Resumo: Quem pode falar pelo Estado? Apesar de o substantivo diplomata ser comum a dois gêneros, não se atribui à diplomacia características consideradas “femininas”, tampouco a própria figura de uma mulher. O presente artigo tem como objetivo contribuir com a discussão no campo da participação das mulheres no funciona-lismo público, no âmbito da burocracia de alto escalão, mais especificamente a carreira diplomática. A principal questão diz respeito ao que está por trás das desigualdades estruturais e estruturantes no Ministério das Relações Exteriores (MRE) e no Instituto Rio Branco (Itamaraty), partindo do gênero como lente analítica – mas sem desconsiderar questões de raça e sexualidade. Para tanto, observamos (i) o histórico do ingresso de mulheres na carreira desde o Brasil republicano; (ii) as práticas que constituem o habitus e o ethos diplomático desde a formação no Itamaraty até a chegada ao MRE; e (iii) o contrato racial-sexual que circunscreve as práticas de dominação na instituição.
Palavras-chave: gênero, Itamaraty, Ministério das Relações Exteriores, habitus, contrato racial-sexual.
Abstract: Who can speak for the state? Although the noun ‘diplomat’ includes both genders, diplomacy is not attributed to what is considered as ‘feminine’ characteristics, nor even with the figure of a woman herself. This article aims to contribute to the discussion in the field of women’s participation in public service, focusing on high-level bureaucracy – more precisely, the diplomatic career. The main question here concerns what lies behind the structural and structuring inequalities in the Ministry of Foreign Affairs (MRE) and the Rio Branco Institute (Itamaraty), using gender as an analytical lens – but, of course, without disregarding issues of race and sexuality. To this end, we observed (i) the history of women entering the career since the beginning of the Brazilian republic; (ii) the practices that constitute the diplomatic habitus and ethos, from initial training at Itamaraty to the arrival at the MRE; and (iii) the racial-sexual contract that circumscribes the practices of domination in the institution.
Keywords: Gender, Itamaraty, Ministry of Foreign Affairs, habitus, racialsexual contract.
ARTIGOS
Habitus e Contrato: por trás da Desigualdade de Gênero no Ministério das Relações Exteriores
Habitus and Contract: Behind Gender Inequality in the Ministry of Foreign Affairs
Received: 14 October 2023
Accepted: 13 December 2024
Published: 10 June 2024
A diplomacia brasileira ainda não perdeu sua principal característica: ser aristocrática. A influência do Barão de Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira, tem se perpetuado no Ministério das Relações Exteriores (MRE) para além da sua excelência na atuação. Ela invade a sala, seleciona os corpos e, por conseguinte, exclui outros. O discurso liberal meritocrático é refletido nos critérios de seleção durante o processo de admissão à carreira, característico das elites do Brasil. Dessa forma, um tipo ideal de candidato é criado: homem, branco, preferivelmente sudestino, de família com tradição em negócios de Estado e tendo estudado num punhado determinado de universidades.
Essa “peneira”, como diz o jargão popular, é bastante excludente. Decerto que parte do corpo diplomático do MRE não possui esse perfil, mas também é verdade que esta parte é minoritária. A pesquisa realizada pela Associação dos Diplomatas Brasileiros (2023) revelou que, até agosto de 2023, entre os 1.888 diplomatas concursados, 1535 estavam na ativa (81,3%) e 353 inativos (18,7%). Do número total (ativos + inativos), apenas 417 (22%) eram mulheres. Apesar de ser um percentual baixo e que não reflete a realidade do Brasil, é uma expressão muito melhor do que fora outrora, pois a possibilidade de adentrar na carreira diplomática já foi grande entrave às mulheres interessadas.
O século XX, nesse sentido, foi palco para diversas mudanças no tocante à carreira diplomática em si, unificada através da Reforma Oswaldo Aranha, de 1931 – mais especificamente através do Decreto-Lei nº 791 (DL-791) (Brasil, 1938), que revogou a Lei Orgânica dos Serviços Diplomático e Consular para criar novo arcabouço legal para o MRE; tal decreto burocratizou e estabeleceu regras nítidas para a seleção de candidatos com um determinado capital cultural (Azambuja, 2011). Segundo Tomas (2020, p. 29), a reforma foi parte de um fenômeno social mais amplo, que simultaneamente afastou as mulheres de cargos do serviço público para os quais eram consideradas “naturalmente inaptas” e estabeleceu divisões sexuais do trabalho. Além disso, a expressão “todos os brasileiros” disposta nos editais e chamadas para concursos públicos se referia apenas aos homens brancos brasileiros considerados cidadãos (Balbino, 2011). Portanto, somente eles estariam aptos a postular a carreira diplomática, porquanto o DL-791 fez com que 16 anos se passassem sem que as mulheres pudessem ingressar na carreira diplomática, contando apenas com o Grupo das 20 que, veremos a seguir, conseguiu entrar no MRE (Friaça, 2018).
Uma segunda característica essencial, passada a peneira, é a disposição da pessoa candidata a “sacrificar” a família (ou o desejo de ter uma) em nome do trabalho, da pátria, da nação. Esta característica esteve fortemente presente como um fator limitador à entrada de mulheres na carreira durante o processo seletivo na fase das entrevistas, abolidas em 1984, e também durante o exercício do trabalho, limitando-as na questão da progressão na carreira (Cockles; Steiner, 2017; Gobo, 2017). No tocante às entrevistas, uma prática era bastante comum: o assédio às candidatas. E dentro do MRE não era diferente – foi o que mobilizou o Grupo de Mulheres Diplomatas a realizar, em 2013, denúncias sobre casos de machismo no MRE (Cockles; Steiner, 2017).
A peneira, o custo familiar e a prática do assédio nos levam ao entendimento do conceito de habitus de Bourdieu (2009) e de sua constituição dentro do Ministério das Relações Exteriores (e também do Instituto Rio Branco, ou Itamaraty), que passa a monopolizar tanto a seleção quanto a formação de diplomatas brasileiros. Isto porque ele corporifica as estruturas de dominação sobre os corpos destoantes, que coloca mulheres e outros grupos (negros, deficientes físicos, população LGBT+) nas margens, bem como promove uma constante interação (dialética) entre corpos e campos (Standfield, 2020), diplomatas e instituição (MRE/Itamaraty). Dessa forma, argumentamos que as noções de contrato sexual (Pateman, 1988) e de contrato racial (Mills, 1997) são importantes categorias que nos permitem compreender as relações de dominação e de subordinação inerentes à carreira diplomática, traduzidas na alta seletividade e na baixa representatividade de grupos marginalizados, para além da dificuldade de progressão de carreira das mulheres.
Isso nos leva a alguns questionamentos: quem pode falar pelo Estado – e por que não mulheres? Quais fatores têm, historicamente, impedido mulheres de acessar e ascender na carreira diplomática? Sob quais signos outros grupos marginalizados – negros e LGBTQIA+, por exemplo – vivem em instituições do alto escalão da burocracia estatal brasileira? Em suma, o que está por trás das desigualdades estruturais (de gênero, raça, classe e orientação sexual) no MRE?
Para endereçar as questões que nos mobilizam, o presente artigo adota uma abordagem crítico-analítica, que integra uma série de conceitos teóricos com o propósito de descrever minuciosamente e analisar as proposições apresentadas. Na primeira seção, apresentamos um levantamento geral sobre o processo de acesso, admissão e progressão à carreira diplomática considerando o público-alvo principal as mulheres – mas não se restringindo apenas a este grupo. Na segunda seção, desenvolvemos o conceito de habitus constituído no seio do Instituto Rio Branco (Itamaraty), considerando sua capacidade socializante no tocante às estruturas de dominação. E, na última seção, discutimos o contrato racial-sexual como sendo as raízes das relações de subordinação no Ministério das Relações Exteriores do Brasil, compreendida em seus três momentos: patrimonialista, carismático e burocrático-racional.
De início, é necessário situar que o acesso, o ingresso e a progressão figuram como três fases inerentes à vida profissional como um todo. Grosso modo, entendemos que o acesso diz respeito à qualificação necessária e à disponibilidade de informação sobre oportunidades de emprego. O ingresso, por sua vez, relaciona-se à entrada numa determinada área através de uma oportunidade de emprego. E a progressão seria nada mais, nada menos que ascender na carreira até chegar aos postos mais altos. No tocante à carreira diplomática, consideramos aqui que existem limitações de ordem social que sofreram mutações ao longo dos anos para as mulheres interessadas. Essas mutações migraram de uma fase para a outra, respectivamente, como descrito acima. Para observá-las cuidadosamente, é necessário pensar numa espécie de linha do tempo.
Em primeiro lugar, o acesso das mulheres à carreira diplomática não possui um histórico uniforme. Com o advento da República em 1889, os concursos públicos foram lançados (em 1891) para que “todos os brasileiros” pudessem postular (Balbino, 2011). O que conhecemos hoje como carreira diplomática era subdividida, à época, em três carreiras distintas: consular, diplomática e a carreira na Secretaria de Estado (Friaça, 2018). Contudo, o Decreto-Lei 791 (Brasil, 1938), que criou novo arcabouço legal para o MRE, unificou as três carreiras numa só. Ele também restringiu o acesso de mulheres à carreira, de modo que apenas candidatos do sexo masculino pudessem concorrer. Contudo, a consolidação das carreiras aconteceu de maneira holística. Dito de outra forma, todas as pessoas já integrantes do serviço exterior através dos demais concursos – para a carreira consular ou na Secretaria de Estado – passaram a ser diplomatas (Friaça, 2018).
Houve um ínfimo, porém legítimo número de mulheres que conseguiram acessar o MRE até 1938: foram 19 admitidas, junto com Maria José Monteiro de Carvalho, integrada à carreira diplomática após a primeira reforma. Este quadro apenas se reverteu no ano de 1954, através da Lei n. 2.171 (Brasil, 1954), que deu fim aos 16 anos de afastamento das mulheres do acesso à carreira. De acordo com o elenco proposto por Friaça (2018), essas primeiras mulheres diplomatas são conhecidas como o Grupo das 20; e aquelas que surgiram entre 1955 e 1988 são as diplomatas da “segunda geração”. O autor argumenta que as últimas tiveram limitações impostas junto com as reformas e, por isso, não puderam realizar o que chama de “atos célebres” (Friaça, 2018).
Duas dessas limitações foram (i) a proibição do casamento, revogada em 1966; (ii) e o Decreto-Lei 69, que determinava aos casais de diplomatas, quando servidores em curso, o ato de ‘agregar’ em remoções para servir em postos no exterior (Cockles; Steiner, 2017; Friaça, 2018). Dito de outra maneira, uma das partes poderia escolher ficar e servir no Brasil ou acompanhar a pessoa parceira no exterior, sendo que, no último caso, seu tempo de trabalho seria congelado. Assim, caso fossem necessários 12 anos de serviço para uma determinada promoção, uma mulher que tivesse agregado junto a seu marido por 2 anos, teria apenas 10 anos de serviço e, dessa forma, não poderia concorrer.
Muito embora a agregação não determinasse o gênero que deveria agregar, geralmente as mulheres faziam esta escolha. Isso se relaciona com dois aspectos que, na realidade, são duas faces da mesma moeda: de um lado, com o lugar de cuidado que é socialmente atribuído às mulheres, e, do outro, com a “identidade de diplomata”. Ambos os aspectos dizem respeito a uma espécie de custo familiar, que se refere ao quanto se está disposta a sacrificar o desejo de ter uma família em prol do trabalho (Cockles; Steiner, 2017).
Considerando os papéis de gênero presentes na sociedade, que colocam o homem como um ser racional, profissional, com capacidade de ser impessoal e a mulher como mais emotiva, impulsiva e sentimental, há um tipo de sujeito que se espera que esteja atuando nessa esfera pública. Evidentemente, essas noções não se manifestam, necessariamente, em obstáculos concretos, mas permeiam nosso imaginário e sustentam percepções sobre a realidade. Essas construções entregam nas mãos das mulheres e esposas as atividades de cumprimento das necessidades básicas da família, da criação dos filhos e da administração doméstica. Aos homens, os “chefes de família”, cabiam a responsabilidade de administrar os negócios, a organização financeira, a provisão de recursos e a administração e crescimento de sua propriedade, mas também tempo e liberdade para se encontrar com outros homens e discutir questões de Estado (Delamonica, 2014).
O custo familiar também se infiltrou no próprio processo admissional, impactando no ingresso das mulheres na carreira diplomática. No final da ditadura militar, enquanto o Brasil se redemocratizava, entre 1985 e 1988, o concurso passou a ser democratizado para contar com a aplicação em todas as capitais brasileiras e uma busca por representar a diversidade do país (Gobo, 2017). Em meio a tantas fases e avaliações, a entrevista passou a ser uma etapa que se distinguia devido ao seu caráter costumeiramente constrangedor às mulheres. As autoras Cockles e Steiner (2017) se propuseram conversar com mulheres que passaram pelo processo seletivo, e os relatos envolviam assédio por parte dos entrevistadores (diplomatas de carreira) às candidatas do sexo feminino. As perguntas realizadas durante a entrevista giravam em torno do desejo de se casar, da escolha entre família e trabalho e até da hipótese da agregação – perguntas do tipo “se você casa com um diplomata, quem você acha que deveria agregar?”.
Karla Gobo (Chutando [...], 2018) também relatou sobre a existência da prática de assédio durante o processo seletivo. Um caso que chama atenção é o da candidata que recebeu o pedido de que levantasse sua blusa durante a entrevista por um membro da banca – inteiramente composta por homens brancos, diga-se de passagem. A entrevistada questionou se haveria algum procedimento médico durante o processo e a resposta que recebeu foi: “Considere que sim, e considere que não (sic)”. Dessa forma, entendemos que o constrangimento e a exclusão são duas práticas já legitimadas dentro do MRE, que não somente conferem autoridade ao grupo masculino dominante, como também perpetuam a dominação masculina (Bourdieu, 2002) na instituição.
Excluídas as entrevistas do processo seletivo em 1984 – e as provas orais em 2005 –, o destaque move-se em direção à fase da progressão na carreira, que foi fortemente tocada durante a chefia de Celso Amorim, como ministro das Relações Exteriores do governo Lula (2003-2011). O ex-ministro mobilizou o que ficou conhecido no Ministério como “cotas informais” para viabilizar tanto a nomeação ao Quadro de Acesso (QA) quanto a promoção de mulheres diplomatas. É necessário destacar, porém, que a atuação de Amorim se deu de maneira independente e autônoma. Assim, não era plataforma do governo – ou do Partido dos Trabalhadores (PT), ao qual o ministro se filiou – a igualdade ou paridade de gênero especificamente dentro do MRE, mas havia interesse por parte do ministro (Cockles; Steiner, 2017; Gobo, 2017).
Além de tentar lograr medidas compensatórias, como recuperar o tempo de serviço daquelas que agregaram – o que conseguiu, ainda que parcialmente –, Amorim tentou estabelecer medidas afirmativas através de persuasão à sua assessoria. Em adição, o chanceler pedia que houvesse “pelo menos uma [mulher #no ato das nomeações ao já mencionado Quadro de Acesso, que determina os nomes aptos a receberem promoções semestralmente (Cockles; Steiner, 2017). As autoras apontam, ainda, que entre os anos de 2003 e 2009 houve um salto na participação das mulheres no QA, indo dos 10% aos 29% de nomeadas e dos 16% aos 29% das promovidas no período. Assim, as cotas informais (como ficaram conhecidas) estabelecidas pelo ex-ministro Celso Amorim se consolidaram, à época, como uma estratégia informal e direta, e não se sustentaram como uma prática ou hábito do MRE (Cockles; Steiner, 2017). Apesar disso, as cotas informais abalaram a estabilidade da instituição, na medida em que desafiaram a dominação masculina. A dominação masculina é uma forma específica de violência que se expressa por vias simbólicas, cujas estruturas históricas da ordem masculina permitem o reconhecimento da dominação sobre o feminino (Bourdieu, 2002). Já a discriminação positiva é a definição legal de cotas em favor de grupos minoritários para o acesso (Azevedo, 2004).
Deste modo, houve, por parte dos diplomatas do sexo masculino, um certo rechaço às cotas informais: para eles, não havia machismo no Itamaraty. Em resposta a uma coluna de jornal publicada sobre a mesma problemática – de que não havia machismo no Itamaraty –, as mulheres diplomatas levantaram cerca de 100 denúncias sobre machismo no MRE, o que levou à criação do Comitê Gestor de Gênero e Raça (CGGR-MRE) em 2014. Ora, se de um lado, a mobilização pela abertura de oportunidades a um determinado grupo (como feito pelo ex-ministro Celso Amorim) implicou um ato implícito de reconhecimento das desigualdades de gênero no Ministério, por outro, a criação do CGGR-MRE também se baseou no reconhecimento de tais diferenças para a sua fundação – ainda que o objetivo tenha sido a obtenção do selo Pró-Equidade Gênero e Raça pelas Nações Unidas (Azevedo, 2004; Bourdieu, 2002; Cockles; Steiner, 2017). Após a instauração do CCGR-MRE, as denúncias foram enviadas à Corregedoria e à Comissão de Ética, e um mecanismo de prevenção e de mitigação das questões relacionadas dentro do MRE foi formalizado (Cockles; Steiner, 2017; Gobo, 2017).
Ainda em 2013, o grupo de mulheres que enviou as denúncias se organizou, informalmente, para atuar internamente no MRE em suas demandas: era o Grupo de Mulheres Diplomatas. A partir daí, algumas ações foram estabelecidas no intuito de atrair mulheres à carreira diplomática, como, por exemplo, a campanha “Mais Mulheres Diplomatas” (2018), que contava com vídeos de diplomatas relatando suas experiências de acesso à carreira e convidando mais mulheres para juntarem-se ao serviço – e, consequentemente, à sua luta. Dez anos mais tarde, em 2023, o Grupo de Mulheres Diplomatas se institucionalizou e incorporou diplomatas ativas e aposentadas para o lançamento da Associação de Mulheres Diplomatas do Brasil (AMDB, ou Mulheres Diplomatas), sob a presidência de Irene Vida Gala, embaixadora e diplomata de carreira. Segundo a Organização, este movimento integra-se a “um fenômeno internacional de organização de mulheres na diplomacia”5.
Em palestra realizada durante o primeiro encontro presencial da Rede Latino-Americana de Mulheres Pesquisadoras em Relações Internacionais – MulheRIs/MujeRIs, em 24 de julho de 2023, em Belo Horizonte/MG, Vida Gala expressou que a AMDB é a primeira organização de servidoras públicas (do serviço exterior) no Brasil. Atualmente, a AMDB realiza um trabalho de mobilização do debate público através da divulgação de notas e participação em eventos, de coleta e compilação de dados socioeconômicos das diplomatas no Ministério. Inclusive, a AMDB desempenha um papel social no tocante ao processo seletivo através do apoio à preparação das candidatas para as provas. Ainda, a Associação conta com um Observatório de Política Externa Inclusiva, que tem o apoio de pesquisadoras da sociedade civil, além de mulheres de outros países (Gala, 2023). Mais recentemente, numa tentativa de ampliar o debate sobre política externa e políticas públicas, bem como sobre uma política externa feminista/inclusiva, a organização lançou um podcast chamado “Mulheres no Mapa”.
No final de 2023, a falta de transparência nas promoções do Itamaraty causou controvérsia. A insatisfação dos diplomatas chegou ao ponto de ameaçar uma greve, e a presidente da Associação dos Diplomatas Brasileiros (ADB), Maria Celina de Azevedo Rodrigues, renunciou após denunciar, em um documento aprovado em Assembleia Geral da Associação, a “existência de obstrução quase completa à promoção de secretários e conselheiros aos níveis hierárquicos mais elevados da carreira de diplomata” (Lopes, 2023). Em entrevista, a embaixadora Irene Vida Gala afirmou que esses acontecimentos estão alinhados com o que tem sido articulado pela AMDB na busca por transparência e critérios objetivos para as promoções (Gala, 2023). Ainda em dezembro de 2023, a ministra Isabel Heyvaert entrou com um mandado de segurança no Superior Tribunal de Justiça alegando discriminação racial e de gênero nas promoções ao cargo de embaixador. A diplomata defendeu que cumpriu todos os requisitos necessários para a promoção, mas que colegas em classificação inferior a ela foram promovidos antes.
Dessa forma, a atuação das Mulheres Diplomatas vai de acordo com o que apontou Marielle Franco (2018) no que tange às políticas compensatórias à sub-representação de diferentes grupos sociais em espaços de tomada de decisão ou quaisquer outros dentro da esfera pública. Afinal de contas, segundo as palavras de Franco (2018, p. 120), “[p]recisamos cultivar o bom senso para construir uma nova estética política na perspectiva de articular gênero, raça, classe e territórios populares para que a vida das pessoas seja colocada acima do lucro”. Portanto, a questão da participação feminina em cargos de alto escalão no Estado, como a carreira diplomática, está relacionada ao contexto de maior preocupação com a representação política adequada de distintos grupos sociais, não sendo apenas uma questão de presença das mulheres nas instituições (Balbino, 2011). Incluem-se todos os grupos étnico-raciais e classes socioeconômicas, a fim de que a democracia exista de fato.
No caso brasileiro, diferentemente de outros Estados que se tornaram referência no tema de implementação de políticas de promoção de igualdade de gênero e políticas externas alegadamente feministas, a questão de gênero não pode ser separada de questões de raça e classe e, consequentemente, da forma com que essas categorias organizam hierarquicamente a sociedade. Até agosto de 2023, como dito na introdução deste artigo, as mulheres representam cerca de 22% dos diplomatas do Itamaraty (ADB, 2023), mas a porcentagem de pessoas negras, independentemente de gênero, é de apenas 5% (mesmo após a implementação de cotas raciais no concurso de admissão à carreira diplomática). No que concerne à distribuição geográfica, 62% dos diplomatas são provenientes do Sudeste, região economicamente mais privilegiada. As demais regiões seguem com Sul (14%), Nordeste (11%), Centro-Oeste (7%) e Norte (1%), e Exterior (5%), segundo pesquisa da ADB (2023).
A mesma pesquisa informa que a distribuição de posições no topo da hierarquia diplomática tende a ser menor para as mulheres. Entre 1985 e 2022, o quadro de carreira diplomática registrou 353 aposentadorias, sendo 59 (17%) de mulheres e 294 (83%) de homens. No topo da carreira, como Ministro/a de 1ª Classe, apenas 8% (15 casos) das aposentadas foram mulheres, enquanto 92% (182) foram homens. Como Ministros/as de 2ª Classe, a proporção foi de 13% (8 casos) mulheres e 87% (55) homens; e como Conselheiros/as, 38% (33 casos) foram mulheres e 62% (54) foram homens. Já em um levantamento preliminar sobre mulheres na ativa em posição de chefia em postos no exterior, realizado pela AMDB em 2023, verificou-se que, até 31 de janeiro do mesmo ano, apenas 30 mulheres ocupavam tais posições (cerca de 13,82%). Homens, por outro lado, ocupavam 171 cargos; 14 postos não foram identificados e 2 estavam sem chefia (AMDB, 2023b).
A representatividade do quadro de funcionários, olhada por uma perspectiva bourdieusiana, demonstra-se principalmente como uma questão de construção de um habitus diplomático branco, masculinizado e elitista. A noção de habitus é definida por Bourdieu (2009, p. 87) como sendo “sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo”. Como um produto da história, o habitus regula, produz e reativa sentidos objetificados nas instituições, a partir de regras formais e normas explícitas, bem como de “esquemas de percepção, de pensamento e de ação” (Bourdieu, 2009, p. 89) os quais garantem a conformidade e a constância das práticas ao longo do tempo.
Aplicar essa perspectiva requer, assim, questionar estruturas sociais e transcender abordagens subjetivistas, nas quais as práticas e modos de pensar dominantes que constituem um campo6 podem ser reproduzidos. Desse modo, Bourdieu (2009, p. 87) nos convida a analisar as práticas, “o lugar da dialética [...] dos produtos objetificados e dos produtos incorporados da prática histórica, das estruturas e dos habitus”. Em outras palavras, práticas sociais emergem da interação entre corpos e campos. Elas não são alheias às estruturas de poder, mas ativamente as reproduzem ou rompem com elas (Standfield, 2020).
Enquanto o habitus diplomático tem características semelhantes a outras Instituições Internacionais e Ministérios de Relações Exteriores, no Brasil, defendemos que sua construção ocorre principalmente devido a duas variáveis: (i) o processo de ressocialização de novos diplomatas através do Instituto Rio Branco, responsável pela formação e treinamento dos ingressantes na carreira; e (ii) a influência e ações do patrono do Itamaraty, o Barão do Rio Banco, e suas tendências a homogeneizar o corpo diplomático para performar ideais aristocráticos. A construção do habitus diplomático brasileiro deixa evidente que privilégios e relações hierárquicas no Ministério vão além de postos e promoções, mas incorporam aspectos de grupos sociais muito específicos. É importante notar que, quando Bourdieu aponta que as práticas emergem da interação entre corpos e campos, esses corpos passam a encarnar estruturas de dominação (Standfield, 2020), e isso reproduz diferenciações socialmente construídas (como distinções de raça e gênero) que se tornam inscritas nos corpos e se expressam mediante comportamentos, vestimentas, discursos e espaços de uso (Standfield, 2020).
A homogeneidade na organização social do Itamaraty só persiste devido às suas práticas sociais e ao processo de corporificação das estruturas de dominação em corpos que diferem daqueles que participaram da construção do habitus, o que resulta na subordinação de grupos que buscam maior participação e representatividade política. Enquanto investigações feministas já demonstraram como as mulheres são relegadas à esfera privada e enfrentam dificuldades para se inserir nos ambientes políticos e na esfera pública, entender um campo social através de seu habitus e as práticas que o compõem demonstra que, para além das mulheres, outros grupos sociais são condenados às margens, por carregarem marcadores de diferença em relação ao grupo dominante inscritos em seus corpos. Assim, segundo Azambuja (2011, n.p),
Não só eram os diplomatas brasileiros parecidos entre si, como éramos também parecidos com todos os diplomatas do mundo – mas um mundo que consistia em uns quarenta países, dentre os quais talvez uma dúzia ou pouco mais que de fato contassem. Integrávamos uma elite, uma comunidade global que compartilhava estilos e práticas.
Na década de 1930, com o processo de burocratização da administração do Itamaraty, o Ministério passou a conduzir o recrutamento e a admissão de seus funcionários através de editais e regras de seleção estabelecidas. No entanto, podemos dizer que o objetivo de selecionar os candidatos com maior capital cultural não se alterou. “Deixou de ser uma Casa de elite por seleção aristocrática para ser também uma Casa de elite por seleção intelectual. O conceito de elite não só permaneceu como robusteceu” (Azambuja, 2011, n.p). A essa altura, os concursos passaram a ser organizados pelo Departamento Administrativo do Serviço Público, que estabeleceu provas não identificadas como forma de selecionar candidatos por um critério de mérito, e não mais pelo critério personalista que vigorava até então.
No entanto, a adoção de provas como critério de seleção, ao contrário do que possa parecer, não democratiza o acesso à Casa, nem torna seus funcionários representativos da população que devem representar no exterior. Este é um problema que persiste até os dias atuais. Segundo pesquisa da ADB (2023), entre 2003 a 2022, dos 1.199 indivíduos aprovados no Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD), 880 são homens (cerca de 73% dos casos), enquanto que 319 são mulheres (27%). De outra parte, mesmo que os concursos prezem por candidatos capazes de ser aprovados em extensas provas de conhecimentos e idiomas estrangeiros, o próprio teor das provas deixa evidente o alto capital cultural que se espera de seus candidatos (Gobo, 2016). A associação com a elite nacional deixou de ser um requisito por princípios personalistas, mas a admissão à carreira ainda permanece vinculada ao acesso a um alto grau de instrução formal:
[...] as mulheres foram sistematicamente excluídas, vários homens foram preteridos, em consequência dos critérios extremamente subjetivos utilizados pela banca, como ‘qualidades morais e de firmeza de caráter’, assim como ‘capacidade intelectual e formação espiritual’ [...] De concurso, não havia efetivamente nada, sendo uma farsa para acomodar nomeações políticas. O primeiro recrutamento conduzido pelo Itamaraty após a criação do IRBr e o fim do Estado Novo levou, portanto, a resultados pouco adequados e esteve longe de romper com práticas do passado e inaugurar uma nova era
(Farias; Carmo, 2016, p. 53).O Instituto Rio Branco (IRBr), mesmo que inicialmente pensado com outros objetivos, logo se tornou a instituição que exerce as funções de hoje: formar os ingressantes nos conhecimentos necessários para a representação do Estado no exterior e, sobretudo, formar os ingressantes na cultura institucional da Casa. A ideia de que novos atores passariam a integrar o MRE uma vez que a seleção fosse feita seguindo critérios de mérito tornou necessário o aperfeiçoamento posterior dos quadros de pessoal. Segundo o secretário Jorge Latour (1934 apudCheibub, 1985, p. 127), “Para tanto cumpre formar ambiente e fazer escola”. Assim, os idealizadores do IRBr viam o Instituto com o objetivo de cumprir um papel semelhante à Escola Superior de Guerra para os militares, ao mesmo tempo que acumularia também funções profissionais, como nas Academias Militares e Escolas de Comando. Na prática, o que aconteceu foi que o Instituto apenas tomou o monopólio na seleção e formação de diplomatas brasileiros. O monopólio, na prática, era uma forma de o MRE reagir ao recrutamento via concurso do Departamento Administrativo do Serviço Público e manter sob controle os membros do Itamaraty (Moura, 2007).
No entanto, a importância do Instituto vai além de simplesmente ensinar e treinar os novos diplomatas em assuntos de interesse da política externa. Sua importância em muito se refere à sua capacidade socializante. Muito além do conteúdo das disciplinas estudadas no Instituto Rio Branco7, a “forma” é o maior objeto de aprendizado. “Há algo mais importante para os novos diplomatas do que estudar a matéria das aulas: aprender o ethos da casa” (Moura, 2007, p. 85). O IRBr, ao longo do tempo, reafirma e reproduz o habitus diplomático que teria conseguido
[...] se estabelecer como um ‘estamento’ que se caracteriza por uma visão de mundo e estilo de vida particulares que compõem um ethos que guarda certas semelhanças com o ethos cortês [...] o adjetivo ‘nobre’ ou ‘aristocrático’ é utilizado por candidatos e seus parentes para designar o ‘diplomata’
(Moura, 2007, p. 48).O Instituto Rio Branco passou a ser não somente um centro de instrução e especialização dos diplomatas nos assuntos de política externa, mas se constituiu, principalmente, como um ambiente socializador, em que o habitus diplomático é reforçado e passado adiante, para mitigar possíveis diferenças de origem dos novos diplomatas, uma vez que agora a seleção se daria por meio de concursos públicos. A força da “nova identidade” recebida na cerimônia de posse no Instituto é traduzida na crença de que, a partir daquele momento, os novos alunos “deixam de ser o que são para se tornarem diplomatas” (Moura, 2007, p. 95).
O habitus diplomático, então, pode ser definido como uma incorporação, aparentemente naturalizada, de um conjunto de códigos, que na carreira são traduzidos como “vocação”. Segundo Gobo (2016, p. 154), “essa ideia, ao fazer parecer que esses códigos são traços da personalidade, individuais, acaba por camuflar o fato de que são códigos aprendidos e internalizados”. Na medida em que o ingresso de novos candidatos abre precedente para uma heterogeneização dos membros do Ministério, os atores que não detêm domínio sobre esses códigos passam a desejar internalizá-los. Isso porque, uma vez que o habitus é assimilado e transmitido, mesmo que tardiamente, sua estrutura age também de maneira estruturante. Dito de outra maneira, o habitus, enquanto estrutura, uma vez estabelecido, pode moldar o comportamento de atores (Bourdieu, 2009). Portanto, nas palavras de Gobo (2019, p. 2), “O Itamaraty não é apenas mais um ambiente de trabalho de uma burocracia. Ele carrega uma série de signos que são a própria representação materializada de seus agentes”.
A ideia de uma vocação à carreira, que ignora o caráter aprendido do habitus diplomático, cria, também, a ideia de não vocação. Desde a criação do MRE até o fim da etapa de entrevistas (1984), grupos que personificavam e encarnavam (embody) características “desviantes” do padrão esperado eram desclassificados. Contudo, até 2005, enquanto perduraram as etapas de provas orais, não se podia dizer que algum candidato tenha sido desclassificado por essa característica. Dentre os não vocacionados estavam mulheres, pessoas negras, pessoas LGBTQIA+, além de qualquer candidato que não apresentasse os níveis esperados de capital cultural.
Se a criação de margens está intimamente relacionada com a acumulação de capital simbólico e, consequentemente, de poder, em suas múltiplas manifestações, por parte de um grupo dominante que constitui e cria um centro, a manutenção diária das relações entre margens e centros também requer ações constantes deste grupo dominante. Dessa forma, torna-se muito mais improvável que os ditos centros possam efetivamente ouvir e entender as margens, que são sempre retratadas como vozes impossíveis de serem ouvidas de tão longe, ou representadas como carentes de linguagem ou articulação para serem entendidas (Enloe, 2014). De forma similar, se verdadeiramente ouvir as margens em suas práticas e discursos diários significa entender como o poder age no mundo, entender a construção de campos e habitus nos quais estas práticas se reproduzem também se conecta com a compreensão de como o poder opera nas relações de dominação.
A construção do campo no qual o habitus diplomático brasileiro se desenvolveu foi, acima de tudo, um processo excludente, que reforçou as diferenciações de gênero, classe e raça. Visões revisionistas do contrato social, como as de Pateman (1988) e Mills (1997), sugerem um novo olhar para a gênese de uma sociedade, pautada não em um contrato igualitário entre as partes, mas em um acordo entre grupos dominantes para legitimar subordinações que sustentam a estrutura social – e são, ao mesmo tempo, reproduzidas por ela. Embora não se trate de uma sociedade nacional, propomos a tradução de tais noções de contrato racial e contrato sexual para a formação do campo a ser analisado, de forma a melhor compreender como o habitus resultante se pauta também na exclusão de grupos sociais.
Segundo Charles Mills (1997), o contrato racial é um conjunto de disposições normativas, formais ou informais, de ordem política, moral e epistemológica, cujos membros signatários são designados a partir de critérios raciais. Assim, enquanto alguns grupos humanos, correspondentes aos brancos, são classificados como pessoas plenas, outros grupos humanos não brancos são categorizados como subpessoas e com um status diferente e “inferior”. Com efeito, esse segundo grupo recebeu posições civis subordinadas aos grupos brancos ou políticas controladas por brancos. Logo, para Mills (1997), o contrato racial é um contrato de exploração, que tanto funda quanto ampara um regime político racial, ao passo que regula moralmente o comportamento dos cidadãos, prescreve normas de cognição e determina quem fica com o quê a partir do estabelecimento de limites.
Já a noção de contrato sexual, de Carole Pateman (1988), consiste na ideia de que o direito político dos homens sobre as mulheres deriva de um pacto social-sexual originário que estabelece a liberdade civil como um atributo masculino e dependente do direito patriarcal, ao mesmo tempo que impõe a dominação e sujeição das mulheres e seus corpos à disposição dos homens. Com isso, o contrato sexual estabelece os termos das relações de subordinação a partir da criação de uma esfera privada que é destinada às mulheres na transição do estado de natureza para o Estado, conforme elas são inseridas em uma posição fora da esfera pública da sociedade civil e em uma posição de subordinação aos homens que integram essa esfera. Enquanto a sociedade civil patriarcal privilegia apenas a esfera pública, dirigida aos homens, a esfera privada se caracteriza por ser vista como politicamente irrelevante e destinada às mulheres, segundo Pateman (1988).
Nesse ponto, cabe ressaltar a importância de se olhar para o contrato racial-sexual através de uma lógica de imbricação (Gill; Pires, 2019) que articula gênero, raça, classe e sexualidade como princípios estruturantes da sociedade contemporânea sobrepostos nas relações de poder. Assim, trabalhar a imbricação das categorias permite, transversalmente, entender o gênero não como mero objeto, mas “como lente de análise que dimensiona as estruturas de poder que configuram, de forma imbricada, o sistema moderno/colonial global” (Gill; Pires, 2019, p. 48).
Até hoje observamos os efeitos de uma hierarquia patriarcal e racial na dificuldade de se ter um Ministério verdadeiramente representativo da sociedade brasileira, em nome da qual fala no exterior e em organizações internacionais. A baixa representatividade de mulheres e negros no MRE, assim como suas dificuldades em ascensão e progressão na carreira diplomática, podem ser entendidas mediante a observação do processo de acumulação de capital social e cultural desses grupos em relação ao habitus do Itamaraty. Antes de analisar a relação entre o habitus e a inserção de grupos sociais, é necessário entender a formação do campo no qual esse habitus se desenvolve. Nas palavras de Bourdieu (1989, p. 69),
Compreender a gênese social de um campo, e apreender aquilo que faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram, é explicar, tornar necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do não-motivado os actos dos produtores e as obras por eles produzidas e não, como geralmente se julga, reduzir ou destruir.
À vista disso, o MRE foi um dos primeiros aparatos burocráticos do Brasil recém-independente. O país contou com uma importante vantagem para o reconhecimento internacional. Com a chegada da Corte portuguesa em 1808, o Rio de Janeiro foi dotado de um pequeno serviço exterior e corpo diplomático estrangeiro. O país ganhava então uma precoce atividade diplomática. “Por outro lado, a adoção da monarquia como forma de governo da nova nação, facilitou a entrada do país no ‘clube’ internacional” (Cheibub, 1985, p. 115), pois aproximava o Brasil da Europa ainda fortemente monárquica, o que permitiu a criação de laços entre os continentes.
A respeito da história institucional, Cheibub (1985) a divide em três momentos principais: patrimonialista, carismático e burocrático-racional. O período patrimonialista se daria desde o momento de criação da instituição, em 1822, até o final do século XIX; o período carismático compreenderia a administração de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco; e o período burocrático-racional, desde a década de 1910 até o momento em que o autor escreve. Em trabalhos mais recentes, Souza (2018) ainda adiciona o período da redemocratização, a contar do fim da ditadura militar até os dias atuais. Embora pioneiro, o trabalho de Cheibub foi criticado, principalmente por Estre (2022)8. As críticas se concentraram em três pontos: o suposto isolamento e autonomia do MRE, os processos de modernização do Itamaraty e o papel dos diplomatas na formulação do pensamento internacional (Estre, 2022).
Sobre o período patrimonialista, destaca-se como principal característica uma indissociação entre o público e o privado pelos atores do MRE, e o tratamento da administração pública como uma propriedade senhorial. Além disso, a diplomacia brasileira gozava de especial boa relação com a Europa, em comparação com representantes de repúblicas, e de relativa continuidade estilística e nas práticas diplomáticas herdadas do período em que o país foi sede da Corte portuguesa.
O Rio de Janeiro havia sido sede de uma monarquia europeia de 1808 a 1821 e, em seguida à independência, D. Pedro procurou preservar o estilo monárquico familiar em todos os aspectos do seu regime, inclusive a diplomacia. O imperador emulava as cortes europeias e proclamava a importância do Brasil mantendo um corpo diplomático numeroso
(Seckinger apudCheibub, 1985, p. 115).O patrimonialismo compreendia também a não separação entre os bens e fortunas pessoais e do Estado nas missões de representação. Muitas vezes só era possível a manutenção de missões do Brasil no exterior graças às posses pessoais de seus representantes, como o caso clássico do Barão de Penedo. A necessidade de riquezas pessoais para a função, junto com o caráter patrimonialista do período, fazia com que a seleção levasse em conta, principalmente, o seguinte: candidatos cujas famílias eram próximas dos negócios de Estado (apesar de haver a livre escolha dos representantes sobre quem integraria o corpo diplomático) e, ainda, em idade muito nova, para que fossem iniciados nas práticas diplomáticas e crescessem familiarizados com as exigências do serviço exterior (Cheibub, 1985).
O período carismático, de especial relevância para a construção do habitus diplomático do Itamaraty, pode ser visto como uma época transitória e instável da evolução do Itamaraty enquanto instituição. Durante esse período, a gestão do Barão do Rio Branco simboliza um marco de referência na vida institucional do Itamaraty (Cheibub, 1985), uma vez que a dinâmica e a rotina de trabalho da Secretaria de Estado foram modificadas completamente. Seu modelo personalista de condução do Ministério centralizou a administração em torno de sua pessoa e acarretou um fortalecimento do Gabinete do Ministro, que passou a ser o principal órgão do Itamaraty (Cheibub, 1985).
A proximidade do Barão do Rio Branco com a Europa moldou seu ideal de padrão diplomático, de forma que todos os seus funcionários, e suas esposas, deveriam estar inseridos no ethos aristocrático. O Barão pessoalmente se ocupava da seleção dos candidatos – no tradicional Chá com o Barão –, que em sua maioria provinham de famílias da elite política e já tinham sido criados dentro desse ethos. Segundo Souza (2018, p. 51), “o Barão se preocupava em projetar uma determinada imagem do Brasil no exterior. Essa imagem era a da aristocracia brasileira, branca e intelectualizada, onde os seus diplomatas eram bem casados com moças bonitas e educadas”.
A homogeneidade do Itamaraty é apoiada, portanto, pela administração do Barão do Rio Branco, que com sua centralidade personalista e carismática conseguiu exercer sua vontade não apenas em temas de condução da política externa, mas também da condução do próprio Ministério. A seleção de candidatos de origem, educação e formação semelhantes, além de mesmos interesses, aspirações e ideais, criou uma noção de comunhão de sentimentos, da qual derivariam os laços e o espírito de coleguismo que uniu os funcionários do MRE. Não era incomum que privilégios e vantagens fossem concedidos a seus funcionários preferidos, a quem se referiam como os “meninos de ouro” ou “meninos do Barão” (Cheibub, 1985; Moura, 2007; Souza, 2018). Neste sentido, segundo informa Moura (2007, p. 47-48),
[O carisma do Barão] por si só promovia um certo esprit de corps entre os membros do Itamaraty [...] O mecanismo de recrutamento tendia a uniformizar os membros da carreira em termos de sua origem social, pois recrutava-se predominantemente entre os setores oligárquicos e ‘aristocráticos’ da República Velha. Esse processo implicava um reforço aos elementos que favoreciam o desenvolvimento de um esprit de corps e, consequentemente, de uma certa coesão e homogeneidade entre os diplomatas.
Durante esses dois períodos da diplomacia brasileira, patrimonialista e carismático, fortuna e capital simbólico (cultural e/ou social) eram fundamentais para se tornar diplomata. “As funções de representação exigiam desses funcionários de Estado riqueza e aspectos legitimados e naturalizados de sofisticação para representar o Brasil” (Gobo, 2019, p. 601), o que fazia com que os funcionários do Ministério fossem conhecidos como a elite da elite. Nesses períodos, o capital social era materializado, principalmente, através de relações com a elite política e diplomática, muitas vezes na forma de inserção dos filhos de diplomatas na própria carreira ou em demais carreiras políticas, seguindo o costume da diplomacia europeia (Gobo, 2019).
Contudo, a culminação do processo de racionalização e burocratização do Ministério, na forma da criação do Instituto Rio Branco, diminuiu a importância do acúmulo de capital social e da valorização do capital cultural para o recrutamento, que então passou a seguir regras claras e específicas. O domínio de regras e símbolos como etiqueta, arte do cerimonial e protocolos não são práticas paralelas ou acessórias, mas integram o próprio âmago do saber diplomático. Elas são partes relevantes do habitus da diplomacia e contribuem para reafirmar o prestígio e a posição de poder de seus atores frente aos demais. Tal “jogo relacional” (Gobo, 2019, p. 603), em que a honra e a grandeza de um indivíduo ou de um Estado são questões resolvidas intrajogo institucional, persiste desde os costumes da nobreza aristocrática. É necessário materializar ou personificar as regras protocolares, já que nesses contextos um erro não afeta apenas o indivíduo, mas o próprio Estado que este representa. A personificação diz respeito às regras que são encarnadas nos corpos dos diplomatas. Quando as regras protocolares e a cultura legítima de que se espera ter domínio são aspectos derivados de práticas de sociedades de cortes europeias, como pode um negro, uma mulher ou uma pessoa gênero não conforme personificar tais traços? E quando as regras protocolares são construídas com base na relação com o “outro” subordinado, para se criar a ideia de superioridade? Como pode um corpo marginalizado encarnar regras que reforçam a sua falsa inferioridade?
Ora, a necessidade de domínio e naturalidade como traços da cultura tida como legítima alinhada aos padrões europeus e aristocráticos estabelece um modelo altamente excludente, mas que perdura até hoje. O campo em que se desenvolve a diplomacia brasileira é pensado como espaço de estilização ao máximo da vida diplomática e dos representantes do país no exterior, e que reproduz ainda certo modus operandi estabelecido pelo Barão (Gobo, 2016). Os conceitos de mérito e merecimento até hoje seguem sendo cruciais tanto como critério de promoções quanto como critério de reconhecimento de um bom profissional no Itamaraty. Noções vagas do que significaria esse mérito permitem que grupos minoritários e com menor capital simbólico não só não tenham suas contribuições reconhecidas, como promovem noções de naturalização da homogeneidade racial e de gênero, predominante na instituição (Corá et al., 2018; Matsuoka; Silva, 2022).
Segundo pesquisas (Matsuoka; Silva, 2022; Oliveira, 2011) sobre o programa de ações afirmativas para candidatos negros, as pessoas aprovadas que têm sido beneficiadas pelo programa de Bolsa-Prêmio de Vocação para a Diplomacia ou que têm utilizado o percentual de vagas reservadas a candidatos negros e pardos tendem ao receio de ter seu mérito questionado após a aprovação. Portanto, mesmo após a adoção de políticas de ação afirmativa, o MRE ainda apresenta certa tendência a tratar a baixa diversidade racial como um produto do perfil socioeconômico dos candidatos aprovados, e não como um problema de desigualdade (Matsuoka; Silva, 2022; Oliveira, 2011). De forma semelhante, os estudos (Corá et al., 2018; Delamonica, 2014; Farias; Carmo, 2016) sobre a participação feminina no Itamaraty têm demonstrado como o gênero é tratado como não importante ou algo já resolvido no ambiente interno da instituição. Além disso, observa-se um processo de naturalização da dominação masculina no espaço do MRE, através de noções meritocráticas. A valorização do mérito e o ingresso na carreira através de concurso público são dados como fatores que teriam solucionado a questão de gênero. Segundo Corá et al. (2018), é sintomático que o tema da desigualdade de gênero no Itamaraty tenha ganhado força e agenda na forma de trabalhos produzidos por diplomatas que identificaram empecilhos na carreira por serem mulheres, ao mesmo tempo que muitas afirmam nunca terem sido tratadas de forma diferenciada em função do gênero.
A centralidade do mérito como princípio neutralizador de acusações de subjetividade de escolhas e discriminação no Itamaraty, aliada a uma cultura organizacional que advoga o mérito como base fundamental e estruturante da instituição (Farias; Carmo, 2016), ainda não consegue esconder que setores do quadro de funcionários seguem sendo favorecidos em relação a outros, ocasionando um paradoxo de meritocracia. Dessa forma, mulheres seguem sendo lidas como pertencentes a uma esfera privada com prioridades conflitantes com a carreira diplomática, como a dedicação e cuidado à família e filhos, por supostamente serem sensíveis ou instáveis em comparação aos homens. Já pessoas negras seguem sendo lidas dentro de uma lógica de subordinação e de status moral “inferior”. Logo, ambos os grupos são prejudicados na lógica subjetiva da promoção meritocrática.
Vale ressaltar o que Enloe (2014) chama os processos de feminilização e de masculinização de setores da sociedade. Segundo a autora, a manutenção de uma ordem patriarcal passa por constantes processos de criação de uma ordem masculinizada das noções de credibilidade, que determina quais atores são confiáveis e quais não são, sempre em uma lógica imbricada. Enloe (2014) nos propõe observar os microprocessos através dos quais alguém ou algum grupo é declarado ou presumido como crível. Quem está sendo levado a sério? Por quem? Por quê? Tendo qual efeito? À vista disso, é de se observar que os processos de credibilidade e masculinidade no Itamaraty nos permitem identificar quais grupos têm enfrentado processos de feminilização e descredibilidade. Ainda, auxilia-nos a identificar quais grupos têm sido mantidos fora da esfera do público, do político e da possibilidade de representar e falar pelo Estado brasileiro. Dito isso, a partir do contrato racial-sexual, o Itamaraty mantém seu habitus através das constantes exclusões e subordinações daqueles que não performam as noções elitizadas, masculinizadas e brancas do seu mérito diplomático.
A discussão realizada propõe contribuir para o debate acerca da participação das mulheres na alta burocracia do funcionalismo público, tomando a carreira diplomática como objeto de estudo, a partir do gênero como lente de análise. Dessa forma, notamos que o problema da baixa presença de mulheres é bifocal. Ao mesmo tempo que ele está ligado à ordem do habitus e das práticas, também se conecta com questões que extrapolam o gênero – como raça e sexualidade, e a marginalidade de tais corpos, juntamente com os processos de dominação inerentes ao MRE e ao Itamaraty.
Assim, a presença das mulheres no funcionalismo público extrapola as fases do processo de acesso, admissão e progressão na carreira. O período republicano, que compreende o final do século XIX até os dias de hoje, século XXI, é repleto de entraves e hostilidades à participação das mulheres na burocracia estatal. Tais entraves, entretanto, não se limitam a este processo. Uma vez no Itamaraty e no MRE, as conturbações mudam de cor e forma devido às práticas e ao habitus disseminados e apreendidos por todas e todos os diplomatas que passam a atuar como uma aristocracia estatal (com altos padrões de cultura elitizada e branca) para, enfim, poderem falar pelo Estado. E a todas aquelas pessoas que destoam deste ethos, a exclusão da mesa é o seu prato principal.
Deste modo, concluímos que a burocratização do MRE (via Itamaraty) que se dá com a institucionalização do processo seletivo, bem como da formação das pessoas diplomatas, não agregou imparcialidade ao processo seletivo e tampouco democratizou o Ministério. Pelo contrário: a burocratização e o monopólio homogeneizaram a sua estrutura e, com isto, ocultaram as relações de dominação inerentes à instituição; ainda, blindaram a sociedade a participar dessas instituições públicas. Mais ainda: uma vez definido quem efetivamente pode falar pelo Estado, também se definiu, por exclusão, quem não pode. Essa definição de quem pode e não pode figurar na esfera da política externa brasileira e da política internacional se conecta com o status de grupos sociais lidos como “inferiores” ou restritos à esfera privada, o que representa uma alegoria dos contratos racial e sexual. Contratos esses que não só estruturam a sociedade em suas relações, mas também a própria instituição e suas bases.
Portanto, utilizar o gênero como lente analítica, e não apenas como categoria identitária, permite-nos ir além da mera exclusão e dos entraves enfrentados pelas mulheres na carreira diplomática e no Itamaraty. Além disso, convida-nos a estar atentos aos processos de feminilização e masculinização da credibilidade e do mérito. Neste trabalho, evidenciamos que os processos que separam atores da esfera da alta política e da esfera privada compreendem muito mais do que apenas o grupo de pessoas lidas socialmente como mulheres. Estão, contudo, intimamente imbricados com categorias raciais, de sexualidade e de classe social. Nos processos de hierarquização do MRE, o capital simbólico credibilizado segue sendo aquele que performa elitismo, mas também branquitude e masculinidade.
Reconhecemos, por outro lado, a existência da AMDB, uma organização importante que tem lutado por mudanças institucionais no Itamaraty. Como relata Irene Vida Gala, a AMDB tem atuado com a proposição de medidas formais, o letramento, informação e publicidade, e a coleta e compilação de dados, visando o fim da desigualdade de gênero (Gala, 2023). Reconhecemos, ainda, outras iniciativas e medidas que demonstram o protagonismo das mulheres na diplomacia, como a ameaça de greve de diplomatas (Junqueira, 2023). Em setembro de 2023, o MRE realizou o Seminário “Relações internacionais, política externa e gênero: reflexões em homenagem a Maria José de Castro Rebello Mendes” (Brasil, 2023). O evento contou com a participação de muitas diplomatas e intelectuais mulheres, que tiveram protagonismo e voz nos diferentes painéis. De todo modo, a hierarquia do MRE e os processos de feminilização e masculinização presentes na instituição representam desafios a serem superados para que o Ministério possa, de fato, aspirar a falar em nome do povo brasileiro.