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Problematizações sobre a Violência contra as Mulheres Negras no Contexto da Pandemia de Covid-19
Considerations about Violence against Black Women in the Context of the Covid-19 Pandemic
Mediações - Revista de Ciências Sociais, vol. 29, no. 2, e48908, 2024
Universidade Estadual de Londrina

ARTIGOS


Received: 11 September 2023

Accepted: 29 March 2024

Published: 28 June 2024

DOI: https://doi.org/10.5433/2176-6665.2024v29n2e48908

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar o fenômeno da violência contra as mulheres negras na pandemia de Covid-19. O texto é fruto de uma pesquisa de trabalho de conclusão de curso que analisou a violência contra as mulheres negras na pandemia, no Rio de Janeiro. O recorte para o Rio de Janeiro se explica pelos dados apresentados pelo ISP/Mulher RJ, que apontavam uma diminuição de registros de ocorrência policial de casos de violência contra as mulheres no estado, contrastando com os dados nacionais sobre o aumento da violência neste período. A pesquisa examinou os dados a partir de uma análise teórico-empírica que problematiza as relações de gênero e étnico-raciais, o perfil da violência contra as mulheres e sua configuração em um contexto de pandemia. Um dos principais resultados aponta para que os estudos dos indicadores da violência considerem as particularidades de vida e de trabalho vividas pelas mulheres negras e problematizem a relação entre o isolamento social e a violência contra as mulheres.

Palavras-chave: Pandemia, violência contra as mulheres, mulheres negras, isolamento social, desigualdade racial.

Abstract: The aim of this paper is to analyze the phenomenon of violence against black women in the Covid-19 pandemic. The text is the result of a research project that analyzed violence against black women during the pandemic in Rio de Janeiro. The focus on Rio de Janeiro is related to data presented by ISP/Mulher RJ, which pointed to a decrease in police cases of violence against women in the state, contrasting with national data on the increase in violence in this period. The research examined the data based on a theoretical-empirical analysis that combines gender and ethnic-racial relations, the profile of violence against women and the form it took in a pandemic context.  One of the main results points to the need for studies on violence indicators to consider the particularities of life and work experienced by black women and to highlight the relation between social isolation and violence against women.

Keywords: Pandemic, violence against women, black women, social isolation, racial inequality.

Introdução

No modo de produção capitalista, os marcadores sociais de classe social, raça/etnia, gênero e sexualidade determinam as condições de vida e de trabalho dos sujeitos. No Brasil, estes marcadores são operados articuladamente e fundamentam inúmeros fenômenos, como a violência que atinge as mulheres, a população negra e a população LGBTQI+.

A violência contra as mulheres é um fenômeno histórico-social que produz relações de gênero desiguais e hierárquicas. De acordo com Mies (2022), a violência contra as mulheres é o principal denominador comum que sintetiza a exploração e a opressão das mulheres com ênfase na família, na heterossexualidade, na ideologia da maternidade como destino biológico, na responsabilidade pelas tarefas domésticas, no cuidado dos(as) filhos(as) e na inserção no mercado de trabalho com baixos salários. Assim, as mulheres são exploradas triplamente, a saber: i) como assalariadas; ii) como seres humanos; iii) como donas de casa. Esse processo ocorre intermediado pelo fenômeno da violência, que é a ação coercitiva da sociedade, da família e dos homens para manter as funções estabelecidas para as mulheres3.

Diante disso, a violência contra as mulheres, como define Heleieth Saffioti, “constitui elemento fundamental de enquadramento da mulher brasileira no ordenamento social de gênero. O domicílio, deste modo, mostra-se o lócus privilegiado do exercício da violência contra a mulher como forma de controle social” (Saffioti, 1994a, p. 452). Em síntese, como afirma Portella (2005), a violência contra as mulheres é: i) um produto do processo de subordinação das mulheres; ii) um componente das relações desiguais de gênero; iii) um fenômeno que estrutura as relações sociais; iv) um fenômeno social, cultural e político.

Esse quadro teórico é materializado nos diversos casos de violência vivenciados, cotidianamente, pelas mulheres no Brasil. Os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que, em 2022, 1.437 mulheres foram vitimadas pelo feminicídio, o que equivale a um crescimento de 6,1% dos casos em relação ao ano de 2021. De acordo com o relatório, “entre as vítimas de feminicídio tem-se que 61,1% eram negras e 38,4% brancas. Nos demais assassinatos de mulheres, o percentual de vítimas negras é ainda maior, com 68,9% dos casos, para 30,4% de brancas” (Bueno et al., 2023, p. 142).

Além disso, o documento mostra que houve um crescimento de todas as formas de violência contra as mulheres, como, por exemplo: i) os casos de ameaça cresceram 7,2% (613.529 casos); ii) a violência doméstica aumentou 2,9% (245.713 casos); iii) os registros de assédio sexual cresceram 49,7% (6.114 casos). Em todas as formas de violência temos a raça/etnia como estruturante, ou seja, as mulheres negras são as mais vitimizadas pelas diversas manifestações da violência.

Para analisar o fenômeno da violência contra as mulheres, temos que levar em consideração os marcadores sociais de gênero, de raça/etnia e de classe social, pois, como afirma Audre Lorde (2020, p. 147-146),

[...] as mulheres negras e seus filhos sabem que o tecido de nossas vidas é costurado com violência e ódio, e por isso não há descanso. Não lidamos com isso apenas nas manifestações, ou nos becos escuros à meia noite, ou nos lugares onde ousamos verbalizar nossa resistência. Para nós, cada vez mais, a violência se entrelaça no tecido diário de nossas vidas – no supermercado, na sala de aula, no elevador, no consultório médico e no pátio da escola [...].

Diante disso, a análise do fenômeno da violência contra as mulheres é interseccional. Segundo Crenshaw (2002), a interseccionalidade é uma forma de designar um problema a partir de suas consequências estruturais, inter-relacionando os eixos de subordinação (classe social, raça/etnia, gênero e sexualidade) que originam condições de vida e opressões desiguais para mulheres e a população negra. Assim, o racismo, a discriminação de gênero e a violência de gênero não são temas secundários na questão da violência.

Em contextos conjunturais, como na pandemia de Covid-19, a população negra foi a mais impactada pela pobreza, pelo desemprego, pela violência e vitimizada pelo vírus. No caso das mulheres se somam as condições de trabalho, os menores salários e a vivência particular das situações de violência4.

Dessa forma, o artigo apresenta análises que articulam o debate da violência com os processos de exploração-dominação patriarcais de gênero e étnico-raciais racistas. Para aprofundar tal análise, foram utilizados como pano de fundo os dados estatísticos da violência contra as mulheres negras na pandemia de Covid-19, no estado do Rio de Janeiro.

Os Fundamentos Histórico-Sociais da Violência contra as Mulheres no Brasil

A violência contra as mulheres se configura como um fenômeno social, cultural e político. Segundo Portella (2005), é simultaneamente um produto e um elemento estrutural da subordinação das mulheres. A violência, portanto, é um componente das relações desiguais de gênero, mas especificamente das relações de gênero patriarcais5. Estas corroboram a ideia de que “[...] homem deve agredir, porque macho deve dominar a qualquer custo; e mulher deve suportar agressões de toda ordem [...]” (Saffioti, 1999, p. 454). Tendo em vista que a violência contra as mulheres aponta para um fenômeno estrutural das relações sociais, pode-se concluir que se está diante de um fenômeno que diz respeito a toda a sociedade e não somente às mulheres.

Segundo Saffioti (1994b), a violência é transversal, ou seja, ela “atravessa” as demais relações sociais, manifestando-se em todas as classes sociais. Diante disso, é necessário desfazer alguns mitos sobre a violência contra as mulheres; entre esses, temos: i) a patologização dos autores da violência; ii) a ideia de que homens violentos pertencem à classe trabalhadora; iii) de que homens negros são mais violentos que homens brancos; iv) de que os homens que são violentos em casa são, necessariamente, violentos em espaços públicos; v) de que é um problema privado e familiar.

Em relação aos mitos sobre a caracterização da violência, Saffioti (1994b) busca apontar as características da violência presentes no senso comum e que descaracterizam este fenômeno histórico-social. Sobre a patologização dos autores da violência, quando se afirma que homens cometem violência por estarem com problemas de saúde mental, ou quando se considera que os homens violentos são apenas os pobres, negros e da classe trabalhadora, de que a violência é apenas uma questão de âmbito privado e de fácil identificação, pois quem é violento em casa é, também, no espaço público, isso são mitos sobre a violência, pois não explicam o fenômeno a partir de seus aspectos sociais, culturais e históricos.

Assim, sem desmistificar estes elementos incorre-se no erro de desconsiderar que “[...] a estrutura da sociedade, formada pelas hierarquias [...] torna cada um e todos os homens potencialmente violentos” (Saffioti, 1997, p. 9). As hierarquias retratadas pela autora são aquelas produzidas pelo nó patriarcado-racismo-capitalismo. As relações de classe, as relações patriarcais de gênero e as relações étnico-raciais racistas produzem relações sociais de dominação-exploração que têm como consequência a produção de expressões diferenciadas de violências. Dessa forma, a lógica da violência contra as mulheres se refere à “eliminação física de quem comete uma transgressão de gênero” (Saffioti, 2001a, p. 116).

A violência seria uma retaliação para os sujeitos que estão submetidos nos processos de dominação-exploração, a fim de garantir que sua estrutura permaneça. Nas palavras de Saffioti (1980, p. 29), “as relações de dominação-subordinação entre homens e mulheres são mediadas sempre pela violência: a simbólica, mais sutil, elaborada com destinatário certo, e a física, que preenche os espaços da ineficácia da violência ideológica”.

A partir desta análise histórico-social sobre o fenômeno da violência contra as mulheres, pode-se desmistificar a violência como algo privado, familiar, fruto de alguns comportamentos das mulheres ou mesmo a ideia de que as mulheres são cúmplices nas situações de violência. Estes elementos naturalizam a violência e a desconsideram como um fenômeno histórico-social, fruto de relações patriarcais e racistas e que se expressa em violência de gênero, doméstica, familiar/intrafamiliar, podendo ser física, sexual, patrimonial, moral e/ou psicológica.

Segundo Saffioti (2001a), a violência de gênero é um fenômeno mais amplo, podendo ser praticada por um homem contra outro, por uma mulher contra outra e por uma mulher contra um homem. Para a autora, a violência de gênero é a argamassa que edifica várias desigualdades, inclusive entre homens e mulheres.

Já a violência doméstica, conforme Saffioti (1999), ocorre no interior do domicílio, envolve uma relação afetiva, segue uma rotinização e pode atingir pessoas que não pertencem à família, que vivem parcial ou integralmente no domicílio (agregados e empregadas domésticas, por exemplo). Diante disso, requer uma intervenção externa.

Em relação à violência familiar/intrafamiliar, trata-se de situações que envolvem membros da família extensa e nuclear, levando em consideração a consanguinidade e a afinidade. E ela pode acontecer no interior ou fora do domicílio.

As estatísticas sobre o fenômeno da violência contra as mulheres revelam que a maioria dos autores de violência possui vínculos familiares com as mulheres e que o domicílio constitui um lugar extremamente violento para as mulheres. No Brasil, em 2021, de acordo com os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 81,7% dos autores do crime de feminicídio foram companheiros e ex-companheiros das vítimas, e 65,6 % dos casos ocorreram dentro das residências (FBSP, 2022). Isto demonstra que os tipos de violência, na grande maioria dos casos, se caracterizam materialmente como de gênero contra as mulheres, familiar e doméstica.

Um dos mecanismos legais que contribuiu com o debate sobre a violência, seus tipos, natureza e definição, foi a Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha. A lei foi instituída com o intuito de criar mecanismos para coibir, prevenir, punir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher (Brasil, 2006). Além disso, dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, alterar o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal e dar outras providências.

A lei explicitou, juridicamente, que a violência doméstica e familiar ocorre em uma relação íntima de afeto, na qual o autor da violência conviva ou tenha convivido com a vítima, independentemente de coabitação. Além disso, tipificou as formas de violência doméstica e familiar em: física; psicológica; sexual; patrimonial; moral.

A Lei Maria da Penha é uma ferramenta importante no processo de desnaturalização da violência e no enfrentamento da ideia de que se trata de um problema familiar e/ou do casal. Todavia, a referida lei precisa transversalizar o debate levando em consideração as relações patriarcais de gênero interseccionadas com as relações étnico-raciais racistas, pois a violência para as mulheres negras é mais aguda. E, assim,

[...] afirmar que todas as mulheres estão expostas à violência não é o mesmo que dizer que todas as mulheres estão expostas à mesma violência ou à mesma intensidade e severidade das agressões. Hoje sabemos que há determinantes diferenciados, fatores de risco e fatores de proteção e contextos mais e menos vulneráveis à violência, porque as relações de gênero que fundam a violência não existem no vazio, mas, sim, em contextos históricos e socioculturais específicos que conferem características diferenciadas

(Portella, 2005, p. 94).

Dessa forma, o racismo, construído através do preconceito e da discriminação racial, precisa ser um assunto central na análise sobre a violência contra as mulheres, pois “gênero, classe e etnia combinam-se para determinar formas distintas de se perpetrar violências” (Saffioti, 2001b, p. 11). Além disso, “dependendo das condições históricas, uma dessas faces estará proeminente, enquanto as demais, ainda que vivas, colocam-se à sombra da primeira” (Saffioti, 1999, p. 85). Assim, isolado ou combinado, o racismo é um fator determinante na vida das mulheres e na violência a que estão sujeitas.

Como afirma Carneiro (2003), a violência doméstica atinge mulheres de todas as raças/etnias, porém existe um agravamento quando a mulher é negra. O racismo produz violências adicionais, e isto pode ser verificado nas estatísticas, como no gráfico a seguir, que mostra que as mulheres negras são mais vitimizadas pelo crime de feminicídio.


Gráfico 1
Vítimas de feminicídio e demais mortes violentas intencionais de mulheres (MVI), por raça/cor – Brasil (2021)
Fonte: Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro ([2022]).

As condições históricas que fabricaram a relação de coisificação da população negra e das mulheres negras, em particular, são explicadas pelos elementos que estruturam nossa formação econômico-social e se reorganizam no modo de produção capitalista. Como afirma Carneiro (2003, p. 12),

[...] o estupro colonial perpetrado pelos senhores brancos sobre negras e indígenas é responsável por um dos pilares estruturantes da decantada democracia racial que é a miscigenação, e está na origem de todas as construções sobre a identidade nacional e das hierarquias de gênero e raça presentes em nossa sociedade, configurando aquilo que Angela Gilliam (Gilliam, 1996) define como “a grande teoria do esperma da formação nacional”, através da qual (1) “o papel da mulher negra na formação da cultura nacional é rejeitado; (2) a desigualdade entre homem e mulher é erotizada; (3) a violência sexual contra as mulheres negras é romantizada”.

O que poderiam ser apenas memórias do período colonial, infelizmente, continua sendo um elemento estruturante da atualidade. Essa estrutura permanece validando formas particulares de violência vividas, especialmente, por mulheres negras, apresentando o recorte racial como marcador essencial. São exemplos dessa particularidade o turismo sexual, o tráfico de mulheres e a violência sexual. Esta última traz consigo o fator histórico “[...] de utilização das mulheres negras, especialmente as empregadas domésticas, como objetos sexuais, destinadas à iniciação sexual dos jovens patrões ou à diversão sexual dos mais velhos” (Carneiro, 2003, p. 13).

A violência sexual contra as mulheres negras deu origem ao estereótipo de mulheres sexualmente disponíveis, dotadas de uma superexcitação genética, o que aponta para uma continuidade histórica que passou da mucama à doméstica, mantendo a tradição de subjugar e violentar sexualmente as mulheres negras (Gonzalez, 2020).

Outro elemento estereotipado é o mito da fragilidade feminina, que não inclui as mulheres negras, tendo em vista que nunca foram tratadas como frágeis. Segundo Carneiro (2003, p. 16),

Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras, ou nas ruas como vendedoras, quituteiras, prostitutas, etc... Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenhos tarados. Hoje empregadas domésticas de mulheres de classe média e alta, ou mulatas tipo exportação.

Para Bairros (1995), não é possível entender as opressões contra as mulheres como um fenômeno universal separado das relações étnico-raciais e de classe social. A história das mulheres negras é construída, desde o processo de escravização, por uma inserção no trabalho doméstico e vitimização pelos mais diversos tipos de violência.

No capitalismo, as mulheres negras que fazem parte do segmento que sobrepõe raça/etnia, gênero e classe social vivenciam as piores condições de vida e de trabalho, além das formas mais intensificadas dos processos que envolvem o fenômeno da violência contra as mulheres (Gonzalez, 2020).

Assim, em uma conjuntura como a da pandemia de Covid-19, as mulheres negras foram as mais impactadas pela pobreza, pelo desemprego, pela violência e vitimizadas pelo vírus. Em 2020, os jornais impressos e televisivos mostraram que a violência contra as mulheres aumentava, passando a ideia de que na pandemia houve um aumento estatístico da violência e que o isolamento social, por exemplo, poderia ser o elemento desencadeador deste processo.

Em alguns estados, como Roraima, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Santa Catarina e Rio de Janeiro, as estatísticas (ISP Mulher/RJ) mostravam a diminuição dos registros de ocorrência policial. Ao mesmo tempo que se via a violência aumentando, as denúncias estavam diminuindo. Diante disso, cabe uma análise de tais dados, a partir da interpretação teórico-analítica que leva em consideração a violência como um fenômeno histórico-social e que se explica pelas relações patriarcais de gênero e as relações étnico-raciais racistas.

Assim, elencamos os dados do Rio de Janeiro para a referida análise e no próximo tópico apresentaremos parte dos resultados da pesquisa documental realizada que foca na interpretação da violência contra as mulheres negras, no período da pandemia de Covid-19, no mesmo estado.

Pandemia e a Violência contra as Mulheres Negras no Rio de Janeiro

Como visto no tópico anterior, a violência contra as mulheres é um fenômeno histórico-social que se expressa na esfera privada e/ou familiar, mas não se limita a esta, pois é uma problemática pública que deve ser enfrentada pelo Estado. Assim, o processo de enfrentamento deste fenômeno perpassa a rede de serviço socioassistencial e jurídica disponível. Para tal, são necessárias políticas sociais e ações jurídicas que se articulem e forneçam instituições que atendam as situações de violência contra as mulheres.

No Brasil, de 2003 a 2015, houve aumento e fortalecimento das políticas para mulheres, com a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), Plano Nacional de Políticas para as Mulheres e Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Vale ressaltar que este período histórico de conquistas na área dos direitos das mulheres é fruto das reivindicações dos diferentes movimentos feministas, feministas negros e de mulheres que lutaram, desde 1930, em prol dos direitos sociais, políticos, econômicos e culturais das mulheres.

Com isso, consolidou-se um avanço considerável de serviços e programas que impactaram as condições de vida das mulheres, principalmente as mais pobres. Apesar da baixa execução orçamentária, o aumento do orçamento da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) possibilitou um crescimento significativo do investimento nas diferentes áreas (Costa; Vieira, 2020).

Já em 2015, no segundo mandato de Dilma Rousseff, na perspectiva do ajuste fiscal,

[...] muda-se a lógica da SPM, que deixou o status de ministério e foi inserida no então criado Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (MMIRDH) que, também, incorporou as secretarias de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, de Direitos Humanos e a Secretaria Nacional de Juventude

(Costa; Vieira, 2020, p. 339).

A junção de todas essas demandas sociais foi uma forma de restringir o espaço institucional e os recursos orçamentários, o que impacta negativamente as políticas para as mulheres e para a população negra.

Já o período de 2016 a 2020 foi marcado por uma guinada conservadora, que focava em uma perspectiva familista e antifeminista, no desmonte orçamentário e institucional das políticas para as mulheres e no aperfeiçoamento do caráter capitalista, racista e patriarcal do Estado no Brasil. Mioto (2009) diferencia as duas modalidades de proteção destinadas ao atendimento às famílias, que são: i) a desfamilização da proteção social; ii) o familismo. Segundo Mioto (2009, p. 136),

[...] o processo de desfamilização pressupõe a diminuição dos encargos familiares e a independência da família especialmente em relação ao parentesco, através de políticas familiares/sociais. Essas são destinadas a atenderem as necessidades familiares e podem ser dirigidas tanto para os grupos domésticos como para seus componentes individualmente. O familismo, ao contrário, está presente nos sistemas de proteção social em que a política pública considera – na verdade insiste – em que as unidades familiares devem assumir a principal responsabilidade pelo bem-estar de seus membros.

As políticas para as mulheres, assim como as demais políticas sociais, foram desafiadas no contexto da pandemia de Covid-19. No Brasil, a pandemia de Covid-19, decretada em março de 2020, é, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS, [2020]), uma doença infecciosa causada pelo coronavírus SARS-CoV-2.

A OPAS também explicou que quanto mais o vírus da Covid-19 circulasse, através da movimentação das pessoas, mais oportunidades teria de sofrer mutações. Portanto, o mais importante que as pessoas podiam fazer, enquanto aguardavam pela vacina, era reduzir ao máximo o contato próximo com muitas pessoas, principalmente em espaços fechados.

Entretanto, no Brasil, o isolamento social foi vivenciado diferentemente pelos sujeitos de classes sociais e condições de vida e trabalho distintas. Antunes (2020, p. 19-20) explicita a referida contradição:

[...] A classe burguesa, incluindo seus séquitos de altos gestores, tem seus fortes instrumentos de defesa (recursos hospitalares privilegiados, condições de habitação que lhes permite escolher as melhores condições de realizar suas quarentenas etc.), enquanto na classe-que-vive-do-trabalho a luta é para ver quem consegue sobreviver [...] mas como ficarão em isolamento social os/as desempregados/as, os/as informais, os trabalhadores/as intermitentes, os/as uberizados/as, os/as subutilizados/as, os/as terceirizados/as, isto é, aqueles que não têm direitos sociais e que recebem salários somente quando executam algum trabalho?

Esse isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19 mostrou, de forma potencializada, indicadores sociais preocupantes. E um desses foi o acirramento dos casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres. Conforme dados do Grupo Banco Mundial, nos primeiros dois meses de confinamento no Brasil (março/abril de 2020), houve um aumento de 22,2% nos casos de feminicídio (Nações Unidas Brasil, 2020). O conceito de isolamento social se refere ao distanciamento entre as pessoas para evitar/diminuir interações sociais. Por isso,

O isolamento social pode ser intensificado pelas  medidas impostas  pelo distanciamento social. Neste sentido, se ampara em estratégias que podem ser utilizadas de acordo com a situação epidemiológica da doença e classificadas como: i) Distanciamento Social  Seletivo, como por exemplo, o aplicado a pessoas idosas ou com doenças crônicas; ii) Distanciamento Social Ampliado (DSA) que impõe regras a todos os setores da sociedade para que permaneçam nas suas residências; iii) Bloqueio Total (lockdown) que impõe medidas extremamente restritivas que podem incluir o bloqueio de acesso a determinados perímetros

(Almeida; Moura; Squinca, 2023, p. 5).

Diante deste contexto, no qual as políticas sociais passaram a enfrentar diversas dificuldades de funcionamento, como manter os equipamentos em atividade, garantir a segurança da equipe trabalhadora, o atendimento e acompanhamento dos casos de violência, verifica-se que as mulheres negras, por serem as mais vitimizadas, foram as mais desassistidas.

O isolamento social foi tratado como um dos principais desencadeadores da violência contra as mulheres, sem levar em consideração que sua vivência dependia das relações de classe social e étnico-raciais. No lugar de questionarmos como a rede de atendimento estava chegando às mulheres mais vitimizadas pela violência, passamos a análises que focavam na realidade das mulheres brancas e de classe média.

De acordo com Souza e Andrade (2021), o regime de trabalho home office ou teletrabalho, possibilitado pelas políticas de isolamento social, foi o responsável pelo aumento da violência contra as mulheres. São necessárias duas ponderações sobre a relação entre isolamento social e violência contra as mulheres.

A primeira é sobre o aumento da violência contra as mulheres na pandemia, pois consideramos que houve, na verdade, uma intensificação de um fenômeno já existente. A segunda ponderação se refere à relação entre isolamento social e aumento da violência contra as mulheres, pois se deve debater quais mulheres tiveram acesso ao isolamento social e não precisaram sair de casa para trabalhar e/ou acessar a rede de serviços, como supermercados e farmácias.

De acordo com a PNAD Contínua de 2022 (IBGE, 2022), as mulheres negras estão no segmento da classe trabalhadora empregada nas atividades informais e/ou em regime de trabalho autônomo, no setor de serviços de baixa qualificação e possuem o menor rendimento mensal. Os dados salariais, como detalhado na nota de rodapé 4, mostram que as mulheres negras ganham 62,3% menos do que as mulheres brancas. Em relação à taxa de pessoas ocupadas em trabalhos informais, tem-se a seguinte configuração: i) na taxa geral, são 37,3% de homens e 39,6% de mulheres; ii) quando se considera cor/raça, tem-se 30,7% homens brancos, 33,3% de mulheres brancas, 42,5% de homens negros e 45,4% de mulheres negras.

No que se refere ao percentual da população por sexo e cor/raça ocupada economicamente, temos: i) na taxa geral dos homens temos 12,3% na agropecuária, 27,3% na indústria e 60,4% no setor de serviços; ii) na taxa geral das mulheres temos 4,1% na agropecuária, 10,7% na indústria e 85,2% no setor de serviços; iii) entre os homens brancos, temos 10,2% na agropecuária, 25,6% na indústria e 64,1% no setor de serviços; iv) entre as mulheres brancas, temos 3,7% na agropecuária, 11,5% na indústria e 84,8% no setor de serviços; v) entre os homens negros, temos 13,9% na agropecuária, 28,6% na indústria e 57,5% no setor de serviços; vi) entre as mulheres negras, temos 4,4% na agropecuária, 10% na indústria e 85,5% no setor de serviços (IBGE, 2022).

Diante desse quadro, verificamos que as mulheres negras enfrentaram problemas particulares em relação às mulheres que trabalharam em home office/teletrabalho. Elas tinham como agravante a necessidade diária de sair de suas casas, deixar seus filhos sem seus cuidados naquele horário, usar o transporte público e fazer compras presenciais em mercados e farmácias, diferentemente das que conseguiam acessar esses serviços com compras on-line e não pegavam transporte público.

Além disso, há diferenças nas condições de moradia. No Rio de Janeiro, por exemplo, as mulheres negras, em sua grande maioria, são moradoras de periferias e favelas e residem em casas pequenas, com poucos cômodos, o que, além de impedir o isolamento, em caso de contágio de alguém da família, impede, também, que se afastem dos autores de violência6. Diante deste quadro econômico-social, analisamos os dados apresentados pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP-RJ), especificamente os Dossiês Mulher de 2018 a 2021.

A análise dos dados, a partir do recorte étnico-racial, permitiu o mapeamento do perfil das mulheres que sofrem violência e os tipos de violência mais praticados contra elas. O perfil seria composto por: idade, raça/etnia, renda, profissão, local de moradia e nível de instrução. Porém, nenhum dos dossiês analisados apresenta informações sobre renda, profissão ou nível de instrução. Vejamos os dados a seguir que cruzam faixa etária e tipo de crime.

Tabela 1
Perfil das mulheres vítimas de violência - Por faixa etária e tipo de crime

Fonte: Adaptado de Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro ([2022]).

Quanto à faixa etária, verificamos que os crimes de violência sexual ocorrem majoritariamente entre mulheres de 0 a 29 anos. Os demais tipos de violência têm maior concentração na faixa de 30 a 59 anos. Em relação à violência sexual, temos uma redução na faixa de idade, pois essa é uma expressão da violência que acomete as crianças e as adolescentes do sexo feminino de forma preponderante no Brasil. Ao analisarmos as expressões da violência por faixa etária, verificamos um acirramento dos casos no ano de 2020, o que fez os meios de comunicação e alguns autores, como já citamos, relacionarem o aumento desses números com o isolamento social.

O isolamento social é um dos elementos que contribui para o entendimento das situações de violência contra as mulheres na pandemia. Porém, esse isolamento tem classe social e raça/etnia. Não é possível homogeneizar o acesso ao isolamento social para todas as mulheres; por isso, pesquisar a intensificação da violência no contexto da pandemia de Covid-19 tem que levar em consideração todos os indicadores sociais e econômicos que contribuíram com a agudização do fenômeno da violência.

Ainda sobre o perfil das mulheres em situação de violência, no período de 2018-2020, em relação à violência por raça/etnia, verificamos que as mulheres negras são as maiores vítimas de violência física e psicológica. Já na violência patrimonial e moral, o maior número de vítimas é não negro. A violência sexual foi maior entre as mulheres negras nos anos de 2018 e 2020.

Tabela 2
Perfil das mulheres vítimas de violência - Por raça/etnia

Fonte: Adaptado de Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro ([2022]).

Quanto ao local de moradia das vítimas, somente os Dossiês de 2020 e 2021 trouxeram essas informações. O maior número de vítimas reside na cidade do Rio de Janeiro, com pouca diferença para com o interior. A região da Grande Niterói foi a que conseguiu reduzir seus números de forma mais significativa, sendo 9,1% em 2019 e 7,8% em 2020 (Mendes et al., 2020; Oliveira et al., 2021).

Tabela 3
Perfil das mulheres vítimas de violência - Por regiões do Estado do Rio de Janeiro

Fonte: Adaptado de Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro ([2022]).

No que se refere aos crimes que envolvem violências físicas, foram analisados os de homicídio doloso, tentativa de homicídio e lesão corporal dolosa, e cruzamos os dados a partir da raça/etnia. O foco deste estudo era entender o perfil das mulheres que mais sofrem com algumas das expressões da violência7. Os dados mostram o seguinte cenário:

Tabela 4
Perfil das mulheres vítimas de violência física - Por raça/etnia

Fonte: Adaptado de Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro ([2022])

Fica nítido, através da tabela, que as mulheres negras são as maiores vítimas dos crimes de homicídio doloso, tentativa de homicídio e lesão corporal dolosa. Deve-se lembrar que essa violência contra as mulheres negras tem raízes históricas fincadas no processo de coisificação dos negros e das mulheres negras, em particular, como debatido no primeiro tópico deste artigo.

Assim, uma análise que desconsidere os fundamentos histórico-sociais deste fenômeno focará em um elemento que, sozinho, não o explicará em todas as nuances. Outro dado que explicita tais fundamentos sócio-históricos e que demarca, ainda hoje, as relações sociais no país se refere aos indicadores dos crimes sexuais. Vejamos a seguir8:

Tabela 5
Perfil das mulheres vítimas de violência sexual - Por raça/etnia

Fonte: Adaptado de Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro ([2022]).

Diante dos dados, verificamos uma distância estatística nos crimes de violência sexual consumada (estupro e estupro de vulnerável) quando se consideram mulheres negras e mulheres brancas. A explicação deste indicador reside na imbricação entre patriarcado e racismo, pois as mulheres negras foram coisificadas, tachadas de sexualmente disponíveis e carregam o estigma de que são dotadas de uma superexcitação genética. E, infelizmente, essas não são apenas memórias do período colonial e/ou escravagista. Assim, em um contexto pandêmico, no qual as políticas sociais foram desafiadas, estas mulheres acabaram sendo as mais desassistidas.

Outro indicador incluído na pesquisa foi o índice de feminicídio, no qual se verifica uma redução no ano de 2020. Quanto à tentativa de feminicídio, somente o Dossiê de 2019 (Moraes; Manso, 2019) apresentou essa informação, como demonstramos na tabela a seguir:

Tabela 6
Número de feminicídios e tentativa de feminicídios no RJ entre 2018-2020

Fonte: Adaptado de Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro ([2022]).

Cabe destacar que essa queda nos números de feminicídios, no estado do Rio de Janeiro, contrasta com os números nacionais, como se pode ver no gráfico abaixo, divulgado pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022:


Figura 1
Número de vítimas de feminicídio, por ano (2016-2021), no Brasil
Fonte: Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro ([2022]).

Os dossiês trazem ainda a informação das vítimas de feminicídio por cor. Como se pode verificar abaixo, a maioria das vítimas de feminicídio é de mulheres negras. Ressaltamos que a redução de alguns crimes contra as mulheres, em 2020, pode estar relacionada com as subnotificações, pois os serviços de atendimento às mulheres, como delegacias e juizados, ainda estavam se adaptando aos atendimentos remotos e on-line. Não é possível analisar este indicador apenas focando na redução, sem considerar um cenário propício para as subnotificações das expressões da violência.

Tabela 7
Perfil das mulheres vítimas de feminicídio - Por raça/etnia

Fonte: Adaptado de Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro ([2022]).

Os dados apresentados revelam que, no Brasil, as mulheres negras são as mais vitimadas pelo feminicídio em relação às mulheres não negras. A queda de algumas estatísticas nesse período pode ter relação com as subnotificações, ocasionadas pelas dificuldades de realização das denúncias e pelas modificações das rotinas institucionais dos serviços de atendimento para as mulheres, que precisaram de alguns meses para padronizar as denúncias de forma on-line, por exemplo. Contudo, mesmo com um cenário de possíveis subnotificações, assim, verifica-se que as mulheres negras ainda são as mais vitimadas pela violência.

Elencamos também os indicadores da relação entre a vítima e o local da violência e o autor da violência e a vítima. Verificamos que, na maioria dos casos, a violência ocorre no interior dos domicílios e por parte de familiares. Vejamos os dados consolidados:

Tabela 8
Perfil das mulheres vítimas de violência - Por local

Fonte: Adaptado de Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro ([2022]).

Tabela 9
Perfil das mulheres vítimas de violência - Por relação entre autor e vítima

Fonte: Adaptado de Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro ([2022]).

Outro indicador analisado foi o tipo de arma usada nos feminicídios praticados. Verificamos que as mulheres são mortas, em sua maioria, com faca, facão, canivete, arma de fogo e asfixia. Se as mulheres negras são as mais vitimizadas por esse crime, infere-se que o indicador mostra como, no estado do Rio de Janeiro, essas mulheres têm suas vidas ceifadas. Este indicador reflete as particularidades do racismo e do patriarcado sofridos pelas mulheres negras, que vivenciam um processo de dominação-exploração em todas as suas condições de vida e trabalho e são assassinadas das formas mais cruéis, no Brasil.

Tabela 10
Perfil das mulheres vítimas de violência - Tipos de armas usadas nos feminicídios

Fonte: Adaptado de Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro ([2022]).

Além desses indicadores sobre violência contra as mulheres no Rio de Janeiro, ainda analisamos a quantidade de ocorrências e o número de registros de ocorrências, a fim de desvelarmos este dado no contexto da pandemia. Verificamos que houve uma redução de ocorrências explicada não pela diminuição dos casos de violência no Rio de Janeiro, mas sim pela dificuldade de adaptação da rede de serviços para o formato remoto e/ou on-line.

Tabela 11
Mulheres vítimas de violência/ Números de registros de ocorrência

Fonte: Adaptado de Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro ([2022]).

Atrelados a estes indicadores, também se buscou analisar as informações sobre o total de medidas protetivas solicitadas pelas vítimas. Entretanto, como a solicitação de medidas protetivas, por si só, não se relaciona necessariamente a um crime, não foi viável obter essa informação.

Por outro lado, uma vez que o descumprimento de medidas protetivas de urgência virou crime, em 2018, foi possível contabilizá-lo da mesma forma que o ISP contabiliza os demais crimes do estado, e por isso tal crime foi incluído neste Dossiê.

Tabela 12
Descumprimento de medidas protetivas de urgência

Fonte: Adaptado de Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro ([2022]).

Este indicador se articula com as chamadas para o 190. No entanto, ao buscar nos dossiês, só conseguimos a informação no Dossiê 2019 (Moraes; Manso, 2019), referente ao ano de 2018, de que o Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência – representava 91% do total de denúncias de violência contra mulher do Disque Denúncia.

Ainda, no site do ISP, porém no Monitor da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, no período de isolamento social, no monitoramento mensal, foi possível verificar que o número de ligações do 190 se manteve estável mesmo no período em que o nível de isolamento esteve mais elevado, o que reforça um dos resultados desta pesquisa, ou seja, apenas o isolamento social é insuficiente para explicar a violência contra as mulheres no contexto da pandemia de Covid-19, especialmente a violência contra as mulheres negras. Vejamos mais detalhes sobre o indicador dos números de ligações para o 190:


Figura 2
Número de ligações do 190 sobre crimes contra a mulher
Fonte: Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro ([2022]).


Figura 3
Número de ligações do Disque Denúncia sobre violência contra a mulher
Fonte: Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro ([2022]).

Pelos dados apresentados, verificamos um aumento nas ligações do Disque Denúncia, no Rio de Janeiro, precisamente em abril de 2020, após um mês de implementação das medidas sanitárias de contenção do vírus. Contudo, este dado não pode ser analisado apenas pelo viés do isolamento. Ele precisa ser analisado em conjunto com os outros dados que retratam o cenário da violência contra as mulheres no Brasil. Verificamos uma diminuição do feminicídio, porém, ao cruzar este dado com o número de ocorrências e de registros, observamos que os três índices sofreram redução.

A base de dados examinada possibilita algumas sínteses analíticas, a saber: 1) os indicadores da violência contra as mulheres precisam ser analisados e cruzados para apresentar um panorama mais completo do fenômeno; 2) os dados sobre o Rio de Janeiro carecem de algumas informações que dificultam entender o perfil das mulheres em situação de violência; 3) mesmo com algumas ponderações sobre os dados disponíveis, é possível afirmar que o Rio de Janeiro reproduz o mesmo perfil encontrado nos dados nacionais, ou seja, as mulheres que mais sofrem violência são negras, pobres, vitimizadas dentro de casa, por familiares e/ou companheiros ou ex-companheiros; 4) o isolamento social foi vivido desigualmente pelas mulheres, principalmente quando se considera o perfil étnico-racial e a inserção nas atividades de trabalho formais e informais; 5) a violência contra as mulheres é uma das consequências materiais de relações sociais estruturadas por três fenômenos de dominação-exploração: racismo-patriarcado-capitalismo.

Assim, em um momento conjuntural desafiador como o da pandemia de Covid-19, devemos analisar fenômenos estruturais como a violência contra as mulheres a partir de explicações que o conectem com seus fundamentos histórico-sociais, a fim de evitarmos conclusões parciais.

Considerações Finais

No Brasil, conforme os dados da PNAD Contínua 2022 debatidos neste artigo, as mulheres negras são o grupo demográfico com o menor rendimento mensal e possuem os vínculos mais frágeis de trabalho, o que está intrinsecamente associado com questões histórico-culturais mantidas desde a escravização e reorganizadas no modo de produção capitalista (IBGE, 2022).

No caso da violência, as mulheres negras enfrentam um processo de intensificação deste fenômeno, seja em relação ao tipo de violência sofrida, ao tipo de arma utilizada ou ao número estatisticamente maior de mulheres negras vitimadas pela violência sexual e o feminicídio.

No contexto da pandemia de Covid-19, este quadro se manteve. Contudo, as análises repetem os posicionamentos históricos que desconsideram o recorte racial como estruturante das relações de gênero e do fenômeno da violência contra as mulheres e afirmam a situação vivenciada pelas mulheres brancas e de classe média como parâmetro universal para todas as mulheres.

Neste período, o isolamento social, por exemplo, era colocado como um dos elementos desencadeadores do aumento da violência contra as mulheres. Primeiro, havia uma ideia de aumento da violência e não de intensificação das situações de violência já existentes. Houve, assim, um processo de acirramento da violência explicado por inúmeros fatores, como aumento do desemprego, maior convívio no espaço privado e mudanças na rede de serviços de enfrentamento à violência contra as mulheres. Como segundo elemento, apontava-se o isolamento como uma realidade vivida por todas as mulheres e não se ponderava que as que mais vivenciam as situações mais agudas de violência, no caso as mulheres negras, não gozaram do isolamento social como as mulheres brancas e de classe média.

Durante a pandemia se pode afirmar que o Rio de Janeiro reproduziu o mesmo perfil encontrado nos dados nacionais, ou seja, as mulheres que mais sofreram violência foram as negras, pobres, vitimizadas dentro de casa, por familiares e/ou companheiros ou ex-companheiros. Assim, ficou evidente que a violência contra as mulheres é uma das consequências materiais de relações sociais estruturadas por três fenômenos de dominação-exploração, racismo-patriarcado-capitalismo.

Dessa forma, espera-se que trabalhos como este contribuam com as análises sobre a violência, as relações patriarcais de gênero e étnico-raciais racistas, bem como a formulação de políticas específicas para mulheres negras, já que suas condições de trabalho e vivência das expressões da violência se desenvolvem de forma diferenciada, quando se consideram as relações étnico-raciais.

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Notes

3 Destaca-se que Mies (2022, p. 99) diferencia exploração de opressão. Segundo a autora, “[...] a exploração [...] significa que alguém ganha roubando algo de outrem ou vive às custas de outrem. O termo está ligado ao surgimento da dominação masculina sobre as mulheres e ao domínio de uma classe ou grupo sobre os demais. Se não falamos de exploração, quando falamos da relação homem-mulher, nossa conversa sobre opressão ou subordinação fica no ar, pois por que os homens exerceriam opressão sobre as mulheres se não tivessem nada a ganhar com isso? Falar de opressão ou subordinação sem referência à exploração torna-se uma questão puramente cultural ou ideológica, fazendo com que seja impossível defini-la, a não ser que se recorra a alguma tendência agressiva ou sádica inata aos homens. Mas a exploração é uma categoria histórica – não psicológica ou biológica – que está na base da relação homem-mulher. Ela foi historicamente criada por tribos e sociedades patriarcais [...] eu falo da exploração das mulheres em sentido triplo: elas são exploradas – não apenas economicamente, mas como seres humanos – pelos homens e também são exploradas como donas de casa pelo capital. Se são trabalhadoras assalariadas, também são exploradas como trabalhadoras”.
4 Em relação aos baixos salários, a PNAD Contínua de 2022 mostra que, no Brasil, as mulheres ganham, em média, 78,9% do que os homens ganham, ou seja, enquanto a média salarial dos homens é R$ 2.920, a das mulheres é R$ 2.303 (IBGE, 2022). Quando consideramos os homens negros e as mulheres negras, temos que a população negra ganha em média 60,64% do que a ganha população branca, ou seja, enquanto a média salarial da população branca é R$ 3.377, a da população negra é R$ 2.048. Quando se analisa apenas o salário das mulheres negras, comparando-a com a média salarial do Brasil, tem-se que elas ganham 67% a menos, ou seja, ganham em média R$ 1.781 contra R$ 2.659 da média salarial geral.  Se comparamos as mulheres brancas com as mulheres negras (ou seja, 1,781/2,858), temos que as mulheres negras ganham 62,3% do que ganham as mulheres brancas. Assim, temos que a estrutura salarial brasileira é determinada, preponderantemente, por questões raciais, tanto que homens pretos e pardos recebem menos que mulheres brancas.
5 Parte-se das análises de Lerner e Saffioti para caracterizar as relações de gênero como patriarcais. O patriarcado é um fenômeno histórico que tem como substância o processo de dominação-exploração sobre as mulheres. Como afirma Lerner (2019), nasceu no Estado Arcaico e foi se reorganizando e reatualizando a partir das diferentes sociedades e modos de produção, como no capitalismo. Assim, o patriarcado é o resultado histórico do processo de apropriação das mulheres fundado em uma divisão sexual do trabalho que se manifesta “[…] na organização familiar e nas relações econômicas, na instituição de burocracias religiosas e governamentais e na mudança das cosmogonias” (Lerner, 2019, p. 31). O capitalismo se caracteriza, como afirma Saffioti (2015), por seis elementos: i) refere-se a uma relação civil e não privada; ii) concede direitos sexuais, quase sem restrições, aos homens sobre as mulheres; iii) é uma relação hierárquica presente em toda a sociedade; iv) tem uma base material (divisão sexual do trabalho); v) corporifica-se; vi) uma estrutura de poder fundada na ideologia e na violência.
6 De acordo com o Atlas das periferias no Brasil: aspectos raciais de infraestrutura nos aglomerados subnormais, de 2021: “Na cidade do Rio de Janeiro, local onde surgiu a primeira favela no Brasil, percebemos que a questão de raça, gênero e classe continua como um dos elementos estruturadores da composição da população e da gestão dos espaços das favelas. Segundo os dados do censo de 2010, realizado pelo IBGE, das 762 favelas (aglomerados subnormais para o instituto), somente 31 têm a população branca como maioria, ou seja, pouco mais de 4%. Significa dizer que na cidade do Rio de Janeiro são 731 favelas com maioria de residentes negros, ou 96%. Nas favelas da cidade, segundo os dados do IBGE, residem 1.394.333 pessoas. Deste número, 65,8%, isto é, 917.710 pessoas são negras. Os brancos são 33,1%, o que equivale ao número absoluto de 461.331 pessoas; indígenas são 1.336 (aproximadamente 0,1%) e amarelos, 13.310 (aproximadamente 1%). Esses dados comprovam a segregação de base racial na cidade do Rio de Janeiro, impondo aos negros espaços com baixa infraestrutura urbana (acesso à água potável, luz, esgoto, coleta de lixo, arruamento etc.). As ações violentas do Estado em operações policiais têm militarizado esses espaços, impactando a vida das mulheres com inúmeros casos de assédio, estupro, trazendo mudança nas suas rotinas e vitimando majoritariamente homens negros” (Goes et al., 2021, p. 351).
7 Salientamos que o Dossiê de 2021 tratou os dados como mulheres brancas e negras. Então, no Dossiê de 2020, foram somadas as mulheres pardas e pretas para comparar da mesma forma.
8 Na parte sobre violência sexual, foram analisados os crimes de estupro, estupro de vulnerável, importunação sexual, assédio sexual e ato obsceno. Os Dossiês não contemplaram a relação do crime de tentativa de estupro com a cor. Além disso, o Dossiê de 2019 não apresentou essa informação; assim sendo, só foram utilizados os Dossiês de 2020 e 2021.

Author notes

Editora de Seção: Raquel Kritsch, https://orcid.org/0000-0002-5810-0704
Declaração de Coautoria: Renata Gomes da Costa e Paula Magalhães da Silva Santos declaram que o texto é fruto de pesquisa realizada para o Trabalho de Conclusão de Curso da última, e que ambas participaram da elaboração do artigo na íntegra. Declaram ainda tratar-se de pesquisa documental realizada a partir dos dados do ISP/Mulher RJ e que elaboraram “uma base de dados própria e a analisamos a partir de um referencial teórico que entende a violência contra as mulheres estruturada pelas relações étnico-raciais racistas e as relações de gênero patriarcais.”


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