RESENHAS
| BLOOM Peter, RHODES Carl. CEO society: the corporate takeover of everyday life. 2018. London. Zed Books |
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Received: 30 November 2023
Accepted: 29 January 2024
Published: 19 April 2024
Takeover é uma expressão que tem sido utilizada amplamente no mundo dos negócios para designar a aquisição de uma empresa por outra. Quando repercute em conflitos significativos entre os agentes e organizações envolvidos, é adjetivada como “hostil”. Porém, mesmo nas demais aquisições, as contradições indicam estarem longe de se apresentarem como contratos entre partes iguais. Tal é a analogia mobilizada por Peter Bloom e Carl Rhodes no livro CEO Society: The Corporate Takeover of Everyday Life, cuja primeira edição é de 2018 e, embora com boa repercussão internacional, ainda não se encontra publicado em português. Na sociedade CEO, a incorporação corporativa se projetaria em múltiplas dimensões da vida cotidiana.
O livro é resultado da agenda de investigações sobre executivos e o mundo corporativo desenvolvida pelos autores junto a suas instituições, na Austrália e Inglaterra. No primeiro capítulo, eles apresentam o contexto daquilo que nomearam como a “sociedade dos CEOs”, elencando uma série de indicadores da influência desse segmento sobre o todo social. O capítulo seguinte aborda a disseminação da idolatria aos executivos-chefes. O terceiro capítulo reflete sobre o cenário de competividade econômica no segmento executivo. No quarto, o foco está no CEO político, a exemplo do ex-presidente dos Estados Unidos (EUA), Donald Trump, e outros. O quinto capítulo reflete sobre o ser executivo como um modelo de vida propagado crescentemente. Um horizonte reforçado pela ideia de CEO benevolente, frequentemente ativo em iniciativas de filantropia, o que é discutido no capítulo seis. No sétimo capítulo, os autores assumem uma posição cética quanto à possibilidade de “salvação” por meio dos CEOs. Por fim, enfatizam os riscos e o alto custo da sociedade dos CEOs.
Refletindo sobre a atual proeminência do mundo corporativo, a obra analisa o surgimento do termo “CEO” (Chief Executive Officer) e como ele adquiriu seus contornos e importância atuais2, desde seu emprego inicial para designar lideranças militares e políticas até a acepção contemporânea que se refere ao cargo executivo superior dentro da hierarquia organizacional de uma empresa. Mais do que isso, ele se torna um personagem que busca encarnar uma série de atributos valorizados socialmente. Ou, de outro lado, é visto como a encarnação dos males que afligem nossa organização societária.
Como uma espécie de versão empresarial da seleção natural darwiniana, os executivos tornaram-se, para muitos, heróis sedutores da era contemporânea, com CEOs sendo imortalizados de uma maneira antes reservada à realeza (Bloom; Rhodes, 2018, p. 4-6). Trata-se de uma imagem ilustrada na literatura especializada, tanto por meio das revistas de negócios como em livros de autoajuda e coaches com receitas de sucesso. Se, no período anterior ao chamado neoliberalismo, os comandantes das grandes empresas eram amplamente desconhecidos do grande público, hoje muitos assumiram papéis de celebridades. A ideia dos executivos como burocratas sinistros ou “gatos obesos”3 exploradores teria ficado no século passado. O “CEO celebridade” aparece como um sujeito “descolado”, legitimando o capitalismo neoliberal ao reforçar o poder corporativo por meio de uma imagem redesenhada (Bloom; Rhodes, 2018, p. 35). Isso se reflete, por exemplo, nos apelos a sermos “CEOs da própria vida”, transmitidos de modo a fomentar o desejo de buscar um tipo de mentalidade que garantiria o sucesso em todas as dimensões existenciais (Bloom; Rhodes, 2018, p. 7). Em síntese, na sociedade atual, o CEO “seria apresentado não somente como um emprego de elite, mas um estilo de vida, um modo de ver e ser no mundo que pode ser conduzido e adotado cruzando culturas, classes e circunstâncias pessoais” (Bloom; Rhodes, 2018, p. 7, tradução nossa).
A idolatria ao CEO é distinta daquela oferecida aos seus antecessores históricos. A imagem de “titãs dos negócios”, associada com os capitalistas do século XIX, é sucedida pela versão executiva tecnocrata, após as grandes guerras mundiais. Na ascensão conservadora dos anos 1980, evidencia-se a glamourização do executivo workaholic bem-sucedido e sexy. O novo milênio marcaria uma extensão da fetichização do CEO por meio da promoção de valores morais em outras dimensões, concomitante à blindagem dos executivos frente a uma possível associação com a exploração e criação de desigualdades (Bloom; Rhodes, 2018, p. 11). Tal processo seguiria inabalado até a crise econômica de 2008, quando, mesmo com percalços, verificou-se a consistência do imaginário constituído. A queda e reascensão do mito do CEO ocorrem em meio ao crash, no qual os escândalos envolvendo executivos foram atribuídos exclusivamente a algumas “maçãs podres”, protegendo o edifício maior do mundo dos negócios. Os desvios de conduta seriam causados pela não observância dos códigos morais que a posição de executivo-chefe exigiria. Indivíduos são punidos, ao passo que o sistema que dá origem a eles se manteria com poucas fissuras (Bloom; Rhodes, 2018, p. 49).
O ápice do executivo como um ícone cultural idealizado aparece na emergência do “CEO político”, cujo símbolo recente mais notório é o ex-presidente dos EUA, Donald Trump. O caso estadunidense trouxe o voto popular massivo a um CEO super-rico, cujos discursos anti-establishment buscaram afastá-lo da ideia de que ele seja parte do problema para aproximá-lo de um outro imaginário coletivo, que projeta executivos como sujeitos que conseguem fazer as coisas acontecerem. A vitória de Trump seria também um indicador de um envolvimento crescente de executivos com a política, não somente por meio do lobby corporativo – que tem impactado profundamente a formulação de políticas estatais desde a década de 1970 –, mas se alçando a postos políticos e representando seus interesses de modo direto. No Brasil, recentemente se podem verificar casos similares, embora aqui esse fenômeno ainda não pareça ter o mesmo peso. De todo modo, trata-se de uma certa virada na relação entre essas duas esferas sociais. Se, antes, o mundo econômico buscou inspiração nas lideranças políticas para erigir o personagem CEO, hoje, seria a sociedade política a se referenciar na liderança de tipo corporativo, com o endosso de muitos conglomerados midiáticos, ao reforçarem certas características dos executivos como politicamente desejáveis.
Esse cruzamento de esferas sociais pode ser mais bem compreendido ao se analisarem as moralidades associadas aos executivos-chefes. Diferentemente de outros segmentos do topo, a posição elevada de um CEO é usualmente atribuída ao trabalho duro e talento do sujeito, mais do que a sistemas fiscais fraudulentos ou privilégios culturais herdados (Bloom; Rhodes, 2018, p. 108), o que acentua o apelo meritocrático, com particular ênfase na competição e no individualismo, algo que tem influenciado todos os tipos de organizações. Entretanto, indicadores estatísticos têm mostrado que apenas alguns logram se tornarem executivos de alto nível (Bloom; Rhodes, 2018, p. 11-12). A chamada “guerra por talentos” permanece restrita a um pequeno mercado global de elite, no qual redes de relacionamentos circunscritas às grandes corporações permitem aos altos executivos manterem seus privilégios e altos salários (Bloom; Rhodes, 2018, p. 82-83).
A despeito disso, a crença socialmente compartilhada é de que a receita do sucesso passa pelo uso de habilidades e competências de executivos (Bloom; Rhodes, 2018, p. 108). Essa é uma mentalidade inculcada em trabalhadores de todos os níveis, repercutindo nas relações laborais de modo a mascarar questões estruturais de precariedade para muitos. Se todos passam a ser vistos como algum tipo de CEO de si mesmo, a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso é individual. Nessa visão emulada, executivos aparecem como sujeitos de agência plena em um mundo de desumanização digital, encarnando a liberdade individual solta das amarras da opressão econômica e do amorfo controle institucional. Eles são vistos como aqueles que ainda determinam as próprias vidas e de outrem (Bloom; Rhodes, 2018, p. 87-88). Esse é um apelo que pode ser rastreado até as origens do liberalismo econômico e suas promessas para o desenvolvimento dos indivíduos (Bloom; Rhodes, 2018, p. 102).
Para os autores, estaria também em curso uma reformulação da chamada ética protestante, analisada por Max Weber (2004) quando das fases iniciais do capitalismo. Atualmente, seriam requeridos outros parâmetros éticos do trabalho, para além da moral convencional de sobriedade, poupança e trabalho duro, identificada pelo sociólogo alemão. A ética de trabalho do CEO depende mais de ser oportunista, ardiloso e impiedoso na busca pela valorização de si. Trata-se de um valor social próprio que possa ser mensurado e eventualmente instrumentalizado, embora não em sentido econômico estrito.
Segundo Bloom e Rhodes (2018, p. 19), evidencia-se um gerencialismo de tipo corporativo influenciando outros domínios da vida e até mesmo os governos em regimes democráticos. O pressuposto que se dissemina é de que economia e sociedade deveriam se espelhar na forma de gestão das grandes corporações. Isso também se estende à provisão de bens públicos em nome da responsabilidade social corporativa (CSR), tendo um certo tipo de generosidade como atributo estimulado4. Os graves problemas sociais enfrentados pela humanidade passariam a ser abordados por executivos sensíveis ao contexto, muito embora em seus próprios termos e métricas de sucesso. No chamado “filantrocapitalismo”, as linhas tênues entre o público e o privado se manifestam como identificação imediata entre empresa e CEO. Portanto, quando tais executivos decidem por ações de filantropia e afins, a valorização social desses indivíduos se estende às suas respectivas corporações. Ademais, essa ações podem representar ganhos financeiros, como em isenções fiscais ou ampliação de mercados prospectáveis. Para os autores, quanto mais moral um CEO se apresenta na cena pública, mais imoral é o salvo-conduto que sua corporação pode ter, tanto no que tange às relações trabalhistas quanto com o meio ambiente.
Assim, a conclusão da obra traz o ceticismo dos autores quanto à salvação por meio da sociedade CEO. Para eles, o grande perigo da competição e exploração interpessoal, aliada ao paradigma para o progresso social e engajamento cultural orientado ao mercado, é o de se tornarem não somente práticas dominantes, mas virtudes que seriam supostamente morais sem de fato o serem (Bloom; Rhodes, 2018, p. 14). A incorporação de tais valores ideológicos de maneira mais ou menos consciente se assentaria na romantização da figura do CEO, visto como a síntese da agência individual em um mundo em que ela parece estar cada vez mais em falta aos sujeitos. Da possibilidade de estar no controle do mercado, ao invés de ser escravo dele (Bloom; Rhodes, 2018, p. 219).
A obra de Peter Bloom e Carl Rhodes é instigante e traz reflexões fundamentais. Alia um estilo de escrita ensaístico – que dialoga com um público mais amplo – com o rigor acadêmico e de investigação, nos quais se assentam as conclusões apresentadas. Se a crise econômica de 2008 levou, pela primeira vez em um longo período histórico, ao questionamento de certas bases do capitalismo, a batalha ideológica parece ter sido vencida pelos “de cima”. O neoliberalismo trouxe como aprendizado, especialmente, a construção da marca de sucesso do capitalismo como fundamental para as corporações e suas lideranças. E o caso dos executivos-chefes é exemplar desse rebranding exitoso, uma ressurreição salvadora da ordem capitalista.
Referências
BLOOM, Peter; RHODES, Carl. CEO society:the corporate takeover of everyday life. London: Zed Books, 2018.
MITCHELL, Cory. Fat Cat. Investopedia, New York, 26 jan. 2023. Disponível em: https://www.investopedia.com/terms/f/fatcat.asp. Acesso em: 21 mar. 2023.
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Notes
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