Resumo: Neste artigo, analisamos como plataformas digitais têm contribuído para o compartilhamento de experiências de adoecimentos, usos de substâncias e terapias alternativas, além de informações científicas a partir do desenvolvimento de uma expertise leiga. Para isso, foram considerados conteúdos de comunicação científica produzidos por associações de pacientes em torno do uso terapêutico de Cannabis. As associações têm compartilhado o que vem sendo produzido em diferentes áreas de conhecimento com essas substâncias, sobretudo biomédica. Ao focar nas conexões entre os diferentes atores, examinamos o conteúdo produzido por três associações entre 2020 e 2021 disponibilizado na plataforma Instagram. A partir da codagem de dados, a análise evidenciou que o trabalho das associações tem colaborado para o acesso a informações que contribuem para a garantia do acesso à saúde.
Palavras-chave: Cannabis, estudos sociais da ciência e tecnologia, expertise leiga.
Abstract: In this article, we analyze how digital platforms have contributed to sharing experiences of illness, substance use and alternative therapies, as well as scientific information from the development of lay expertise. To do this, we considered scientific communication content produced by patient associations around the therapeutic use of Cannabis. The associations have shared what has been produced in different areas of knowledge with these substances, especially the biomedical area. By focusing on the connections between the different actors, I examined the content produced by three associations between 2020 and 2021 on the Instagram platform. Based on data coding, the analysis showed that the associations’ work has contributed to access to information that helps guarantee access to health.
Keywords: Cannabis, social studies of science and technology, lay expertise.
ARTIGOS
Compartilhar e Informar: Comunicação Científica sobre o Uso Terapêutico de Cannabis em Plataformas Digitais
Sharing and Informing: Scientific Communication on the Therapeutic Use of Cannabis on Digital Platforms
Received: 30 July 2023
Accepted: 29 September 2023
Published: 22 February 2024
Em 2013 e 2014, a discussão sobre um derivado da Cannabis, o canabidiol, ganhou força em plataformas digitais, principalmente em grupos de pessoas vivenciando seus adoecimentos no Facebook3. As histórias com o uso desse derivado de maconha foram compartilhadas principalmente em relação a doenças raras e epilepsias de difícil controle em crianças. Foi em um grupo no Facebook que a história de Charlotte Figi foi compartilhada: ela era uma menina que vivia nos Estados Unidos e sofria de crises convulsivas por conta da síndrome de Dravet4. O pai da menina disse que Charlotte conseguiu uma melhora significativa com a utilização da substância, fato que não tinha acontecido com nenhum outro medicamento convencional até então. A partir da veiculação de sua história, outras famílias e pacientes passaram a buscar mais informações sobre as possíveis aplicações terapêuticas dos derivados de Cannabis. As plataformas digitais deram um grande impulso a isso.
Digital, no sentido que será exposto aqui, refere-se a “um conjunto heterogêneo e bastante amplo de objetos, ações e relações sociotécnicas que se tornaram parte de nossa experiência cotidiana” (Lins; Parreiras; Freitas, 2020, p. 2). Com o avanço das redes e plataformas digitais nos últimos anos, o objetivo desse artigo é analisar os conteúdos de comunicação científica produzidos por associações de pacientes em torno do uso terapêutico de Cannabis e seus derivados, a partir do desenvolvimento de uma expertise leiga (Epstein, 1995; Oliveira, 2017). As associações canábicas, como são identificadas pelo próprio movimento ativista, têm feito esse trabalho informacional em plataformas digitais, como o Instagram5, ao compartilharem o que é produzido em estudos científicos sobre essas substâncias. Elas têm compartilhado tais informações — que geralmente vêm acompanhadas de uma linguagem técnica — de forma mais simplificada aos seus seguidores.
Foram analisados os conteúdos produzidos por três associações: Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace), Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi) e Associação de Cannabis e Saúde (Cultive), entre 2020 e 2021 disponibilizados no Instagram. A partir do conceito de expertise leiga, presente nos trabalhos de Steven Epstein (1995) e Monique Oliveira (2017), o intuito deste artigo é evidenciar como a internet e as plataformas digitais têm sido aliadas no trabalho de partilha de experiências e informações que contribuem significativamente na vivência de pessoas que buscam acesso ao direito à saúde, seja por meio de tratamentos convencionais ou alternativos. Para isso, no primeiro tópico, evidenciarei o processo de feitura do trabalho. No segundo, discutirei os percursos biossociais que são construídos a partir da internet, com foco no Facebook e Instagram. Depois, passarei a discutir mais propriamente as associações e a circulação dos produtos científicos por meio das postagens. Busco, assim, entender como a produção científica circula nas plataformas digitais, dando ênfase ao trabalho feito pelas associações canábicas na construção de uma comunicação científica leiga (Epstein, 1995; Oliveira, 2017).
Os resultados apresentados aqui fazem parte de uma pesquisa mais ampla, desenvolvida durante o período de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). A pesquisa, que está em desenvolvimento, busca compreender como a Cannabis tem se configurado como uma tecnologia terapêutica, considerando diferentes atores e práticas. Ao iniciar as primeiras análises, fiz uma conta no Instagram como pesquisadora para poder acompanhar o fluxo de informações nas contas de atores centrais no debate atual sobre o uso terapêutico da substância e seus derivados, entre eles, as associações canábicas. Por ter trabalhado mais especificamente com a produção científica sobre o tema durante pesquisa anterior (Caetano, 2023a), uma das primeiras coisas que me chamou atenção foram as postagens das associações relacionadas à produção e ao conhecimento científico.
Ao analisar as pesquisas biomédicas brasileiras sobre a Cannabis e seus produtos publicados entre 2014 e 2019 (Caetano, 2023a), vi que aqueles que falavam do uso terapêutico enfatizavam as aplicações e doenças, davam foco e importância à necessidade de que mais pesquisas fossem realizadas sobre o tema. A linguagem era estritamente técnica, com termos e dizeres específicos da área da saúde. No entanto, o que encontrei nas postagens das associações foi algo diferente, mas, ao mesmo tempo, similar: passavam informações, parecidas com aquelas que vi durante o mestrado, mas de uma forma diferente, com termos e associações para que seus seguidores pudessem compreender de forma mais simples. A escolha do Instagram se deu pela dinâmica da própria plataforma, que oferece aos usuários formas de capturar e compartilhar momentos de vida através de imagens, textos e vídeos6 (Zandavalle, 2018). As associações, além de prestarem apoio na parte médica e jurídica, também se colocam como espaços de construção e compartilhamento de experiências e informações. Isso fica ainda mais claro quando analisamos os conteúdos das postagens.
Para construir a análise que será evidenciada aqui, foram examinados os perfis de três associações canábicas (Abrace, Apepi e Cultive) no Instagram no programa de análise qualitativa Atlas.ti. Esse programa permite que o pesquisador organize os materiais coletados, sejam eles imagens, textos ou vídeos. As associações foram selecionadas por realizarem cultivos e produção de derivados de Cannabis, além de já terem um trabalho prolongado no que diz respeito ao ativismo canábico. Ao todo, foram recolhidas 97 postagens entre 2020 e 2021. A análise foi feita a partir de codagem de dados. Essa técnica permite a criação de categorias e subcategorias que auxiliem a pesquisadora no processo de investigação. No que diz respeito aos resultados parciais apresentados aqui, uma das categorias principais foi a de Doença. No processo de análise dos conteúdos, foram percebidas diferentes subcategorias relacionadas a Doença, como câncer, depressão e epilepsia. Utilizar essas categorias e subcategorias permitiu traçar similaridades entre as postagens, além de deixar em evidência as nuances e aproximações entre elas. Nesse sentido, foi possível perceber que essas associações têm se constituído como atores com legitimidade ao serem vistas como aptas para falarem sobre ciência e tecnologias de saúde para seus seguidores.
Ao tratar da mediatização como processo interacional, José Luiz Braga (2006) afirma que os processos sociais de interação mediatizada incluem e abrangem os demais, que acabam se ajustando. Essa situação, de acordo com o autor, pode ser descrita como uma transição da escrita como processo interacional de referência para uma crescente mediatização de base tecnológica. Para ele, as tecnologias se desenvolvem, são ampliadas e também podem suprir lacunas. Nesse sentido, os deslocamentos de processos tecnológicos, de acordo com Braga (2006, p. 15), podem ser fora de sua ação prevista, “a partir de expectativas e motivações sociais outras, estranhas ao momento de invenção”7. Carlos d’Andréa (2020) argumenta que os estudos sobre mídias sociais e outras plataformas têm crescido nos últimos anos, além de se diversificarem com intensidade semelhante à sua popularização e às controvérsias que são desencadeadas com e pelos artefatos tecnológicos. As chamadas Big Five — Google, Amazon, Apple, Meta e Microsoft —, segundo D’Andrea, consolidaram-se e centralizaram atividades cotidianas e estratégicas. Desse modo, a mediatização (Braga, 2006) e os artefatos tecnológicos, incluindo as plataformas digitais (d’Andréa, 2020), foram se modificando no decorrer do tempo, assumindo novas funções e roupagens.
Segundo Carlos d’Andréa (2020), as plataformas online têm adotado uma arquitetura computacional baseada em conectividade e intercâmbio de dados, ao mesmo tempo que se consolidam a partir de um modelo de fluxos informacionais e também financeiros. Os chamados Estudos de Plataforma, como mostra o autor, sugerem que voltemos nossa atenção aos modos como, em meio a dinâmicas complexas e assimétricas de poder, os usuários e as materialidades se constituem mutuamente, seja por meio das percepções de usuários ou pelas apropriações que criam e recriam cotidianamente. Para ele, não se trata de atribuir aos artefatos tecnológicos certo poder em controlar ou agir sobre práticas, mas sim de reconhecer que plataformas podem influir decisivamente no modo como entendemos e gerimos nossas relações cotidianas. Nesse sentido, d’Andrea argumenta que as plataformas online são protagonistas e constituidoras de controvérsias, ou seja, situações marcadas por disputas e incertezas, e, desse modo, a atual “plataformização do social” acaba complexificando as relações entre os atores em ação. Segundo Ítalo Vinicius Gonçalves (2020), ao olharmos para as plataformas digitais, podemos ver espaços de comunicação ou sociabilidades, além de perceber infraestruturas que configuram modos de vida e organizações sociais.
Paul Rabinow (1991) via nas práticas de vida um lugar central para entender novos saberes que poderiam ser descobertos. Por meio da “nova genética”, o autor afirma que seriam formadas redes de circulação de identidades, práticas individuais e grupais que podem ser chamadas de biossocialidade. Um exemplo de biossocialidade, para o autor, seriam os portadores de uma doença genética, como a síndrome de Dravet, que se encontrariam para partilhar suas experiências de adoecimento. Baseada no conceito de biossocialidade definido por Rabinow, aqui busco evidenciar o que chamaremos de percursos biossociais que são traçados por meio das plataformas digitais. Mas, em vez da centralidade em um adoecimento ou sintoma, é a Cannabis e seus derivados que fazem com que tais caminhos sejam percorridos. Nesse sentido, como exposto por d’Andréa (2020, p. 18), “as plataformas não são meras intermediárias em que a sociedade se faz visível e a partir das quais interações sociais podem ser estudadas, mas sim ambientes que condicionam a emergência do social”.
Em 2007, a rede social Facebook chegou ao Brasil e trouxe novos modos de interação entre os usuários que iam aderindo à plataforma. Nesse sentido, além dos perfis de cada usuário e das páginas criadas para bandas ou organizações, por exemplo, surgiram grupos nos quais o compartilhamento de interesses comuns ajudou a criar uma espécie de comunidade, um espaço online onde eram trocadas informações, experiências e opiniões sobre determinado assunto. Um tipo de grupo criado foi o de pessoas com doenças ou sintomas semelhantes que acabaram vendo naquela plataforma um lugar para compartilhar suas experiências de adoecimento e os percursos em busca de uma melhor qualidade de vida. Esses grupos foram essenciais para que as informações sobre o uso terapêutico de canabinoides8 circulassem. Existiam ali trocas de apoio e conhecimento sobre terapias e uso de substâncias que poderiam contribuir para o alcance de uma qualidade de vida para cada um dos usuários. Fabiana Oliveira (2016), em sua etnografia sobre os maconheirinhos, descreveu alguns eventos que foram importantes para a ascensão da discussão sobre o uso terapêutico de um derivado de maconha9, o canabidiol. Ao descrever os percursos feitos por famílias e pacientes até as substâncias, a autora mostra que alguns casos acabaram se tornando mais emblemáticos que outros. Foi o caso, por exemplo, de Charlotte Figi. Sua história, além de circular nas plataformas digitais, ganhou notoriedade por meio de uma reportagem jornalística feita pela emissora Cable News Network (CNN) norte-americana em 2013. Para muitos próximos ao debate, esse foi considerado um dos eventos iniciais10 que impulsionou o fluxo crescente de informações sobre o uso de tais substâncias em tratamentos de saúde.
Os grupos do Facebook contribuíram para que famílias brasileiras tivessem conhecimento do uso terapêutico de substâncias derivadas da Cannabis. Ali, pessoas de diferentes lugares do país e do mundo podiam compartilhar experiências de adoecimento, seja conversando sobre sintomas semelhantes, seja falando sobre formas de cuidado e terapias. Nesse sentido, as plataformas digitais possibilitaram que pessoas doentes, seus amigos e familiares pudessem compartilhar experiências e permitiram a criação de expertises e partilhas de dificuldades (Frossard; Dias, 2016). Nesses grupos também existia o compartilhamento ativo de dados e produtos científicos sobre substâncias e terapias convencionais ou alternativas. Uma das famílias que teve acesso a essas informações via Facebook foi a de Anny Fischer. Anny, com 5 anos à época, sofria de fortes crises convulsivas desde os primeiros meses de vida, e nenhum medicamento convencional utilizado conseguia garantir um efeito prolongado que amenizasse seus sintomas. Por meio dos grupos, os pais de Anny buscaram informações de como ter acesso ao óleo. Falaram com outros membros do grupo que tinham garantido o acesso, feito a utilização e conseguido resultados positivos. Residia ali a necessidade de compreender não só os trâmites de acesso, mas também de uso, visto que não existia uma posologia oficial que pudesse ser seguida. Mais do que compartilhamento de informações, a história da família Fischer mostra um percurso biossocial que foi trilhado até chegar ao óleo de canabidiol.
D’Andréa (2020) argumenta que as mídias sociais e plataformas digitais se constituem como espaços para debates e ações que questionam políticas de governança. Atualmente, os conteúdos postados em plataformas digitais são essenciais para compreender trocas de experiências entre usuários e como esses espaços acabam ganhando importância no processo de adoecimento de diferentes pessoas. Para Daniel Miller et al. (2019), é importante que, enquanto pesquisadores, atentemos ao conteúdo que é circulado nas plataformas, principalmente se levamos em consideração que essas redes mudaram nossa forma de ser e estar no mundo, ou seja, modificaram a forma como nos comunicamos e nos expressamos. Fabiana Oliveira (2016) mostra que, em 2013, um pai brasileiro viu uma postagem no Facebook que exibia uma criança norte-americana que fez uso do óleo de canabidiol e conseguiu diminuir o número mensal de convulsões com o uso do composto. Os pais da menina entraram em contato com a família que tinha feito uso pelo próprio grupo com o intuito de entender o processo de acesso à substância, visto que, no Brasil, essa era proibida até então por ser um derivado de Cannabis (Oliveira, M., 2016).
A partir de uma conversa por meio do Facebook com o pai norte-americano, os pais brasileiros conseguiram entrar em contato com a empresa Hempmeds11. Um médico da empresa enviou um e-mail para eles e se dispôs a enviar uma amostra do produto, de forma gratuita, para que eles pudessem testar. Com o sucesso do tratamento, vieram também as dificuldades de acesso ao produto, visto que nenhum dos compostos da Cannabis tinha autorização para circular no Brasil. Aqui começa a construção do processo de trazer visibilidade à causa, que se configurou como uma denúncia pública, nos sentidos expostos por Luc Boltanski (2000). A denúncia pública, para o autor, configura-se como um ato coletivo. O denunciante deve, desse modo, convencer outras pessoas a se associar aos protestos e mobilizar-se. No caso do uso terapêutico de Cannabis, a injustiça residia na dificuldade de acesso a um produto que, embora fosse considerado pelo Estado brasileiro como uma “droga”, tinha ajudado a melhorar a qualidade de vida de Anny e de outras pessoas. A história da família Fischer12, na época, tornou-se conhecida no Brasil por meio da divulgação do caso, seja em postagens em plataformas digitais ou em matérias de jornais.
Nos últimos anos, diferentes trabalhos foram publicados acerca do uso terapêutico de Cannabis no Brasil nas áreas das ciências sociais e humanidades. Entre eles, os trabalhos de Monique Oliveira (2016) e Fabiana Oliveira (2016), que focam nos primeiros anos de reivindicação, quando a questão estava mais vinculada ao uso específico do canabidiol e não da Cannabis em si. O trabalho de Policarpo, Veríssimo e Figueiredo (2017), a partir de casos no Rio de Janeiro, problematizou as articulações entre os discursos biomédicos e jurídicos na definição do que poderia ser considerado “droga” e o que poderia ser visto como “medicamento”. Ao falar dos custos e dificuldades de acesso aos produtos de Cannabis, Motta (2019) demonstrou que os pacientes se auxiliavam mutuamente, ou seja, ajudavam-se e aprendiam juntos sobre os processos de cultivo e extração do óleo, o que garantia o acesso às substâncias. Outros trabalhos, como o de Natália de Campos (2019), Luciana Barbosa (2021) e Romário Nelvo (2020), mostram como o ativismo em torno do uso terapêutico vem crescendo desde 2014, angariando mais adeptos e ampliando discussões.
A internet e as plataformas digitais foram importantes aliadas desde os primeiros passos do ativismo, quando ainda nem se discutia mais profundamente sobre o uso terapêutico e sua regulamentação (Reed, 2014). Manuel Castells (2003) mostra que a utilização das redes e plataformas digitais costuma se ligar ao contexto de nossa rotina, com foco no trabalho, família e interesses. A noção de rede aparece aqui em relação às escolhas e interesses dos atores que, no caso analisado, tinham o direito à saúde e o acesso a tecnologias terapêuticas como foco. Madeleine Akrich (2010), ao falar do contexto francês, mostra que associações de pacientes surgiram a partir de fóruns de discussão na internet. Nesses espaços, as pessoas trocavam experiências e informações acerca de sintomas e doenças e também ofereciam apoio e assistência umas às outras. Além disso, existia a circulação de publicações, referências e artigos. Quando falamos de grupos do Facebook, o contexto e as dinâmicas são similares. Esses grupos contribuíram para criar laços e trocas em torno de experiências de adoecimento de diferentes pessoas em lugares e contextos diversos, seja a partir de um conhecimento dos pacientes ou algo mais técnico. Tais trocas contribuíam para que cada paciente pudesse traçar seu percurso até formas de acesso aos derivados da Cannabis para uso terapêutico, o que incluía utilizar a plataforma digital para alcançar seu objetivo. As pessoas criavam formas de experienciar e dialogar com e a partir de diagnósticos ou sintomas semelhantes (Rabinow, 1991), nesse caso, em busca do acesso aos derivados de Cannabis.
O uso de smartphones e de plataformas digitais tem modificado ambientes e contextos dos quais fazemos parte. Os aplicativos de celulares têm possibilitado novas formas de nos comunicar com o mundo, já que o acesso à internet via celular nos faculta o acesso aos aplicativos e redes a qualquer momento. Tratando do uso terapêutico de Cannabis, Silva (2021) analisou a plataforma WhatsApp, mais especificamente um grupo da Liga Canábica do Rio Grande do Norte. O objetivo da autora era acompanhar as movimentações de mobilização social em torno da legalização da maconha por meio do grupo. Monitorar as dinâmicas e conversas ali presentes contribuiu para que Silva compreendesse as redes de articulação que eram formadas para produzir a visibilidade dos benefícios da maconha para uso medicinal. Para Marins (2020), o universo digital é parte integrante do nosso cotidiano e cabe aos antropólogos dedicar atenção às implicações desse fenômeno em nossas vidas. Para isso, no próximo tópico, analisaremos os perfis das associações e o trabalho de comunicação científica feito por elas na plataforma Instagram.
Quando tratamos da história da saúde mundial, considerando o desenvolvimento de tecnologias terapêuticas, a epidemia do HIV/Aids foi um evento importante. Steven Epstein (1995), ao tratar da epidemia nos Estados Unidos, mostra como o ativismo surgiu como forma de cobrar medidas efetivas de prevenção e tratamento. Os participantes desse tipo de ativismo passaram a se instrumentalizar e participar ativamente de discussões públicas sobre a epidemia. Nesse sentido, o autor evidencia que as ações dos ativistas tinham presença majoritária de homens brancos de classe média, advindos também do movimento gay, que tinham certa facilidade para arrecadar dinheiro e também influência política. As ações, segundo Epstein, eram dirigidas a partir do “capital cultural” de cada indivíduo, que garantia que os ativistas conseguissem não só participar das discussões, mas também contestar experts de diferentes áreas de conhecimento, principalmente da biomédica. Assim, esses ativistas tornaram-se pessoas com credibilidade e legitimidade para falar na linguagem da ciência, ou seja, desenvolveram o que o autor chamou de expertise leiga.
Baseada nos escritos de Epstein (1995) sobre a epidemia da Aids, Monique Oliveira (2017) mostra que os ativistas em torno da discussão do uso terapêutico de Cannabis não se curvavam ao tempo da ciência e das instituições. Apesar de diferenças identitárias e representativas, a autora argumenta que os ativistas conseguiam mobilizar pautas e grupos contra políticas que interferissem no acesso aos derivados de Cannabis. Para Oliveira, esses ativistas — que eram, sobretudo, mães e familiares — recusaram os papéis de vítimas, buscaram posições de protagonismo durante o processo e demandaram influência nas decisões de órgãos e instituições, ao mesmo tempo que desafiavam as hierarquias postas entre experts e leigos. Foi o desenvolvimento de uma expertise leiga, de acordo com a autora, que possibilitou que mudanças que beneficiaram as famílias acontecessem, seja de regulamentação ou na rotina diária, com o acesso à substância mais facilitado. Nesse sentido, mais do que ativistas, os indivíduos próximos da causa se instrumentalizaram para falar no idioma da ciência. Para Akrich (2010), não há separação clara entre conhecimento leigo e experiência leiga. É nesse emaranhado de tipos de conhecimento que as pessoas conseguem se instrumentalizar e tornam legítimas suas reivindicações de saúde.
Ciência, tecnologia e sociedade são domínios coproduzidos por atores humanos e não humanos (Latour, 2012; Jasanoff, 2004). É importante compreender como grupos de pessoas e plataformas digitais constroem relações (Hine, 2020). Nesse sentido, Hine (2020) afirma que é essencial olhar e compreender os processos que são produzidos e incorporados em outras atividades cotidianas. Para Beatriz Accioly Lins (2020), o termo internet carrega consigo diversas tecnologias, dispositivos, circunstâncias, discursos e práticas que constroem novas formas de ser e estar no mundo. Segundo Carneiro e Dwyer (2012), a complexidade da vida também pode ser apreendida por meio das relações entre o que vivenciamos nas plataformas digitais e em nosso dia a dia longe das telas. Para eles, a interação que construímos em redes sociais está vinculada à nossa expressão no cotidiano. É importante, desse modo, levar em conta os contextos aos quais nos vinculamos, suas construções políticas e também sociais. Quando pensamos no ativismo que surge a partir da Cannabis para uso terapêutico, isso fica ainda mais visível. Pacientes e seus familiares têm desenvolvido expertises em diferentes áreas de conhecimento para tratar de todos os fenômenos que têm surgido e se intensificado a partir da discussão sobre os diferentes usos de Cannabis e de seus derivados. Compartilhar informações, experiências e conhecimentos contribui para a convivência com adoecimentos e as dificuldades daí decorrentes. As associações canábicas, foco de discussão neste artigo, têm desenvolvido trabalhos informativos sobre ciência, sobretudo biomédica, em plataformas digitais, que podem ser compreendidos como parte da formação de uma expertise leiga.
O Instagram foi criado e divulgado com o objetivo de oferecer uma plataforma na qual os usuários pudessem divulgar fotos e vídeos para suas redes de contato em tempo real. De acordo com Camila Marins Silvestre (2017), com o passar dos anos, a plataforma passou a ser apropriada para fins comerciais, com perfis pessoais, mas também com os de negócios. Segundo a autora, o aplicativo funciona como um mural para exposição de fotos e vídeos, que ficam disponíveis para que outros usuários possam olhar. Além de permitir comentários e envio de mensagens diretas para usuários, a plataforma atualmente possibilita o encaminhamento e salvamento de postagens que tenham interesse. Vale ressaltar, como exposto por Silvestre (2017), que, nas últimas atualizações, a plataforma mostrou-se apta para ser usada em negócios com o fornecimento de métricas que possibilitam levantamentos das preferências potenciais dos usuários, o que faz com que conteúdos que gerem mais impacto em consumidores específicos sejam impulsionados. Apropriando-se desses aspectos, grupos e associações de pacientes também têm usufruído dessa plataforma para dar visibilidade à causa, além de conseguirem angariar novos apoiadores.
A Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace)13 é uma organização sem fins lucrativos e tem como objetivo dar apoio aos pacientes e seus familiares em todos os processos que dizem respeito ao uso terapêutico de Cannabis. A Abrace também é responsável por manter um cultivo, produção e disponibilização de produtos derivados de Cannabis em escala industrial14. Todas essas etapas são feitas em suas sedes, localizadas em João Pessoa e Campina Grande na Paraíba15. Na página do Instagram da associação, entre 2020 e 2021, foram recolhidas 40 postagens que passavam algum tipo de informação sobre ciência e tecnologia aos seguidores. Na análise do conteúdo das postagens, foi visto que passavam informações relacionadas a datas de conscientização sobre doenças. Ao mesmo tempo que falavam da doença, vinculavam informações sobre os canabinoides em seu tratamento. O uso de hashtag16, por exemplo, não era tão frequente. Algumas das que mais apareceram foram: #abraceesperanca, #abracenaopodeparar, #avidanaoespera e #cannabismedicinal. Poucas vezes o termo “maconha” é utilizado, quase sempre se prefere utilizar o termo “Cannabis”. Esse é um ponto relevante, visto que, apesar de fazerem referência à mesma planta, essas palavras nem sempre querem dizer a mesma coisa. Caetano (2023a) e Motta (2019) já mostraram que esses termos se referem a coisas distintas. A palavra “maconha” costuma ser usada ao se falar sobre o uso “recreativo”, já o termo “Cannabis” parece se associar mais facilmente ao uso terapêutico. Isso ocorre pelo lugar ambíguo e complexo que a substância parece ocupar atualmente, vista ora como “droga”, ora como “medicamento” (Caetano, 2023b).
De acordo com Zandavalle (2018), o Instagram possui um fluxo de informações visual que transmite significados por meio de imagens, textos e hashtags, que são usados conforme o contexto e a informação que se quer passar adiante. Em uma postagem no dia 4 de abril de 2021, o perfil da Abrace tratava do Dia Nacional do Parkinsoniano. Na imagem (Figura 1), é possível ver mãos entrelaçadas, a logo da Abrace e a hashtag “#Naodeixeabraceparar”. Na legenda, fala-se que já existem estudos que mostram que os pacientes sentem alívio de sintomas motores e não motores decorrentes da Doença de Parkinson com o uso de Cannabis. Argumenta-se que diariamente chegam relatos das pessoas que usam os produtos feitos na associação e têm melhoras significativas de dores, tremores, sono e humor. Trazem-se ainda estudos produzidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) que afirmam que 1% da população com mais de 65 anos desenvolveu a doença. No final da descrição, afirma-se que esse dia é importante para que possam ser disseminadas informações corretas sobre os tratamentos da doença e mostrar que atualmente existem formas de aumentar a expectativa de vida dessas pessoas com o uso terapêutico de Cannabis. Apesar de se falar em estudos, no plural, não se elenca nenhuma referência mais específica para que os seguidores possam conferir.
Em 19 de junho de 2021, o perfil da Abrace fez uma postagem (Figura 2) sobre o Dia Mundial de Conscientização sobre a Doença Falciforme. Essa doença é genética e hereditária e se caracteriza por uma alteração das hemácias do sangue que podem causar dores crônicas e infecções, e é mais prevalente em pessoas pretas e pardas17. Na legenda, fala-se da relação entre a Cannabis e a doença, afirmando que o tratamento é seguro e eficaz na doença crônica de pacientes. Citam um ensaio clínico feito pelos pesquisadores Kalpna Gupta e Donald Abrams na Universidade da Califórnia, mas não deixam o acesso mais facilitado ao conteúdo integral do texto. Evidencia-se que os resultados do ensaio mostraram que a Cannabis parece ser segura no tratamento da dor crônica decorrente da doença falciforme e, além disso, mostra-se que os autores do teste afirmam que a substância pode ajudar no combate à crise de saúde pública relacionada ao uso abusivo de opioides.

Em outra postagem publicada em 14 de dezembro de 2021, a Abrace discorre sobre os benefícios da Cannabis no tratamento do HIV/Aids. Com os benefícios e efeitos colaterais da terapia antirretroviral, surgiram também formas de controle desses sintomas. Na imagem (Figura 3) é possível ver um frasco que remete ao óleo produzido pela associação e a folha da Cannabis em destaque. Na postagem, a associação fala sobre um estudo realizado no Imperial College London em parceria com o Hospital Chelsea and Westminster em Londres no qual se atestam os benefícios da Cannabis no tratamento do HIV. De acordo com a legenda feita pela associação, o estudo se baseou em um questionário anônimo respondido por pessoas soropositivas atendidas no hospital. Na legenda é descrito que a substância se mostrou eficaz para combater uma série de sintomas e complicações nas infecções por HIV, como a falta de apetite e a neuropatia. Segundo a postagem, foram relatadas também melhorias em dores musculares (94%) e nos sintomas da depressão (86%). Por fim, ainda na legenda, afirma-se que é importante reconhecermos o papel que a Cannabis desempenha no tratamento prolongado de pessoas soropositivas. Não há informações mais precisas sobre o estudo em si, nem referências ou indicações de onde ele possa ser lido.

Criada em 2014, a Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal18 (Apepi) tem como missão a promoção do acesso ao uso medicinal e o fomento de pesquisas e canais informativos sobre os benefícios dos derivados de Cannabis. A associação foi criada pelos pais de uma menina que faz uso de canabidiol para o controle de uma epilepsia refratária. Atualmente a associação possui um tipo de cultivo associativo e caminha para a implementação de um modelo de Farmácia Viva19 Verde com orientação da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Na análise das postagens feitas pela associação no Instagram entre 2020 e 2021, foram recolhidas 36 postagens com conteúdos de comunicação científica leiga. A Apepi usa recorrentemente hashtags com variados termos: #apepisaude, #apepiinforma, #avidanaoespera, #cannabisbrasil, #maconhamedicinal e #maconhaterapeutica. Também, diferentemente da Abrace, é mais fácil ver o uso de outros termos além de Cannabis, seja para designar a planta de modo geral com o uso do termo “maconha”, seja para falar de seus derivados mais especificamente, como canabidiol, CBG ou THC.
Em 8 de abril de 2021, a Apepi fez uma postagem sobre um texto produzido pelo pesquisador Fabrício Pamplona20. A imagem (Figura 4) mostra o título do artigo, o desenho de uma cabeça humana em tons de roxo e a folha da maconha dentro da cabeça na cor verde. Na legenda, inicia-se a postagem com a questão: “chapadão ou apenas medicado?”. A associação seleciona um trecho específico do texto no qual Pamplona afirma que existem “escalas funcionais”, como a Escala de Avaliação de Problemas com Cannabis, que evidenciam como a tolerância à substância varia entre indivíduos diferentes. Ela também pode mudar em cotidianos e estilos de vida diversos. A associação deixa o link para que o seguidor possa acessar o texto e conhecer as sete situações sobre as quais Pamplona discorre no tocante ao uso prolongado de Cannabis. Entre 2020 e 2021, ao analisar o conteúdo das postagens da associação, percebi que o nome do pesquisador se repetia em algumas delas. Talvez a proximidade do pesquisador das pautas em relação ao uso terapêutico de Cannabis faça com que a Apepi utilize seus textos e artigos para informar seus seguidores sobre doenças e outras questões relacionadas à maconha.
Em outra postagem, feita em 24 de agosto de 2021, o perfil da Apepi discorreu sobre os benefícios da Cannabis no tratamento da endometriose. Essa é uma doença que atinge mulheres em idade reprodutiva que faz com que as células do endométrio, em vez de serem expelidas, migrem até os ovários e a cavidade abdominal. Isso faz com que algumas mulheres tenham cólicas intensas no período menstrual, dor durante a relação sexual e também desenvolvam uma dor pélvica crônica. Na postagem (Figura 5) que traz em seu centro a folha da Cannabis, a Apepi fala mais especificamente de um artigo feito pelo Laboratório de Neurofarmacologia da Universidade Pompeu Fabra, na Espanha, que demonstra que o THC reduziu a dor e limitou o desenvolvimento de cistos no endométrio em camundongos. Nessa postagem, não se elencam outras referências nem se facilita o acesso ao artigo completo. Afirma-se ainda que o canabidiol, outra substância presente na Cannabis, atua bem em processos inflamatórios, o que auxilia que o paciente sinta menos dor. No fim da postagem, reafirma-se que um médico sempre deve ser consultado antes da utilização de terapias de saúde.
Em 22 de novembro de 2021, o perfil da Apepi publicou uma postagem (Figura 6) sobre a doença de Parkinson e a Cannabis, questionando como o canabidiol pode reduzir os sintomas da doença. Na imagem postada é possível ver duas mãos mais enrugadas seguradas por outro par de mãos. Ao explicar no que consiste a doença, fala-se mais especificamente de um estudo publicado no Journal of Psychopharmacology em 2021 que demonstra que o canabidiol pode reduzir os sintomas da ansiedade em pacientes com Parkinson e também ajudar no controle dos tremores característicos da doença. Fala-se ainda que, segundo o estudo, os pacientes toleram baixas doses de canabidiol em forma de óleo e que têm tido efeitos positivos. Por fim, pede-se que os seguidores deixem nos comentários suas experiências positivas com o uso do composto. Não se especifica quem foram os autores do estudo, nem se deixa o acesso mais facilitado ao artigo. Apesar disso, não só parece que se quer informar os seguidores, mas também interagir com eles e suas experiências de adoecimento e tratamento. Tal ponto mostra como as plataformas digitais podem contribuir para o compartilhamento de experiências em torno da doença e para o fomento de terapias de saúde.
Por fim, nos deteremos nas postagens realizadas pela Associação de Cannabis e Saúde21 (Cultive). Esta é uma associação formada por pacientes e familiares que tem como intuito a realização de atividades educativas e pedagógicas sobre o uso terapêutico de Cannabis com o objetivo de garantir e ampliar o acesso a outros pacientes. De acordo com o site da associação, a sua missão é facilitar a produção de derivados de Cannabis e assegurar o direito à saúde por meio do autocultivo. Durante a análise do conteúdo publicado pela Cultive entre 2020 e 2021, foram coletadas 14 postagens relacionadas a comunicação científica, menos que do que nas páginas da Abrace e Apepi, vistas anteriormente. No geral, as postagens feitas por essa associação falavam mais sobre práticas e técnicas de cultivo associativo ou regulamentação do que sobre procedimentos científicos e tecnologias de saúde. O uso de hashtags foi mais frequente do que nos outros perfis e costumavam ser associadas ao próprio nome da associação: #cultivebrasil, #cultiveciencia, #cultivesaude e #cultiveseusdireitos.
Mais uma vez o nome do pesquisador Fabrício Pamplona aparece, dessa vez em uma postagem (Figura 7) feita no perfil da Cultive em 30 de julho de 2020. A legenda inicia com a chamada do texto: “genética dos canabinoides”. Fala-se da tendência da medicina personalizada e da importância de conhecer o perfil genético de cada um através de testes. De acordo com a legenda, o objetivo seria compreender melhor esse perfil para que fosse designada para cada pessoa específica a melhor composição de canabinoides. A postagem é extensa e traz diversas informações, como o que seria farmacogenômica. Esta seria a ciência que estuda como nosso organismo reage aos princípios ativos de fármacos, ressaltando-se a importância de se conhecer não só a biologia da planta, mas também a do paciente. No final, coloca-se o link para o site no qual o texto está disponível e se encerra a postagem com o uso da hashtag #cultiveciencia. Nesse ponto, o primeiro comentário feito por um usuário é também interessante. A pessoa afirma que tem Transtorno Afetivo Bipolar Tipo 1 e que já não aguenta mais os medicamentos que são receitados. Já tentou suicídio e desenvolveu uma depressão profunda. Pergunta onde poderia encontrar um médico para iniciar o tratamento. O comentário mostra a síntese do trabalho de divulgação da associação: ela informa, o seguidor lê, se interessa, comenta e também se sente à vontade para descrever sua experiência com o adoecimento. Não há só a veiculação da informação, mas também um compartilhamento.
No mês de março, a Cultive fez algumas postagens com o intuito de divulgar o evento intitulado “I Simpósio de Cannabis, Ciência e Saúde” que foi realizado em junho de 2021. O lema do evento era “só o conhecimento pode derrubar estigmas sociais” e seria feito de forma online (Simpósio de Cannabis, Ciência e Saúde, 2021). Em 18 de março de 2021, por meio de uma postagem, a Cultive fez uma reclamação aberta à plataforma Instagram. Na imagem postada (Figura 8) é possível ver uma captura de tela de uma promoção rejeitada pela plataforma. Na imagem a Cultive afirma que o Instagram rejeitou o impulsionamento da postagem com a justificativa de que os anúncios não deveriam tratar de produtos, serviços ou atividades ilegais. A associação pede ajuda aos seus seguidores para divulgar o evento e enfatiza que seguirá “cultivando direitos”. É interessante notar que na legenda a associação diz que o objetivo do evento é preencher lacunas deixadas por uma perspectiva científica e bioética baseadas em uma concepção simplista e proibicionista do uso de Cannabis. Embora use a plataforma para divulgar um evento sobre ciência e saúde, apenas pelo uso da palavra Cannabis ela é acusada de promover atividades ilegais. Mais interessante ainda é que ela continua postando propagandas do evento em diferentes datas, utilizando o mesmo termo, mas o problema não parece ser a postagem si, mas sim o impulsionamento da divulgação do evento.
Ainda falando sobre o simpósio, no dia 29 de março de 2021, a Cultive publica uma imagem semelhante àquela da postagem anterior, mas agora trocando a palavra Cannabis por pamonha (Simpósio de Cannabis, Ciência e Saúde, 2021). Na legenda, explica que a troca de termos se deu a partir das políticas de privacidade da plataforma, já que, ao buscarem impulsionar a divulgação das postagens, o Instagram acabava associando as palavras Cannabis e maconha com atividades ilegais. Pede novamente ajuda para divulgar o evento, enfatizando que disseminação de informação e promoção da saúde não deveriam ser vistas como atividades ilícitas. Nesse caso, a Cultive não só informa seus seguidores sobre um evento que discutirá temas importantes como o uso terapêutico de Cannabis, ciência e saúde, mas também faz jogos de palavras para que a plataforma não identifique do que está tratando a postagem. Constituem também um tipo de denúncia, que ganha ainda mais força quando a associação afirma que falar de ciência e saúde não é atividade ilegal.

Para Danah Boyd (2014), as tecnologias e as mídias são construídas, manuseadas e modificadas, ao mesmo tempo que surgem e trazem novos usos, sentidos e significados. Os usos da plataforma Instagram vistos até aqui demonstram como as associações têm promovido o debate sobre o uso terapêutico de Cannabis ao mesmo tempo que impulsionam o compartilhamento de informações sobre o assunto. A ciência e os produtos científicos, desse modo, tornam-se essenciais para dar credibilidade àquilo que é postado. Os usos desses artifícios são variados: ora se fala de uma ciência personificada que irá contribuir com os avanços e o acesso ao tratamento, ora são mencionados trabalhos e artigos específicos com o intuito de aprofundar e dar mais visibilidade às questões. Apesar de não ter visto nos perfis da Apepi e Abrace menções às imposições da plataforma, não é estranho imaginar que isso possa ocorrer. No caso da Cultive, um evento que deveria discutir ciência e saúde acaba tendo sua promoção rejeitada apenas pelo uso da palavra Cannabis, visto que, após trocar por Pamonha, ela consegue promover o evento normalmente. No geral, vemos, em diferentes postagens da associação, menções à importância de que mais pesquisadores se interessem pelo tema e que é só com a contribuição da ciência e dos cientistas que será possível alcançar uma regulamentação no que diz respeito aos derivados de Cannabis, o que deverá garantir um acesso eficaz para mais pessoas. Existe, nesse sentido, um trabalho de comunicação científica leiga, que tem o intuito de veicular informações sobre os usos e acessos aos derivados de Cannabis. Esse ponto, mais do que nunca, mostra como os produtos científicos e suas tecnologias são centrais para o debate sobre o direito à saúde no Brasil e no mundo, que, no caso da maconha e de seus derivados, ganham força através da expertise leiga (Epstein, 1995; Oliveira, 2017) desenvolvida pelos ativistas.
Nesse artigo, argumentei que as associações canábicas têm feito um trabalho de comunicação científica leiga na plataforma digital Instagram. Para isso, analisei os conteúdos produzidos por três associações canábicas entre 2020 e 2021 no Instagram. Segundo Zandavalle (2018), o Instagram tem potencial como foco de estudos, pois a própria dinâmica da plataforma incentiva compartilhamentos diários entre os usuários. Nesse sentido, podemos levar em consideração o que Lins (2020) fala sobre o novo contexto sociotecnológico no qual é possível obter acesso a informações e possibilidades comunicacionais que ultrapassam barreiras físicas e materiais. Em postagens, os perfis das associações levantam questões e informações importantes sobre o uso terapêutico de Cannabis, o que pode contribuir para que mais pessoas conheçam os benefícios das substâncias. Além disso, esse trabalho contribui para a expertise de pessoas que já fazem uso delas, sejam pacientes ou seus familiares e/ou cuidadores. A internet e as redes sociais têm se construído como locais-chave para a formação de diferentes vínculos biossociais (Rabinow, 1991) que são essenciais para que os percursos biossociais desses indivíduos passam ser trilhados, levando em consideração o compartilhamento de experiências de adoecimento e terapias.
A partir dos estudos de Epstein (1995) sobre o ativismo em torno da epidemia da HIV/Aids e do trabalho de Oliveira (2017) acerca da expertise leiga desenvolvida pelos ativistas do uso terapêutico de Cannabis, evidenciamos como as associações canábicas, que são formadas por familiares, pacientes e ativistas, têm desenvolvido um trabalho de comunicação científica leiga. A ideia é, em meio às postagens diárias das associações, repassar informações científicas de modo mais fácil de ser lido, assimilado e compreendido. Uma linguagem que é científica, mas é, sobretudo, acessível. Esse compartilhamento de informações também tem que lidar com imposições sociais e das próprias plataformas. Os ativistas, nesse sentido, ora precisam se dedicar aos conteúdos, ora devem procurar mecanismos para driblar as políticas das plataformas digitais.
As associações canábicas tornam-se, assim, lugares privilegiados onde as experiências vivenciadas no cotidiano se cruzam com aquelas acessadas por meio das plataformas digitais. Essas experiências não podem ser dissociadas umas das outras, visto que contextos políticos e sociais nos quais os pacientes vivem fazem parte de sua experiência com a doença (Carneiro; Dwyer, 2012). Ao analisar os trabalhos, percebemos como a ciência e os produtos científicos permeiam o cotidiano de pessoas que buscam o acesso à terapia com Cannabis e seus derivados. O trabalho de comunicação científica leiga feito pelas associações é essencial para que haja não só o compartilhamento de informações e expertises sobre o acesso a novas terapias e tecnologias de saúde, mas também para a própria democratização do acesso aos produtos científicos.
Marco Vinicius de Castro, https://orcid.org/0000-0002-9916-7470.


