ARTIGOS
Narrativas Conservadoras sobre o Sufrágio Feminino no Brasil entre 1933 e 1937: Nuances sobre a Ideia de Conquista da Emancipação pelo Direito ao Voto
Conservative Narratives about Women’s Suffrage in Brazil Between 1933 and 1937: Nuances Regarding the Idea of Emancipation through the Right to Vote
Narrativas Conservadoras sobre o Sufrágio Feminino no Brasil entre 1933 e 1937: Nuances sobre a Ideia de Conquista da Emancipação pelo Direito ao Voto
Mediações - Revista de Ciências Sociais, vol. 29, no. 2, e49137, 2024
Universidade Estadual de Londrina
Received: 14 October 2023
Accepted: 22 February 2024
Published: 26 July 2024
Resumo: O objetivo do artigo é entender os ideários sobre sufrágio feminino no período imediatamente posterior à implementação do Código Eleitoral de 1932 até o início do Estado Novo (de 1933 a 1937). Este trabalho se distancia da visão que enxerga o voto feminino meramente como um progresso democrático dos anos 1930, através da análise da história de outros países e de revistas da época (revistas femininas, jornais católicos e anarquistas). Demonstra, ao contrário, a existência de um movimento de construção de narrativa que deixa o voto (e a emancipação das mulheres) de lado para assumir uma forma de persuasão com a finalidade de conservar o status quo, tanto pela Igreja Católica quanto pelos poderes políticos.
Palavras-chave: Sufrágio feminino, feminismo, código eleitoral de 1932, era Vargas, anarquismo, Igreja Católica, autoritarismo eleitoral.
Abstract: The aim of this paper is to better understand opinions about the enfranchise-ment of women at the period immediately after the Electoral Code of 1932 until the beginning of the Estado Novo (from 1933 until 1937). It endeavors to show how different to a so-called democratic progress of the 1930s women’s suffrage was, through the analysis of the history of other countries and sources of the time (female, Catholic and alternative newspapers). It demonstrates, instead, the existence of movement in the construction of a narrative that puts the vote (and women’s emancipation) aside to adopt a type of persuasion aiming to maintain the status quo, used by both the Catholic Church and political powers.
Keywords: Female enfranchisement, feminism, 1932 electoral code, Vargas era, anarchism, Catholic Church, electoral authoritarianism.
A teoria democrática tradicionalmente apresenta a realização de eleições livres, justas e competitivas como pré-requisito para que um regime representativo assuma contornos democráticos (Dahl, 1971; Schumpeter, 1961). Predomina o consenso em torno da centralidade do sufrágio universal para a democratização de um país, apontando-se a ampla extensão do direito de voto como parte fundamental do processo de transição rumo à democracia, que está envolto “[...] em diversas transformações históricas amplas” (Dahl, 1971, p. 33; Rokkan, 1961). Como resultado deste raciocínio, o sufrágio é, muitas vezes, percebido pela historiografia como o ponto final de uma etapa da emancipação feminina, representando o ápice de um progresso linear, e então considerado como o segundo passo rumo à cidadania após a inclusão das mulheres na educação formal.
Embora a história do feminismo brasileiro tenha sido contada de diversas formas, o sufrágio feminino, nos anos 1930, é considerado o marco final da primeira onda feminista do Brasil (Pinto, 2003; Duarte, 2019). E, até hoje, o voto feminino é visto pela historiografia brasileira como meramente uma conquista de mulheres que lutavam pela emancipação das mulheres e mais especificamente por direitos políticos.
No entanto, nos últimos anos, tem sido proposta uma outra maneira de enxergar esse processo em relação aos direitos das mulheres. Essa análise alternativa busca enfatizar a complexidade do contexto histórico em torno do sufrágio feminino no Brasil. Em outros países, há pesquisas que demonstram que o sufrágio feminino, além de ser objeto de preocupação dos poderes institucionais, também se tornou um tema caro à Igreja Católica (Rubio-Marín, 2014), algo já indicado em pesquisas no Brasil (Araujo, 2003; Carvalho, 2011; Karawejczyk; Maia, 2016). Outro fator importante a se ter em mente é que a década da adoção do sufrágio é mais um exemplo de um período autoritário e violento da história brasileira (e mundial). Pode-se argumentar, então, que a inclusão do voto feminino pode ser vista através de diversas perspectivas e defendida sob vários pretextos não necessariamente “progressistas”. O voto poderia ser visto não como uma ferramenta de emancipação das mulheres, mas como uma peça na manutenção do status quo, do poder e da moralização das eleições.
O Código Eleitoral de 1932 recebe, de um modo geral, o crédito de ser responsável por uma série de inovações institucionais, a exemplo do voto secreto, do voto obrigatório, do sistema de representação proporcional e da criação da Justiça Eleitoral, uma das leis mais importantes da história das eleições no Brasil (Nicolau, 2019). Destaca-se particularmente a luta por direitos das mulheres (Teles, 1993). Contudo, pesquisas mais recentes têm se debruçado sobre a complexidade por trás da sua implementação, questionando os interesses do Governo Provisório, instituído desde a Revolução de 1930 (Silva; Silva, 2015; Ricci, 2019a; Zulini; Ricci, 2020).
É importante ter em mente que, em governos autoritários, reformas eleitorais que reescrevem as regras eleitorais não significam necessariamente um “[...] interesse real dos governantes em tornar o regime mais aberto e participativo” (Gandhi, 2009 apudZulini; Ricci, 2020, p. 602). Ao ligar a democracia às eleições, “corremos o risco de esquecer que a história das eleições representativas moderna é tanto uma fábula de manipulações autoritárias quanto uma saga de triunfos democráticos”, ou seja, eleições como “[...] uma ferramenta de controle autoritário e um meio para a governança democrática” (Schedler, 2002, p. 36, tradução nossa).
Foram selecionados periódicos de três perfis: revistas femininas, jornais católicos e jornais anarquistas publicados durante a Era Vargas, especificamente entre 1933 e 1937, quando, depois do Código Eleitoral, foram realizadas três eleições.2 O objetivo foi trazer fontes que corroboram a nuance de que o voto não é só uma conquista de um direito, mas um instrumento de disputas de vieses. Assim, busco demonstrar a existência de uma negociação contínua entre atores que queriam se apropriar dele para defender seus posicionamentos, normalmente a favor da manutenção da hegemonia conservadora.
As consultas foram realizadas na Hemeroteca da Biblioteca Nacional3, no acervo Canto Libertário4 e no Arquivo Edgard Leuenroth5. Para otimizar a busca por matérias de interesse nos periódicos, a pesquisa foi realizada a partir de palavras-chave selecionadas.6 Em seguida, foi feita uma análise qualitativa do conteúdo de cada achado para distinguir os textos que realmente abordavam as questões pertinentes à pesquisa7, excluindo os falsos positivos, isto é, textos que, embora contivessem as palavras-chave selecionadas, fugiam do escopo do objeto trabalhado.8 O quadro a seguir apresenta um resumo dos tipos de periódicos consultados e seus respectivos nomes:

O primeiro segmento diz respeito às revistas que se autoproclamavam dedicadas a assuntos femininos. Optou-se pelas revistas femininas por representarem “[...] um locus privilegiado da discussão sobre o papel da mulher na sociedade republicana” (Freire, 2009, p. 26). Embora voltadas a assuntos ditos “femininos”, essas revistas nem sempre eram elaboradas, organizadas ou escritas por mulheres e, muitas vezes, pertenciam a homens9. A revista Vida Domestica e o Jornal das Moças tinham como foco questões ligadas ao universo doméstico familiar (Freire, 2009). A influência do Jornal das Moças era tão grande na época que o Jornal ditava o “comportamento social, familiar e religioso, reforçando o papel idealizado ou esperado da sociedade com relação ao papel da mulher, [...] repaginando-a ou mantendo-a em um padrão desejado pelo estado, sociedade e meios de comunicação” (Soares; Silva, 2013, p. 2). Já a revista A Violeta: Orgam do Gremio Litterario “Julia Lopes” foi incluída para ampliar a compreensão de matérias da época assinadas por mulheres – letradas – e para sair um pouco do eixo do Sudeste.
O segundo perfil se refere aos jornais produzidos por setores da Igreja Católica. A inclusão desses jornais se dá justamente em função da convergência de interesses de determinados grupos sociais no Brasil em torno do sufrágio feminino. Nesse sentido, ao trazer os periódicos católicos para o centro da análise, o propósito é refletir sobre a sintonia entre os variados interesses que compunham as instituições de poder na época. Ao mesmo tempo que a igreja se posicionava a favor de grupos que reafirmavam valores conservadores e normativos em relação à condição da mulher (Ostos, 2012), ela também buscava se inserir nas rodas de poder em meio à ameaça do processo de modernização e do discurso de renovação do país, que continha críticas aos fundamentos dogmáticos da religião e clamava pela separação entre igreja e Estado (Ribeiro, 2013). Diante disso, os jornais se tornaram uma ferramenta importante para a estratégia de reinserção político-institucional da igreja impulsionada pela recuperação do espaço perdido a partir da Proclamação da República. O início do século XX é uma fase de organização e articulação da imprensa católica (Lustoso apudMarin, 2018; Ribas, 2011).
O terceiro e último segmento analisado contempla os jornais de orientação política “alternativa”, principalmente de viés anarquista. No início do século XX, o anarquismo se expandiu no Brasil através da organização de comícios, motins populares e por meio da publicação de jornais e livros. De um modo geral, o anarquismo – movimentos, ideais e grupos anarquistas – tem sido um tema preterido na teoria política como um todo (Brancaleone, 2020). Em relação especificamente à história do processo eleitoral e ao sufrágio feminino no Brasil, as experiências anarquistas teriam sido minimizadas graças ao foco tradicional na política institucional, o que tenderia a reduzir a complexidade trazida por outros movimentos e grupos com relação ao feminismo e ao processo de emancipação feminina, além de colocar determinadas concepções e visões como prioritárias. A pertinência de se recorrer a esse perfil de publicações se deve à possibilidade de ter um contraponto às fontes conservadoras na medida em que não instrumentalizam o voto, mas escancaram a instrumentalização conservadora do mesmo.
Para chegar às fontes, primeiramente será problematizada a experiência brasileira em perspectiva comparada, abrindo caminho para se contrastar a narrativa em torno do sufrágio feminino como conquista democrática com a hipótese alternativa de uma estratégia política das elites políticas e da Igreja Católica. Em seguida, a análise se concentrará na análise de matérias achadas.
A Ampliação dos Direitos Políticos das Mulheres e o Sufrágio Feminino
No Brasil, o sufrágio feminino chegou a entrar na pauta da Constituinte de 1891, mas não foi aprovado. Em 1910, seria criado o Partido Republicano Feminino (PRF), fundado por Leolinda Daltro e Gilka Machado. A principal pauta defendida pelo partido era envolver as mulheres de todo o Brasil na luta pelos direitos femininos e pela extensão de todas as disposições constitucionais às mulheres, tais como o direito ao alistamento eleitoral e o acesso a cargos no serviço público (Karawejczyk, 2019). Em 1916, foi solicitada uma lei que concedesse o direito ao voto às mulheres. No ano seguinte, foi apresentado um projeto de lei que estabelecia o sufrágio para mulheres acima de 21 anos (Karawejczyk, 2019).
Em 1920, Bertha Lutz funda a Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher (LEIM), depois rebatizada de Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF). Lutz era uma mulher pertencente à elite brasileira, que regressou ao Brasil após estudar na França com o intuito de avançar as pautas femininas, principalmente o sufrágio. Surgiram filiais estaduais da FBPF, inclusive no Rio Grande do Norte, onde uma comissão de mulheres ligadas à FBPF começou a pressionar o governador Augusto de Medeiros (entre 1924 e 1927), e então em 1927 seria estabelecido o reconhecimento do alistamento eleitoral feminino naquele Estado. No mesmo ano, um abaixo-assinado contendo 2 mil assinaturas foi apresentado ao Senado Federal (Pinto, 2003). No mesmo ano, 17 mulheres puderam votar e elegeram Julia Alves Barbosa para a Câmara Municipal de Natal.
Depois da aprovação do voto feminino no Rio Grande do Norte, o projeto do senador Justo Chermont apresentado em 1919 foi a votação mais uma vez, com 34 senadores se posicionando a favor, 15 contra e sete manifestando dúvidas quanto ao tema, o que indicava uma tendência à aprovação do projeto (Karawejczyk, 2019). Após um período de convulsão política no país, que culminou na Revolução de 30, o Governo Provisório, chefiado por Getúlio Vargas, se compromete a instituir um novo Código Eleitoral e uma nova Constituição visando a restauração da vida política do país. Em 1932, o sufrágio feminino é aprovado, supostamente, pondo um ponto final na luta (Pinto, 2003).
Na história da inclusão do voto feminino no processo eleitoral brasileiro, predomina a narrativa do movimento de luta por direitos das mulheres, com a “conquista” do voto sendo considerada o ápice da primeira onda do feminismo (Duarte, 2019; Pinto, 2003). Porém, para parte da historiografia, não se tratava de uma simples etapa do processo de democratização conquistada através da incorporação de novos sujeitos políticos, mas sim de uma conjuntura política complexa e conturbada. Por isso, em vez do sufrágio feminino ser visto como um processo linear e progressivo, alguns autores têm chamado a atenção para as complexidades envolvidas na inclusão da mulher em processos eleitorais mundo afora.
No caso da Europa, como analisa Rubio-Marín, o sufrágio seria muito mais “[...] uma resposta às dinâmicas presentes na criação dos Estados Modernos e na definição da cidadania masculina e feminina segundo as tradições republicana e liberal” (Rubio-Marín, 2014, p. 6, tradução nossa)10. Segundo a autora, essas duas concepções políticas predominantes na Europa na época tiveram efeitos similares: a separação das esferas pública e privada e a relegação da mulher ao espaço doméstico (Rubio-Marín, 2014).
A partir da análise realizada sobre a inclusão das mulheres em processos eleitorais de três países europeus – Espanha (Aguado, 2012), Portugal (Amaral; Anjinho, 2012) e Itália (Mancini, 2012) –, puderam-se distinguir três aspectos em comum: a resistência da sociedade ao sufrágio feminino; o nascimento do sufrágio condicionado a uma moral conservadora; e o emprego estratégico do voto feminino por parte de atores interessados, da sociedade civil, principalmente a igreja, ou de governos autoritários, em ampliar o eleitorado conservador ou em legitimar o regime autoritário vigente na época.
Em relação à resistência ao sufrágio feminino, na Espanha as primeiras duas propostas de inclusão das mulheres no processo eleitoral (1877 e 1907/08) não foram aceitas, embora as propostas determinassem que as mulheres só poderiam votar mediante procuração (Aguado, 2012). Em Portugal, apesar da elite republicana que reinava durante a Primeira República (1911-1926) ser reconhecidamente simpática às causas femininas, em 1912, após a aprovação de uma proposta que incluía um segmento feminino no processo eleitoral, os deputados iniciaram um debate sobre a questão, e, em 1913, houve uma emenda que explicitamente excluía as eleitoras (Amaral; Anjinho, 2012). Por outro lado, a Itália foi um dos países onde as mulheres perderam direitos políticos com o processo de modernização do Estado.
No tocante ao condicionamento por uma moral conservadora, a mulher estava restringida à esfera privada, ao papel de esposa-mãe-dona-de-casa, nos três países analisados. Por exemplo, em 1878, na Itália, Anna Maria Mozzoni fundou a Lega Promotrice degli Interessi Femminili. Embora Mozzoni visse o sufrágio como uma meta autônoma a ser perseguida em nome da igualdade feminina e dos direitos naturais, no final do século XIX, é perceptível que os movimentos feministas burgueses se tornaram mais moderados e foram tachados de feminismo “maternalista”, exigindo seu reconhecimento como cidadãs “não em nome de algum direito natural abstrato nem por serem iguais aos homens no sentido convencional, mas sim porque, enquanto mães, eram indispensáveis à ordem social” (De Grazia, 1992 apudMancini, 2012, p. 378, tradução nossa).11
O terceiro aspecto diz respeito ao emprego estratégico do voto feminino por parte de atores interessados em ampliar o eleitorado conservador ou em legitimar o regime autoritário vigente na época. A Igreja Católica acabou apoiando o sufrágio por acreditar que o voto conservador das mulheres poderia ajudar a conter o liberalismo, a luta proletária e defender os valores da família tradicional; para Rubio-Marín, o resultado foi a emergência de um “feminismo cristão” (Rubio-Marín, 2014, p. 11). Um exemplo similar foi a criação de associações católicas na Espanha que trabalhavam em prol do voto feminino (Aguado, 2012, p. 290). Ainda na Itália, mesmo na presença de opiniões contrárias ao voto feminino devido (novamente) à preocupação com a ameaça à família tradicional, o sufrágio feminino foi encampado até pelo Papa (Mancini, 2012).
O sufrágio feminino não era apenas defendido pelos setores conservadores da sociedade civil, mas também pelos regimes autoritários. É notável que, na maioria dos casos, o processo que levou ao sufrágio foi dominado por fatores estratégicos, e não por uma emancipação das mulheres baseada nos ideais de liberdade, justiça e igualdade. Na Espanha, foi durante a ditadura de Primo de Rivera que mulheres acima de 25 anos puderam ser eleitas vereadoras, conforme decretado, em 1924, no Estatuto Municipal. Como o voto era tido como “familiar” e atribuído ao “chefe de família”, ele foi estendido a mulheres solteiras e viúvas. Mulheres casadas não foram incluídas para evitar “dissensos na família” (Aguado, 2012). Apesar das mudanças, nenhuma eleição foi realizada durante a sua ditadura. Na Itália, após três anos de regime ditatorial, Mussolini se declarou a favor do voto feminino, afirmando que não teria “consequências catastróficas, como alguns misóginos argumentam” e que seria benéfico porque as mulheres trariam “virtudes fundamentais de equilíbrio e prudência” (Mancini, 2012, p. 380, tradução nossa). Em Portugal, todas as três leis eleitorais em favor do voto feminino (1931, 1947 e 1969, respectivamente) foram aprovadas durante o regime autoritário que vigorou entre 1926 e 1974.
Para as pesquisadoras, o objetivo por trás das medidas em favor do sufrágio era tentar ampliar a base social das ditaduras por meio do apoio feminino e cultivar uma imagem de modernidade seguindo o exemplo de outros países europeus em matéria de concessão de direitos às mulheres, criando uma forma de “politização sem cidadania” (Aguado, 2012; Mancini, 2012, p. 380, tradução nossa).
A análise das diferentes trajetórias do sufrágio feminino na Europa evidencia as complexidades relativas à inclusão da mulher no processo político-institucional, o que também tem sido levantado por pesquisadores em relação ao caso brasileiro. Durante o período de consolidação do sufrágio, a sociedade era muito conservadora, e a mulher se limitava principalmente ao papel tradicional da esposa-mãe-dona-de-casa (Rago, 1985; Maluf; Mott, 1998; Westhrop, 2022). Mesmo com a existência de movimentos sufragistas e de mulheres feministas na época, os direitos femininos – o que incluía o voto feminino – e a emancipação da mulher eram um terreno desafiador. Assim como nos outros países analisados, não havia apoio substancial para a inclusão das mulheres no processo político-institucional no Brasil. Entre 1891 e 1917 – ou seja, durante 26 anos –, o tema do sufrágio feminino não foi tratado no parlamento brasileiro, e mais 15 anos se passaram até sua promulgação em 1932.
Além do pouco apoio e da ligação do voto feminino a papéis tradicionais e conservadores atribuídos à mulher, outro ponto levantado sobre o caso brasileiro é o viés conservador vinculado à defesa de mudanças da legislação eleitoral, tanto pela influência da igreja quanto do próprio poder político – principalmente em relação ao nível de moralização do processo e à inclusão das mulheres no processo político justamente durante um regime autoritário.
A Igreja Católica tinha perdido um espaço importante com a Proclamação da República e a Constituição de 1891, quando o Brasil se tornou um Estado laico. Até então, era nas igrejas que as votações eram realizadas, sempre seguidas por uma missa. A Proclamação da República havia criado um vácuo de poder, não apenas no interior do Estado, mas também na própria igreja, que tinha perdido seu “chefe”, antes o rei e, depois, o imperador (Fausto, 2007, p. 362). A forma como a igreja alcançou essa mudança foi evitando o conflito com a nova ordem liberal, ao mesmo tempo que usufruía da nova “autonomia” proporcionada pelo próprio distanciamento do poder político (Fausto, 2007). Frente aos tumultos e às incertezas da década de 1920, a igreja se oferecia para socorrer o Estado oligárquico liberal, através de uma campanha constante que “está vazada na luta pelos ‘direitos’ da maioria que deviam traduzir na legislação e na prática do Estado os sentimentos católicos do povo brasileiro” (Fausto, 2007, p. 346). Foi exatamente entre 1930 e 1945 que se abriu uma janela de oportunidade para que a igreja redefinisse seu papel, inaugurando uma “nova cristandade”, ou seja, “a opção da Igreja de utilizar a mediação da sociedade política (do Estado), com seu aparelho coercitivo como meio para o exercício de sua hegemonia na sociedade civil” (Fausto, 2007, p. 339).
Uma das ferramentas utilizadas pela igreja na década seguinte foi a Liga Eleitoral Católica – a LEC, uma associação civil de âmbito nacional fundada em 1932 por Dom Sebastião Leme. A LEC foi criada como uma organização apartidária, um grupo de pressão dedicado a encorajar a população católica a apoiar e votar em candidatos que defendiam a doutrina social da igreja nas eleições de 1933 e 1934. Nas primeiras eleições, a igreja se posicionou a favor do sufrágio, pois o voto feminino era uma parte fundamental da estratégia de encontrar apoio em relação a leis voltadas à família e à educação escolar e ao fim do laicismo na Constituição (Beozzo, 1984 apudPrimolan, 2007; Fausto, 2007).
Essa questão pode ser ilustrada por meio de pesquisas recentes sobre diferentes localidades do Brasil (Araujo, 2003; Carvalho, 2011; Karawejczyk; Maia, 2016). Da mesma forma que nas experiências europeias, os argumentos em favor do sufrágio eram recheados de elementos conservadores. As mulheres que participaram da enquete pesquisada por Rita de Cássia Barbosa de Araujo (2003), por exemplo, argumentaram que o voto feminino não impactaria nas funções de dona de casa e mãe, ratificando o compromisso delas com a igreja e a moralidade, agora fragilizadas pelo laicismo. Mesmo que apoiassem o voto feminino, essas mulheres seguiam com uma visão conservadora e católica.
Há índices do envolvimento das mulheres na LEC que demonstram, por si só, o envolvimento e a influência da igreja na questão feminina na época. A LEC se esforçou para alistar o maior número possível de eleitores católicos. Por exemplo, em Bauru/SP, o jornal A Fé organizava visitas domiciliares. A cidade foi dividida em setores, e cada um desses setores era responsabilidade de uma senhora, sendo que nestas visitas eram explicados os objetivos do LEC, e as eleitoras eram convidadas a se alistarem na Liga (Primolan, 2007). Para Primolan (2007, p. 7), a campanha se baseou em “[...] conclam[ar] as mulheres a superarem o preconceito de uma nova função a elas atribuída e mostr[ar] a importância da participação da mulher nas eleições em defesa da família, da religião e da pátria”. Mesmo após a eleição de 1933, as mulheres da classe média continuaram organizadas, “lutando sobretudo pela moralização dos costumes, pelo fortalecimento da família e pela difusão dos princípios éticos e valores católicos” (Araujo, 2003, p. 144).
De acordo com pesquisadoras (Araujo, 2003; Carvalho, 2011; Karawejczyk; Maia, 2016), a aproximação da Igreja Católica com a causa feminina não estava restrita ao momento de alistamento das mulheres. Como na Espanha, em 1923, uma outra associação foi fundada em São Paulo – a Liga das Senhoras Católicas (Karawejczyk; Maia, 2016, p. 92). Essa associação fazia parte de uma corrente feminista católica, um feminismo católico (Karawejczyk; Maia, 2016; Karawejczyk, 2019). Com esse movimento de mulheres católicas e a proximidade de Bertha Lutz a figuras protestantes12, o movimento feminino brasileiro começou a enfrentar algumas dificuldades (Karawejczyk; Maia, 2016). Para transpor os obstáculos, como a crítica da Igreja Católica à FBPF, no final da década de 1920, Bertha Lutz decidiu incorporar discursos que agradavam à Igreja Católica, que se mostrava cada vez mais um aliado importante para a inclusão do voto feminino na pauta política nacional (Karawejczyk; Maia, 2016).
Não era apenas a Igreja Católica que via o sufrágio sob uma perspectiva conservadora. O conservadorismo também estava presente no próprio Estado brasileiro e nas estratégias político-institucionais da época. Como já vimos, o Código Eleitoral de 1932 é considerado, por alguns autores, como a lei eleitoral mais importante do Brasil, com grande influência na história das eleições do país (Ricci, 2019a). É visto, majoritariamente, como um passo rumo à moralização do processo eleitoral devido à redução de fraudes e à inclusão de sujeitos até então excluídos desse ritual político (Sadek, 2017).
Recentemente, a noção da lei eleitoral como um marco democrático tem sido colocada em xeque pela historiografia. Embora haja uma tendência a avaliar as mudanças e as novas regras eleitorais como um progresso democrático, pouco se sabe sobre os motivos por trás da formulação das medidas inseridas no Código (Ricci, 2019a). Podemos questionar o que levou exatamente os políticos a organizarem um Código Eleitoral tão inovador para a época, investigando o que realmente estava em jogo; “[...] se a pauta já estava dada, crucial então era entender porque os revolucionários embarcam na onda reformista e porque as propostas vingaram no formato que foram aprovadas” (Ricci, 2019a, p. 19).
É importante lembrar que o contexto histórico e político em torno do Código Eleitoral era de grande “instabilidade” (Ricci, 2019a, p. 19; Lopes, 2019, p. 25). Na historiografia, de uma forma geral, esse período costuma ser dividido entre antes e depois do Estado Novo, um regime ditatorial, sem eleições, que praticava censura e repressão política, principalmente aos anarquistas, comunistas e sindicatos. No entanto, a forma de governo anterior, entre 1930 e 1937, também possuía um caráter arbitrário. Com a Lei de Segurança Nacional, aprovada pelo Congresso em abril de 1935, a Constituição praticamente deixou de existir. O governo, exercido pelo chefe do Executivo, conseguiu aprovar uma legislação de caráter excepcional autorizando o fechamento de organizações políticas e a detenção de parlamentares oposicionistas (Gomes, 1980).
O Código Eleitoral foi justamente o meio encontrado pelo governo para tentar se legitimar no poder no meio desta instabilidade política. Para Paolo Ricci (2019b), regimes como o do Brasil na época – autoritários e, ao mesmo tempo, representativos – podem ser classificados como tipos de autoritarismo competitivo. Houve uma inovação de regras, mas as elites políticas ainda estavam no poder, e o governo de plantão era quem estabelecia as “regras do jogo” político a ser desenvolvido (Gomes, 1980; Ricci, 2019b).
Assim como no caso dos outros países analisados, o sufrágio feminino foi instituído durante um governo com características autoritárias. Portanto, quais seriam as vantagens do governo ao propor o Código Eleitoral e apoiar o sufrágio? O que parece evidente é que as razões por trás do apoio ao sufrágio feminino e os impactos gerados por ele são mais complexos do que a simples “conquista” de um direito. O sufrágio feminino constitui uma peça na manutenção de narrativas conservadoras num momento autoritário, inclusive por instituições como a Igreja Católica. Nessa análise não se trata de anular uma ideia, substituindo-a por outra, mas de entender o processo histórico com um pouco mais de profundidade (Hemmings, 2005). Uma chave para isso talvez esteja em compreender o contexto a partir das vozes daqueles que viveram as transformações.
Visões sobre o Voto Feminino no Brasil após a Adoção do Sufrágio Feminino
Para entender o que os atores que vivenciaram a experiência do sufrágio pensavam sobre o voto feminino, nesta seção, analisarei como o tema era abordado nos periódicos selecionados: as revistas femininas, os jornais católicos e os jornais críticos ao sistema político vigente, principalmente anarquistas.
Quais eram as opiniões sobre o voto feminino entre 1933 e 1937? A maioria dos textos analisados a favor do voto feminino tinham uma perspectiva católica ou enxergavam o voto como um instrumento de servilismo, ou seja, como um alicerce à manutenção do status quo e de certos grupos no poder – especificamente a igreja. O que fica evidente não é apenas que a imprensa católica e, inclusive, as revistas femininas eram conservadoras; nosso estudo traz à tona o movimento de construção de narrativa que deixa o voto (e a emancipação das mulheres) de lado para assumir uma forma de persuasão – pela moralidade, por exemplo.
As revistas cariocas aparentavam ser espaços prolíferos para o voto feminino. Embora o foco fosse o universo doméstico familiar, havia matérias sobre moda, beleza e cultura. Ainda publicavam artigos sobre o papel da mulher como cuidadora do lar, do esposo e dos filhos (Soares; Silva, 2013, p. 2; Maluf; Mott, 1998). A Violeta era um espaço de divulgação de trabalhos e ideários da FBPF (Costa, 2013). Numa revista com este perfil, esperávamos encontrar mais textos sobre as eleições realizadas neste período, mas foram poucas as matérias encontradas nas revistas femininas sobre o voto feminino.
A partir da análise da literatura, era de se supor que os jornais católicos fossem um espaço de influência e aliciamento de novas eleitoras. Encontramos matérias enaltecendo o voto, desde que de acordo com a doutrina católica, principalmente em 1933, mas também saíram em 1934 e 1937. O jornal que mais falava deste assunto foi O Cruz (MT).
Nos periódicos anarquistas se encontram textos contrários ao voto feminino, devido à crítica anarquista à ordem política vigente e aos instrumentos de poder, como o voto e a representação política convencional, além do envolvimento da Igreja Católica. Esses textos foram publicados em 1933, 1934 e 1935.
No quadro a seguir, apresentamos uma tipologia das diferentes representações sobre o voto feminino na época.

Entre os argumentos a favor do voto feminino, três aspectos encontrados nos jornais católicos e revistas femininas se mostraram frequentes: o papel social da mulher não deveria ser prejudicado; as mulheres constituíam um eleitorado moral comprometido com as pautas sociais; e as mulheres tinham um dever perante o catolicismo. Portanto, o voto feminino era bem-visto caso não fosse contra os deveres sociais da mulher13, ou seja, deveres ligados ao papel de esposa-mãe-dona-de-casa.
Em A Violeta se publicaram as motivações e os objetivos da FBPF, que, em linhas gerais, tinha como missão “coordenar e orientar os esforços da mulher no sentido de elevar-lhe o nível da cultura e tornar-lhe mais eficiente a atividade social, quer na vida domestica, quer na vida publica, intelectual e politica” (Seção [...], 1934, p. 12). Assim, para além da inserção na esfera política, a conquista de direitos políticos seria uma forma de proteger a mulher trabalhadora e o bem-estar dos filhos, além de servir para as mulheres “tornarem effectivas a sua participação nos negócios públicos” (Seção [...], 1934, p. 12). No tema do voto feminino, um dos objetivos da organização era “[a]ssegurar à mulher os direitos políticos que a nossa Constituição lhe confere e prepará-la para o exercício inteligente desses direitos” (Seção [...], 1934, p. 12). E, a partir da inclusão da mulher no processo eleitoral, competia a ela “alistar-se eleitora para defender a si mesmo, ao seu lar e melhorar as condições de vida de todos os brasileiros [...], pela instituição de leis sabias” (Seção [...], 1934, p. 12, grifo nosso).
Visões similares também aparecem nos periódicos católicos. É possível ver a competência da mulher enaltecida: “A capacidade, a intelectualidade e a cultura feminina, não há negar, são visíveis através da História e pelos tempos modernos. Cérebros femininos de grande visão intelectual têm brilhado nas sciencias, nas letras e na política” (O voto [...], 1933, p. 42, grifo nosso). Apesar de agora apoiar o sufrágio feminino, o papel social da mulher ainda era visto por uma perspectiva conservadora. As mulheres historicamente foram inferiorizadas por um viés biológico, mas, quando se tratava de salvaguardar interesses políticos conservadores, a imprensa católica passava a enaltecer sua inteligência inata, manipulando ainda mais os modelos de moralidade, com o voto delas tendo um papel moralizador. Seria pela sua “personalidade moral” que a mulher poderia “desenvolver livremente a sua capacidade em pról dos interesses políticos dos povos” (O voto [...], 1933, p. 42). Os papéis de esposa e mãe não impossibilitavam a mulher de exercer influência fora do âmbito doméstico e familiar, e essas questões também seriam levadas à esfera política.
Segundo a visão da igreja, o alistamento das mulheres seria crucial porque o voto delas era um caminho para o engrandecimento moral e cívico do país, em uma época em que a mulher guardava certa posição de prestígio e o Brasil carecia de uma reestruturação, não apenas social, mas também moral. Isso era algo importante de ser assimilado, sendo a reestruturação somente alcançada por meio da família, representada por expressões como “santuário involuvel das conciencias”, “sereno templo” (O voto [...], 1933, p. 42) ou “base angular da sociedade” (Irradiando [...], 1934, p. 1). Seria justamente através do voto feminino que esse ambiente “sereno” poderia contribuir para a construção de uma outra nação, mais “livre, ordeira, laborosa, e feliz” (Liga [...], 1933b, p. 2), e não formada por “um clan barbaro, anarchico, tumultuoso e submisso a todas as paixões e vicisitudes (Liga [...], 1933b, p. 2). Portanto, o voto feminino seria uma ferramenta para a manutenção da ordem e da moral católica, em um país aterrorizado por “surtos libertários” que ameaçavam a família tradicional.
A menção a personalidades importantes, como deputados e figuras ilustres como Dom Cardeal Leme, também é utilizada como um recurso para exaltar o voto feminino, que passou a ser caracterizado como uma “vontade de Deus”. Seria o tempo das mulheres se manifestarem em relação aos “altos problemas do Brasil” e trabalhar “em pról dos grandes ideaes da família e da Patria. É um dever de defesa dos sacrossantos princípios da Igreja, da Moral, e da Sociedade, como bem diz o nosso Cardial Leme. A’s urnas, pois, patrícias minhas, Deus o quer!” (O voto [...], 1933, p. 43, grifo nosso)
O apelo à autoridade também se faz presente através da LEC. Inclusive, a maioria das menções relativas ao voto feminino estão relacionadas à organização. Embora não fosse um partido político, era através de informativos e textos sobre a liga que os leitores recebiam orientações sobre como votar ou não votar. Para a LEC, o eleitor católico não deveria votar em candidatos contrários às crenças católicas, incluindo ateus, laicistas e anticlericais, “inimigos da nossa Patria”, “divorcistas”, cuja força seria suficiente para destruir a família, além de comunistas e socialistas, que estariam prestes a gerar “subversão e anarchia social” (Irradiando [...], 1934, p. 1).
A LEC considerava que a maior parte dos eleitores eram católicos, e, por isso, o voto secreto e o voto feminino só tenderiam a ampliar a voz do eleitorado católico e a influência da igreja (Irradiando [...], 1934, p. 1), que necessitava “penetrar nas instituições [a serem] consagradas na carta magna da nacionalidade, ou seja a nova Constituição Politica do Brasil” (Liga [...], 1933a, p. 1).
É interessante observar a retórica da igreja em relação à mudança de postura em torno do voto feminino. Se, antes, a igreja pregava a conservação do papel da mulher ao lar, à esfera privada, agora ela enfatizava que, para participar das eleições, ela não precisava abandonar o lar, “bastaria sair dele duas vezes: para o alistamento e no dia das eleições” (A Liga [...], 1933a, p. 1).
Por mais que o voto não tenha sido pleiteado pela igreja, “[m]uita gente pensa que o voto feminino seja uma conquista dos católicos [...] Os católicos nunca pleitearam. Acreditamos mesmo que a idéa tenha partido de políticos bem alheios ao problema religioso” (A Liga [...], 1933a, p. 1), agora, uma vez instituído em lei, passou a ser um dever da mulher na “salvação da sociedade hodierna” (A Liga [...], 1933a, p. 1). A noção do dever (e não tanto do direito) é enfatizada no texto por meio da fala “feliz” de “uma das grandes paladinas da acção catholica no Rio”, Cecilia Luiza Rangel Pedrosa: “Dando-nos o direito de votar, crearam-nos o dever de votar” (A Liga [...], 1933a, p. 1, grifo nosso).
Como esperado, nos periódicos anarquistas são formuladas narrativas condenando o voto feminino, uma vez que a crítica anarquista era dirigida a todo o sistema político vigente, incluindo os mecanismos representativos. É também nesses periódicos que as opiniões sobre o voto feminino se encontram em linha com as concepções defendidas na literatura mais recente. Havia uma visão de que o eleitorado feminino era um instrumento estratégico utilizado por grupos reacionários, como a igreja, e o reconhecimento de que o sufrágio feminino tinha sido instituído em meio a um contexto autoritário. Outro fator interessante é que, nesses periódicos, também são publicadas opiniões de mulheres (anarquistas) sobre o voto feminino e os direitos políticos da mulher.
São recorrentes textos assinados por Maria Lacerda de Moura, incluindo matérias sobre direitos políticos e o voto feminino, particularmente entre 1933 e 193514. Em 1933, a autora faz uma crítica ao sistema político vigente, à legislação brasileira e à influência da igreja na política, relatando a falência das instituições políticas, estatais, religiosas e educacionais do país e demonstrando sua descrença em relação ao voto feminino. Para ela, o voto não era uma necessidade natural do gênero humano, mas sim uma arma do “vampirismo social” e “a confissão publica do servilismo” (A política [...], 1933, p. 1).O parlamentarismo era um circo, e havia uma “teatralidade dos governos, da politica, da força armada, da burocracia de afilhados — para complicar a vida cegando aos incautos, afim de explorar a todo o gênero humano” (A política [...], 1933, p. 1).
Em meio à falência do sistema político, a energia política das mulheres estava sendo “descoberta” pelos grupos reacionários, agora “simpáticos á intromissão15 da mulher nos negócios de Estado” (Direitos [...], 1933, p. 2). Ou seja, o eleitorado feminino seria usado como instrumento estratégico por grupos reacionários. Por isso, ao pleitear o voto, a mulher estaria se alistando “nas fileiras dos reacionários de todos os séculos” (Direitos [...], 1933, p. 2).
Logo antes da eleição de novembro de 1935, em outubro, foi publicado no Jornal do Povo a matéria intitulada “As feministas... mais uma exploradora do match burguez saias x calças apparece em campo cavando votos” (As feministas [...], 1934, p. 6), que principalmente critica as mulheres “feministas” envolvidas na FBPF, mas também critica o sufrágio feminino: “Darem á mulher o “exercício do voto”! Mas só os cegos não veem que esse “exercício” é um “blague”; para o autor, estas “feministas” estariam cavando votos em nome apenas das “madames burguezas”, concluindo que
A mulher operaria tem reivindicações serias a fazer, ao lado dos seus irmãos que lutam contra a miséria e contra a opressão. A mulher operaria não divide o mundo em saias e calças: divide-o em senhores e escravos. E se bate pela liberdade destes últimos, que é também a sua liberdade
(As feministas [...], 1934, p. 6).Os jornais anarquistas também tecem críticas interessantes ao papel da igreja no processo eleitoral e a toda a política institucional brasileira nos anos 1930, colocando o voto feminino como incapaz de contribuir para a emancipação da mulher e uma maior igualdade de gênero. O voto feminino seria um “atraso”, apoiado na subserviência ao catolicismo. Os anarquistas não preconizavam o voto como uma mediação redentora, mas como um modelo representativo que fazia as individualidades delegarem seu potencial a instâncias abstratas, como demonstram os artigos encontrados. Se as mulheres fossem “cérebros arejados” e “fossem espíritos esclarecidos e libertos dos preconceitos católicos, poeirentos e mofados”, não haveria problema, “[e]las, porém, obedecem mais aos imperativos dos padres, do papa, da igreja, do que aos imperativos da razão, da lógica, da liberdade, da livre crença e do livre pensamento. E eis aí o perigo” (Sermões [...], 1933, p. 1).
O sufrágio seria um “paradoxo”, e era considerado um “progresso-retrocesso”. Se, por um lado, havia passos em direção às “exigências modernas de se irem igualando os sexos pela concessão de direitos comuns para homens e mulheres”, por outro, o voto feminino seria “um maná caído do céu a favor da padraria e da igreja católica, um reforço inesperado às forças retrógradas que vivem a tender para o passado, a desejarem remontar o curso da história para verem restabelecidas todas essas indignidades que eram apanágio dos regimes decaídos” (Sermões [...], 1933, p. 1). As mulheres iriam “engrossar as hostes clericais que pugnam por levar o ensino religioso ás escolas, por restabelecer a Igreja Católica como religião do Estado, religião oficial, e por fazer decretar a nova Constituição em nome da Trindade católica, trindade incoerente e absurda” (Sermões [...], 1933, p. 1).
Inclusive, em 1935, em meio à revisão do Código Eleitoral de 1932, o jornal A Plebereitera a noção do voto feminino como uma estratégia política da igreja:
A mulher, infelizmente, adquiriu o direito do voto, não como razão de seu conhecimento, mas como arma politica clerical. Foi um mal que se tornará em bem, pois, arrastada para a luta, não tardará a vêr o abismo que a seus pés existe
(A questão [...], 1935, p. 2, grifo nosso).Maria Lacerda de Moura é outra que se posiciona criticamente em relação às pretensões políticas da Igreja Católica e sua influência no Estado; para ela, o voto feminino seria “uma calamidade maior”, colocando o país nas mãos de D. Sebastião Leme, “um dos muitos que denominaram a Mussolini — ‘o homem da Providencia’” (Direitos [...], 1933, p. 2).
O contexto autoritário também é recorrentemente lembrado pelos anarquistas, com críticas ao caráter tirânico do regime e à figura do ditador. Maria Lacerda de Moura se apoia no filósofo grego Aristóteles para enfatizar o elemento demagógico presente na utilização do voto feminino pelo governo e por ditadores, visto como uma maneira de conquistar a massa: “Assim fizeram Pisistrate em Athenas, Téagéne em Mégara, Denys em Siracusa. Assim fez Mussolini” (A política [...], 1933, p. 1).
Nesse sentido, as promessas de conquista de direitos seriam vãs palavras de demagogos tornados tiranos: “Caída a mascara que atráe o rebanho humano, o ditador salta no picadeiro da politica, as duas mãos ocupadas: em uma, o "manganelo"; na outra, o oleo de rícino...” (Direitos [...], 1933, p. 2). E conclui: “[O]s governos ditatoriaes e as tiranias casam-se admiravelmente com a petulância dos fariseus da Igreja, no objetivo comum de dominar e escravizar as consciências” (Direitos [...], 1933, p. 2).
Considerações Finais
A queda das barreiras censitárias ao voto e a extensão do direito de votar a todos os homens adultos e, depois, às mulheres aparecem como momentos cruciais da evolução dos países rumo à democracia. No entanto, parte da literatura mais recente sobre a história do sufrágio feminino mundo afora coloca em evidência a complexidade dos contextos de adoção do voto feminino. Tanto nas experiências europeias analisadas quanto no Brasil, o sufrágio feminino foi instituído em um contexto conservador e autoritário em que a influência da Igreja Católica era significativa.
Segundo as fontes analisadas, além da reiteração de argumentos conservadores em relação ao papel da mulher, fica também evidente a influência de outros segmentos da sociedade, como a Igreja Católica. Tanto na perspectiva liberal quanto católica, a crítica ao sufrágio passa a dar lugar à defesa de determinada concepção de voto feminino. É evidente, pela análise dos jornais católicos e através do contraponto das publicações anarquistas, que a Igreja Católica, que buscava reconquistar o espaço perdido ao longo da Primeira República, instrumentalizara o voto de uma forma contundente. Nesse sentido, a igreja surfou na onda do sufrágio na esperança de criar um eleitorado conservador e moralista.
Como vimos na análise, a opinião da igreja mudou. Se antes a igreja pregava pela conservação do papel da mulher ao lar, à esfera privada, agora ela enfatizava que, para participar das eleições, a mulher não precisava abandonar o lar. As fontes trazem à tona o movimento de construção de narrativa que deixa o voto (e a emancipação) de lado para assumir uma forma de persuasão com a finalidade de conservar o status quo, usando uma retórica moralista e conservadora sobre o papel da mulher. Para os anarquistas, isso não se limitava à Igreja Católica, mas incluía também os governos autoritários da época.
As fontes analisadas reiteram a complexidade do processo histórico de adoção do voto feminino, enfatizando os limites e a insuficiência da narrativa histórica predominante sobre os direitos das mulheres e o feminismo, baseada na metáfora das ondas. Ao analisar as experiências sufragistas nos três países europeus e o caso brasileiro, foi possível constatar como o processo atrás do sufrágio feminino foi algo plural, não meramente uma conquista de mulheres que lutavam pela emancipação das mulheres e, mais especificamente, por direitos políticos, revelando como a utilização de narrativas históricas baseadas na metáfora das ondas talvez seja um caminho para simplificar as complexidades relativas à luta, à discussão, às pautas e aos atores envolvidos.
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Notes
Author notes
Martha Celia Ramirez Gálvez, https://orcid.org/0000-0003-3802-393X.