RESENHAS
| PROZOROV Sergei. Biopolitics after truth: knowledge, power and democratic life. 2021. Edinburgh. Edinburgh University Press |
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Received: 13 October 2023
Revised document received: 13 December 2023
Accepted: 31 January 2024
A obra Biopolitics after Truth: Knowledge, Power and Democratic Life (Prozorov, 2021), de Sergei Prozorov, marca um momento notável na literatura acadêmica sobre biopolítica e pós-verdade. Sua importância é ressaltada não somente pela amplitude de sua avaliação, mas especialmente pela relevância de seu assunto em um globo cada vez mais separado e inundado por informações inexatas. Nesta leitura, Prozorov inicia lançando o cenário para a discussão subsequente, abordando o conceito de biopolítica na compreensão de Michel Foucault. Ele faz uma exaustiva busca bibliográfica, repassando obras prévias que investigaram o tema, como o Routledge Handbook of Biopolitics de Thomas Lemke (2016) e o Democratic Biopolitics: Popular Sovereignty and the Power of Life de Paul Rabinow e Nikolas Rose (2006). Tal busca serve como um sólido fundamento para a argumentação desenvolvida nos capítulos seguintes.
O primeiro capítulo da obra de Sergei Prozorov, intitulado “O Regime de Equivalência”, oferece uma investigação meticulosa e perspicaz da complexa relação entre verdade e poder na paisagem política contemporânea. Prozorov (2021) postula que a verdade, em diversos contextos políticos atuais, foi transmutada em uma espécie de capital simbólico. Essa transmutação tornou a verdade algo facilmente manipulável e, frequentemente, utilizado como um instrumento para legitimar o poder estabelecido. Neste âmbito, tal transmutação tornou a verdade algo facilmente manipulável e, frequentemente, utilizado como um instrumento para legitimar o poder estabelecido. Prozorov incorpora assim percepções acerca da obra de Hannah Arendt (2018), mais expressamente no seu tratado sobre a “mentira na política”. Arendt (2018) aborda a ideia de que a mentira é um recurso político útil para a modelagem da verdade e, por conseguinte, do controle. Prozorov utiliza o conceito de Arendt para ilustrar como a verdade, em sua forma atual, tornou-se uma “mercadoria” política, sujeita às mesmas forças de oferta e demanda que regem outros tipos de capital. A comparação com Arendt serve não apenas para validar o argumento de Prozorov, mas também para expandir nossa compreensão sobre a maleabilidade da verdade na política moderna.
Ao estabelecer essa ligação, Prozorov e Arendt descobrem que a verdade é uma realidade socialmente construída e politicamente manipulada por aqueles que detêm o domínio de determinadas posições, conexões e recursos. Isto nos impulsiona a considerar o que significa a verdade e como é explorada e/ou abusada na nossa cultura moderna. A comparação elaborada entre os dois autores intensifica consideravelmente a discussão sobre a verdade e o poder, dando a este capítulo uma importância ímpar na obra de Prozorov.
No segundo capítulo, “Do Sujeito à Verdade”, Sergei Prozorov descreve a complexa interação entre a subjetividade dos sujeitos e o que é considerado “verdadeiro” quando se explora um universo de pós-verdade (Prozorov, 2021). Ele propõe que a veracidade não é apenas uma entidade abstrata, mas, antes, tornou-se um vértice com efeito interno poderoso para moldar os indivíduos em seu dia a dia, um artifício com peso relativo a controles sociais e políticos. Para apoiar esse olhar, o autor recorreu a contribuições de diferentes especialistas, incluindo Judith Butler (2009) e Slavoj Žižek (1989).
Nesse contexto, em sua obra magistral Frames of War: When Is Life Grievable?, Butler (2009) discute de maneira pormenorizada de que modo as estruturas de poder agem como um tipo de entidade discriminadora, determinando objetivamente quais vidas são dignas de luto e, por extensão, quais verdades são dignas de serem ditas. Prozorov utiliza essa perspectiva para examinar como a verdade é seletivamente aplicada em diferentes contextos sociais. Alternativamente, Žižek (1989), em The Sublime Object of Ideology, examina a noção de que a ideologia funciona como uma “lente” através da qual a verdade é compreendida (e apreendida). Prozorov sintetiza esta perspectiva para examinar como a verdade é construída e desconstruída, dependendo das lentes ideológicas através das quais se fazem as observações. A intertextualidade com Butler e Žižek enriquece a argumentação de Prozorov, fornecendo uma base teórica robusta para sua análise.
O terceiro capítulo da obra, intitulado “A Russificação do Ocidente”, é uma análise fascinante que aborda a influência da política russa na compreensão ocidental da verdade. Prozorov (2021) postula que a abordagem russa à verdade é fundamentalmente diferente da abordagem ocidental, mas, apesar de tal diferença, tem se assistido a um tipo de “russificação” da verdade na esfera política ocidental. Prozorov explora essa ideia através do conceito de “hibridização”, que se define como uma mistura complexa de estratégias políticas e discursivas que servem para obscurecer as fronteiras entre verdade e falsidade (Prozorov, 2021). Esta hibridização não apenas desafia as noções convencionais de verdade, mas também questiona a própria estrutura do discurso político ocidental. O autor sugere que essa russificação está remodelando os cenários políticos, tornando as fronteiras entre verdade e mentira cada vez mais tênues e, por extensão, complicando a tarefa de discernir a realidade em um mundo já saturado de desinformação.
É crucial destacar que Biopolitics after Truth de Sergei Prozorov não é uma obra isolada; ela faz parte de um corpus mais amplo de trabalhos do autor que se debruçam sobre a biopolítica. Essa contextualização é vital para entender a profundidade e a continuidade do pensamento de Prozorov sobre o tema. Além disso, a obra faz um diálogo intertextual com outros textos significativos na área, como The Collective Benefit of Independent Action: Universal Similarities Connect Humanity’s Subjective Nature de Philip Ball (2019). Ambas as obras convergem na compreensão de que a verdade não é uma entidade estática, mas uma construção (dinâmica) social e política. Argumenta-se que a verdade é maleável e sujeita a manipulações e interpretações variadas, dependendo do contexto social e político em que é inserida. Esta interconexão entre as obras amplia a discussão sobre como a verdade é percebida e utilizada, fornecendo uma visão mais holística e interdisciplinar sobre o tema.
Nessa esteira, pode-se novamente recorrer ao pensamento de Arendt (1958), para o qual a condição humana é intrinsecamente política e verdade e poder são conceitos intimamente ligados à nossa existência coletiva. Ela afirma que a verdade não é apenas uma questão de correspondência com a realidade, mas também um fenômeno (social) que tem em sua dinâmica, de forma regular, diferentes agentes negociando e reinterpretando as propriedades da verdade (e as formas das estruturas de poder). O ponto de vista de Arendt fornece uma camada extra de complexidade ao exame de Prozorov, particularmente no que diz respeito à flexibilidade de como a verdade se apresenta (e se configura) no ambiente político. A obra de Arendt funciona como um contraponto intrigante, reforçando a noção de que a verdade é uma construção social e política, sujeita, desta forma, a manipulações e interpretações variadas, relacionadas em alguma proporção ao contexto circundante.
O quarto capítulo da obra de Sergei Prozorov é uma análise perspicaz sobre a fragilidade da democracia em uma era em que a verdade se tornou cada vez mais relativa e maleável (Prozorov, 2021). O autor postula que a democracia, tal como a compreendemos tradicionalmente, está em perigo iminente devido à erosão da verdade objetiva, que historicamente serviu como um pilar para o funcionamento democrático. Ele vai além e sugere que a solução para este dilema pode residir em uma redefinição radical do conceito de democracia.
Sergei Prozorov formula uma abordagem de democracia que ultrapassa as estruturas convencionais e autoritárias, sugerindo uma solução mais inclusiva e flexível. Ele contesta a ideia de que a democracia necessita estar associada a uma única narrativa de verdade, salientando que tal rigidez expõe o sistema político a fraudes e distorções da verdade. Em vez disso, sustenta uma democracia que seja resiliente e possa acolher pluralidade de visões e realidades, permitindo uma coexistência pacífica entre diferentes grupos e crenças. Nessa esteira, o trabalho de Simon Tormey (2015)The End of Representative Politics apresenta uma afinidade curiosa à postura de Prozorov. Tormey esquadrinha a temática da democracia, mas se concentra na suposta decadência do modelo representativo em um mundo cada vez mais multifacetado e descentralizado. Ele aduz que a democracia representativa, com suas reestruturações duras e operações burocráticas, tem se tornado progressivamente ineficaz para lidar com os embaraços e complexidades do mundo moderno. Dessa forma, sugere alternativas de democracias mais interativas e compressivas, que estimulem maior agência por parte dos indivíduos e um conformismo mais próximo a suas diversas identidades e interesses.
Desta forma, os dois autores postulam que os princípios da democracia devem ser retomados à luz dos percalços e desafios do mundo atual, nomeadamente nos tempos de “pós-verdade” em que a manipulação de dados é uma preocupação recorrente. Eles propõem visões contíguas que, acopladas, mostram o caminho para um sistema político mais abrangente, inclusivo e adaptável, capaz de gerir com eficácia as complexidades do século XXI.
O trabalho de Sergei Prozorov provou ser um marco notável na literatura acadêmica sobre biopolítica e pós-verdade, oferecendo uma contribuição inestimável ao campo. Além da profundidade da análise, o livro se destaca pela atualidade, tendo em vista o panorama de um mundo cada vez mais dividido e inundado de desinformação. Logo na introdução, Prozorov estabelece o cenário para a discussão subsequente, abordando o conceito de biopolítica conforme definido por Michel Foucault (2008a, 2008b) em suas concepções sobre biopoder, dominação política e sociedade disciplinar.
Ademais, a obra de Prozorov se sobressai especificamente por abarcar a intersecção escabrosa entre realidade, poder e democracia, questões que de forma direta se revelam urgentes na era contemporânea, considerando em especial o amplo impacto que essas variáveis e, mais especificamente, a relação entre elas exercem na constituição dos cenários do presente (e ainda mais no futuro). A análise proporciona um poderoso aporte que serve como ponto de partida para avançar nas pesquisas e debates acadêmicos sobre estes temas inadiáveis, trazendo uma clareza sem igual para tais questões. A contribuição de Prozorov vai além das classificações literárias, já que, de maneira ousada, propõe-se descobrir novas abordagens e perspectivas para refletir sobre a biopolítica em um universo de pós-realidade.
Esta obra revela-se um destacado achado, mostrando sua notável aptidão para associar diversas ideias e técnicas num arcabouço consistente e claro. Todo esse mosaico é extremamente útil nos estudos interdisciplinares, assim como é essencial para compreender a arte implicada na formulação e interpretação de políticas públicas. Seu vigor e extensão testam os atuais postulados, incentivando o leitor a repensar os conceitos já estabelecidos, revisar seus dogmas e, principalmente, abordar o poder vigente e suas conexões com absoluta meticulosidade e discernimento. Destarte, este trabalho se destaca como uma preciosa ferramenta, o que não só é benéfico a alunos e profissionais nortistas, como também em especial a todos os do “Sul Global” para desvendar as tenebrosas dinâmicas que dirigem e limitam as nossas sociedades contemporâneas.
A análise deste contexto é significativa diante da realidade atual da América do Sul, onde Jair Bolsonaro e Javier Milei — populistas neoconservadores — se estabeleceram como líderes da extrema-direita, sendo sua ascensão caracterizada por um fraco compromisso com os padrões democráticos. É notável que o aumento desta visão política está intimamente ligado a um plano sutil e propositado de disseminação de informações falsas, que age tanto como gatilho quanto como coautor desse movimento político. Logo, a desinformação emerge como um elemento central na origem e manutenção da evolução da extrema-direita – um diagnóstico relevante para se compreender as dinâmicas políticas atuais.
Referências
ARENDT, Hannah. The human condition. Chicago: University of Chicago Press, 1958.
ARENDT, Hannah. A mentira na política. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
BALL, Philip. The collective benefit of independent action: universal similarities connect humanity’s subjective nature. Oxford: Oxford University Press, 2019.
BUTLER, Judith. Frames of war: when is life grievable?. London: Verso, 2009.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008a.
FOUCAULT, Michel. The birth of biopolitics. London: Palgrave Macmillan, 2008b.
LEMKE, Thomas (ed.). The Routledge handbook of biopolitics. London: Routledge, 2016.
PROZOROV, Sergei. Biopolitics after truth: knowledge, power and democratic life. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2021.
RABINOW, Paul; ROSE, Nikolas. Democratic biopolitics: popular sovereignty and the power of life. Nova York: Zone Books, 2006.
TORMEY, Simon. The end of representative politics. Cambridge: Polity Press, 2015.
ŽIŽEK, Slavoj. The sublime object of ideology. London: Verso, 1989.
Author notes