, the reflection proposes a theoretical orientation and methodological tools that define an ethno-didactic approach and make it possible to analyse how the reception of the exhibition and the works of art is constructed individually and collectively.
Keywords: Museum, exhibition, reception, freedom and loss of freedom.
Introdução
Liberté, Liberté Chérie é o título de uma exposição realizada entre 28 de junho e 15 de setembro de 2019 no Espace culturel départemental Lympia (agora Espace Lympia), a antiga colônia penal que foi preservada e transformada em um espaço de museu2 na cidade de Nice na França.
A exposição atrai muitos visitantes e algumas visitas de escolas, principalmente de alunos do ensino médio local (de 15 a 18 anos). A exposição foi realizada durante as férias de verão, em julho e agosto, portanto, poucas turmas se inscreveram. Três turmas vieram na primeira semana de setembro, mas estavam geograficamente próximas ao museu e só visitaram parte da exposição por falta de tempo. No dia 9 de setembro de 2019, duas turmas de uma escola secundária de outra cidade se inscreveram, e a educadora de museu me convidou para observá-las. Encontrei os dois professores fora do museu, apresentei-me brevemente e mencionei o trabalho que estava a fazer (pesquisa para compreender como os alunos podem apropriar-se das obras no museu) e pedi permissão para acompanhá-los, observá-los e fazer anotações de tudo o que dissessem e para onde fossem, sabendo que tudo seria anônimo. Eles me autorizaram a fazer uma gravação de áudio com meu telefone celular. A situação não tinha precedentes. Em minhas pesquisas anteriores3, era eu que escolhia as turmas (pelo menos o nível acadêmico) e o museu, e tudo é planejado com semanas de antecedência, conforme o foco do projeto de pesquisa. A educadora de museu que eu havia conhecido nas minhas visitas anteriores a essa exposição questionava a sua atitude e como se adaptar a um público escolar. Tive uma longa entrevista com ela no museu (no sábado anterior à visita escolar), em que ela me falou sobre a dificuldade de mudar de um público para outro (adulto, jovens, escolares) e a falta de “aderência” com o público escolar, a necessidade de se adaptar à cultura e à experiência deles..., no entanto, ela está convencida de que o tema da liberdade é de interesse para eles, que a exposição engajada devia causar impacto nos visitantes seja qual for sua idade.
Habitualmente, elaboro projetos de pesquisa e seleciono os museus, as escolas e o público que me permitem abordar as questões colocadas. O contexto dessa experiência de pesquisa modifica e perturba as minhas formas de trabalhar metodologicamente. Eu não conhecia as turmas nem o contexto da visita, que me foi apresentado pelos professores no final dela, e não filmei a visita (que é o que geralmente faço), mas tive muitas discussões com a educadora de museu. Tornei-me uma observadora de visitantes, o que as duas turmas aceitaram, observando os sujeitos visitantes e me misturando aos grupos que se formaram, registrando as trocas, seguindo alguns visitantes mais do que outros... Experimentei uma observação etnográfica, misturando-me ao ambiente da exposição com a concordância dos visitantes.
Uma pergunta recorrente no meu trabalho orienta a minha observação e a reflexão desenvolvida no restante deste artigo: o que acontece durante uma visita escolar que pesa, influencia, possibilita ou não a recepção de uma exposição e das obras que a compõem? Visitar um museu é, ao mesmo tempo, uma prática social e uma experiência sensível, íntima (individual) e compartilhada (coletiva), que permite a cada visitante receber uma mensagem que o trabalho museográfico e museológico do curador concebeu por meio de um certo número de escolhas que expõem as obras. Davallon (2010, p. 230) distingue duas concepções de exposição, a primeira que envolve a disposição das coisas no espaço de modo a torná-las visíveis, e a segunda em que expor “significa tornar algo visível para que seja compreensível – em outras palavras, para que se possa dizer algo a respeito do que se vê”. Esta exposição se enquadra nessa segunda categoria.
No contexto deste artigo, desenvolvo uma abordagem em três pontos. Em primeiro lugar, faço uma retrospectiva do contexto singular desta visita, a sua observação e a exposição que permitiu construir dados analisáveis. A segunda diz respeito à abordagem didática para a análise teórica da recepção das obras. A seção final se concentra em certos intercâmbios que esclarecem as recepções construídas na tensão entre o coletivo e o individual.
1 Observação de Uma Visita Escolar a Uma Exposição Engajada
1.1 Um Espaço Carregado de História
O Espace Lympia é um espaço atípico, composto pela antiga colônia penal de Nice e pelo Pavillon de l’horloge restaurado e convertido em galerias de exposições. O espaço tem uma história e um simbolismo que levam a uma reflexão única sobre a liberdade e a necessidade de valorizá-la. Embora nenhuma exposição seja neutra, pois uma exposição diz sempre algo sobre o mundo e expõe uma visão deste, esta nos convida a refletir sobre a liberdade em um local que representou precisamente a perda de toda a liberdade. Desde o início, o simbolismo e as tensões entre liberdade e falta de liberdade são expostos.

Os dois espaços de exposição são sobrepostos: a prisão no andar térreo, sem comunicação direta com o andar superior, e o Pavillon de l’horloge, acessível por uma escada de pedra externa que leva a um imenso terraço, um pátio, pode-se dizer, que nada mais é do que o telhado da prisão, oferecendo uma vista do Mar Mediterrâneo que convida ao devaneio e à viagem. O Pavilhão está distribuído em quatro andares, com salas em cada andar. A altura e a luminosidade do Pavilhão contrastam com a sala escura, abobadada e em forma de L da colônia penal. As mulheres eram presas no Pavilhão, enquanto os homens eram acorrentados na colônia penal. O passeio pela exposição começa na colônia penal e continua no Pavilhão. Os alunos são recebidos no pátio da antiga colônia penal em frente à escultura Esclaves, de Bernard Gacsi (2016), que relembra a história do local e introduz o tema da exposição.
Na entrada, os visitantes descobrem algumas linhas do poema Liberté, de Paul Éluard (1968)4:
Sur mes Cahiers d’écolier
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable et la neige
J’écris ton nom
Je suis né pour te connaitre
Pour te nommer
Liberté
Pau Éluard
Esse poema, escrito em 1942 durante a ocupação alemã de Paris, é um grito de esperança e é considerado na França como um hino à Resistência. Durante a guerra, ele foi lançado de paraquedas de aviões da Royal Air Force nas áreas livres da França, conclamando todos a se juntarem à Resistência. O título Liberté, Liberté Chérie também não é neutro: é um dos versos de La Marseillaise, de Rouget de Lisle (1792), que se tornou o hino nacional da França:
Amour sacré de la Patrie
Conduis, soutiens nos bras vengeurs
Liberté, Liberté chérie,
Combats avec tes défenseurs ! (bis)
Sous nos drapeaux, que la victoire
Accoure à tes mâles accents,
Que tes ennemis expirants
Voient ton triomphe et notre gloire !5
Todos esses elementos na entrada da exposição dão o tom, tornando a liberdade um bem comum e uma conquista histórica.
Como Cristina Carvalho e Thamaris Lopes (2016, p. 911) dizem tão bem,
O espaço aberto do museu é também fator integrante da aquisição de conhecimentos e se distingue em muitos aspectos dos espaços escolares. Independentemente de faixa etária ou tipologia de museu, o visitante precisa ser cativado pela exposição durante todo o percurso, entre temas e objetos que produzem significado.
1.2 Uma Exposição Engajada
A exposição apresenta mais de 60 obras de 32 artistas, incluindo esculturas, pinturas, vídeos e instalações. O espaço é administrado por uma associação, a Union Méditerranéenne pour l’Art Moderne (atualmente UMAM), presidida por Simone Dibo-Cohen, que também é a curadora da exposição. Essa associação foi criada um ano após a Segunda Guerra Mundial em resposta à necessidade de os artistas vivos exporem e se expressarem novamente e de o público voltar a visitar museus após seis longos anos de privação de arte e liberdade. A associação está comprometida com a ideia de ajudar artistas emergentes e acompanhá-los durante o processo de exposição. A exposição reúne obras de artistas estabelecidos e conhecidos do público e outros que geralmente estão expondo pela primeira vez ou quase pela primeira vez.
Na abertura, o curador confidenciou que “La Liberté dévoilée” do fotógrafo artista Gérard Rancinan (2008) é a obra em torno da qual a exposição foi organizada do ponto de vista museográfico. A escolha cenográfica é interessante, pois ela é exibida no penúltimo andar do Pavillon de l’horloge, como se quisesse reunir todos os elementos-chave da mensagem da exposição, antes de liberar os visitantes para deixá-los à vontade. Ela também está nesse andar porque a sala é grande o suficiente para acomodá-la, o que não teria sido possível na sala da prisão (baixa e escura). A intenção da exposição pode ser resumida em poucas palavras:
As palavras Liberdade e Arte sempre estiveram lado a lado. O testemunho do artista busca provocar a reação do espectador. Desafiando a arte que se contenta em ser estética e decorativa, a UMAM escolheu obras e criadores que às vezes podem ser perturbadores, mas, acima de tudo, abrem uma porta para a esperança
(Dibo-Cohen, em UMAM6, 2019, p. 14).O principal objetivo da exposição é incomodar. No entanto, os artistas e a museografia são guiados por dois princípios orientadores: a liberdade é questionada tanto como uma busca e uma condição da atividade criativa do artista quanto como um conceito social e filosófico que nos permite refletir sobre a condição humana. A exposição inteira está organizada em torno desses dois temas, que são destacados na museografia.
Nesse sentido, essa exposição é uma forma de arte totalmente engajada, na qual o visitante-espectador não pode simplesmente olhar e admirar as obras, mas a exposição deve fazer com que o visitante reaja e aja, que tome consciência de sua condição de homem e mulher em relação à liberdade e em relação aos outros. A arte engajada, portanto, leva a um encontro consigo mesmo e com os outros, como afirma Sonja Kellenberger (2006, p. 191): “Da mesma forma, é apropriado não apenas falar sobre a presença da alteridade nas obras (referindo-se, acima de tudo, à questão de sua representação), mas, sobretudo, colocar o encontro com o outro” (como um princípio de ação e um vetor para a criação) no centro do exame”. A mediação observada converge nesse sentido tendo como objetivo chocar o indivíduo a fim de regenerar o coletivo e envolver todos, se não numa consciência política, ao menos numa luta cívica.
1.2.1 A Liberdade de Criar
Uma das estruturas para os trabalhos em exposição é a referência a outros trabalhos e às conexões entre eles. Muitos dos artistas desta exposição estão seguindo os passos de outros que os precederam, não para tomar emprestada uma ideia deles, mas para criar uma nova ideia que faz parte da história da arte e ecoa a história. La Liberté dévoilée de Gérard Rancinan é inspirada em La Liberté guidant le peuple (2018) de Eugène Delacroix, mas ao lado da fotografia em Plexiglas há um filme que mostra atores representando a criação da obra. Portanto, não é tanto uma homenagem a Delacroix que está em exibição, mas sim o que seu trabalho inspira em nossa sociedade, onde as barricadas assumem outras formas:
Ele escolheu desenvolver a liberdade religiosa, muito conflitante em nossa sociedade, por meio de uma mulher velada guiando o povo, enquanto a liberdade de opinião quer encontrar seu eco na televisão, a imprensa cobrindo a barricada e o Muro de Berlim desmoronado
(Gaudriault apudUMAM, 2019, p. 68, tradução nossa).Philippe Nuell (2017) também fala sobre as restrições que impõe a si ao trabalhar com obras das quais toma a liberdade, segundo ele, de se “apropriar”. Esse é o caso de Life is good, na qual ele retrata a escultura Sunbather (banhista) de Duane Hanson, de 1971, em um novo cenário. Enquanto este último denunciou o sonho americano, Philippe Nuell nos convida a refletir sobre a liberdade de consumir um luxo que pode não existir. “Essa liberdade artificial é apenas o reflexo de um sonho de felicidade, o do individualismo contemporâneo, que é, ao mesmo tempo, ilusório e alienante” (J.L./A.L. apud UMAM, 2019, p. 60). Em Le Petit Prince, Ramezani Kianoush se manifesta contra a autocensura, argumentando que os artistas, como todos os outros, não passam de pequenos príncipes em seus próprios planetas, em referência à obra de Antoine de Saint-Exupéry (2007).
Penso que cada indivíduo é único e cada pessoa tem sua própria órbita de liberdade, como um planeta. Portanto, a liberdade não termina onde começa a dos outros! Em minha órbita, a liberdade é essencial, fundamental e, é claro, nunca termina
(Kianoush apud UMAM, 2019, p. 48, tradução nossa).A referência aqui à obra literária mostra, por um lado, que o artista está buscando criar uma conivência com seu espectador, que supostamente é capaz de mobilizar a emoção e o capital de simpatia que a imagem do Pequeno Príncipe carrega na sociedade francesa e além dela, mas também a maneira pela qual ele inscreve seu ato militante: alcançar o maior número de espectadores insurgentes contra a incompreensão e a autocensura.
Se todo texto é um intertexto (Barthes, 1973), podemos ver aqui como a criação artística também invoca esse processo criativo de empréstimo, desvio, alusão e referência a outras obras. A “intermidialidade” (Müller, 2000) assume aqui seu significado pleno, mostrando como a arte ultrapassa os limites e as categorias em que tentamos classificá-la. A exposição revela uma ampla gama de práticas artísticas, nas quais a absorção, a reciclagem, o empréstimo, o piscar de olhos e o sequestro são fontes de criação.
1.2.2 Liberdade para Pensar
Os artistas da exposição têm uma visão única da liberdade. Para Victor Soren, a liberdade é uma ilusão, uma fantasia; mesmo antes do nosso nascimento, a liberdade não existe mais. The Great Inheritance I e The Great Inheritance II representam um mundo mantido sob rédea curta pelos militares e pelas finanças: “Todo o planeta está sob controle e tudo está bem neste mundo”, escreve ele (Soren apudUMAM, 2019, p. 76).
O artista The Kid continua a metáfora de uma liberdade abortada antes do nascimento fazendo a pergunta sobre nossa herança: “Ela limitará nossas oportunidades?” A escultura Too young to die (2013) retrata um bebê prematuro em uma incubadora, com o rosto e o corpo tatuados com as cores da gangue em que nasceu. O trabalho de Gerard Taride é um reflexo do determinismo: o determinismo pode se tornar fatalismo.
Enquanto a obra de Gérard Rancinan questiona a liberdade religiosa, Liberdade de pensar (2019), de Gérard Haton-Gauthier, pergunta-se ao mesmo tempo sobre a escolha na encruzilhada: a religião nos permite fazer essa escolha ou a restringe? As religiões são, às vezes, morais e, às vezes, também são “forças da morte”, mas “onde estaria a liberdade se, em nome do secularismo, elas se tornassem uma força de proibição?” (J.L apudUMAM, 2019, p. 40). A artista Shadi Rezaei apresenta Geometry of pain (2016) acompanhada de um vídeo em duas telas representando uma performance filmada, When the Curtain Falls, Video and Sound, 2017. O vídeo mostra o corpo de uma mulher constrangido, amarrado e dolorido, do qual a libertação exige as maiores contorções: do que as mulheres iranianas estão se libertando? Do peso da tradição e da religião? Ou de si mesmas, permitindo-se se libertar?
A história convida a quem assiste a dar uma olhada retrospectiva na liberdade. Mauro Corda apresenta cinco estátuas de gesso, cada uma representando um ditador de tamanho anão (César, Stalin, Hitler, Mussolini e Mao). Un autre monde (2019) nos convida a refletir: se eles tivessem sido representados como anões, fora de seus pedestais, teriam sido seguidos? Qual é o papel da aparência na atribuição de poder? As instalações de Stefano Bombardieri (2019) exploram o papel das mentiras no estabelecimento da ideologia nazista e o processo de negacionismo, em particular “Lüge macht frei” (A mentira liberta), que se refere à expressão “Arbeit macht frei” (O trabalho liberta), inscrita na entrada do campo de Auschwitz. Dessa forma, o personagem da fábula As Aventuras de Pinóquio nos permite revisitar a história do Holocausto:
As vítimas são transformadas em Pinóquios mentirosos e os campos de concentração em Toyland. A instalação evoca o poder sedutor das mentiras no discurso político, mas também nos convida a refletir sobre o significado e a possibilidade de liberdade em um dos capítulos mais sombrios da história. Por um lado, o artista questiona a conveniência de as vítimas poderem recuperá-la, mesmo em um estado fisicamente liberado; por outro, ele critica as tentativas falaciosas de se libertar da memória do Holocausto, uma memória que deve ser necessariamente preservada
(E/G. apudUMAM, 2019, p. 30).A crítica social também está presente, com dois temas em particular: a sociedade de consumo e a homossexualidade. Gérard Tardie, artista de Nice, projetou uma instalação especialmente para essa exposição: Prison dorée (2019), na qual os visitantes podem entrar e descobrir todos os elementos da alienação permanente: telas, redes sociais, Xanax e outras drogas, códigos digitais, câmeras de vigilância permanentes... no centro, uma poltrona e uma arma de fogo, a única saída... talvez! Por fim, Déjeuner sur l’herbe II (2006), de Miryan Klein, mostra uma mudança social em direção à liberdade de expor sua homossexualidade. Ele se refere à famosa pintura Déjeuner sur l’herbe (1863) de Édouard Manet, que causou um escândalo estético e moral em sua época ao mostrar uma mulher nua sentada na grama, olhando para o espectador, acompanhada por dois homens vestidos. Por sua vez, Davide Meneghello está apresentando um tríptico, Untitles (Sailors) (2018). Cada tríptico (30x40 cm) exibe imagens obscurecidas pelo conservadorismo histórico, concentrando-se em imagens da intimidade homossexual que a história procurou suprimir.
Sem apresentar todas as obras, esta retrospectiva apresenta as escolhas museográficas que levaram à concepção e à criação de uma exposição que afirma sua liberdade de expor, provocar, sacudir, perturbar e, acima de tudo, conscientizar de que a liberdade é a coisa mais frágil e talvez a mais importante para a humanidade prezar.
1.3 O Contexto da Visita
A visita observada e estudada diz respeito a duas turmas de uma escola secundária tecnológica, uma das quais faz parte do projeto do micro-lycée. Este programa permite aos alunos (com idade entre 16 e 25 anos) que deixaram o sistema escolar retomar os estudos visando passar para o ensino superior. A liberdade é um tema que lhes é caro; eles têm uma concepção compartilhada e às vezes singular ligada à própria história de vida de cada um. Nas palavras dos alunos, a liberdade parece significar a possibilidade de fazer o que eles querem, sem restrições, mas alguns também se referem à liberdade em oposição à prisão.
Esses alunos fazem parte de um programa “Le Jardin de la Paix” (Jardim da Paz) que envolve sua escola e muitos outros cidadãos na homenagem às vítimas dos ataques ocorridos em Nice e na França nos últimos anos. Eles estão acostumados a se deparar com um discurso de tolerância e são sensíveis às questões que permeiam a sociedade francesa em relação à imigração e ao racismo, ao terrorismo e à aceitação das diferenças religiosas.
Assim, essa visita faz parte de um programa de educação cultural e cívica que, sem dúvida, influenciará a maneira como eles se interessam pelas obras de arte em exposição.
1.4 Observação Etnodidática
A abordagem didática que defendo se baseia na compreensão de situações reais observadas, que o modelo teórico transforma em situações didáticas, ou seja, a situação é analisada por meio do que é transmitido entre os sujeitos que a compõem. Uma situação didática reúne elementos de conhecimento e cultura, e sujeitos didáticos cuja função é transmitir o conhecimento a outros cuja função é apropriar-se dele. O estudo didático explica o que permite que cada pessoa assuma ou não esses papéis, como esses papéis são transformados e o que acontece com o conhecimento ou a cultura transmitida no contexto dessa situação.
Uma situação didática é, portanto, um desdobramento da realidade com um antes e um depois; várias situações podem ser analisadas para identificar as características dos gêneros escolares, mediáticos ou disciplinares (Cohen-Azria; Dias-Chiaruttini, 2014). Surge a questão de como observar a situação. O Espace Lympia é único na França, apesar de outras prisões terem sido transformadas em museus; a exposição é uma criação única em um espaço de exposição que não tem acervo; e os visitantes são envolvidos em um projeto cultural único na França, apesar de existirem outros. Acima de tudo, ele se baseia na metodologia etnográfica, na qual o pesquisador está imerso na visita, entre os visitantes, registrando o que eles dizem e, principalmente, tomando nota de seus deslocamentos, gestos, emoções e grande parte do que se diz à volta. “A etnografia é uma metodologia propícia para descobrir a maneira de viver e as experiências das pessoas – a sua visão do mundo, os sentimentos, ritos, padrões, significados, atitudes, comportamentos e ações. Esta perspectiva permite apreender o fenômeno humano na sua totalidade” (Lima et al., 2006, p. 27). Eu insistiria no fato de que a totalidade de um fenômeno humano nunca é acessível; é sempre uma reconstrução feita pelo pesquisador baseada em situações específicas (didáticas no caso desta pesquisa). Todo o processo etnográfico deve, no entanto, fazer com que “a pessoa que lê este estudo seja capaz de interpretar o que está acontecendo no grupo estudado de forma tão apropriada como se fosse um membro desse grupo” (Wolcott, 1975 apudLima et al., 2006, p. 25).
Esta observação foi complementada por entrevistas com o mediador antes da visita e com os dois professores depois. A imersão foi plena, pois permaneci durante toda a visita, aguardando as turmas fora do museu e saindo com elas. No entanto, a observação é única, não há imersão com os sujeitos em suas vidas diárias nem antes nem depois da visita. Qualquer que seja a postura desejada pelo pesquisador, ela só pode ser qualificada a posteriori. Enquanto qualquer situação didática é sempre uma reconstrução de eventos imprevistos que surgem em uma situação mais ou menos preparada, no contexto de uma visita ao museu, os eventos imprevistos fazem parte de um itinerário museográfico planejado antes da visita. Nesta situação, a docente interrompeu a visita planejada dizendo aos alunos que visitassem a sala da colônia penal por 20 minutos, escolhendo uma obra de que gostassem e outra de que não gostassem. Em seguida, ela lhes disse que a educadora do museu apresentaria as obras que eles haviam escolhido durante a discussão em grupo. Duas rotas de visita se entrelaçam, uma para pequenos grupos de alunos pela sala da colônia penal e outra que segue a rota planejada pelo museógrafo, ecoando as obras entre elas ou contrastando as reflexões sobre a liberdade. Esse tipo de mediação restringe a recepção da exposição nesse contexto.
Enfim, a construção dos dados é específica e levanta a questão da “administração da prova” (Broqua, 2009, p. 383). O material consiste em gravações de áudio e anotações manuscritas. Optei por dividir a situação em vários momentos para reconstruir a sinopse (Schneuwly; Dolz; Ronveaux, 2006). Como os alunos foram divididos em grupos, eu só segui um grupo, que não foi fixo, já que alguns alunos mudaram de grupo. A visita do Pavillon de l’horloge foi coletiva e mais convencional, com a educadora do museu escolhendo as obras e questionando os alunos. A sinopse é completada pela transcrição das discussões em frente às obras escolhidas. Muitos intercâmbios escaparam ao pesquisador nessa metodologia, mas alguns intercâmbios (na forma de díades – dois alunos sussurrando) que escapam à gravação em vídeo foram acessíveis. A transcrição dos intercâmbios respeita as normas propostas por Robert Vion (1992). Quanto à análise, ela se baseia no estudo das relações interpessoais (a relação entre as funções linguísticas de cada um – “a função” simbólica de cada pessoa (Vion, 1996) – e a relação de cada um e de todos com o objeto da discussão no contexto do intercâmbio para entender como se constrói o discurso sobre as obras.
2 Modelo Didático para Analisar Situações da Recepção das Obras de Arte
Ao contrário das teorias de recepção (Jauss, 1978; ISER, 1985) que estão interessadas na relação entre a obra e o leitor (no sentido de receptor), a abordagem didática leva em conta os elementos que estruturam a situação didática. Como já disse, a situação didática permite o estudo de um fenômeno didático, ou seja, algo que acontece (em termos de ensino e aprendizagem, mediação, recepção) que permite ao pesquisador analisar o que ele está tentando esclarecer. A recepção significa para mim uma interação entre as atividades de compreensão, interpretação, julgamento, reação e apreciação de obras de arte (Dias-Chiaruttini 2019). Entendo a situação didática da recepção como uma estrutura de constrangimentos que aproximo da comunidade interpretativa proposta por Stanley Fish (2007) (Dias-Chiaruttini 2019, [2024]).
2.1 A Noção de Comunidade Interpretativa
O trabalho de Stanley Fish (2007) é particularmente heurístico na abordagem que proponho. O pesquisador não é um especialista de didática, mas a reflexão sobre seus próprios cursos constitui uma segmentação de situações didáticas que lhe permitem desenvolver sua análise sobre o que possibilita a interpretação e a recepção. Os sujeitos didáticos (os estudantes) compreendem e interpretam com base no que a “instituição lhes legou automaticamente”, com base em “sua forma de produzir significado, seu sistema de inteligibilidade” (Fish, 2007, p. 80) e os transforma em uma comunidade interpretativa.
Assim, o que caracteriza uma situação de recepção são os constrangimentos que pesam sobre ela e com os quais os sujeitos interagem ou não para produzir o significado do que acontece e do trabalho que eles têm diante de si, seja ele qual for. Stanley Fish nunca explicou como as estruturas de restrição de cada comunidade interpretativa são construídas. No entanto, de uma perspectiva didática, identificá-las é essencial.
2.2 Estruturas de Constrangimentos
As estruturas de restrição são compostas por três universos, três subconjuntos regidos por um certo número de leis. O primeiro universo é observável, os outros dois são heurísticos, eles permitem a análise das situações observadas e a interpretação dos resultados. A divisão da situação didática não a priva da análise dos elementos que a cercam, a constitui e a insere em uma realidade complexa que se atualiza em parte na situação didática.
O primeiro é o universo de comunicação, que se refere à relação educadora de museu-aluno e às interações que se constroem entre eles, à forma como o guia acolhe um sujeito didático em construção, um aluno visitante em uma exposição; o guia revisita a exposição de acordo com a forma em que ele ou ela prevê o novo curso da visita escolar (que é sempre um recorte e reescrita da exposição), que os alunos recompõem de acordo com sua compreensão da situação. Os alunos também mobilizam os visitantes do museu que são o que não são. Eles podem mobilizar uma imagem do visitante que eles também seriam. A mediação toma conhecimento da museografia, da história da arte, mas também do conhecimento que os mediadores imaginam que os visitantes possam ter.
O segundo é o universo “épistémè”7, que se refere tanto às obras expostas como à própria exposição, que reorganiza sua recepção através das opções cenográficas feitas, que formalizam uma intenção de exposição e uma leitura da exposição e das obras expostas. Todos os “objetos” têm um significado, uma história que cada exposição repensa de uma nova maneira através da escrita museográfica e cenográfica. Este conjunto é um possível reservatório de interpretações do qual os visitantes podem extrair recursos para receber a nova exposição.
Finalmente, o universo institucional deve ser considerado no contexto da relação escola-museu e um “continuum didático” (Cohen-Azria; Dias-Chiaruttini, 2016). A visita à escola faz parte da história de uma classe, da história das visitas à escola e da história das visitas aos museus. Continua sendo uma estrutura de constrangimentos decorrentes das duas instituições da escola e do museu. A noção do continuum didático nos permite analisar isto.
3 A Recepção das Obras e da Exposição
Como é construído o discurso sobre as obras nesta situação? E, por meio desse discurso, como as obras e a exposição são recebidas?
Para entender isto, precisamos levar em conta os três universos de constrangimentos da situação didática.
É a sinergia entre cada um desses mundos que nos permite reconstruir o que acontece durante a visita e como a recepção é construída.
3.1 O Universo de Comunicação
Os docentes e a educadora de museu têm objetivos diferentes. Os primeiros procuram dar a seus alunos uma experiência em torno de um projeto sobre tolerância, envolvendo-os em diversas ações (visitas nos museus, no Jardin de la Paix, mas também escrever um texto argumentativo contra a violência, um texto sobre o terrorismo em Nice, etc.). Quanto à educadora de museu, ela tenta compartilhar as mensagens da exposição, mas ficou um pouco confusa com as instruções da docente que modificaram o percurso que ela havia planejado e uma mediação com a qual ela não estava familiarizada, mas que declarou depois ser interessante. Os intercâmbios foram assim construídos entre os alunos e depois entre os alunos e a educadora de museu. Os docentes, como vamos ver, voltam sempre à ideia de tolerância, pois a exposição pode convidar à reflexão sobre isso. Os alunos estão acostumados a esses passeios “culturais” e aos debates entre eles. Podemos dizer que, quando chegam ao museu Espace Lympia, eles ficam intrigados e muito surpresos com as primeiras palavras da educadora de museu. Eles se permitem perambular pelo museu e compartilhar suas reações às obras de arte, não seguiam nenhum caminho específico, moviam-se consoante as obras que atraíram sua atenção.
Os docentes tiveram o cuidado de fazer essa visita dando continuidade ao projeto cultural e a outras visitas a museus anteriormente realizadas. Assim que entraram no museu, o docente (D1) disse aos alunos que eles conheciam o poema de Paul Éluard e que o título da exposição era um verso de La Marseillaise. Os alunos recitaram esses textos sem comentá-los. Esses vínculos entre a escola e o museu reaparecem mais tarde na exposição, quando um aluno faz a conexão entre uma obra de arte e um texto lido em sala de aula:
A - Na verdade, o macaco no final que você escolheu (obra de Ramtin Zad, Antar bedoon Looti) não sabe como ser livre / se você o libertar depois de ele ter estado em cativeiro / ele não sabe como, e aqui os homens também domesticaram os homens / eles o mantêm em uma coleira como na fábula // senhor.
D2 - Sim / você se lembra da fábula Le loup et le chien de La Fontaine? (o professor lembra aos alunos que o cachorro está escravizado pelo homem e o lobo não aceita isso, ele foge quando vê os traços da coleira no pescoço do cachorro).
EM - (que continua conversando com alguns dos alunos e conclui) Basicamente, essa menina vai herdar tudo isso / apesar de si mesma / ela vai reproduzir os gestos no mundo que a assombrarão
(tradução pessoal).Essa troca é interessante porque mostra um elemento específico dessa visita (nunca observado no contexto do meu trabalho): a mediação é dupla, o discurso do professor e do educador do museu se entrelaçam, mas cada um permanece em seu próprio campo: a escola em comparação à exposição. No entanto, é preciso lembrar que a professora D1 interrompeu a mediação planejada na sala da colônia penal ao convidar os alunos a visitar e escolher duas obras antes da mediação do educador do museu. Ao fazer isso, ela assumiu a liderança, mas, acima de tudo, vinculou essa visita a outras já realizadas com os alunos em outros museus. Assim, as funções discursivas (Vion, 1992) nas trocas foram construídas sob o impacto do universo institucional. O público escolar teve pouca oportunidade de visitar essa exposição, uma vez que as datas coincidiram com as férias, o que foi uma grande preocupação para a educadora do museu. Os alunos, por outro lado, eram visitantes mais ou menos independentes, acostumados a esse tipo de passeio escolar. Além disso, a professora D1 frequentemente se referia ao projeto da escola sobre tolerância:
D - É importante no seu trabalho / a artista revela a sua situação / mas não há julgamento
(tradução nossa).E, de forma quase implícita, os alunos integraram essa maneira de reagir ao que pode parecer uma provocação:
A - Eu acho bonito o que ela está fazendo, mas eu não sou muçulmano, mas não tenho certeza sobre ela estar provocando [ou não] os muçulmanos
(tradução nossa).3.2 O Universo Institucional
Este diz respeito à relação entre a escola e esta exposição que foi muito bem-sucedida. O projeto da classe ecoa o tema e alguns dos artistas são conhecidos dos alunos. Além disso, estes alunos são jovens adultos, a maioria deles maiores de idade, e sentem-se preocupados com certos males denunciados pela exposição, que repercutem muito fortemente neles. Esta visita dá continuidade a visitas escolares realizadas no âmbito do projeto da escola, mas ela também repercute na experiência de vida deles:
A: É Victor Soren / conhecemos
(tradução nossa).Não é tanto a pintura dupla que chama a atenção dos alunos, mas a atmosfera da pintura, que lhes é familiar: a cultura já existente (construída no projeto da escola) lhes permite entrar na obra.
A: Geralmente ele desenha animais de forma diferente / mas a atmosfera é a mesma / é sempre escuro.
A: Nós o conhecemos / já trabalhamos este artista / ele é bom /
(tradução nossa).Essa cultura estimula a curiosidade dos alunos e orienta sua compreensão das obras de arte. Um aluno acaba por dizer:
A: Mas este quadro é assustador
(tradução nossa)Dessa forma, retornamos à exposição e ao seu tema. A visita é construída em torno de idas e vindas entre a escola e o museu, entre o que eles já sabem e o que estão descobrindo.
O universo institucional é importante nesta reflexão, a visita da escola ao museu está situada na interseção das duas instituições, e vimos que os discursos são construídos nessa interseção. É nela que a experiência do visitante do museu é realizada e que ele é formado. Sabemos que na França, assim como no Brasil, as visitas de famílias a museus são altamente marcadas sociologicamente. Nesse ponto, a análise de Pinto Faria é muito exata para ambos os países (e, sem dúvida, para além deles).
A visita a museus depende de vários fatores, entre eles o hábito de frequentar equipamentos culturais, o nível de escolaridade e a renda dos usuários, a familiaridade no entendimento da linguagem artística, a qualidade do acervo, os recursos públicos e privados disponíveis para operação e manutenção dos equipamentos, práticas de gestão, políticas educacionais, divulgação das exposições, entre outros [...]
(Pinto Faria, 2015, p. 3).Familiarizar os alunos com todos os espaços culturais, especialmente museus, é a motivação por trás do projeto micro-lycée, que visa reconciliar esses alunos com o aprendizado acadêmico e a cultura no sentido mais amplo.

3.3 O Universo Épistémè
Este é baseado tanto nas obras expostas quanto na mensagem museográfica e cenográfica: o objetivo é fazer com que os visitantes reflitam sobre a liberdade e sejam chocados. Isso significa que a exposição deve provocar emoções negativas (os visitantes devem se sentir constrangidos) que os levem a reagir. Está claro que o espaço de exposição influencia a recepção das obras por meio de um efeito sobre o visitante, mas também por meio de um efeito sobre as próprias obras. O contraste de luz entre os dois espaços de exposição pode ter um efeito sobre os visitantes. A colônia penal em si é um local, mas também um objeto da exposição: ainda existem as correntes com as quais os prisioneiros eram presos uns aos outros à noite. A museografia escolhida (apresentada na primeira parte deste artigo) convida os visitantes a estabelecer ligações entre as obras expostas e a encontrar as referências a que algumas delas fazem alusão. Os alunos também podem perceber uma obra ou a exposição por meio de suas próprias experiências passadas, por meio de outras visitas escolares ou não, mas, acima de tudo, por meio de sua própria relação com a liberdade, que pode ou não estar em tensão com as mensagens de cada artista e os objetivos da exposição.
Proponho me concentrar em algumas trocas transcritas que mostram uma recepção ao trabalho artístico que se baseia tanto no choque estético e de identidade quanto na bagagem cultural dos visitantes, mas também na posição distante que eles podem assumir, especialmente por meio da relação entre as obras da exposição.
Em frente à obra de Shadi Rezaei observamos esta troca:
A - Isto é lindo.
A - ISTO / Isto realmente me choca (seis jovens alunas agrupam-se e dois rapazes observam-nas).
A - Aí viu a mulher enfaixada e a mulher nua (a aluna aponta para uma amiga).
A - Hmm.
A - Não / é realmente inapropriado colocar uma mulher velada ao lado de uma mulher nua.
A - Ela deve estar com frio.
A - É realmente estranho (outros alunos juntam-se a eles e ao professor)
D - O que é chocante?
A - É realmente inapropriado // eu sou muçulmana // mostrar uma mulher muçulmana assim é realmente mau // não se pode mostrar os seios na religião muçulmana// há respeito, e isso é chocante.
A - Sim / claro / não é preciso vestir uma mulher velada e depois pô-la em topless // é para criticar as mulheres muçulmanas e eu não uso o véu, mas respeito-o // - sim, eu compreendo.
A – Sim, compreendo que ela esteja chocada, mas quando se é muçulmana, sente-se atacada / sim
(tradução nossa).Quinze minutos depois, a aluna chocada chama a educadora de museu:
A – Tenho uma obra que me choca, está demasiado deslocada, está ali (o grupo de duas classes move-se).
A (rapaz) - Isso também me chocou.
EM – É uma instalação de vídeo de uma jovem artista iraniana / antes as mulheres não eram veladas no seu país e desde então tem havido um regime muito duro / conhecem Persépolis?
As – Sim.
A – Huh, ela é muçulmana? é grave // ela está à procura de problemas.
EM - Ela mostra como a arte islâmica da Espanha e da Índia tem sido influenciada [...] ela também mostra que o mundo árabe está na vanguarda da tecnologia // você sabe que eles são grandes matemáticos (os estudantes riem) eles são muito bons em geometria // mas desde então eles têm censurado muitos artistas e a expressão não é livre no seu país (vira-se para a obra e pergunta:) por que você acha que o corpo de uma mulher seria amarrado?
A – Para mostrar que ela é uma prisioneira / amarrada a um fio que dificilmente pode ser visto.
EM – Sim, olhar para o seu corpo?
A (rapaz) - Penso que parece uma tortura.
EM – Sim, olhar para o seu corpo/a amarra simboliza o constrangimento, mas ela também está tentando superar a dor / ela está se contorcendo / ela está à procura de uma saída.
A – Sim / é como se ela estivesse a tentar libertar-se de uma prisão dentro dela.
EM – Exatamente: ela mostra que não há nenhuma situação que seja definitiva / OK no seu país é assim / a mulher é enfaixada / velada / escondida / ela sofre, mas pode encontrar a forma de se libertar /// ela liberta-se pouco a pouco.
D - É importante no seu trabalho / ela revela a sua situação / mas não há julgamento.
A – Sim, compreendo melhor / sem saber isso é chocante
(tradução nossa).
A primeira recepção é chocante para a aluna, que projeta nessa obra os debates políticos e midiáticos que ocorrem na França sobre o uso do véu na rua. A troca evoca, assim, o peso da religião. A aluna percebe esta tensão, e o universo de comunicação lhe permite exprimi-la. Ela convoca sua concepção de valores: é bom ou não; é autorizada ou não; é respeitoso ou não, e posiciona-se como uma jovem mulher muçulmana perante uma obra que fala do corpo de uma mulher forçada a usar véu e a esconder o seu corpo. Finalmente, o que ela julga é a ideia de julgar uma religião que não respeita o corpo das mulheres: ela ativa fortes tensões na sociedade francesa. A educadora de museu coloca a obra no seu contexto, restaura a intenção da artista, evoca a grandeza da arte muçulmana e o desejo das mulheres que vivem em países islâmicos de se libertarem e recuperarem o poder sobre os seus corpos. A aluna também é capaz de ouvir esta mensagem, mas, como jovem francesa muçulmana, ela defende uma outra luta.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, em frente à obra de arte La liberté dévoilée de Gérard Rancinan:
EM - O que vê?
(Os alunos listam os elementos da fotografia)
A - É a Marianne[8]?
EM - Isso choca você? É uma mulher velada e o título é liberdade velada
A - Choca-me menos, ela está menos nua.
A - Ela é realmente sexy (risos de todos os estudantes).
A - Parece um disfarce.
EM - O que é que esta mulher velada tem a esconder?
A - Ela quer defender o vento (os estudantes riem).
A - Ela tentando libertar-se
A - Mas não é necessariamente uma opressão.
A - Ela usa o véu, vive-o bem / é à sua volta que tudo se desfaz.
D - Há um véu e um véu / o véu completo é a Burqa e aqui é um véu // transparência // esconde-se e também mostra // é uma questão de nuance // mas veja / não há julgamento / não estigmatiza
(tradução nossa).Na situação de visita escolar, a recepção pessoal das obras se torna uma troca coletiva que cria uma recepção compartilhada, aceitável para todos, apesar da sensibilidade de cada um.
Este extrato mostra como o universo de comunicação estabelecido pelas instruções da docente e o acolhimento pela educadora das reações dos alunos lhes permite expressarem-se e finalmente entrarem no jogo museográfico da exposição: questionam a evidência do que é mostrado para reconstruir o significado (A - ela está em vias de se libertar / A - mas não é necessariamente opressão). Além disso, a docente e a educadora de museu garantem o enquadramento desta discussão: a educadora de museu escuta as reações, a docente retoma a discussão, insistindo no fato de que as obras não julgam, mas convidam à reflexão. A aluna que ficou chocada com a representação duma mulher velada a despir-se já não fica chocada com uma mulher velada e seminua: o corpo não é representado da mesma maneira, mas acima de tudo parece ter interiorizado ao longo da visita que é a liberdade que está sendo questionada e não o estatuto da mulher velada, e mais ainda uma mulher muçulmana. Neste sentido, a estrutura de mediação (universo de comunicação) permitiu acolher as palavras de cada aluno sem julgar o que pensam, o que são, sem finalmente rejeitar o sistema de valores de cada um (e as comunidades interpretativas) onde cada um se desenvolve fora da escola e para além da situação da visita.
Diante da obra de The Kid, Too young to die, um aluno chamou a educadora de museu:
E (menino) - Tem uma obra de arte / acho que é séria / o bebê.
Med - Vamos ver.
A - O bebê está me incomodando.
A - Ele está doente.
A - É um bebê falso (rindo)
A - Sim, um bebê é puro e aqui é exatamente o contrário.
A - Sim, é uma coisa superviolenta / ele não tem mais o rosto / ele foi atacado ... atacado ... ele está morrendo...
EM - Então o artista tem 28 anos e é autodidata [...]
A - O quê? (a docente explica a palavra “autodidata”)
EM - O que você está vendo aí? (mostrando o rosto)
As – Tatuagens.
EM – Sim / então o artista é de ascendência holandesa e brasileira e ele revela a face oculta do sonho americano... na América do Norte as tatuagens têm um significado particular / vocês estão vendo?
As – Gangues.
EM – Sim, o recém-nascido está em uma incubadora / ele é prematuro / e então quando ele nasce, já está tatuado / ele já se juntou a uma gangue / ele não tem escolha, é desde o nascimento.
A - Mas ele pode morrer / ele está em uma incubadora / ele pode nem ter tempo de entrar para uma gangue.
A - Não / na verdade ele já nasceu na gangue
A - Então é porque ele está na gangue que ele é prematuro / que ele está em perigo?
EM - Essa é uma boa pergunta que você está fazendo / essa é a pergunta que The Kid quer que vocês façam.
A - Sim / eu entendo / na verdade você não tem uma vida / se vive em uma gangue / se pertence a ela.
As - É sério, de fato.
A - Isso me lembra o retrato sem rosto que vi antes.
Med - Sim, o destino dele já está traçado [...].
A - (moça) É um rapaz, se fosse uma bebê?
A - Sim / bem / então nascemos livres e iguais? É tudo uma brincadeira para os artistas.
A - É só uma brincadeira (o aluno esbarra no aluno que acabou de falar e vai embora pelo museu).
(tradução nossa)A escolha dessa obra também se baseia em uma representação do mundo que é perturbada pela obra (há uma obra / é grave, eu acho; o bebê me incomoda; um bebê é puro e aqui é exatamente o contrário); mas trata-se de uma representação que não se funda mais em valores pessoais e baseados em identidade como anteriormente, mas sim em valores universais. Embora nem todos os elementos estejam presentes no discurso dos alunos, há de fato uma recepção da obra que se baseia em um efeito que ela provoca: inquietação. Por fim, devemos observar que os alunos associam as obras (“lembrando-me do retrato sem rosto de antes”) aludindo à obra de Anthony Mirail (2015) (Blessures de guerre), mostrando assim que a escrita cenográfica e museográfica ajuda a criar uma comunidade interpretativa na qual os sujeitos podem se construir como visitantes dessa exposição. Ao convidar os alunos a passear pela primeira sala e escolher duas obras, a estrutura de comunicação deu a eles a oportunidade de olhar as obras e dizer o que os emocionou para que pudessem compartilhar com os outros. Suas primeiras reações foram a identificação: não que eles se identificassem nas obras, mas que as obras questionavam o sistema de valores e a relação deles com o mundo.
Conclusão
Nem todas as exposições e visitas que pude observar produzem o mesmo envolvimento ou recepção do visitante. O tema, sem dúvida, tem algo a ver com isso, mas o que torna essa recepção possível é um conjunto de elementos que caracterizam a situação didática: a mediação (escolha de duas obras / discussão das contribuições do mediador) da exposição pretende perturbar os visitantes para reagirem às reflexões sobre as obras: a estrutura de comunicação torna isso possível; o conhecimento e a experiência anteriores possibilitam a construção de um continuum entre o que já existe e o que a exposição perturba, apoiando-se em formas de estar junto: questionar sem julgar. O conhecimento escolar alimenta a experiência do visitante, e o relacionamento de cada pessoa com o mundo é alterado em um perímetro aceitável, sem rejeitar o que é expresso. Os três universos da estrutura de restrição estão entrelaçados e mostram a singularidade desta visita e desta exposição. Dessa forma, a abordagem etnodidática nos permite reconstruir a maneira pela qual os alunos são autorizados e se permitem visitar essa exposição, estabelecendo vínculos entre as obras, entre os valores que eles têm e os das obras, a fim de compreender outros pontos de vista, respeitando quem eles são e como sentem e apreendem a liberdade. Desse ponto de vista, uma visita escolar ao museu pode contribuir para a formação do cidadão e para despertar a capacidade de ouvir os outros e de pensar criticamente sobre o nosso mundo. A mediação desempenha um papel fundamental neste aspecto. Ela deve ser capaz de tornar os alunos e todos os cidadãos capazes de “criticizar o homem por meio do debate de situações difíceis, colocadas diante do grupo, (essas) situações devem ser existenciais para os grupos” (Freire, 1967, p. 106) e para a mediação do museu.
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Notes