Resumo: Este artigo apresenta os sentidos da escolarização para jovens cearenses matriculados em uma escola de tempo integral no primeiro ano de implementação da Reforma do Ensino Médio. Trata-se de pesquisa realizada no âmbito do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica Ensino Médio (PIBIC/EM), do tipo estudo de caso, com abordagem qualitativa e utilização das técnicas do grupo focal e survey. Os resultados mostram que o sentido da escolarização está relacionado à expectativa do que a conclusão do ensino médio pode proporcionar, seja um emprego futuro ou o ingresso na universidade; a sociabilidade com outros jovens é um forte fator para garantir a permanência dos estudantes na escola; e a vivência nas instituições educacionais de ensino integral não está isenta de contrariedades, mesmo entre aqueles estudantes que se consideram adaptados à nova jornada escolar.
Palavras-chave: Escola, ensino médio, políticas educacionais, sociologia, Ceará.
Abstract: This article presents the meanings of schooling for students in Ceará enrolled in a full-time school in the first year of implementation of the Secondary Education Reform. This research is carried out within the Institutional Program of Scholarships for Scientific Initiation in High School (PIBIC/EM), of the case study type, with a qualitative approach and use of focus group and survey techniques. The results show that the meaning of schooling is related to the expectation of what its completion can provide, whether a future job or admission to university; sociability with other young people is a strong factor to ensure that students remain in school; and experience in full-time educational institutions is not without contrariety, even among students who consider themselves adjusted to the new school journey.
Keywords: School, high school, educational policies, sociology, Ceará.
ARTIGOS
Os Sentidos da Escolarização para Estudantes do Ensino Médio em Tempo Integral no Ceará: Experiência de Pesquisa do Programa PIBIC/EM
The Meanings of Schooling for Full-Time High School Students in Ceará: PIBIC/EM Program’s Research Experience
Received: 07 September 2023
Accepted: 31 October 2023
Published: 21 December 2023
O ensino médio brasileiro é uma etapa da educação básica regulamentada pela Lei de Diretrizes e Bases – LDB, de 1996 (Brasil, 1996), que definiu como sua principal finalidade o aprofundamento de conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, a preparação básica para o trabalho e o exercício da cidadania. Obrigatório apenas a partir de 2009 para jovens e adolescentes na faixa etária dos 15 aos 17 anos, o ensino médio, desde o cenário pós-LDB, visa atender às demandas sociais e econômicas de mais escolarização diante das transformações no mundo do trabalho no capitalismo contemporâneo, da desvalorização dos diplomas e da necessidade de uma compreensão mais profunda do funcionamento da sociedade, da política e de outras questões que afetam o mundo em geral.
Estudos sobre o ensino médio mostram que os debates em torno dessa etapa são controversos (Cunha, 2017; Krawczyk, 2011; Silva, 2015). Entre as problemáticas mais recorrentes, listam-se: problemas de acesso e permanência; qualidade da educação oferecida; presença tardia da sua obrigatoriedade e de um plano de universalização; falta de identidade e disputas nas políticas curriculares em torno das suas finalidades.
Mesmo sendo alvo de políticas de expansão e universalização desde a década de 1990, as desigualdades educacionais expressas no ensino médio são marcantes e se apresentam nos índices de evasão, reprovação, distorção idade-série e na quantidade de jovens que se encontra fora da escola por dificuldades de acessar e concluir a última etapa da educação básica. Considerando as desigualdades sociais brasileiras, tais índices se agravam quando se observa a origem socioeconômica, etnia, cor/raça e gênero. Outros fatores. como as péssimas condições de infraestrutura das escolas, as precárias políticas de formação e remuneração de professores e a falta investimentos públicos, também contribuem para aprofundar as desigualdades educacionais.
No estado do Ceará, as políticas educacionais voltadas para o ensino médio nos últimos anos têm buscado a expansão e universalização dessa etapa por meio de programas e projetos que procuram elevar a sua relevância para os jovens estudantes. Entre as metas estabelecidas no Plano Estadual de Educação – PEE (Ceará, 2016) está a prioridade de institucionalização do ensino integral na rede pública.
Meta 6: Oferecer, até 2024, em regime de colaboração, Educação em Tempo Integral em, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das escolas públicas e instituições de educação infantil, de forma a atender, pelo menos, 25% (vinte e cinco por cento) dos estudantes da educação básica
(Ceará, 2016, p. 6).A política de educação integral no Ceará iniciou-se em 2008 com a criação das Escolas Estaduais de Educação Profissional (EEEP), que integram ensino médio e formação profissional de nível técnico. A partir de 2017, foram criadas, no âmbito da rede estadual, as escolas de Ensino Médio em Tempo Integral (EEMTI), visando alcançar a meta do Plano Estadual de Educação – PEE (Ceará, 2016) e, consequentemente, do Plano Nacional de Educação – PNE (Brasil, 2014), que tratam da expansão de instituições educacionais públicas com jornada integral.
Contudo, em nível federal, os anos de 2016 e 2017 foram marcados por descontinuidades nas políticas educacionais brasileiras decorrentes do golpe jurídico e midiático que levou à ascensão à Presidência da República do vice-presidente Michel Temer (PMDB). Uma das ações levadas a cabo foi a Reforma do Ensino Médio (MP 746/2016 e Lei nº 13.415/2017), que alterou a finalidade, a configuração curricular e as formas de financiamento do ensino médio. Além disso, a Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2014) (BNCC), que estava sendo elaborada desde 2014, foi alterada para atender as concepções que norteavam as políticas curriculares da equipe à frente do Ministério da Educação – MEC (Lopes, 2021; Mendonça, 2017; Silva; Alves Neto, 2020).
Tal feito da Reforma do Ensino Médio realizado com urgência (Motta; Frigotto, 2017) gerou uma série de divergências que se manifestaram, principalmente, nas ocupações secundaristas de 2016; na posição contrária de entidades científicas e instituições educacionais; na rejeição de docentes diante das incertezas em relação às mudanças que seriam implementadas (Ferreira; Silva, 2017; Ferraro; Pinheiro, 2018; Jakimiu, 2023; Oliveira; Binsfeld; Trindade, 2018). Com relação a esse movimento de resistência à Reforma, Ferreira e Silva (2017, p. 288) mostraram que
[...] [d]a parte de estudantes, sobretudo secundaristas, o país assistiu a um amplo movimento de ocupação de prédios públicos. No ápice do movimento, aproximadamente 1.400 instituições educacionais ficaram sob gestão estudantil. Em todas elas, as atividades e as discussões giravam em torno da PEC nº 241/55 e da MP nº 746. De outra parte, a reação contrária à MP se fez por meio das notas e dos manifestos de entidades acadêmicas e político-organizativas.
Apesar das manifestações contrárias, a Reforma do Ensino Médio foi aprovada e sua implementação progressiva iniciou-se a partir do ano de 2022. Um ponto convergente entre as medidas propostas pela Reforma do Ensino Médio e a política educacional no Ceará é o fomento à educação em tempo integral, e é principalmente sobre tal aspecto que este artigo se debruça a partir da perspectiva dos jovens estudantes.
Cabe salientar que parte dessas mudanças ocorreu em meio à crise sanitária decorrente da pandemia de Covid-19 que levou à morte 14,9 milhões de pessoas no mundo em 2020 e 2021 (OPAS, 2022) e, no contexto educacional, suspendeu as aulas presenciais e estabeleceu o regime remoto. Outro ponto importante de mencionar é que com a mudança de governo em 2023, com o retorno de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a indicação do ex-governador do Ceará Camilo Santana (PT) para a pasta do Ministério da Educação, as demandas para revogação do Novo Ensino Médio estão sendo objeto de discussão.
Considerando o contexto social e político vivenciado na área educacional nos últimos anos no Brasil, o objetivo deste artigo é apresentar os sentidos da escolarização para jovens cearenses matriculados em uma escola de ensino médio em tempo integral, do tipo EEMTI, no contexto de implementação da Reforma do Ensino Médio. A pesquisa que originou este trabalho foi realizada no âmbito do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica Ensino Médio (PIBIC/EM), que, ao aproximar as instituições de ensino superior e ensino básico, possibilita a realização de pesquisas nos ambientes escolares com a participação de estudantes secundaristas.
Este texto apresenta esta introdução, na qual se destaca o problema analisado. Em seguida, mostro o percurso metodológico da pesquisa e, a partir dos dados coletados e analisados, apresento o perfil dos estudantes entrevistados, os sentidos da escolarização para eles e as percepções sobre o ensino integral e as mudanças propostas pelo Novo Ensino Médio no âmbito da escola em que estudam.
O estudo ora apresentado resultou da pesquisa intitulada “O Novo Ensino Médio e o lugar do ensino de Sociologia na educação básica do Ceará”, realizada a partir da parceria entre a Universidade Federal do Ceará (UFC) e uma escola de ensino médio da Secretaria de Educação do Ceará (SEDUC), situada no município de Caucaia, Região Metropolitana de Fortaleza, por meio de financiamento do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica Ensino Médio (PIBIC/EM).
O PIBIC Ensino Médio é um programa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) que visa integrar estudantes da educação básica em pesquisas realizadas por instituições de ensino superior, desenvolvendo, assim, atitudes, habilidades e valores necessários à educação científica nos jovens secundaristas. A integração ocorre por meio de bolsa oferecida ao estudante da educação básica que participa do projeto de pesquisa durante 12 meses. O papel dos bolsistas é de participação ativa em todas as etapas da pesquisa e culmina com a apresentação de trabalho nos Encontros Universitários da instituição de ensino superior.
Enquanto coordenador de projeto do PIBIC/EM, realizei pesquisa na escola investigada durante duas edições, 2020/2021 e 2021/2022, nas quais pude acompanhar as mudanças decorrentes da sua integração ao modelo integral, suas ações diante da pandemia de Covid-19 e os desafios para se adequar à implementação do Novo Ensino Médio. Durante a vigência dos projetos, tive a oportunidade de trabalhar com três bolsistas2. O PIBIC/EM foi fundamental para gerar maior aproximação do pesquisador com a escola e com a perspectiva dos jovens estudantes, facilitando o percurso metodológico da pesquisa no ambiente escolar.
Na edição de 2021/2022, no que se refere aos procedimentos metodológicos para os resultados da pesquisa ora apresentada, foi realizado um grupo focal on-line síncrono com os líderes das cinco turmas do 1º ano, com o objetivo de identificar a percepção dos estudantes sobre a escola, o ensino médio e, como parte do projeto, o ensino de Sociologia. Os líderes de turma são estudantes que realizam a mediação entre a gestão/professores e os colegas de turma, estão expostos às preocupações e interesses da gestão escolar, bem como se relacionam diretamente com os colegas.
O grupo focal possibilitou me familiarizar com a linguagem utilizada por eles para descrever seu modo de pensar e vivenciar o ambiente escolar, facilitando, assim, a elaboração das sentenças do survey (Almeida, 2016a). Além do grupo focal, outra fonte utilizada na elaboração das perguntas foram questionários on-line de secretarias de educação estaduais que buscavam avaliar o Novo Ensino Médio em suas unidades federativas3.
O survey foi elaborado com uma lista de perguntas divididas, principalmente, em três blocos: informações pessoais; juventude, escola e trabalho; e novo ensino médio. Devido à experiência anterior, na edição de 2020/2021, com baixa adesão de respondentes durante a pandemia de Covid-19, optamos por imprimir e aplicar os questionários presencialmente. Após a aplicação nas salas de aula, entre os dias 9 e 10 de novembro de 2022, os questionários foram tabulados em planilha no Excel e transferidos para o software de análise quantitativa de dados SPSS (Statistical Package for the Social Sciences4). As principais ferramentas utilizadas no SPSS foram a estatística descritiva e a construção de gráficos com o intuito de mostrar de forma qualitativa o universo estudado.
Desta forma, por estar circunscrita ao universo de uma escola de tempo integral no Ceará, esta pesquisa pode ser considerada um estudo de caso, com abordagem qualitativa e utilização das técnicas do grupo focal e survey (Almeida, 2016a, 2016b; Lima, 2016). Os sujeitos investigados foram estudantes da 1ª série do ensino médio que estavam vivenciando tanto a educação de tempo integral como a implementação do Novo Ensino Médio no ano de 2022. O survey não foi realizado com as turmas de 2º e 3º anos porque, apesar de estarem no ensino integral, o Novo Ensino Médio não estava sendo implementado nessas séries. Trata-se, portanto, de uma amostra por conveniência definida a partir dos estudantes que estavam presentes no dia do survey e que se dispuseram a responder.
Foram entrevistados 181 estudantes matriculados em cinco turmas de 1ª série do ensino médio em 2022. Deste total, a maior parte se identifica com o gênero feminino (52,3%) ou masculino (45,5%), e uma pequena parcela se define como não binário (2,3%). Mais da metade são pardos (60,8%), os outros são brancos (23,8%), pretos (10,5%), indígenas (3,9%) e amarelos (1,1%).
A maior parte desses estudantes cursou o ensino fundamental em escola pública (65,4%) e os outros respondentes em escola privada (34,6%). Com relação à religião, predominam as de origem cristã, como a evangélica (35,6%) e a católica (29,3%). Apesar disso, uma parcela de discentes afirma não pertencer a nenhum tipo de religião (23%), mesmo mantendo a crença em uma entidade suprema. Em menores proporções, foram mencionadas outras formas de manifestação da fé ou da sua ausência, como as religiões de matriz afro-brasileira (2,9%) e os que se consideram agnósticos e ateus (5,7%). Nesse conjunto de estudantes, quase todos os entrevistados têm idade entre 15 e 16 anos e o percentual de distorção idade-série é pequeno (2,8%).
Esses estudantes residem em lares com uma média de três a cinco pessoas (70,7%) e, no que se refere à renda familiar, predominam jovens oriundos de famílias que vivem com menos de um salário mínimo (27,3%), cujo valor em 2022 era de R$ 1.212,00, ou com renda entre um e dois salários mínimos (44,6%). Tal renda pode ser oriunda da situação profissional dos responsáveis, que, segundo os respondentes, é, em sua maioria, de empregado com carteira assinada (48,2%) ou autônomo/informal – sem carteira assinada (25,6%). Mas também pode ser oriunda de programas sociais do governo, pois mais da metade dos respondentes (69%) afirma receber algum tipo de benefício.
Em porcentagem relativamente maior, as mães ou responsáveis pelo discente concluíram o ensino médio (32,5%); enquanto isso, a maior parte apresenta baixa escolarização (sem escolarização, 2%; fundamental incompleto, 23,8%; fundamental completo, 7,3%; ensino médio incompleto, 14,6%) e uma pequena fatia chegou ao ensino superior (ensino superior incompleto; 2,6%; ensino superior completo, 8,6%; pós-graduação, 8,6%).
Ao serem indagados se trabalhavam ou exerciam algum tipo de atividade que consistia em ajudar alguém da família, sem necessariamente receber algum dinheiro em troca, 73 estudantes (40,3%) responderam afirmativamente. Tais atividades rotineiras podem ser tarefas domésticas realizadas ao chegarem em casa, ajudar os pais em algum tipo de trabalho informal, serviços voluntários ou os chamados “bicos” (pequenos serviços prestados por meio de remuneração). Do total de 73 estudantes, 68,5% realizam essa atividade rotineira no âmbito da própria casa e 31,5% fora de casa.
A escolarização dos jovens entrevistados apresenta-se maior que a da geração anterior, de sua mãe ou daquele/a que exerce o papel de responsável. Desta forma, para quase metade deles (47,7%), o diploma do ensino médio não é algo que faz parte da experiência familiar e, consequentemente, do seu capital cultural. Esse fator pode contribuir para uma fraca expectativa em relação à conclusão do ciclo básico de estudos.
Neste contexto, o desafio é entender o que os vincula ao espaço escolar, quais suas motivações e expectativas em relação ao ensino médio. Um dos fatores que se apresentou bastante significativo na escola ora investigada foi a sociabilidade entre os estudantes: a maior parte deles (61,2%) declarou que seus principais vínculos de amizade são com pessoas da própria escola; enquanto isso, outros espaços ou instituições tiveram porcentagem bem inferior: vizinhança (11,2%), igreja (7,3%), família (7,3%), ambientes virtuais (3,9%), esporte (1,1%) ou não tenho amigos (7,9%).
Estudos sociológicos sobre as juventudes no espaço escolar mostram como as instituições educacionais são ambientes de sociabilidade, cuja convivialidade nos intervalos – e nos momentos que não são de socialização – é um fator de integração (Lima Filho, 2014). Considerando que a escola investigada tem uma jornada integral, os estudantes vivenciam seus espaços durante cinco dias semanais e nove horas diárias, contribuindo para que essa instituição seja o lugar onde vivenciam a maior parte da sociabilidade com outros jovens.
O sentido da escolarização para esses jovens está baseado também na expectativa do que a conclusão do ensino médio pode proporcionar. Os principais motivos que os levam a frequentar diariamente a escola são: ter um bom emprego futuramente (69,1%), entrar na faculdade (49,7%), adquirir mais conhecimentos (45,9%) e descobrir o que querem fazer futuramente (42,5%). Apesar das dificuldades de ascensão social via escolarização por parte de jovens de baixa renda, os estudantes do universo analisado nutrem a expectativa de que o ensino médio seja um meio para o percurso futuro que desejam trilhar.
Ao serem indagados sobre o que pretendem fazer após a conclusão do ensino médio, a maior parte disse que ainda está pensando (36,8%) – o que é compreensível para estudantes de 1ª série – e o outro percentual mais próximo quer ingressar no ensino superior (31%). Apesar do interesse de cursar uma graduação, 57,4% dos entrevistados não se consideram bem informados sobre como ingressar em universidades públicas. Isso pode estar relacionado tanto à baixa inserção dos pais ou responsáveis no ensino superior como a uma carência da escola em promover atividades que apresentem desde o início do ensino médio as possibilidades de formação profissional em instituições de ensino superior.
A literatura mostra que a falta de identidade do ensino médio dificulta a elaboração de políticas públicas para essa etapa. Krawczyk (2011) afirma que a identidade do ensino médio desde 1990 se resumiu apenas a ser o trampolim para a universidade ou a formação profissional, mostrando-se, por um lado, insuficiente para as novas demandas de conhecimento e, por outro lado, necessário para que as juventudes deem continuidade aos estudos em cursos superiores.
A partir dessa reflexão, pode-se considerar que a falta de identidade do ensino médio público também afeta os sentidos atribuídos pelos jovens à escolarização, principalmente para aqueles que são oriundos de famílias de baixa renda. Os jovens entrevistados mostraram que o sentido da escolarização está relacionado ao que desejam vivenciar no futuro, sendo considerado algo necessário para “ter um bom emprego futuramente” e/ou “entrar na universidade”.
Mesmo apresentando expectativas em relação ao futuro, o fantasma da evasão e do abandono escolar parece estar rondando nas mentes e sentimentos das juventudes. Uma parcela considerável de 31,6% indicou já ter pensado em abandonar a escola. Porém, cabe mencionar que para entender os sentidos do abandono é importante considerar múltiplos fatores intra e extracurriculares, que não foram investigados nesta pesquisa.
Evasão e abandono escolar são dois fatores que costumam ecoar nos discursos de prenúncio e de implementação de reformas educacionais. Ao analisar os discursos midiáticos em torno da Reforma do Novo Ensino Médio de 2017, Bárbara Lopes (2019) mostra como a evasão está entre os principais fatores que contribuem para o diagnóstico de crise do ensino médio, que é compartilhado tanto por aqueles favoráveis quanto pelos contrários às reformas, estejam à direita ou à esquerda do debate político.
Entre as mazelas que [...] produções da mídia apontam estão o baixo desempenho dos estudantes no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e em avaliações internacionais; os altos índices de reprovação e evasão; falta de professores e professores com baixa qualificação; infraestrutura precária; para citar alguns
(Lopes, 2019, p. 48).A relação entre a evasão e o jovem como risco social também se apresenta nos discursos relativos à implementação das escolas de tempo integral no Ceará. Lopes (2019) mostra em seu trabalho um trecho do discurso do atual ministro da Educação, Camilo Santana (PT), quando era governador do Ceará:
Nós estamos enfrentando um problema gravíssimo no Brasil que é o problema da violência. Grande parte hoje da violência brasileira é em detrimento de jovens que são aliciados pelas drogas, pelo mundo do tráfico. E a oportunidade da escola de tempo integral é garantir a proteção, além de dar oportunidade para esses jovens, garantir a proteção desses jovens na sociedade brasileira. [...] Um ponto fundamental que estamos discutindo hoje no Ceará e entre os governadores do Nordeste é a questão da evasão [...]. Grande parte desses jovens que desistem da escola muitas vezes entra no mundo do crime, aliciado pelo mundo das drogas. Infelizmente é esse problema da violência que estamos enfrentando hoje no Brasil
(Santana, 2018 apudLopes, 2019, p. 51).Neste sentido, além de problematizar a fala de Camilo Santana, que contribui para reforçar a associação entre juventude e risco social, torna-se importante discutir a percepção dos estudantes, público-alvo dessa política pública do tempo integral, os tempos e os espaços escolares nos quais estão inseridos, bem como analisar suas percepções sobre as mudanças ocorridas com a implementação do Novo Ensino Médio.
No estado do Ceará, a educação em tempo integral é vivenciada em dois tipos de estabelecimentos escolares, as Escolas Estaduais de Educação Profissional (EEEP), que desde 2008 integram ensino médio e formação profissional de nível técnico; e as Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral (EEMTI), que começaram a ser implementadas na rede estadual em 2017.
De acordo com dados da Secretaria de Educação do Estado do Ceará – SEDUC (Falcão, 2023), a rede estadual pública conta com 472 unidades em tempo integral, sendo 131 EEEP e 342 EEMTI, que contemplam 140 mil estudantes em 165 dos 184 municípios do estado. De acordo com a SEDUC, mais de 70% da rede estadual oferta ensino médio em tempo integral. Tal feito é retratado como a institucionalização de uma cultura de ensino em tempo integral que está sendo construída no estado.
As EEEP e as EEMTI têm em comum a ampliação da duração da jornada escolar, mas seguem linhas pedagógicas diferentes. As EEEP têm uma rotina pedagógica delineada pela matriz curricular de formação geral com os componentes curriculares da base comum, a formação profissional com disciplinas relacionadas ao curso técnico ofertado pela instituição e a parte diversificada formada por componentes como Projeto de Vida, Formação para a Cidadania, Mundo do Trabalho etc. As EEMTI organizam a jornada dos estudantes na escola a partir das disciplinas da base comum curricular (Formação Geral Básica), intercaladas por disciplinas da parte flexível (Eletivas) e da parte diversificada (Formação para a Cidadania e o Núcleo de Trabalho Pesquisa e Práticas Sociais), além de outras atividades propostas pelo núcleo gestor de cada estabelecimento escolar.
Segundo Silva e Boutin (2018), essa nova configuração de estabelecimentos escolares carece de investigação, haja vista as evidências de que tal proposta visa mais a ampliação do tempo escolar e uma formação técnica do que uma formação efetivamente integral. Portanto, as escolas de tempo integral apresentam o cenário propício para a realização de pesquisas e análises sobre as reconfigurações curriculares das escolas brasileiras.
A ampliação da jornada escolar para os ingressantes no ensino médio os coloca em um processo de socialização desafiador, principalmente, para aqueles que não tiveram na etapa anterior do ensino fundamental uma rotina de dois turnos na escola. As dificuldades de adaptação são um dos fatores levados em conta pelos pais e responsáveis no período de matrícula, bem como se torna também um dos motivos de transferência para outra instituição escolar que não seja em tempo integral.
Durante o grupo focal, os estudantes apresentaram vários aspectos que fazem parte da rotina escolar integral que interferem na permanência e podem, até mesmo, levar à evasão: o cansaço, a fadiga de “passar o dia inteiro na escola”, a grande quantidade de componentes curriculares, o tipo de alimento servido nas refeições (lanches e almoço), a necessidade do uso do vestiário, a quantidade de livros que é preciso levar quando não se têm armários, dentre outros. Por outro lado, a busca pelo ensino integral é baseada em uma crença dos pais e/ou dos próprios estudantes de que mais tempo na escola é sinônimo de qualidade do ensino e, consequentemente, aumento de oportunidades. Tais modos de perceber e vivenciar a escola anunciados no grupo focal se transformaram em perguntas para entender como encaram a jornada escolar na escola analisada.
Apesar das dificuldades mencionadas, o gráfico 1 mostra que os estudantes entrevistados se consideram muito adaptados à nova rotina escolar. Em uma Escala Likert de 1 a 5, na qual 1 representa pouco adaptado e 5 muito adaptado, os resultados mostram um forte grau de adaptação, com a maior concentração de respostas nos níveis 3, 4 e 5 da escala.

Entendida aqui como a capacidade de responder positivamente ao processo de socialização escolar, a adaptação é permeada por fatores que caracterizam a relação dos estudantes com a escola. Dentre esses, a convivialidade com os colegas é o que mais se sobressai entre os elementos que caracterizam a relação com a escola. Os estudantes da escola de tempo integral valorizam a possibilidade de conviver com os amigos no cotidiano escolar.
O forte grau de adaptação não significa que os estudantes vivenciem a jornada escolar sem aborrecimentos e contrariedades, pois uma parcela dos que se consideram habituados à nova rotina também dizem que “o dia a dia na escola é cansativo e enfadonho”. Essa e outras expressões, apresentadas no quadro a seguir, surgiram no grupo focal e foram utilizadas no survey como uma forma de caracterizar a relação dos estudantes com a escola.

Na pergunta sobre o que caracteriza sua relação com a escola, na qual poderia ser marcada mais de uma opção, as duas sentenças mais significativas para caracterizar essa relação foram: “na escola tenho a possibilidade de me reunir com meus amigos” (62,4%) e “o dia a dia na escola é cansativo e enfadonho” (49,7%). Considerando que a primeira tem um teor positivo (+) e a segunda negativo (-), foi realizada a associação dessas duas informações para verificar quem marcou apenas uma das sentenças ou ambas.

O Quadro 2 mostra que 33,1% marcaram apenas o aspecto positivo: “na escola tenho a possibilidade de me reunir com meus amigos”; 20,4% indicaram apenas o aspecto negativo: “o dia a dia na escola é cansativo e enfadonho”; e 29,3% foram ambivalentes, ou seja, escolheram as duas opções. Tais resultados indicam que a sociabilidade entre os jovens é um fator mais forte do que as dificuldades relacionadas ao cansaço e fadiga, até mesmo mais do que quando ambas as percepções estão relacionadas.
Outras sentenças que eles tiveram a possibilidade de expressar em relação à escola foram: “a escola tem uma boa estrutura para estudar, diferentemente da minha casa” (32,0%); “na escola gosto de conversar com os professores, coordenadores, funcionários e gestores” (21,5%); “na escola tenho a possibilidade de fazer refeições” (22,1%).
Para os estudantes que participaram do grupo focal, o “passar o dia inteiro na escola” levanta a necessidade de diversificar os tipos de atividades ofertadas na instituição escolar. Ao indagar no questionário ao universo de estudantes, investigando o que gostariam de fazer mais durante o tempo em que estão na escola, a opção “realizar atividades artísticas e/ou esportivas” (48,55%) se sobressaiu em relação ao conjunto de opções disponíveis de forma mutuamente excludente, como mostra o gráfico 2.

A preferência dos estudantes entrevistados se contrapõe à capacidade da escola de ofertar atividades artísticas e/ou esportivas, seja pela limitada infraestrutura da escola com poucos espaços destinados ao esporte, seja pelo reduzido espaço curricular destinado aos componentes de arte e educação física. É importante lembrar que na proposta inicial do Novo Ensino Médio, apresentada na MP 746/2016, as disciplinas de Arte, Educação Física, Filosofia e Sociologia foram retiradas da lista de oferta obrigatória. Foi somente após reivindicação dos movimentos sociais que a Lei regulamentou sua permanência, mas no formato de “estudos e práticas” (Silva, 2018).
Com relação à percepção sobre as metodologias utilizadas para facilitar a aprendizagem, os entrevistados parecem valorizar mais as formas individuais do que as coletivas. Os resultados da pesquisa mostram que as sentenças “assistir às aulas expositivas” (63,0%) e “estudar sozinho” (40,9%) são mais valorizadas do que “fazer trabalhos em grupo” (35,4%) e “participar de oficinas e fazer projetos práticos” (26,5%).
No grupo focal, os participantes comentaram que sentem a necessidade de momentos de privacidade para estudar. Ao serem questionados sobre a possibilidade de fazerem isso em suas casas, eles afirmaram que durante a semana chegam em casa cansados e sem ânimo para estudar e que utilizam alguns fins de semana para fazerem isso sozinhos, mas isso não acontece com regularidade, já que se dedicam a atividades familiares e de lazer.
Dentre o conjunto de iniciativas curriculares das EEMTI para diversificar o currículo escolar, a oferta de componentes eletivos é uma das características marcantes. As Eletivas são componentes curriculares ofertados que visam “aprofundar e ampliar as aprendizagens em uma ou mais áreas de conhecimento e na formação profissional” (Ceará, 2023, p. 5). A oferta de tais componentes pode resultar da proposta de professores/as ou de iniciativa dos próprios estudantes, no formato de “Clubes Estudantis”. Assim, as Eletivas devem ser criadas a partir dos interesses de aprendizagem das juventudes e supõem a capacidade de escolha do estudante.
A SEDUC disponibiliza em seu site um catálogo de componentes eletivos para todas as áreas de conhecimento, e, na estrutura do Novo Ensino Médio, a oferta de Eletivas foi mantida para os estudantes de 1ª série. Na escola analisada, os estudantes fizeram cinco eletivas em cada semestre, correspondendo a uma carga horária de 10 horas/aula semanais.
Nos resultados do survey, quase metade dos estudantes entrevistados (49,7%) afirmou que nas eletivas conseguem aprender algo diferente e importante para suas vidas. Porém, quando se trata de dizer que conseguem fazer todas as eletivas em que têm interesse, o percentual é mais baixo (20,4%).
Ao abordar o assunto “Eletiva” no grupo focal, os estudantes apresentaram uma percepção ambígua desse tipo de componente, pois a satisfação ao mencionar o que aprendem nessas aulas também é seguida de falas de insatisfação quanto à limitação de vagas em determinadas eletivas, bem como à “obrigação” de realizar determinados componentes por causa da organização da gestão da escola. No grupo focal surpreendeu a expressão “fazer a eletiva por obrigação”, o que a torna um componente considerado desinteressante.
Ao indagar ao universo de estudantes da 1ª série sobre o “fazer a eletiva por obrigação”, mais da metade (68,9%) afirmou sim, seja porque não havia mais vaga em outra eletiva da sua preferência (59,9%), seja por definição da gestão da escola (9%).

É notório que esse dado lida com problemas estruturais da escola na organização do currículo escolar, mas também é importante enfatizar que isso mostra a falácia presente no discurso de institucionalização do Novo Ensino Médio, em torno do protagonismo juvenil, ao se afirmar que o estudante poderá se aprofundar na área de conhecimento que escolher porque é ele quem decide seu próprio futuro. Neste sentido, cabe analisar a relação dos estudantes com as Eletivas de forma mais aprofundada para verificar até que ponto sua proposta está sendo alcançada e quais os aspectos contraditórios.
Nas EEMTI, outros dois componentes que integram a parte diversificada do currículo do ensino médio são o Núcleo de Trabalho, Pesquisa e Práticas Sociais (NTPPS) e o Projeto Professor Diretor de Turma (PPDT). O primeiro, o NTTPS, promove oficinas e atividades orientadas de pesquisa sobre escola e família (na 1ª série), comunidade (na 2ª série) e mundo do trabalho (na 3ª série). O componente tem carga horária semanal de 4 horas/aula (160 horas/ano) e pode ser ministrado por professores de qualquer área do conhecimento. A Secretaria de Educação do Estado do Ceará (SEDUC) relaciona a finalidade do NTPPS ao desenvolvimento de competências socioemocionais, interdisciplinaridade e protagonismo juvenil.
O segundo, o PPDT, designa um professor como responsável por uma turma, para conhecer os desafios cotidianos dos estudantes e mediar suas relações com os demais membros da comunidade escolar. O professor, também de qualquer área do conhecimento, ministra para a turma na qual é PDT o componente “Formação para a Cidadania”, com carga horária de 1 hora/aula, e tem outras 3 horas/aula para atendimentos e tarefas de preenchimento de fichas. A SEDUC também associa a finalidade do projeto ao desenvolvimento de competências socioemocionais.
Considerando que os participantes do grupo focal apresentaram os dois componentes como algo que é característico da sua escola, a pesquisa procurou verificar a percepção dos estudantes quanto à contribuição do NTPPS e do PPDT para seus projetos de vida. Como mostram os gráficos abaixo (4 e 5), construídos com base na Escala Likert, na qual 1 representa pouca contribuição e 5 que contribui muito, os resultados para ambos os componentes mostram forte concentração nas respostas de níveis 3, 4 e 5 da escala.


Para os entrevistados, os componentes NTPPS e PPDT parecem ocupar parte importante do currículo escolar. Apesar disso, os estudantes demonstram insatisfação com o aumento na quantidade de componentes curriculares que precisam ser cursados no ensino médio em tempo integral. Isso reflete também os efeitos da implementação do Novo Ensino Médio que, além de fragmentar, hierarquiza os saberes, ao priorizar a oferta de Português e Matemática em detrimento de outros componentes curriculares. Por isso, tendo em vista que a escola analisada estava implementando o Novo Ensino Médio na 1ª série no ano de 2022, procurou-se também investigar no Survey a percepção dos estudantes sobre o assunto.
Nas escolas do estado do Ceará, a implementação do Novo Ensino Médio (NEM) iniciou-se de forma gradual no ano de 2022 na 1ª série do ensino médio. É importante lembrar que o NEM realizou alterações principalmente na estrutura curricular, dividindo os conhecimentos entre base comum e parte diversificada. Na base comum, os conhecimentos são ofertados na forma de disciplinas e compõem, no máximo, 60% da carga horária (1.800 horas). Com isso, a Reforma do Ensino Médio reduziu a carga horária das disciplinas básicas no currículo do ensino médio e definiu que apenas Português e Matemática seriam os únicos componentes obrigatórios nas três séries.
Na outra parte da carga horária são destinadas, no mínimo, 1.200 horas, (ou seja, pode ser ampliada) aos Itinerários Formativos formados por componentes relacionados às áreas de conhecimento (Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas) e à formação técnico-profissional.
Nas EEMTI do Ceará, na carga horária da parte diversificada são desenvolvidos os componentes NTPPS, PPTD e as Eletivas. A parte diversificada é apresentada como o espaço no qual o estudante será protagonista por escolher qual itinerário formativo quer trilhar; o problema é que as redes de ensino não são obrigadas a ofertar itinerários de todas as áreas de conhecimento.
Com relação à percepção dos estudantes sobre as mudanças que serão exigidas pelo Novo Ensino Médio, a pesquisa indagou sobre a escolha de uma área de conhecimento da formação geral básica para se aprofundar e pediu para indicar qual delas escolheriam; os entrevistados apresentaram preferência por Linguagens (43,6%), seguida de Ciências da Natureza (22,3%), Ciências Humanas e Sociais (20,1%) e, por último, Matemática (14,0%). Os resultados mostram interesse dos estudantes por todas as áreas, fato que os coloca diante de um impasse futuro, que é o da instituição não conseguir oferecer todos os itinerários formativos para aprofundamento das referidas áreas.
Os entrevistados tiveram também a possibilidade de dizer qual seria a escolha deles se tivessem que deixar de lado a área de conhecimento da formação geral básica e se dedicar ao itinerário da formação técnica profissional (que, até o momento, não é ofertado no tipo de escola aqui analisado): 29,1% responderam afirmativamente, 57,7% talvez fizessem essa escolha e apenas 13,1% responderam que não.
A formação técnica profissional se mostra como algo valorizado pelos estudantes. No grupo focal, os participantes afirmaram que muitos colegas gostariam de ir para uma escola de tempo integral profissionalizante, porém, a oferta no município é pequena, com apenas duas EEEPs, que estão situadas em outros bairros.
Com relação ao modo como enxergam a escolha de áreas de conhecimento para aprofundamento dos estudos, os estudantes se posicionaram da seguinte forma (Quadro 3), a partir das sentenças apresentadas no questionário:

Observa-se que uma parcela dos estudantes parece encontrar dificuldades para escolher, já no ensino médio, as áreas de conhecimento que definirão suas carreiras, seja por falta de maturidade, por considerar a decisão prematura ou por falta de informação a respeito das opções disponíveis. Nota-se que tais motivos podem ter levado a escolherem as opções “sou muito jovem para fazer essa escolha”, “não é fácil, preciso de mais tempo para decidir” e “prefiro conhecer um pouco sobre cada uma das possibilidades antes de escolher”, que juntas atingem um percentual de 38,6%. Outra parcela dos entrevistados a vê como uma escolha importante para o futuro (28,2%), devendo ser realizada durante o ensino médio. Outra parte se mostra bem enfática com relação ao assunto, ao considerar que “quanto mais cedo fizer a escolha, melhor” (31,5%).
Esses resultados mostram que parte dos entrevistados apresenta uma percepção convergente com a massiva propaganda ideológica sobre o Novo Ensino Médio, que também se reproduz nos discursos e nas práticas no ambiente escolar. Propaga-se a ideia de que “quanto mais cedo fizer a escolha, melhor”, ou seja, a decisão precoce por qual carreira seguir no futuro facilita o ingresso no mercado de trabalho.
Motta e Frigotto (2017) mostram que as razões ideológicas para a Reforma do Ensino Médio se contradizem quando são colocadas diante da realidade social. A reestruturação proposta para o ensino médio visa, entre suas muitas estratégias ideológicas, flexibilizar o currículo, permitindo a escolha das disciplinas em que os jovens têm menos dificuldade para, com isso, provavelmente melhorar o desempenho deles nas avaliações em larga escala. Por esse motivo, também definem como componentes obrigatórios apenas Língua Portuguesa e Matemática, pois estes são os principais conhecimentos utilizados nos instrumentos de avaliação internacional e nacional, como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) e o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB).
Desta forma, considerando os interesses por trás da Reforma do Ensino Médio e o quanto a escolha precoce da carreira pode interditar o futuro das gerações atuais e futuras, torna-se urgente compreender como são construídas as percepções dos estudantes nesses tempos de Novo Ensino Médio.
Esta pesquisa mostrou que a escola é um campo fértil de investigação sociológica que mobiliza discussões sobre políticas públicas, juventudes, trabalho e futuro profissional. Tais discussões se ampliam na medida em que adentrei os muros da escola, suas salas de aula e espaços de recreação. Na medida em que também conversei com os jovens para conhecer a pluralidade de opiniões, visões de mundo e percepções acerca da própria escola, do ensino médio e do ensino integral.
Quando o antropólogo urbano Magnani (2002), em suas pesquisas na cidade, quis conhecer o universo de sentidos, valores e comportamentos que constroem a paisagem urbana, ele utilizou a expressão “olhar de perto e de dentro” para caracterizar sua proposta de observação e se contrapor a outros enfoques, chamados de “olhar de longe e de fora”, que não dão relevância aos atores sociais responsáveis pela trama que constrói a dinâmica urbana.
Dito isso, caracterizo a abordagem utilizada neste trabalho como pesquisar a escola de perto e de dentro. Esse exercício me possibilitou identificar, descrever e refletir sobre fatores muitas vezes não contemplados nas pesquisas sociais. O fazer pesquisa de perto e de dentro me permitiu mergulhar nos sentidos, significados e códigos compartilhados pelo universo investigado.
É preciso reconhecer que o modo como a escola foi concebida no interior da reflexão sociológica variou ao longo do tempo entre abordagens da escola por uma via não-escolar e abordagens mais próximas do estritamente escolar (Sposito, 2003). Tais dimensões não são necessariamente cronológicas nem excludentes. Enquanto o primeiro tipo de abordagem toma a escola como “categoria analítica”, analisando-a em suas funções socializadoras, seu papel na reprodução da ordem social dominante ou, até mesmo, o lugar atribuído à educação nos processos de mudança da sociedade brasileira, o segundo tipo toma a escola como “unidade empírica”, dando mais ênfase a situações microssociais, à sociabilidade interna, às rotinas, práticas e expectativas dos diversos agentes da comunidade escolar.
Gonçalves e Lima Filho (2014), sem deixar de reconhecer a grande importância das reflexões produzidas ao longo das últimas décadas na área da Sociologia da Educação no Brasil, insistem na pouca presença de reflexões sobre a escola e a vivência escolar. Para os autores, a vivência escolar, entendida pelas relações cotidianas, conflitos internos e a sociabilidade entre os diversos agentes, ocupa um papel secundário na literatura sociológica no País. Lima Filho (2014, p. 104) reforça que
[...] os estudos sobre a Escola nas últimas décadas não privilegiam as relações sociais, as redes de sociabilidades, que existem dentro dos muros das unidades institucionais de educação. [...] porém, por muito tempo se privilegiou a análise do processo educativo ou da própria escola a partir de enfoques estruturalistas, por meio, sobretudo, das políticas educacionais e seus componentes ideológicos. [...] a Sociologia (pelo menos no Brasil) parece ter dificuldade em ver a escola como espaço fundamental de socialização e de sociabilidade.
Para Gonçalves e Lima Filho (2014), o distanciamento entre a Universidade e a Escola ao longo do tempo, somado à ausência da disciplina no currículo obrigatório da educação básica, contribuíram para que a escola enquanto espaço social não se consolidasse como uma abordagem tradicional na Sociologia brasileira.
Considerando que a proposta do Programa PIBIC/EM é a aproximação entre a universidade e a escola, bem como a inserção do estudante do ensino médio na prática científica, os procedimentos metodológicos e as reflexões derivadas da análise dos dados foram fecundos para a aprendizagem dos bolsistas que integraram o Programa.
Com relação às técnicas de pesquisa empregadas, cabe mencionar que, em todo processo de pesquisa, é preciso saber não só o que perguntar, mas também como perguntar, de modo que faça sentido para os interlocutores; portanto, a realização do grupo focal antes da definição das perguntas do survey foi fundamental para utilizar uma linguagem acessível para os entrevistados. É claro que o exercício de pesquisa é um constante aprendizado, pois ao analisar os resultados é possível dar-se conta de que outros cuidados deveriam ter sido tomados, como na utilização de termos e também na inserção de outras opções que possibilitassem relacionar melhor as informações. Isso significa que o instrumento de coleta de dados utilizado pode ser aperfeiçoado para levantamentos futuros.
Neste estudo de caso, notou-se que o ensino médio é uma etapa complexa, controversa e, muitas vezes, capturada por interesses de governos que desejam utilizá-lo como manobra para reproduzir sua visão de mundo. Para muitos jovens, o sentido da escolarização no ensino médio está relacionado à expectativa do que a sua conclusão pode proporcionar, seja um emprego futuro ou o ingresso na universidade. Nesse contexto, a sociabilidade com outros jovens se mostra como um forte fator para garantir a permanência dos estudantes na escola.
A vivência na escola de ensino integral não está isenta de contrariedades. Mesmo aqueles estudantes que se consideram adaptados à nova jornada escolar mostram os efeitos negativos de passar o dia inteiro na escola. Além disso, os jovens apresentam a necessidade de diversificação dos tipos de atividades ofertadas na escola e se mostram insatisfeitos quando dizem que terão a possibilidade de escolher, mas logo em seguida retiram essa opção, levando-os a cursar alguns componentes por obrigação, como no caso das Eletivas.
A pesquisa sobre a percepção dos estudantes em ensino integral no contexto de implementação do Novo Ensino Médio levanta questões que precisam de mais tempo para serem discutidas: a ampliação do tempo escolar e a formação técnica representam efetivamente uma formação integral? Mais tempo na escola é sinônimo de qualidade no ensino e de mais oportunidades após a conclusão do ensino médio? Quais as relações entre a escolha precoce de qual carreira seguir no futuro e o ingresso no mundo do trabalho?
Por fim, ressalto que este texto foi finalizado em um contexto diferente daquele de realização da pesquisa; o período recente é de revisão da política nacional do ensino médio, após Consulta Pública instituída pela Portaria nº 399, de 8 de março de 2023 (Brasil, 2023), do Ministério de Educação. Cabe-nos continuar observando qual projeto de sociedade será instituído com a anunciada reestruturação do ensino médio.







