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Provincializando a Sociedade de Risco: uma Análise a partir da “Geopolítica da Nuclearidade”
Provincializing Risk Society: An Analysis Based on the “Geopolitics of Nuclearity”
Mediações - Revista de Ciências Sociais, vol. 29, no. 2, e50038, 2024
Universidade Estadual de Londrina

DOSSIÊ – Hegemonia Cibernética, Tecnoextrativismo e Colonialidade


Received: 12 March 2024

Accepted: 25 May 2024

Published: 16 August 2024

DOI: https://doi.org/10.5433/2176-6665.2024v29n2e50038

Resumo: O objetivo deste trabalho é questionar o caráter genérico de algumas concepções em torno da “sociedade de risco”. Para isso, apresentamos dados de uma pesquisa baseada em entrevistas semiestruturadas sobre a mineração de urânio em Caetité (BA). Argumentamos que o universalismo presente nas teorizações sobre riscos ambientais é decorrente de um viés eurocentrado que desconsidera situações de injustiças ambientais e a especificidade de contextos periféricos. Fundamentamos nosso posicionamento a partir do que denominamos “geopolítica da nuclearidade”, processo através do qual são obliterados os riscos de atividades nucleares e, consequentemente, ignoradas as vulnerabilidades de populações marginalizadas. Concluímos, então, que são necessárias perspectivas sensíveis à desigual distribuição de riscos entre centros e periferias, de forma a provincializar as teorizações sobre riscos ambientais.

Palavras-chave: Sociedade de risco, nuclearidade, mineração de urânio.

Abstract: The aim of this paper is to critically analyze the concept of “risk society”. To this end, we present data from semi-structured interviews about uranium mining in Caetité (BA). We argue that the universalism of theories on environmental risks is associated with a eurocentric bias that disregards situations of environmental injustice and the specificity of peripheral contexts. We build our argument on what we call the “geopolitics of nuclearity”, a process through which the risks of nuclear activities are obliterated and, therefore, the vulnerabilities of the marginalized populations are ignored. We conclude, then, that there is a need for perspectives that are sensitive to the unequal distribution of risks between centers and peripheries, in order to provincialize theorizing on environmental risks.

Keywords: Risk society, nuclearity, uranium mining.

Introdução2

A visão otimista de que a tecnociência, por si só, e independentemente de interferências sociais e políticas, seria capaz de conduzir as sociedades humanas ao desenvolvimento e ao progresso esteve presente com solidez no pensamento moderno ocidental pelo menos desde a emergência do capitalismo industrial até meados do século XX (Marx; Smith, 1994; Smith, 1994). Com um teor que poderíamos denominar como “tecnoentusiasta” (Paula, 2020), essa perspectiva oblitera os efeitos prejudiciais dos avanços tecnocientíficos, como a degradação ambiental, para citar apenas um exemplo. Contudo, há algumas décadas, pelo menos desde os anos 1980, essa visão tem sido problematizada por certas vertentes das Ciências Sociais e pelos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT). Sem deixar de reconhecer as benesses proporcionadas pela ciência e tecnologia, essas abordagens críticas evidenciam, todavia, os efeitos colaterais indesejados produzidos pelas práticas tecnocientíficas. Esse seria o caso da proliferação de riscos e da onipresença das intervenções antrópicas sobre o meio ambiente, fenômenos que podem ser analisados através da noção de “sociedade de risco” (Beck, 2011). Levar a sério esses efeitos envolve, de algum modo, reconhecer que as expectativas de melhorias trazidas pela modernidade e pela tecnociência embutem, também, adversidades produzidas pela própria modernidade. Daí a proposição de uma “modernização reflexiva” (Beck, 1997) capaz de reavaliar criticamente a modernidade e suas promessas.

Neste artigo, valemo-nos criticamente dessa literatura – sobre a sociedade de risco e a modernização reflexiva – a fim de problematizar o processo de distribuição desigual de riscos ambientais ao redor do globo que resulta em situações de injustiças ambientais (Porto, 2007). Especificamente, abordamos o que, na esteira de Gabrielle Hecht (2012a, 2012b), entendemos como “geopolítica da nuclearidade”, ou seja, os modos de construção da periculosidade (ou de sua ausência) de cada atividade do setor nuclear a depender do local de sua realização. Por exemplo, em países pobres, a extração e o beneficiamento de urânio tendem a ser considerados menos “nucleares” e, portanto, menos perigosos que a utilização do urânio enriquecido em usinas efetivamente consideradas “nucleares”, algo que ocorre, em geral, em países ricos. Esse processo aumenta a vulnerabilidade das populações de regiões periféricas, que estariam expostas a práticas “menos nucleares” e, logo, menos dignas de preocupação, ao mesmo tempo que potencializa a segurança dos cidadãos dos países centrais, onde se dão as atividades tidas como verdadeiramente “nucleares” que requerem precauções.

A esse respeito, apresentamos dados empíricos de uma pesquisa realizada em Caetité, pequeno município do sudoeste baiano onde atualmente estão em atividade a mineração e o beneficiamento de urânio, sob responsabilidade da estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB). Desde que foram iniciadas, em 2000, as atividades de mineração e beneficiamento de urânio realizadas pela INB têm suscitado variadas questões quanto às condições ambientais e de saúde pública na região. Inúmeras são as denúncias de contaminações, seja do solo, do ar e principalmente da água (Lisboa; Zagallo; Mello, 2011; Correa, 2008). Além disso, o adoecimento da população local por câncer é motivo constante de preocupação (Borges, 2015a). Diante desse cenário, a INB trata recorrentemente de naturalizar os riscos de suas atividades, quer dizer, de argumentar que as contaminações, bem como as ameaças à saúde delas derivadas, decorrem da presença natural do urânio no ambiente (Lisboa; Zagallo; Mello, 2011, p. 29; Silva, 2015, p. 95-96). Ao fazê-lo, a empresa leva a cabo um processo emblemático de “desnuclearização” de suas atividades. Os movimentos sociais, por sua vez, reagem e tentam demonstrar que os riscos ambientais e à saúde são produzidos pela mineração e pelo beneficiamento de urânio, ou seja, buscam “nuclearizar” o que é feito pela INB. A nuclearidade ou não dessas atividades, portanto, é um ponto central nesse debate. Como demonstramos neste artigo, algo semelhante ocorre nas minas de urânio do Níger, do Gabão e da Namíbia, que são igualmente desnuclearizadas (Hecht, 2012a, 2012b), ou nas práticas de “colonialismo nuclear” (Hsu, 2014), que deliberadamente expõem regiões e populações periferizadas a contaminações nucleares produzidas por exercícios militares.

Argumentamos, a partir disso, que, embora sejam de incontestável relevância, as teorizações sobre a sociedade de risco e a reflexividade são insuficientes para dar conta dos processos de distribuição desigual de riscos ao redor do globo, típicos de injustiças ambientais. Assim, além de questionarmos o caráter eurocentrado e provincializado de uma discussão que se pretende universal, que é aquela sobre a sociedade de risco, propomos, como alternativa, uma reflexividade sobre a reflexividade. Acreditamos, então, que a experiência de Caetité, contexto periférico estrategicamente desnuclearizado, pode servir de suporte empírico não só para a análise de um caso de injustiça ambiental, mas também para a sugestão de problematizações diante de uma teorização que se tornou canônica nas Ciências Sociais, como o pensamento beckiano e as conceituações sobre a sociedade de risco.

Da Sociedade de Classes à Sociedade de Risco?

A teorização de Ulrich Beck em torno da sociedade de risco é um importante recurso analítico para a compreensão das controvérsias e da banalização de desastres associados à tecnociência. O autor parte da constatação de uma contradição: o desenvolvimento econômico e social do centro do capitalismo mundial é indissociável da disseminação de riscos “científico-tecnologicamente produzidos” (Beck, 2011, p. 23). Sobretudo nos países que vivenciaram a radicalização da modernização industrial, acompanhada do desenvolvimento da ciência e tecnologia, os riscos tornam-se inexoráveis e constitutivos da experiência social (ao invés de serem tomados como efeitos colaterais contornáveis). Beck entende os riscos como deliberadamente fabricados, mas invisíveis – o que requer que sejam cognitivamente traduzidos e socialmente construídos para serem percebidos (Costa, 2004, p. 76) –, incertos, incontroláveis, por vezes irreversíveis e globais (Bosco; Ferreira, 2016, p. 236; Guivant, 1998, p. 18). Diante disso, Beck postula a passagem da sociedade de classes, típica do capitalismo industrial e hierarquicamente organizada, para a sociedade de riscos, mais democrática na medida em que contaminações, poluições e riscos atingem a todos, indiscriminadamente, em escala global (Guivant, 1998, p. 17-18).

Uma vez vencida a condição de escassez material nos “Estados de Bem-Estar Social altamente desenvolvidos do Ocidente” (Beck, 2011, p. 24), alcançou-se um contexto de opulência que, embora tenha superado parte das desigualdades socioeconômicas, é constantemente permeado por ameaças destrutivas, ou seja, a industrialização embute em si, como elemento intrínseco, a produção de riscos. Como paradoxalmente alguns pilares fundamentais da modernidade ocidental (como a racionalidade instrumental, a tecnociência e a produção industrial) revelam-se limitadores da modernização, a crença no progresso tecnocientífico perde espaço para uma crescente autocrítica social que faz com que a modernidade reflexivamente pense a si mesma (Beck, 1997). Daí o diagnóstico beckiano da transição de uma primeira forma de modernidade, industrial, para uma segunda, de risco e reflexiva. Se num primeiro momento a modernidade surge como uma crítica à tradição, os avanços nos processos de modernização conduzem a questionamentos direcionados à própria modernidade (Costa, 2004, p. 75-78). Logo, não é possível atribuir a causas exógenas, como o acaso ou a vontade divina, certa desintegração da modernidade através da disseminação dos riscos, já que eles são intencionalmente fabricados pela própria agência social, através de instituições como a ciência, o mercado e os governos (Bosco; Ferreira, 2016, p. 26). Nesse processo, também a ciência passa por reconfigurações, já que deixa de ser formatada como uma “ciência simples”, pretensamente infalível e segura, para tornar-se uma “ciência reflexiva”, autoconsciente de seus efeitos indesejados, de suas limitações e insuficiências (Costa, 2004, p. 78).

Com a modernidade tardia, questões de classe seriam paulatinamente substituídas pelos debates acerca do risco. Embora não desconsidere que os riscos acometem desigualmente ricos e pobres, e que são capazes inclusive de reforçar desigualdades preexistentes, o pensamento de Beck sustenta que “os riscos não reafirmam as sociedades de classes, atingem a todos indiscriminadamente e representam, dessa forma, evidência inconteste da interdependência irredutível entre os diversos grupos e processos sociais” (Costa, 2004, p. 75). Nos termos do próprio Beck, com os avanços nas dinâmicas de modernização, houve uma sucessão de uma sociedade “que distribui riquezas” para uma sociedade “que distribui riscos”. Aliás, para o autor, os riscos assumem, na contemporaneidade, novos contornos: se antes eram estritamente pessoais, hoje operam enquanto “situações de ameaça global, como as que surgem para toda a humanidade com a fissão nuclear ou com o acúmulo de lixo nuclear” (Beck, 2011, p. 25). Beck acrescenta também que “ainda não vivemos numa sociedade de risco, mas tampouco somente em meio a conflitos distributivos das sociedades de escassez” (Beck, 2011, p. 25). Cabe indagar se o “nós” que enuncia tal diagnóstico engloba a humanidade como um todo ou se restringe aos habitantes das nações que assistiram à consolidação dos Estados de Bem-Estar Social “altamente desenvolvidos”, para evocar mais uma vez os termos do sociólogo3.

***

Mais do que um efeito adverso ou algo de ordem indesejada, a permanência de substâncias tóxicas no ambiente é central e indissociável do capitalismo e da necessidade quase incontornável de aceleração do crescimento econômico. Na medida em que é mal distribuída e afeta sobremaneira populações vulneráveis (Ureta, 2020), a contaminação contribui para a reprodução de uma estrutura estratificada em termos de classe, gênero e raça, o que se relaciona a processos de “racismo ambiental” (Ottinger; Barandiarán; Kimura, 2017, p. 1031) e de “injustiça ambiental”, conceituada por Porto (2007, p. 59) enquanto um “mecanismo pelo qual sociedades desiguais [...] destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos sociais discriminados, aos povos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis”. Assim, países pobres e regiões periféricas tendem a ser especialmente prejudicados com o ônus do desenvolvimento tecnocientífico, como a poluição, o que reforça a atual estrutura da geopolítica global. Nesse sentido, a sociedade de risco não supera, mas reforça a sociedade de classes capitalista. Poderíamos dizer que numa estrutura colonialista, racista, classista e patriarcal, arranjos sociotécnicos se configuram de forma a direcionar seus efeitos colaterais (como a poluição, os acidentes de trabalho, os riscos, a contaminação, o adoecimento em massa) a minorias raciais, de classe, de gênero e principalmente localizadas em regiões periféricas. Logo, não haveria, como argumenta Beck, uma paulatina substituição da sociedade de classes pela sociedade de riscos, dada a universalidade do alcance dos riscos. Pelo contrário, a sociedade de risco pode operar em perfeita conformidade com a sociedade de classes, distribuindo riscos de acordo com a estratificação social. É por essa razão que, ao invés de disfuncionais, a contaminação crônica e a dinâmica dos desastres lentos podem ser funcionais e compatíveis com o capitalismo, o racismo, o patriarcado e o colonialismo. Seria possível radicalizar a crítica e argumentar, conforme Tara Jones, citada por Alan Irwin (1998), que a discussão sobre riscos esconde o que realmente interessa, que são as questões de classe:

Não há nada natural no facto de aqueles que enfrentam os riscos imediatos da produção química serem geralmente pobres, operários e marginais. Os executivos químicos não vivem geralmente junto de suas fábricas... O risco pode ser visto como uma mistificação que tenta esconder a realidade do risco como relação de classe, outro exemplo do poder do capital sobre as nossas vidas

(Jones apudIrwin, 1998, p. 54).

Não se trata de negar que a produção de riscos decorrente do intenso desenvolvimento de sociedades industriais tem causas e alcances globais. No entanto, esse caráter global dos riscos e desastres passa por processos de estratificação e, sobretudo, provincialização, isto é, cada vez mais os riscos são limitados ou atingem em maior proporção classes particulares, além de se circunscreverem a fronteiras nacionais ou regionais específicas. Por essa razão, é preciso ponderar que o colapso ambiental não deve ser atribuído a uma “humanidade” indiferenciada, já que tanto as responsabilidades quanto as vulnerabilidades associadas a esses desastres são desigualmente distribuídas (Hecht, 2018). O próprio Beck reconhece que há uma afinidade entre pobreza extrema e riscos extremos, pois indústrias de alto risco deliberadamente se transferem para países pobres em busca de mão de obra barata, de processos de regulamentação e segurança mais frouxos, bem como de trabalhadores desinformados que se submetem a situações degradantes de trabalho (Beck, 2011, p. 49-51).

A esse respeito, todavia, a argumentação do autor é oscilante, pois, por um lado, Beck reconhece que “os riscos produzem novos desníveis internacionais, de um lado entre o Terceiro Mundo e os países industriais, de outro lado entre os próprios países industriais” (Beck, 2011, p. 27). Também admite indiretamente que pode haver uma sobreposição de classe e de risco quando “o proletariado da sociedade do risco mundial instala-se ao pé das chaminés, ao lado das refinarias e indústrias químicas, nos centros industriais do Terceiro Mundo” (Beck, 2011, p. 49). De modo semelhante, o autor pondera ainda que os riscos “parecem reforçar, e não revogar, a sociedade de classes” (Beck, 2011, p. 41). Isso se deve não ao fato de que os riscos acometem com mais brutalidade a população pobre do que as camadas ricas (pelo contrário, para Beck os riscos tendem a transcender o esquema de classes), mas à constatação de que os setores com maior renda, poder e educação podem “comprar segurança e liberdade em relação aos riscos”: por exemplo, conseguem trabalhos dignos, morar em locais não contaminados ou poluídos, além de comer alimentos limpos. Por outro lado, ainda que identifique esses elementos de estratificação da distribuição dos riscos em termos globais e de classe, Beck afirma que os mesmos “produzem, dentro de seu raio de alcance e entre as pessoas por eles afetadas, um efeito equalizador”, capaz de relativizar “diferenças e fronteiras sociais”. Conclui-se, daí, que “sociedades de riscos simplesmente não são sociedades de classes” e que, por carregarem uma “tendência imanente à globalização”, elas rompem fronteiras e são caracterizadas por um universalismo das ameaças (Beck, 2011, p. 43).

É preciso, contudo, evitar uma concepção genérica e abstrata sobre a sociedade de risco para que a discussão não seja despolitizada, alheia às disparidades de poder e às desigualdades que permeiam as relações globais entre as nações4. Ciente dessas especificidades, parte da literatura sobre desastres e injustiça ambiental enfatiza exatamente a distribuição desigual de riscos e vulnerabilidades decorrentes de atividades tecnocientíficas (Fortun; Choi; Jobin, 2017, p. 1015; Ottinger; Barandiarán; Kimura, 2017, p. 1031). Nessa mesma linha, Marcelo Porto (2007, p. 36) aponta que talvez mais pertinente do que uma abordagem técnica dos riscos e de seus efeitos seja a identificação, através de uma perspectiva integradora e contextualizada, dos processos através dos quais são produzidas vulnerabilidades. Isso porque “riscos em contextos vulneráveis decorrem de discriminações e desigualdades sociais, e são, portanto, uma questão de (in)justiça ambiental” (Porto, 2007, p. 35). Esses contextos contribuem, assim, para a constituição de “ciclos viciosos de geração-exposição-efeitos” de riscos que dificultam, inclusive, a atuação adequada de instituições encarregadas de regular, fiscalizar e mitigar a destruição ambiental, principalmente quando ela é direcionada a determinados grupos e territórios. No caso da América Latina, da África e da Ásia, em grande parte a condição de vulnerabilidade dessas regiões decorre do fato de serem exportadoras de commodities, o que evidencia que sua posição geopolítica na divisão internacional do trabalho coincide com seu lugar desfavorável na estrutura estratificada de distribuição dos riscos (Porto, 2007, p. 61-62).

Há inúmeros exemplos, a começar pelas empresas europeias, entre elas a Bayer e Syngenta, que comercializam no Brasil venenos banidos na União Europeia, como a atrazina e o acefato, de forma a direcionar os riscos ambientais e de saúde pública associados à utilização e à ingestão de agrotóxicos ao território, aos trabalhadores e consumidores brasileiros (Brito, 2018). É ilustrativa a prática de exercícios militares e testes de armas nucleares, sob responsabilidade de grandes potências, como os EUA, fora de zonas oficialmente em guerra, em territórios afastados, de nações pobres. Tal prática, denominada “colonialismo nuclear” (Hsu, 2014), ocorreu de forma especialmente ignóbil em ilhas do Pacífico na região da Oceania, onde as Forças Armadas estadunidenses realizaram, entre 1946 e 1996, centenas de detonações nucleares que deixaram inúmeras ilhas inabitáveis. O Atol de Bikini, nas Ilhas Marshall, foi singularmente afetado, já que ali sucederam inúmeras doenças, transtornos congênitos e migrações forçadas. Esse histórico levou a Comissão de Energia Atômica estadunidense a declarar, em 1956, as Ilhas Marshall como “de longe, o lugar mais contaminado do mundo” (Nixon, 2011, p. 7). Além desses testes, os EUA são acusados de deliberadamente expor ambientes e populações à radiação a fim de conduzir experimentos científicos (Hsu, 2014; Hecht, 2019). É também emblemática a situação de populações indígenas cujas terras se situam próximo a minas de urânio do sudoeste estadunidense. Em meados do século XX, essas regiões são tomadas como “laboratórios” para pesquisas feitas pelo governo norte-americano com trabalhadores das minas e moradores de áreas contaminadas, o que desencadeia, sobretudo nas populações tradicionais, uma série de doenças como câncer, problemas de tireoide e enfermidades congênitas (Hsu, 2014).

Ao invés da gestão cuidadosa e eficiente da vida do homem-espécie, sintetizada pela máxima “fazer viver e deixar morrer” (Pelbart, 2011, p. 55), tal como a experiência ocidental moderna dos países desenvolvidos que levou Michel Foucault (2008) a elaborar o conceito de “biopolítica”, os recursos tecnocientíficos entram em cena, na periferia, de forma a reforçar a vulnerabilidade e a potencializar a morte de populações inteiras. Desse modo, a contaminação crônica e os “desastres lentos” acometem principalmente populações pobres (Nixon, 2011, p. 4) e espaços periféricos, as zonas de sacrifício em que proliferam vidas descartáveis, não choráveis e reduzidas à “condição precária” (Butler, 2017), e que explicitam o que Achille Mbembe, ao realizar uma inflexão pós-colonial junto ao pensamento foucaultiano, conceitua enquanto “necropolítica” (Mbembe, 2017). Na melhor das hipóteses, como detecta Peter Pál Pelbart (2008), os tempos de “sobrevivencialismo” criam e gerenciam sobreviventes, reduzidos à mera vida biológica, desprovidos do devido reconhecimento simbólico que possibilitaria não só a sua dignidade social e jurídica, mas também sua autoestima pessoal. Trata-se de um processo alinhado à experiência de “morte-na-vida” identificada por Achille Mbembe (2017, p. 124) em relação aos negros escravizados ou às existências humanas instrumentalizadas ou destruídas no colonialismo tardio (Mbembe, 2017, p. 111). Em suma, estamos diante de vidas consideradas “destrutíveis” e “não passíveis de luto” (Butler, 2017). De modo velado e vagaroso operam os riscos e desastres crônicos cuja seletividade não deve ser desconsiderada: sua frequência e força dirigem-se desproporcionalmente às regiões periféricas e às vidas subalternizadas que, quando “são perdidas, não são objeto de lamentação, uma vez que, na lógica distorcida que racionaliza sua morte, a perda dessas populações é considerada necessária para proteger a vida dos ‘vivos’” (Butler, 2017, p. 53).

“Uma coisa de outro mundo”: o Excepcionalismo do Urânio e a Geopolítica da Nuclearidade

A distribuição desigual de riscos globo afora, assim como os mecanismos de injustiça ambiental, são evidenciados a partir das várias etapas do ciclo do combustível nuclear5 e da vinculação de cada uma delas com uma região específica. Quanto à exploração do urânio, há uma desproporcionalidade dos riscos que recaem sobre trabalhadores mineiros de regiões periféricas se comparados com os riscos a que estão expostos os sujeitos envolvidos em etapas posteriores do ciclo nuclear, como o enriquecimento do mineral e a geração de energia em usinas nucleares, em geral praticados em países ricos. Em parte, esse processo é justificado pela “desnuclearização” das atividades de mineração nessas regiões periferizadas, como explicamos adiante. Podemos mencionar o caso do Níger, do Gabão e da Namíbia, que, juntos, forneceram mais de um quinto do urânio utilizado em usinas europeias, estadunidenses e japonesas. Alguns especialistas observam que os riscos para os trabalhadores das três nacionalidades africanas é maior do que os que acometem os dos países desenvolvidos porque a exposição à radiação tende a ser maior no processo de mineração do que em qualquer outro segmento da indústria de geração de energia nuclear (Hecht, 2012a, p. 25; 2012b, p. 13-38), algo reconhecido inclusive pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) através da publicação conjunta “Manual de Segurança Radiológica nas Minas e Usinas de Urânio e Tório” [Manual on Radiological Safety in Uranium and Thorium Mines and Mills]. Nesse Manual, de 1976, consta que há uma ocorrência considerável de doenças ocupacionais associadas à mineração de urânio, o que confere certa especificidade a essa atividade frente a outras etapas do ciclo da produção nuclear (Hecht, 2012b, p. 39). Ainda assim, o urânio proveniente desses países não necessariamente adquire o status de uma substância “nuclear”, conforme observa Hecht (2012a). Segundo a autora, há uma lógica de “excepcionalismo nuclear” que faz com que as coisas classificadas como “nucleares” assumam um caráter único, que as distingue de todas as outras e que requer atenção e cuidados específicos. Exemplo disso é o temor, que aliás marcou todo o período histórico da Guerra Fria e que é retomado nos estudos sobre essa época, diante da possibilidade de que fosse tomada a decisão de detonar a bomba atômica (Hecht, 2012b, p. 13). Trata-se de uma experiência que evidencia que as coisas e práticas “nucleares” são tomadas como singulares e essencialmente distintas das ordinárias não só do ponto de vista do senso comum, mas inclusive de historiadores e acadêmicos. Além disso, na medida em que o domínio da nuclearidade é associado ao poder, e a sua falta à sujeição (Hecht, 2012b, p. 23), a perspectiva excepcionalista manifesta afinidades com o determinismo tecnológico, que toma os objetos técnicos como entidades autônomas e, portanto, enquanto agentes capazes de promover transformações históricas (Marx; Smith, 1994; Dagnino, 2008) seja para “o bem” – como as aplicações pacíficas da tecnologia nuclear na medicina, na agricultura e na geração de energia –, seja para “o mal” – caso da bomba atômica.

É preciso observar, todavia, que a nuclearidade não é um atributo fixo e permanente, já que lugares, objetos e riscos uma vez considerados “nucleares” podem perder essa designação, o que evidencia o quanto a classificação das coisas em “nuclear” e “não nuclear” é instável e obedece a dinâmicas que são, antes de tudo, “tecnopolíticas”6.

Coisas consideradas nucleares em um momento e lugar podem não ser assim consideradas em outros contextos. Tornar algo – um estado, um objeto, uma indústria, um ambiente de trabalho – nuclear e, consequentemente, excepcional é uma asserção tecnopolítica. O inverso também é verdadeiro, ou seja, insistir que certas coisas não são nucleares e que, portanto, são banais. Não obstante, a nuclearidade não pode ser entendida como uma distinção ontológica clara. Pelo contrário, ela deve ser tratada como uma categoria tecnopolítica sob disputa. A nuclearidade não é bem uma propriedade essencial das coisas, pois é uma propriedade distribuída entre as coisas. A radiação importa, mas sua presença não é suficiente para tornar minas em locais de trabalho nucleares. [...] A nuclearização do urânio – e de suas minas – requer trabalho: um trabalho que é ao mesmo tempo científico, tecnológico, político e cultural

(Hecht, 2012a, p. 24, tradução nossa).

Quando algo passa a ser tido como “nuclear”, por exemplo, do ponto de vista geológico ou médico, vários aspectos antes invisibilizados vêm à tona, como questões relativas à segurança do trabalho ou à saúde pública (Hecht, 2012b, p. 14-15) – daí, aliás, a importância de fazer visíveis as contaminações radioativas, tal como reivindica Kuchinskaya (2012). As tentativas de evidenciar os riscos associados à exposição ao radônio, por exemplo, são expressivas de disputas tecnopolíticas que, muito além de pesquisas científicas, envolvem ainda interesses corporativos, disponibilidade de aparatos técnicos de medição e contenção da radiação, condições geopolíticas, mobilizações de trabalhadores, etc. De acordo com Hecht (2012b, p. 40-45), embora alguns casos sinalizem uma associação entre a exposição ao gás e o desenvolvimento de câncer, o estabelecimento dessa relação de causalidade, sobretudo no contexto da mineração de urânio em países africanos, envolve fatores históricos e geográficos. É certo que o contato com o radônio leva de 10 a 30 anos para possivelmente provocar a doença, o que dificulta a realização de estudos científicos. No entanto, poucas minas estão equipadas com os instrumentos adequados para detectar a presença do gás entre os trabalhadores. Quanto a isso, é importante observar que, no caso de algumas minas na África do Sul, os locais mais vulneráveis e sujeitos a maiores concentrações de radônio eram ocupados por trabalhadores negros. Por fim, até recentemente o câncer era tratado como uma doença de contextos desenvolvidos, enquanto os serviços e as estatísticas de saúde na África tendem a priorizar doenças infecciosas e problemas decorrentes da desnutrição. Por tudo isso, “a questão da causalidade – ‘o radônio causa câncer?’ – sempre foi uma questão histórica e geográfica. Ela não tem uma resposta única e abstrata para além da política das controvérsias científicas, da organização do trabalho, da produção capitalista ou das diferenças e histórias coloniais” (Hecht, 2012b, p. 43; tradução nossa).

Nesse ponto são claros os paralelos com Caetité, já que tanto a negação quanto a afirmação da nuclearidade não são atos neutros e desinteressados, mas permeados por interesses que, taticamente, ora banalizam, ora singularizam determinadas atividades (Hecht, 2012b, p. 8-10). Como já foi exposto na introdução deste artigo, o cenário na região é caracterizado por um dissenso crônico em torno de questões tanto ambientais quanto de saúde pública. No primeiro caso, que tem como exemplo mais representativo as ocasiões em que foram identificadas amostras de água com concentração de urânio superior ao estabelecido por normativas nacionais e internacionais7 (Lisboa; Zagallo; Mello, 2011, p. 24), a controvérsia gira em torno das fontes dessas contaminações, se decorrentes da presença natural do mineral na região ou se provocadas pelas atividades da INB. No segundo, referente às questões de saúde pública, o debate é semelhante, isto é, indaga-se se o adoecimento da população de Caetité e região se dá pelo fato de que a região é naturalmente uranífera ou se em razão da extração e processamento do urânio.

Da parte da INB, a “naturalização” dos riscos radioativos ocorre por meio da estratégia de negação da nuclearidade das atividades desempenhadas pela empresa. Assim, a mineração e o beneficiamento de urânio têm sua excepcionalidade reduzida, como se deixassem de ser, ou fossem um pouco menos, “nucleares”. Desse ponto de vista, se há riscos com a mineração de urânio, esses são semelhantes aos de outras práticas minerárias. Dito de outro modo, não faria tanta diferença explorar urânio ou minério de ferro, por exemplo. Mesmo a radiação emitida pelo urânio em seu estado natural, independentemente de sua extração, é abordada pela empresa como algo corriqueiro e banal. Nos excertos abaixo, extraídos do folder informativo “Radiação e nosso dia a dia”, elaborado pela INB, verificamos que a radiação é tratada não só de forma banalizada, mas como algo onipresente, já que é encontrada em várias fontes, inclusive nosso próprio corpo humano. Nos termos do próprio folheto, a radiação “está em toda parte”, desde o sol, passando pela terra, pela água e pelo ar, até os nossos ossos e tecidos. Além disso, seria possível inferir que haveria uma certa equivalência entre essas distintas fontes, já que o texto é deliberadamente genérico e não estabelece uma distinção clara entre elas. Em síntese, do ponto de vista da INB, o urânio, seja em estado natural, seja minerado e beneficiado, pode ser considerado algo qualquer, desprovido de um estatuto excepcional típico de outras coisas nucleares. Semelhantemente, a radiação também é banalizada, pois, tal como sugere o folheto, ela faz parte do cotidiano (está em nosso “dia a dia”, como explicita o título), é encontrada em todos os lugares, além de ser também “natural”8.


Figura 1
Excertos do folheto “Radiação e o nosso dia a dia”
Fonte: Elaborado pela INB [s.d.].

Por outro lado, moradores e movimentos sociais, ao “artificializar” as contaminações identificadas em Caetité, procuram afirmar a nuclearidade do urânio no intuito de ressaltar suas preocupações relativas ao meio ambiente e à saúde pública. Em estado natural, ou nas primeiras etapas do ciclo do combustível nuclear (a mineração e o beneficiamento), o urânio pode ser nuclearizado ou não. Processo semelhante ocorre nas etapas subsequentes do ciclo (enriquecimento, fabricação do combustível e utilização do mineral para geração de energia). Como aponta Hecht (2012a, 2012b), é mais comum que a mineração e o beneficiamento, ocorridos em países pobres, sejam desnuclearizados, enquanto o enriquecimento e a geração de energia, em países ricos, sejam nuclearizados. Não obstante, essas classificações são estrategicamente rechaçadas pelos movimentos sociais em Caetité, cujas estratégias englobam a tentativa de evidenciar a nuclearidade (e, portanto, os riscos) do urânio em estado natural e já nas etapas de mineração e beneficiamento.

De fato, para os caetitenses, o urânio assume um estatuto ímpar9. “Quando você vai tratar de urânio, parece que você vai tratar de um negócio de outro mundo” (Humberto), comenta um trabalhador da INB ao mencionar os inúmeros “entraves” técnicos e legais em torno da mineração de urânio, ao contrário do que ocorre, por exemplo, com a exploração de magnesita ou minério de ferro, evocadas a título de comparação pelo entrevistado. “Você não tá tratando com açúcar, com farinha, é urânio, você tem um tanto de normas a serem seguidas” (Humberto), observa em outro momento o mesmo interlocutor. O urânio não possui uma qualidade qualquer. Ele ocupa, na verdade, um lugar bastante singular no discurso de nossos entrevistados, constitui-se como “um negócio de outro mundo”. Esse “excepcionalismo” conferido ao urânio (Hecht, 2012a, 2012b) pode ser percebido também na constatação de outro entrevistado, pesquisador independente, segundo a qual, quando se fala em energia nuclear, “você pensa numa bomba, você pensa em Hiroshima e Nagasaki, você pensa até em Irã, Coreia do Norte, essa coisa toda. Aí você pensa em Fukushima, em Chernobyl, você pensa no Césio em 87, mas você não fala da mineração, onde acontece” (Arnaldo). Trata-se de uma observação que igualmente considera singulares as atividades nucleares, inclusive a mineração de urânio, embora esta última seja (estrategicamente) obliterada de modo a amenizar os perigos associados à extração desse mineral.

Assim, o “outro mundo” produzido pelo urânio ou seu excepcionalismo apresentam uma dupla dimensão: são motivos de temores e precauções, ao mesmo tempo que fomentam pautas e mobilizações coletivas por parte dos moradores. Os cuidados a serem tomados em razão do urânio ficam claros nos relatos abaixo, que em parte conferem sentido à excepcionalidade do mineral através da noção de “radioatividade”. Em grande medida, essa periculosidade se deve a algo não encontrado em outros minerais. Além da poeira, do barulho, entre outras formas de poluição, um outro inconveniente rende preocupações com o urânio: a radiação.

Eu não tenho conhecimento das minerações de minério de ferro, dessas coisas, não, mas a de urânio a gente já fica sabendo que é uma coisa de radiação e tem muito cuidado para trabalhar, então eu acho que urânio é mais preocupante pra todo mundo

(Jorge).

E o espaço da outra [refere-se à exploração de minério de ferro pela Bahia Mineração, também em Caetité] eu sei que é menor, porque na de cá [na INB] a poluição você sabe que é maior, né? De urânio, urânio é mais... o estrago é maior, que urânio causa câncer, causa tudo e a outra lá ninguém nunca ouviu falar isso, entendeu?

(Leon).

A partir do momento em que vêm à tona, os problemas sobre o urânio e a radiação dão novos sentidos às preocupações e demandas dos moradores. Por exemplo, as reivindicações de indenizações por parte dos produtores rurais do entorno da mina ganham novos elementos de legitimação: não é possível trabalhar com tranquilidade ao lado de fontes de radiação ou insistir com as atividades agropecuárias porque o que é produzido, por “ter urânio”, não encontra compradores. Na mesma linha, um morador integrante de um movimento social reconhece que há uma atenção maior concedida à mineração de urânio se comparada a outros empreendimentos com impactos socioambientais, o que pode contribuir para que as organizações reúnam apoio:

Isso consegue chamar atenção de diversos setores em diversas partes do Brasil e até fora do Brasil. Então assim, ainda é algo que chama muita atenção, sabe, há uma atenção por parte desses segmentos mais ligados à sociedade civil, às mídias alternativas, há um interesse maior.

Entrevistador/a: Por que você acha?

Eu acho que é por se tratar de um minério, primeiro, que é radioativo. [...] Eu acho que é por causa disso e por se tratar de um minério que é, sob o ponto de vista tanto da utilização, é um minério estratégico, né? Que ele alimenta diversos setores inclusive a indústria bélica, né? Então eu acredito, por se tratar do urânio em si, ele tem uma... há um despertar de interesse maior por parte de outras pessoas, né?!

(Joaquim).

Nesse sentido, a capacidade política do urânio depende daquilo que ele é, ou seja, de seu excepcionalismo ou não. A depender de seu estatuto ontológico, ele é mais ou menos capaz de desarranjar as relações estabelecidas. Em outros termos, ao ser nuclearizado, o mineral suscita um outro mundo, com características sociotécnicas específicas, tanto em termos materiais quanto representacionais. Nessa disputa “tecnopolítica” sobre o nuclear (Hecht, 2012a, p. 24), os movimentos e atingidos, por um lado, ressaltam como perigoso, arriscado e indesejável o “nuclear” das “Indústrias Nucleares do Brasil”. Diante disso, são necessários maiores cuidados no trabalho, celeridade nos processos de indenização, pesquisas e esclarecimentos sobre o quadro de saúde pública local, transparência na realização de atividades nucleares, entre outras demandas. A INB, por outro lado, busca amenizar a “nuclearidade” do urânio e de suas atividades em ocasiões oportunas. É o que ocorre diante da naturalização das contaminações e da desnuclearização da mineração e do beneficiamento de urânio.

Como mostra Hecht (2012b, p. 33-34), há uma ampla discussão sobre a pertinência de se considerar, ou não, a mineração e o beneficiamento de urânio como atividades “nucleares”. Afinal, essas são etapas menores, ou marginais, se comparadas às outras desempenhadas pela indústria nuclear e que claramente assumem um caráter de excepcionalismo: “comparadas a reatores e bombas, elas [as minas de urânio] parecem banais e periféricas, mais próximas (tecnológica, política e geograficamente) de outras formas de mineração do que de outras coisas nucleares” (Hecht, 2012b, p. 43; tradução nossa). Quanto a isso, é significativo o imaginário ocidental que atribui às nações africanas uma condição primitiva através de representações hegemônicas que constantemente reiteram a imagem do continente como um lugar “selvagem”, desprovido de “tecnologia”, o que seria compensado pela “missão civilizatória” dos países colonizadores (Hecht, 2012b, p. 16-17). Nesse caso, caberia às nações africanas nada mais do que a mineração de urânio, oposta às tecnologias modernas e altamente desenvolvidas que compõem a indústria nuclear: “Como parte da indústria nuclear, a extração de urânio parecia estranhamente deslocada na África. Mas como parte da indústria de mineração, parecia estar perfeitamente em casa” (Hecht, 2012b, p. 40; tradução nossa).

Diante disso, se são conferidos atributos “nucleares”, associados a práticas tecnológicas refinadas, a atividades realizadas em locais “primitivos” e periféricos, emerge certa “dissonância cognitiva” que inverte, ou pelo menos mescla, as dicotomias entre “tradicional” e “moderno”, entre “Primeiro” e “Terceiro” Mundos. Consequentemente, esse quadro dificulta a consideração da mineração de urânio como efetivamente perigosa e, portanto, como uma prática que carece de cuidados específicos: “como a parte menos moderna da indústria nuclear poderia comportar o maior perigo de exposição ao mais moderno dos riscos?” (Hecht, 2012b, p. 40; tradução nossa). Além disso, esse processo de banalização da mineração de urânio obviamente atende a interesses comerciais e está em congruência com a distribuição desigual de poderes políticos e econômicos, já que essa ressignificação e a revisão da condição ontológica conferida ao urânio de países periféricos fazem com que esse mineral assuma o caráter de uma commodity como outra qualquer, banalizada, passível de ser explorada a baixos custos e sem maiores preocupações (Hecht, 2012b, p. 35).

Seja em estado natural, seja explorado, o urânio pode ou não ser nuclearizado. A depender do estatuto assumido pelo mineral, ele será objeto de menores ou maiores precauções. Em Caetité, a tentativa de naturalização das contaminações é convergente com a de desnuclearização do mineral, gestos típicos de contextos periféricos. Isso pode ser sintetizado nas observações de um engenheiro químico da INB, com quem conversamos durante nossa visita à mina. Segundo ele, a mineração e o beneficiamento são de pouca periculosidade e o urânio só se torna perigoso depois de voltar da Europa enriquecido, o que evidencia o processo geopolítico de (des)nuclearização do urânio. Em outras palavras, o urânio só volta perigoso depois de viajar ao “Primeiro Mundo”. Enquanto está no interior baiano brasileiro, antes de ser enriquecido, seria pobre, subdesenvolvido e inofensivo. Por outro lado, a essas tentativas sistemáticas de desnuclearização e banalização do urânio correspondem as tentativas dos movimentos sociais de nuclearizar a mineração e o beneficiamento do mineral, ou seja, de evidenciar os riscos que perpassam essas atividades10. Isso ocorre através da dissociação entre o urânio e outros materiais (açúcar, farinha) e minerais (ferro), além das tentativas de ressaltar a radioatividade uranífera, o que acaba por agenciar mobilizações políticas por parte das organizações sociais e dos atingidos. Em suma, o que o ativismo em Caetité propõe é não só uma recusa às explicações desnuclearizantes e banalizadoras da INB para os problemas da região, mas também à concepção igualitária e universalista dos riscos e danos ambientais em grande medida expressa pela noção de “sociedade de risco”. Ao fazê-lo, os movimentos sociais evidenciam o claro processo de injustiça ambiental que penaliza desproporcionalmente regiões e populações pobres, como ocorre em Caetité.

Considerações Finais

Ao debater a nuclearidade ou não do urânio, nossa intenção é de algum modo politizar o debate, já que as discussões sobre a nuclearidade e o excepcionalismo do mineral contemplam aspectos geopolíticos das relações entre nações centrais e periféricas. A consideração das particularidades das experiências dos países subdesenvolvidos tensiona a suposta distribuição homogênea dos riscos pelo globo, bem como o postulado da passagem da sociedade de classes para a sociedade de riscos. Além disso, a atenção às realidades periféricas nutre uma desconfiança diante daquilo que talvez seja a mais genérica das conclusões de Beck: a afirmação de que, diante da ameaça de auto-destruição da espécie humana por meio da bomba atômica, “a Terra se transformou num assento ejetável, que não mais reconhece diferenças entre pobre e rico, branco e preto, sul e norte, leste e oeste” (Beck, 2011, p. 45). Na teorização do autor, essa possibilidade se desloca do futuro para o presente na medida em que, já na sociedade de risco, tal como por ele conceituada, as ameaças não encontram limites de classe, raça ou nação.

Ao afirmar categoricamente o caráter de “supranacionalidade do fluxo de poluentes” (Beck, 2011, p. 48) e ao desconsiderar aspectos locais e nacionais, a teorização sobre a sociedade de risco pode cair em certo “autorreferenciamento epistêmico” (Bosco; Ferreira, 2016) limitador da compreensão da disseminação dos riscos. Isso porque, ao “restringir o horizonte normativo da sociedade mundial aos dilemas circunscritos por um locus histórico europeu”, Beck leva a cabo um universalismo que, embora tenha a pretensão de abarcar uma “inclusividade global potencial”, é notadamente eurocentrado (Bosco; Ferreira, 2016, p. 257).

Desse modo, é necessário levar em conta que “a tipologia dos riscos globais está encarnada na trajetória histórica específica e na autocompreensão ‘presentista’ de uma sociedade moderna europeia/ocidental. [...] Isso significa, a rigor, que a autocompreensão da sociedade de risco está longe de ser mundial, como pretende Beck” (Bosco; Ferreira, 2016, p. 256-257). Também é cultural e geograficamente localizada a ideia de “reflexividade”. Como observa Costa (2004, p. 90),

[...] a forma de transformação moderna das sociedades que foram colônias é marcada desde seus primórdios pela incerteza auto-construída. Ou seja, acidentes industriais, assim como a necessidade de preenchimento criativo das lacunas do desenvolvimento tecnológico, acompanham as sociedades periféricas desde os primeiros esforços de industrialização. Se esses processos têm mesmo o efeito de liberação das energias reflexivas e de ampliação dos espaços para a ação na alta modernidade, é de supor que um tal efeito “emancipatório” tenha sido verificado na “periferia” no momento em que o centro dinâmico do capitalismo colonial vivia, ainda, a ilusão do controle absoluto da natureza por meio do conhecimento e da transformação industrial.

“Reflexividade” é um traço inseparável de um contexto histórico-geográfico específico – aquele das experiências e militâncias das camadas médias estadunidenses e europeias a partir da década de 60 (Costa, 2004, p. 97) – e, como se sabe, não é um traço geralmente atribuído pela teoria social às sociedades subdesenvolvidas, o que reforça a crítica levantada por Costa. Percepção semelhante é encontrada em Acselrad (2014, p. 100), para quem “na América Latina, a lógica das coisas não estaria apontando na direção dessa postura reflexiva, tal como apontada na literatura dos estudos culturais da ciência desenvolvidos em outros continentes”. Conforme o autor, isso se justifica pelo fato de que, no contexto latino-americano, há uma convergência entre práticas científicas e práticas políticas, ambas voltadas à defesa do desenvolvimento enquanto um projeto inquestionável. Assim, a ciência se reduz a legitimar decisões políticas e econômicas estabelecidas. Quando pesquisas se atrevem a interferir nas “condições esperadas de rendimento dos investimentos [...] a acusação pode assumir uma dimensão judicial, destinada a dissuadir, desprestigiar, constranger, impedir ou paralisar o trabalho de pesquisa” (Acselrad, 2014, p. 100). Em resumo, seja na teorização sobre a sociedade de riscos ou sobre a reflexividade, há um claro viés ou mesmo uma cegueira epistêmica que elimina a multiplicidade de trajetórias civilizatórias e experiências sociais dos países periféricos.

Nos dissensos sobre o que é ou não é “nuclear”, impressiona que a mineração de urânio na África (e acreditamos que o mesmo se aplica ao Brasil) seja desnuclearizada (Hecht, 2012a, p. 25), mesmo com os riscos que acometem os trabalhadores mineiros. Diante disso, não deixa de ser incômoda a escassez de análises críticas de riscos voltadas a contextos periféricos ou, mais especificamente, de estudos relativos à mineração de urânio, para além dos riscos da radiação em outras etapas da indústria nuclear. Tais ausências podem ser sentidas inclusive no âmbito dos ESCT, que não estão imunes aos mesmos vieses epistêmicos apontados acima em relação ao pensamento de Beck. Uma análise contextualizada das distintas configurações entre tecnociência e sociedade, variáveis de acordo com as inúmeras situacionalidades históricas e geopolíticas, se faz necessária a fim de avaliar a operatoriedade da ciência e da tecnologia nucleares, bem como dos gestos reflexivos e de resistência a elas direcionados. É diferente, como argumentamos acima, a implementação da indústria nuclear em países centrais ou periféricos. Não é possível pensar o caso de Caetité de forma universalista, que considera a distribuição de riscos tecnocientíficos de modo genérico, sem considerar a especificidade da posição brasileira na geopolítica global. A condição neoextrativista e dependente do Brasil é fator determinante para compreendermos a atuação da INB em Caetité. Ao invés de operar “reflexivamente” ou de propor críticas a si mesma, a ciência em contextos periferizados parece entrar em cena com argumentos de autoridade que de uma só vez “desnuclearizam” o urânio a fim de banalizar os riscos a ele associados e silenciam populações vulnerabilizadas. Logo, urge propor análises e teorizações capazes de dar conta, em contextos não centrais, das especificidades dos processos de produção e de distribuição de riscos e dos ônus do desenvolvimento econômico e tecnocientífico. A discussão baseada em Caetité sobre a nuclearidade ou não do urânio evidencia não só uma situação de injustiça ambiental, mas também os limites das concepções universalistas sobre a sociedade de riscos.

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Notes

2 O autor agradece aos colegas do grupo Ciências, Tecnologias e Públicos (CTP/UnB) a discussão e as contribuições à versão preliminar deste texto.
3 Em certa concordância com Beck, referências que sustentam que estaríamos na passagem da época do Holoceno ao Antropoceno enfatizam precisamente o poder de agência humana como uma força geológica, capaz de transformar a Terra como um todo. Nesse processo, tem centralidade a tecnociência, assim como os riscos por ela ocasionados, já que não há degradações ou desastres que possam ser estritamente classificados como “naturais” (Porto, 2007, p. 30). Na verdade, estamos diante de “formações geossociais”, compostas pela mescla entre acaso e escolhas humanas, fenômenos ambientais e tecnológicos, naturais e artificiais (Dalby, 2017, p. 233-238). Tudo isso coloca a humanidade como um fator significante de transformações da biosfera, de modo a abalar as noções idealizadas de uma natureza intocada, estável e imune à ação humana (Dalby, 2017, p. 241). Em suma, é a intensidade dessas transformações e devastações, em escala global, que embaralha períodos geológicos e históricos, fenômenos naturais e culturais, de modo a caracterizar o Antropoceno enquanto uma época de “proliferação dos híbridos”, para usar os termos de Bruno Latour (2009, p. 7), ou de disseminação dos riscos tecnocientíficos com os quais se preocupa Beck (2011).
4 Por exemplo, é vago postular que a humanidade como um todo, ou como espécie, produz as transformações que conduzem ao colapso ambiental típico do Antropoceno (Delanty; Mota, 2017, p. 23). Como apontam Gerard Delanty e Aurea Mota (2017, p. 23-24, tradução nossa), “localizar o Antropoceno junto a processos sociais, econômicos e culturais, e não em uma condição humana abstrata e despolitizada, é essencial para entender como grandes transformações sociais e ambientais ocorreram e resultaram em diversos efeitos. A humanidade como um todo não está num mesmo barco. [...] Uma visão míope como essa não é apenas eurocêntrica, mas atribui um certo determinismo a uma condição que é essencialmente social e política”.
5 Termo utilizado para se referir aos vários processos que vão desde a mineração do urânio, passando pelo beneficiamento e enriquecimento do mineral, até a fabricação de combustível utilizado para geração de energia em usinas nucleares.
6 Nesse ponto Hecht (2012b, p. 15) faz uma diferenciação entre “radiação” e “nuclearidade”. Segundo a autora, enquanto a primeira é um fenômeno puramente físico e imune a processos de politização, a segunda depende de arranjos políticos e culturais a partir dos quais a tecnologia e o conhecimento científico são produzidos.
7 Ver também: Borges (2015b) e Corrêa (2008).
8 Uma análise mais detalhada das estratégias, levadas a cabo pela INB, de “desnuclearização” do urânio, bem como de sua extração e beneficiamento, pode ser encontrada no artigo “A mineração de urânio em questão: análise da comunicação pública das Indústrias Nucleares do Brasil (INB) em Caetité, Bahia” (Paula. 2020), ocasião em que investigamos os modos de comunicação pública da ciência praticados pela empresa num espaço de divulgação científica por ela mantido em Caetité.
9 Os excertos apresentados a seguir são resultantes de entrevistas semiestruturadas conduzidas em formato online (em razão da pandemia de Covid-19), nos anos de 2020 e 2021, com moradores de Caetité, ex-trabalhadores da INB e especialistas independentes que atuaram junto a movimentos sociais para estudar a situação ambiental e de saúde pública na região. Os nomes atribuídos aos participantes da pesquisa foram modificados a fim de preservar suas identidades. Finalmente, a pesquisa obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais (CEP/CHS) da Universidade de Brasília (UnB).
10 Parte das estratégias de resistência praticadas em Caetité, especialmente entre as comunidades quilombolas da região, é descrita por Suzane Alencar Vieira (2015, p. 24-26) a partir da categoria e do agenciamento nativo da “pirraça”, um gesto que recusa a imposição de consensos e abre a possibilidade de participação de atingidos (no caso da etnografia de Alencar, além da mineração de urânio, são debatidos também os impactos de um parque eólico instalado em Caetité). Através da pirraça, as comunidades negras das roças de Caetité inventam, comumente em forma de brincadeiras e zombarias (Vieira, 2015, p. 89), uma “criatividade ecológica” que se contrapõe aos empreendimentos econômicos que avançam sobre seus territórios e tentam subjugar seus saberes.

Author notes

Avaliador 2: Glauco Roberto Gonçalves, https://orcid.org/0000-0001-6745-1066
Editore/as de Seção: Henrique Zoqui Martins Parra, https://orcid.org/0000-0001-8545-1975; Alana Moraes de Souza, https://orcid.org/0000-0003-4072-0320.


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