ANTES DO 13 DE MAIO: O 25 DE MARÇO NO CEARÁ E O MOVIMENTO ABOLICIONISTA EM PERNAMBUCO
ANTES DO 13 DE MAIO: O 25 DE MARÇO NO CEARÁ E O MOVIMENTO ABOLICIONISTA EM PERNAMBUCO
Afro-Ásia, núm. 53, pp. 149-183, 2016
Universidade Federal da Bahia
Recepção: 12 Abril 2015
Aprovação: 05 Janeiro 2016
Resumo: O movimento abolicionista com sua diversidade de atuação e de agentes pro- vocou uma onda de mobilizações que se estendeu por todo o país. Na província pernambucana, no ano de 1884, por conta da abolição no Ceará, ganhou novo fôlego e mais força. Em oposição a essa mobilização, proprietários de escravos tentaram frear mudanças na ordem social estabelecida, mas, ainda assim, as pessoas escravizadas não deixaram de lutar por sua liberdade. Essa luta foi marcada por intempéries vivenciadas principalmente pelos escravos. Este artigo tem a intenção de reconstruir um pouco do ambiente experimentado por senhores de engenho e seus trabalhadores ao longo da década de 1880, período que foi percebido como de transformações profundas no que diz respeito, notadamente, à escravidão e às relações sociais por ela regidas.
Palavras-chave: abolição, movimento abolicionista em Pernambuco, abolição no Ceará.
Abstract: The abolitionist movement with its diverse activities and agents provoked a wave of protests that spread across the country. In 1884, due to the abolition in Ceará, the push for abolition gained new impetus and more strength in the [neighboring] province of Pernambuco. In opposing this mobilization, slave owners tried to stop changes in the established social order, but nonetheless the enslaved continued to fight for their freedom. This struggle was marked by bad weather experienced primarily by enslaved men and women. This article intends to reconstruct some of the social climate experienced by plantation owners and their employees during the 1880s, a period that was perceived as one of profound changes, notably with regard to slavery and the social relations it engendered.
Keywords: abolition, abolitionist movement in Pernambuco, abolition in Ceará.
A partir de meados do século XIX, difundiu-se o consumo de cigarros no Brasil. A explicação para a rápida popularização, de acordo com Edna Lima, deve-se à convergência de dois fatores:
a invenção do fósforo e a criação de embalagens que estimulavam o consumo de clientes.[1] Ocuparse em dar tragadas diárias podia ser visto como um hábito de lazer e, também, como uma forma de expressar posições políticas e valores. Ao ler os jornais pernambucanos da década de 1880, observam-se os nomes das marcas de cigarros que oferecem indicativos das discussões engendradas naquele período. Os rótulos são testemunhos, apesar de sua vida breve, das tendências da moda, do design gráfico, dos costumes e do modo de vida da população desse período. As marcas serviam para identificar e diferenciar os produtos manufaturados de seus similares. O anúncio do cigarro disposto na Figura 1 poderia indicar que os consumidores estavam “libertos” das “nocivas” composições “opiáticas”, mas poderia servir, também, para comunicar visualmente aos seus consumidores os valores defendidos pelo fabricante.[2] Ter entre os dedos um cigarro no qual estava impresso a marca Os Libertos[3] podia dizer muito sobre as convicções e atitudes do seu portador e seu estilo de vida.
Ainda nesse contexto, tem-se como exemplo a marca de cigarro que traz no rótulo os rostos de Joaquim Nabuco e José Mariano (Figura 2),[4] indicando que quem comprasse esse cigarro consumiria mais do que nicotina para deleitar o paladar. A imagem em litografia presente no rótulo de cigarros diz, portanto, muito do ambiente político daquele final de século.
O nome que ornava o rótulo manifestava simbolicamente as experiências e as aspirações dos seus consumidores — a luta pela abolição e o fim da escravidão. Na embalagem disposta na Figura 2, por exemplo, aparecem os maiores líderes do abolicionismo em Pernambuco, ambos nomeados como “príncipes da liberdade”: um “título” que indica a proeminência de seus portadores. Note-se que o uso da imagem de grandes referências do movimento abolicionista na província proporcionava significativo grau de reconhecimento dessas personalidades para um amplo conjunto de pessoas. O cigarreiro (produtor de cigarros) assume, assim, um engajamento, uma posição política, ao utilizar símbolos de tanta força ideológica. Se, por um lado, existiram aqueles que tinham como maior objetivo vender seus produtos, sem se importar com o que defendiam, por outro, existiram, também, os que se esforçaram para imprimir suas escolhas políticas nos espaços em que atuavam.
Em outras palavras, em tempos de grande rebuliço social por conta da mobilização em prol da causa da abolição, fumar certo tipo de cigarro, comprar objetos em determinados bazares, tomar o vinho “Ave Libertas”, plantar e usar camélias ou frequentar determinadas peças teatrais indicavam os ideais e o posicionamento político-social de seus consumidores e frequentadores. Nesse ambiente, não faltaram gestos, performances e objetos para assinalar uma afirmação de princípios, envolvimento e adesão política efetiva das pessoas, como foi o caso da camélia usada pelos integrantes do movimento abolicionista como sinal de demonstração de apoio à causa. Os homens a portavam na lapela, e as mulheres, nos decotes dos vestidos, além de usarem-na para adornar ruas e salões. De acordo com Eduardo Silva, as camélias foram usadas até pela princesa Isabel com esse fim e cultivadas nas residências dos abolicionistas e nos quilombos dentro das cidades do Rio de Janeiro, Santos, São Paulo e Recife.[5]

No jornal da cidade de Nazaré, O Thermometro,[6] de 1883, os anúncios de cigarros dividiam espaço com matérias sobre a posse do novo chefe de polícia, a reunião para eleição da nova mesa regedora da Irmandade de N. S. da Conceição de Nazaré, questões relacionadas com o Banco Auxiliador da Agricultura e, ainda, a respeito do elemento servil. Quanto a este último tópico, discutia-se, especificamente, uma proposta apresentada pelo gabinete governamental ao parlamento que, segundo o articulista, era uma medida pacífica que não procurava atiçar ódios, nem motivar o ímpeto revolucionário. Enfatizava que essa sugestão era diferente da adotada por Lincoln,[7] que levou adiante a Guerra Civil para acabar com a escravidão nos Estados Unidos. Tal projeto tinha como um de seus principais propósitos dar continuidade e desenvolver uma legislação como a lei de 1871 especialmente no que se refere ao fundo de emancipação e, assim, diminuir a morosidade para a extinção da escravidão. Assim sendo, esse projeto de lei, que foi proposto por políticos da atual região Sudeste, pretendia que ficassem livres todos os escravos que se mudassem, ou melhor, que fossem transferidos por venda para outra província diferente de seu lugar de domicílio ao tempo da aplicação da lei. Essa matéria não o diz, mas, certamente, a proposta visava a frear a venda de cativos para outras regiões do Império e findar com o comércio de pessoas para regiões de economia em expansão. De acordo com Tadeu Caíres, esse tipo de procedimento, a proibição ou imposição de dificuldades para a exportação de escravos na Bahia, favoreceu os senhores de engenho do Recôncavo e grandes lavradores de outras regiões da província, pois permitia que uma reserva de mão de obra escrava estivesse disponível para os setores locais mais abastados e, provavelmente, teve o mesmo efeito para os senhores de Pernambuco.[8]
Todas as propostas apresentadas pelo Governo ao longo das décadas de 1870 e 1880 tinham como ideia central promover uma abolição gradual e indenizatória, evitando maiores desordens sociais e econômicas para os proprietários de escravos bem como para o Estado e, ao mesmo tempo, contemplar os anseios emancipacionistas.[9] Por um lado, a opção por abolir a escravidão gradualmente, por meio de leis, representou, também, a interferência do Estado Imperial nos assuntos concernentes à liberdade dos cativos. Como salientou Sidney Chalhoub, a obrigatoriedade da alforria mediante a apresentação do pecúlio do es- cravo fez com que se alterasse a antiga política de domínio baseada na concessão da alforria como prerrogativa da autoridade senhorial.[10] Por outro lado, assegurava que poderia ser um processo lento com o uso de recursos legais que garantissem aos antigos proprietários adiar o acesso à liberdade ou controlar a vida e o trabalho dos libertos. Os senhores de engenho abraçaram a proposta gradualista como solução para evitar a emancipação imediata e dar, mais uma vez, sobrevida à escravidão.

A segunda metade dos Oitocentos foi marcada, em Pernambuco, pela discussão sobre a substituição do braço escravo e o futuro das lavouras, pois setores ligados aos escravocratas, percebendo a inevitabilidade do fim do sistema, reconheciam a necessidade do encaminhamento da questão servil.[11] Foi um período de lutas, conflitos, expectativas e in- certezas para senhores e escravos. Todo o debate presente nos jornais e nas ruas estimulou, entre outras medidas, a organização de atividades para arrecadar pecúlio para promover alforrias e ações de liberdade na Justiça e potencializar o movimento de libertação dos escravos, que, na década de 1880, já havia se tornado uma causa popular.
De acordo com Celso Castilho, o movimento abolicionista realizou intervenções que possibilitaram o avanço da luta pela libertação.Acampanha pela abolição em terras pernambucanas ganhou intensidade e ameaçou a sobrevivência da escravidão a partir de 1880, com associações emancipa-cionistas fundadas por toda a província, apesar de elas estarem concentradas em grande parte na capital.[12] Medidas em prol do fim da escravidão também foram resultado da agência escrava por meio das ações levadas à Justiça e da interposição de dificuldades ao exercício do mando senhorial.
O debate político acerca do encaminhamento da questão servil no começo de 1880 foi ganhando força ao longo da década com realizações que podiam ser vistas por muitas pessoas com animação e confiança na chegada de transformações. Mas, para a elite senhorial, esse tema constituiu um momento de potencial explosivo para a ordem social vigente, como será visto em seguida.
O 25 de Março no Ceará e suas repercussões
A Província do Ceará foi a primeira a libertar seus escravos, feito comemorado em 25 de março de 1884.[13] Esse evento deixou entrever que a província cearense, ou parte dela, era, a partir daquele momento, um território onde não havia mais escravidão.[14] Os escravos em fuga de Pernambuco ao Ceará deslocaram-se em uma espécie de Underground Railroad.[15] A rota utilizada em Pernambuco para enviar escravos fugidos seguia de Recife para Mossoró e dali eles eram transferidos para Ara- cati e Fortaleza.[16] Segundo Keila Grinberg,[17] no Brasil, a definição de território estava atrelada à possibilidade de aquisição de direitos. Nesse sentido, o trânsito dos escravos para regiões em que não havia escravidão possibilitava a mudança da condição do indivíduo, dependendo do lugar em que ele estava ou do lugar em que vivia. Nessas condições, o solo livre poderia conferir liberdade a um cativo.[18] Com esse dado em mente, os integrantes do Clube do Cupim se aproximavam dos escravos do interior de Pernambuco, faziam propaganda do abolicionismo e encorajavam-nos a fugir para Recife e, da capital pernambucana, os cupins auxiliavam no transporte dos fugitivos para a Província do Ceará.[19]
Gualberto Silva, um abolicionista cearense, enviou do Ceará, em 4 de março de 1883, uma carta ao abolicionista pernambucano João Ramos, informando que já haviam sido dadas as devidas providências para receber o carregamento de Abacaxis — nome dado aos escravos fugidos e enviados para o Ceará — com a ajuda de pessoas engajadas na luta pela abolição para aquela direção.[20]
Os abolicionistas utilizaram diversas estratégias para acelerar o fim da escravidão e passaram a atacar de frente a autoridade moral dos proprietários de escravos. Para isso, usaram atitudes mais radicais como a captura de cativos embarcados em um vapor para venda em outra localidade, o acoitamento de escravos e o auxílio às fugas. Essas atitu- des iam de encontro à postura de abolicionistas mais moderados como Joaquim Nabuco e André Rebouças, que defendiam a difusão das ideias de emancipação somente junto aos proprietários e no parlamento,[21] isto é, com criação de leis e com uma maior conscientização dos senhores sobre os males advindos do escravismo para a sociedade. A escravidão, de acordo com os abolicionistas, tornava o povo pouco habituado ao trabalho moralizado, e a sociedade, de forma geral, já sentia o quanto o sistema escravocrata era algo vergonhoso, desumano e que postergava o progresso econômico e social. A ideia de nação civilizada passava por um processo de transformação dos costumes, e um dos caminhos apre- sentados para alcançar tal realidade foi o fim do escravismo.
Alguns militantes abolicionistas pernambucanos passaram a di- fundir ideias diretamente entre os escravos, percorrendo as senzalas e os espaços públicos, informando-os sobre a possibilidade de obter suas liberdades a partir do uso da legislação emancipacionista. Outros atuaram incentivando e respaldando fugas, como a indicada na carta de Gualberto Silva. Outras cartas de abolicionistas alagoanos, paraibanos, paraenses e cariocas, remetidas a João Ramos, fornecem indícios de que as conexões dessa “rede de auxílio” abolicionista se estendiam por várias partes do Brasil e, dentro da província pernambucana, por meio da troca de ideias e experiências entre os participantes desse movimento.[22]
Conforme notou Maria Helena Machado em seu estudo sobre os movimentos sociais na década da abolição, o movimento abolicionista abriu espaço para a participação de diversos agentes sociais, entre eles, o “povo” ou o “populacho” dos centros urbanos e zonas rurais das províncias de São Paulo e Rio de Janeiro. Para a autora:
[...] o abolicionismo abriu espaços para abrigar tendências e atuações muito diversas. Dinâmica peculiar na qual a crescente participação do zé-povinho e a radicalização de certos matizes empurravam os setores mais conservadores ao abandono das estratégias gradualistas e emanci- pacionistas. Vistas em retrospecto, as ideias que circulavam, na década de 80, nos meios abolicionistas, desenham uma graduação de cores e matizes que, muitas vezes, tem servido para encobrir as diferenças do que ressaltá-las. De fato, as molduras ideológicas que continham o movimento abolicionista podiam ser tão variadas e imprecisas quanto o eram diferentes setores sociais que a ele aderiram.[23]
E, assim, o movimento abolicionista formava-se e transformava-se cada vez mais em um mosaico de ideias de grupos sociais distintos. Contudo, é importante ressaltar, conforme aponta a autora, que esses grupos se relacionavam entre si.
O movimento antiescravidão cearense reuniu, em particular, pessoas de diferentes estratos sociais, a exemplo dos jangadeiros, em sua maioria mulatos, pardos e negros, que costumeiramente transportavam cativos para alguns negociantes, até que, no começo da década de 1880, recusaram-se a pôr os escravos em suas embarcações. Essa ação dos jangadeiros foi bastante noticiada em Fortaleza, e tais medidas geraram um movimento com forte participação popular, fortalecendo, assim, a luta abolicionista que empregou métodos legais e ilegais para libertar cativos e culminou na abolição promovida, no ano de 1884, na Província do Ceará. Esse movimento se tornou um exemplo inspirador e de grande repercussão nas diversas províncias do Brasil.
Os jornais que circulavam na Província de Pernambuco no começo do ano de 1884, por exemplo, anunciavam a mobilização e o entusiasmo que tomavam as ruas por conta do feito ocorrido no Ceará. Uma matéria mencionava as festas públicas realizadas em Recife, onde homens, mulheres e crianças participaram de uma parada abolicionista. O desfile reuniu, durante todo o dia, cerca de duas mil pessoas que cantaram, gritaram “vivas à liberdade” e, quando chegaram ao ponto final, em uma praça central da região de Santo Antônio, depararam-se com uma decoração de flores e faixas dispostas, escrito em uma delas: “Glória aos jangadeiros do Ceará – Viva 25 de Março de 1884”.[24] A celebração não se resumiu somente à passeata, pois, no Teatro Santa Isabel, foram apresentados recitais de música e poesia, proferidos discursos de alguns membros de sociedades abolicionistas como, por exemplo, a conferência de Fernando de Castro, que frisou ter sido lavrada, em 25 de março de 1884, “a carta de alforria integral da província do Ceará”.[25] O evento culminou com a entrega de 71 cartas de alforria.[26] As comemorações nos teatros e nas vias públicas proporcionavam uma maior visibilidade das ações abolicionistas, à medida que esses eventos eram vivenciados por maior quantidade de pessoas. As repercussões imediatas da abolição no Ceará foram mais sentidas em Pernambuco do que em outras partes do Império, em vista da proximidade geográfica das duas províncias e das conexões que uniam seus movimentos abolicionistas.
A comemoração da abolição do Ceará ocorreu também na capital do Império. As atividades ali realizadas reuniram cerca de dez mil pessoas que ouviram os comícios, assistiram a peças teatrais e participaram de caminhadas e quermesses. Reuniões semelhantes aconteceram nas províncias da Bahia, da Paraíba e do Amazonas. As notícias da abolição do Ceará ressoaram nos periódicos franceses, em função do jantar para celebrar o acontecimento realizado, em Paris, pelo abolicionista José do Patrocínio e Victor Schoelcher, figura máxima do abolicionismo francês.[27] Até um periódico afro-americano da Filadélfia divulgou uma notícia sobre a abolição no Ceará.[28] Uma onda revolucionária encorajou as pessoas simpatizantes do abolicionismo e os cativos a desobedecer a autoridade senhorial e deslegitimar o escravismo. Esse movimento popular aglutinou homens e mulheres de múltiplos estratos sociais e cores e ampliou-se por toda a província pernambucana.

Em 25 de março, os mais diversos jornais pernambucanos se so- lidarizavam e demonstravam o seu apoio, mobilizando a opinião pública. O jornal O Echo de Palmares, de uma das mais importantes cidades da Mata Sul, recebeu diversas colaborações de seus leitores para o suplemento dedicado a celebrar o dia 25 de março de 1884, intitulado o Ceará Livre.[29] Foram enviadas poesias que rendiam homenagens à libertação dos escravos efetuada no Ceará, notas a favor do evento e matérias de opinião. O jornal O Rebate (Figura 3) indicava que a escolha da data fazia referência a outros eventos políticos importantes ocorridos nos anos de 1817 e 1824, a Revolução Pernambucana e a Confederação do Equador, respectivamente, e mostrava o caminho, até aquele momento, de luta por emancipação política, que eram eventos de forte apelo popular.[30]
Os espíritos ficaram inebriados e cheios de expectativas com o debate promovido pelo acontecimento. Em Recife e nas cidades do interior, os jornais informavam que o povo apresentou demonstrações de apoio à causa. Essas informações acabaram por agregar mais simpatizantes ao movimento, pois houve, por toda parte, uma acolhida positiva das ideias abolicionistas. Contudo, não foram somente as ideias abolicionistas e os simpatizantes que mudaram a realidade, tampouco somente a prática dos cativos, mas o que desencadeou transformações foi o encontro desses dois movimentos.
As fugas para essa região preocupavam os proprietários, pois o proprietário ‘perdia’ um bem e, com isso, perdia, também, possíveis indenizações pela liberdade concedidas aos seus escravos. Por exemplo, casos como o da escrava Raymunda, da Província do Maranhão, estavam tornando-se comuns. No relatório da Secretaria de Polícia do Ceará, foi exposto o seguinte:
D. Maria Emilia de Carvalho, residente em Caxias na província do Maranhão, que enviou uma petição a Chefia de Polícia do Ceará requerendo a captura de Raymunda, escrava de sua filha menor D. Jozepha da Con- ceição Carvalho Lima, em virtude da mesma ter fugido para Fortaleza sem estar alforriada, nem a sua senhora ter recebido indenização que lhe fora oferecida para conceder a carta de liberdade (grifos nossos).[31]
O rumor de que o solo do Ceará conferia liberdade aos escravos que nele pisassem deve ter chegado aos ouvidos da escrava Raymunda por meio, provavelmente, dos abolicionistas, e correu também por outras províncias, dando bastante trabalho à polícia do Ceará, pois escravos de diferentes partes procuraram essa província como refúgio. Diversos ofícios foram enviados pelas chefias de polícia de Pernambuco, da Paraíba e da Bahia requerendo a captura de escravos fugidos que seguiram para Fortaleza.[32] Esse tipo de recurso não era uma novidade no Brasil. Décadas antes, na Província do Rio Grande do Sul, homens e mulheres escravizados cruzaram a fronteira com o Uruguai[33] em busca de liberdade.[34]
Lendo as notícias nos periódicos da época, temse uma forte impressão de que a propagação de ideias, do entusiasmo e da empolgação era vigorosa e cada vez mais generalizada. De fato, o que estava acontecendo era parte de um movimento mais geral: a luta pela emancipação geral dos escravos. Foi nessa época, por exemplo, que se promoveram reuniões, festas, feiras, loterias e peças teatrais com o objetivo de angariar recursos para custear libertações de escravos. Entretanto, não se pode esquecer que a luta pelo fim do cativeiro não foi um fato unânime, uma vez que alguns grupos permaneceram defendendo o direito à propriedade escrava.
Eduardo Silva afirmou que a ação abolicionista no Rio de Janeiro contou com o apoio significativo dos profissionais de teatro e de artistas[35] e que essa aproximação exerceu papel decisivo para que a campanha contra a escravidão não ficasse confinada, exclusivamente, à esfera po- lítica parlamentar e se firmasse como um movimento popular, atingindo espaços informais da política, tomando as ruas. Do mesmo modo, as peças teatrais foram instrumentos utilizados para atrair um público mais numeroso e interessado e um importante canal de difusão da propaganda abolicionista na Província de Pernambuco.[36]
Para Celso Castilho, a abolição da escravidão no Ceará foi uma das principais causas do fortalecimento do movimento abolicionista em Pernambuco.[37] Entretanto, não se pode dizer que ocorreu uma mudança geral na mobilização contra a escravidão, pois, desde o começo da década de 1880, na Província de Pernambuco, já vinham ocorrendo, em menor proporção, algumas intervenções e uma atividade militante que tinha certa visibilidade. Pode-se afirmar que, a partir de 25 de março de 1884, com a declaração de um Ceará Livre, o tom do debate mudou de um timbre cauteloso, no começo da década, para outro mais aguerrido. As ações das pessoas engajadas passaram a ser mais radicais, e o movimento abolicionista passou a combater veementemente o direito legal à escra- vatura e a defender a aprovação de uma proposta de abolição imediata e sem a indenização dos proprietários. Em contrapartida, os senhores de engenho atacavam ativamente esses acontecimentos, escrevendo diversas denúncias nas páginas dos jornais.
Com a abolição no Ceará, inaugurou-se uma atmosfera de insegurança em relação à posse da propriedade escrava. Nesse sentido, em carta enviada ao jornal Diário de Pernambuco, publicada em novembro de 1884, o autor argumentava sobre as dificuldades que seriam enfrentadas pelos proprietários por conta da atuação de abolicionistas, citando uma conferência realizada no Teatro Santa Isabel:
[...] as doutrinas enunciadas provam a evidência, que os candidatos abolicionistas querem a ruína do país, a miséria para numerosas famí- lias; o estabelecimento da República, ou melhor, o comunismo com a democratização da propriedade.[38]
Como se pode notar no trecho acima, os produtores de cana atacavam o abolicionismo e não aceitavam a perda da propriedade cativa, mobilizavam-se e tentavam postergar a escravidão e obstruir a abolição, acentuando a correlação entre abolicionismo e desordem social. Cabe lembrar, ainda, que, 1884 foi o ano de eleições provinciais em Pernambuco após a reforma do processo eleitoral, a chamada Lei Saraiva, que passou a exigir que os eleitores fossem alfabetizados. Provavelmente, o “novo” modo de participar da política e as questões presentes nos debates eleitorais tenham sido produto das manifestações populares do 25 de março de 1884.
Decerto, a publicidade nacional da emancipação imediata no Ceará gerou excitação no ânimo dos cativos e instabilidade na autoridade dos senhores sobre sua escravaria. Os senhores pernambucanos descreveram esse evento como fomentador de um período de anarquia, hostilidade e de insurgências dos escravos, e utilizaram os espaços dos jornais para tornar pública a opinião do grupo com relação à abolição no Ceará. Para eles, a abolição tinha ocorrido na Província do Ceará naquele momento por ser uma área em que os escravos eram numericamente pouco numerosos, a economia desenvolvida era mais acanhada e vinha sendo afetada por sucessivas secas, ocorridas entre os anos de 1877 e 1880, que arruinaram a economia local.
Essa realidade, juntamente com as epidemias que vitimaram principalmente os escravos, que sofreram com a fome e com diversas doenças, fez com que eles acabassem servindo de moeda corrente em tempos de penúria, transformando-se na salvação de senhores arruinados. De acordo com Richard Graham,
[...] a província do Ceará, fora da zona açucareira, foi uma das mais de- vastadas pela seca; ela enviou milhares de escravos para o sul, e durante a década de 1870, enviou mais que qualquer outra província exceto o Rio Grande do Sul.[39]
Essas condições aumentaram o quadro de incertezas que permitiram a abolição da escravatura no Ceará.[40]
Ainda nesse contexto, um artigo de 1884 afirmava que “não há nada a imitar do Ceará”.[41] Seu autor insistia que “o Ceará, já empobrecido pela seca, só se decidiu heroicamente a libertar seus escravos depois de se ter desfeito dos que eram mais valiosos”. A abolição no Ceará explicar-se-ia por motivos econômicos e não humanitários.[42] Esse modo de ver coincidia com sentimentos expressos por outro articulista, pois, para ele, “o Ceará, verdade seja dita, não libertou seus escravos, mas vendeu-os para o Sul, e a bom dinheiro”.[43] Dar ênfase às discussões dos problemas econômicos e à diminuta população de cativos existentes no Ceará, à época da abolição, foram recursos utilizados para indicar que lá não existia uma sociedade escravocrata e, assim, tentar reduzir a amplitude do feito.
Ao que tudo indica, a repercussão desse evento, a força das notícias e das mobilizações motivaram os escravizados de outras regiões a desafiar a antiga ordem e procurar variados meios para se libertar. A marca desse episódio não se restringiu ao ano de 1884, mas continuou na lembrança das pessoas nos anos seguintes com algumas consequências, como, por exemplo, a fundação da União Beneficente 25 de Março, da cidade de Escada, criada no ano de 1893, atribuída, provavelmente, ao número de escravos do município, um dos maiores da Mata Sul, e às incursões de abolicionistas na região. Essa instituição, composta em sua maioria por trabalhadores dos engenhos, deve seu nome ao mencionado evento de grande repercussão denominado Ceará Livre.
Uma peça teatral intitulada O Clube do Cupim e a Lei 13 de maio,[44] escrita em 1889 pelo português Thomaz Espiuca, escritor envolvido em produções teatrais engajadas na causa abolicionista,[45] narrava uma história que se passava no ano de 1884, cujo tema era a abolição ocorrida na Província do Ceará. O evento era visto como marco para o desfecho ocorrido em maio de 1888. O enredo da peça girava em torno de acontecimentos que ainda deviam estar muito vivos na memória dos pernambucanos, no- tadamente daqueles que se dedicavam à causa da abolição. Alguns desses abolicionistas mais engajados chegaram a criar manifestações culturais comprometidas em preservar a memória da atuação dos abolicionistas pernambucanos. A peça foi encenada no Teatro Santa Isabel, espaço de lazer, convívio e de propaganda da militância abolicionista. No teatro, ainda hoje há uma placa com uma frase proferida por Joaquim Nabuco que diz: “aqui ganhamos a causa abolicionista”. Ainda em relação ao escritor português bastante envolvido com a causa da libertação dos escravos, Espiuca tanto produziu peças que discutiam a questão da escravidão como revertia parte da renda obtida com as encenações para libertar escravos.
Nesse contexto, vale ressaltar que, além de uma opção de lazer, o teatro foi canal de propaganda e tribuna para os abolicionistas e con- tinuaria a ser um espaço para valorizar os feitos dos envolvidos nesse movimento social depois de 1888. Membros do movimento abolicionista articularam-se em torno da consolidação e expansão da memória de sua atuação. Seguindo essa linha de pensamento, os textos teatrais, os registros memorialísticos e os discursos serviram também como espaços de guarda de uma memória para legitimar a ação política e para abrir espaços de atuação para os abolicionistas no porvir.
A luta dos escravos e a reação senhorial
A década de 1880 promoveu importantes mudanças na dinâmica de domínio dos senhores de engenho pernambucanos sobre sua escravaria. Eles se viram pressionados a promover algumas concessões, abrindo caminho para alguns escravos melhorarem sua condição, chegando, ocasionalmente, à liberdade. Contudo, os proprietários não estavam dispostos a ceder seu poder com tanta facilidade. Consequentemente, um conjunto de estratégias das elites locais foi utilizado para conter a erosão da posição de autoridade dos senhores e tentar restaurar o status quo.[46]
Tais medidas também serviram para coibir os movimentos e as práticas de abolicionistas e dos escravos que, segundo a lógica senhorial, precisavam ser controlados e subordinados. Em janeiro de 1883, proprietários de Escada, alarmados com o avanço abolicionista, organizaram associações senhoriais — os clubes da lavoura —, entidades privadas constituídas por grandes senhores de engenho que procuravam intensificar medidas contra os avanços das atividades abolicionistas. O clube da lavoura de Escada serviu de modelo para outros agricultores da província se organizarem em clubes semelhantes. Em quatro meses, foram fundados nove clubes na zona açucareira pernambucana. Os clubes da lavoura de Escada e Ipo- juca, localizados na Mata Sul de Pernambuco, uniram forças para deter o abolicionismo que colocava em risco a segurança dos senhores e, em 1884, aliaram-se a outros clubes e reuniram-se na Sociedade Auxiliadora da Agricultura de Pernambuco. Nessas associações, os proprietários se arregimentaram para resguardar seus interesses, defendendo a transi- ção gradual do trabalho escravo para o livre, para divulgar as questões relativas às condições da lavoura e discutir como, naquele momento, estava sendo pensada a organização dos trabalhadores que atuariam nos canaviais. Reunidos nessa instituição, os produtores de cana postulavam como deveriam ser criadas instituições públicas para estimular os libertos ao trabalho e estabelecimentos voltados para a educação das crianças filhas dos escravos, menores de 21 anos, para os trabalhos da lavoura.[47]
Ao mesmo tempo em que os jornais do começo de 1884 apresentavam as passeatas e comemorações pelo Ceará Livre, mostravam, também, a mobilização dos senhores para deter o avanço das ideias de liberdade e para defender o direito à propriedade. Com o impacto gerado pelas noticias e manifestações do 25 de março, tornaram-se constantes as reclamações feitas pelos produtores de açúcar. Diante da nova conjuntura de mudança do eixo das lutas políticas contra a escravidão e com a abolição ocorrida no Ceará, os produtores de cana de Alagoas, do Rio Grande do Norte, da Paraíba e de Pernambuco, vigilantes diante de toda essa movimentação, reagiram e organizaram um congresso antiabolição em Recife, em julho de 1884, para apresentar as demandas do grupo e para criticar e frear o movimento abolicionista.[48] Em um anúncio do evento, divulgado nos jornais, enfatizava-se que era importante os proprietários manterem-se “unidos como um só homem” frente ao “abolicionismo intransigente”.[49]
A preocupação central que mobilizou os congressistas reunidos em Recife era de como realizar a transição para o trabalho livre sem causar maiores perturbações na ordem econômica, tendo em vista que grande parte da produção das províncias do Norte era essencialmente agrícola e pautada no trabalho escravo.
Dentre os discursos proferidos pelos participantes do congresso, várias vozes defendiam diferentes argumentos: desde a implantação de uma rígida legislação trabalhista até a oposição às altas tributações sobre os escravos, assim como a indenização pelos cativos libertados e a repressão à vagabundagem por meio da atuação de uma polícia rural.[50]
Um dos pontos principais debatidos no congresso agrícola foi a desorganização econômica e social que a abolição abrupta poderia causar, sobretudo entre os grandes produtores de açúcar. Muitos dos escravocratas pernambucanos estavam informados das iniciativas do governo para extinguir a escravidão e descontentes com a mobilização dos abolicionistas que se estendia da capital ao interior da província. Mas ainda assim os proprietários apostavam na solução gradual. Com a proposta de legislação emancipatória, ninguém sairia perdendo, nem os senhores nem os escravos.
Em linhas gerais, a abolição lenta e gradual mostrava-se, aos produtores de cana, como um caminho seguro, pois era potencialmente pedagógica no sentido de possibilitar a preparação do cativo para a liber- dade. Amparados pela criação de instituições para treinar e disciplinar a mão de obra disponível, os senhores poderiam efetivar, assim, a transição sem o perigo da desorganização do trabalho, que poderia colocar em risco as fontes de produção da riqueza e a ordem pública. O encaminhamento da emancipação, segundo os senhores de escravos, além de ser gradual, requeria dos seus agentes moderação e respeito à legislação. O projeto Saraiva-Cotegipe, por exemplo, sancionado em 28 de setembro de 1885, pretendia impor que a via legal e o respeito à propriedade fossem seguidos, pois estipulara multas de quinhentos a mil réis a quem ajudasse ou desse guarida a escravos fugitivos.[51] A lei dos sexagenários previa a libertação dos cativos com mais de 60 anos com indenização mediante contrato de trabalho por três anos ou até completarem 65 anos. Estabelecia, ainda, medidas repressivas, visando a obrigar os libertos a firmar contratos de trabalho e estabelecer domicílio fixo.
As reclamações senhoriais faziam certo sentido, sobretudo pelo fato de que muitas das estratégias utilizadas pelos abolicionistas eram subversivas e ilegais, contradizendo o encaminhamento legal feito pelo governo para conduzir a transição para o trabalho livre. Portanto, a elite proprietária articulava-se de diferentes formas para deter os avanços do abolicionismo, inclusive por meio de medidas que visavam a impedir as atividades dos seus militantes em instituições políticas formais, como pode ser observado, por exemplo, na correspondência enviada pelo senhor de escravos Ambrósio Machado a um eleitor do 1o distrito:
Gaipió, 1.º de setembro de 1887.
Ilmo. Colega e Amigo dr. André Dias,
Vou rogar-lhe o favor de se abster de ir votar, como eleitor do 1.° distrito, a fim de não dar o seu voto ao dr. Joaquim Nabuco. Este senhor tem por tal forma atacado e injuriado os agricultores da província, que seria imperdoável fraqueza de nossa parte concorrermos para sua eleição. Meus respeitosos cumprimentos ao meu ilustre Amigo, seu digno Pai e à Exma. Família e disponha de quem é com muita estima
De V. S.
Colega e Am.
Obr.°
Ambrósio M. da C. C. (grifos nossos)[52]
Durante a campanha eleitoral de 1884, Nabuco foi candidato do primeiro distrito de Pernambuco em parceria com José Mariano, que era candidato pelo segundo distrito. Ao longo da campanha, ambos deram maior visibilidade às ideias abolicionistas por meio de seus discursos e performances públicas. Sabia-se que a fama e os discursos de Nabuco, que era um homem bonito, carismático, ilustrado e excelente orador, tinham poder de persuasão sobre a opinião pública, marco central e inovador da campanha. Seus discursos atraíam centenas e, às vezes, até milhares de pessoas para lugares públicos da capital e do interior, arrancando da audiência os mais frenéticos aplausos.[53] Sua audiência era composta por mulheres, estratos sociais baixos, profissionais liberais urbanos, trabalhadores manuais, libertos e escravos.[54] José Mariano, por sua vez, desfrutava de grande simpatia popular em Pernambuco e provocava a cólera dos escravistas, pois, em suas conferências, postulava que a extinção da escravidão deveria se dar sem qualquer indenização.[55] Angela Alonso lembra que os grupos contestadores do status quo na década de 1870 e 1880 recorreram às práticas modernas de debate que se difundiam principalmente na Europa e nos Estados Unidos, como os meetings, as manifestações públicas de reivindicações organizadas por associações temáticas, os comícios, a proliferação de clubes e associações, as passeatas, as greves, enfim, uma infinidade de práticas político-culturais foi mobilizada por esses grupos contestadores para apresentar seus projetos de reforma à sociedade.[56]
Por outro lado, o leitor ou o público assistente das conferências pronunciadas em Recife, em 1884, ouviram ou leram — essas conferências eram algumas vezes reproduzidas e comentadas nos jornais — severas críticas à escravidão. Nabuco bateu mais forte na tecla da necessidade de uma lei agrária destinada a diminuir o poder dos latifundiários e a democratizar o acesso à terra, defendeu a formação de associação de operários e divulgou a posição de que os imigrantes europeus não pode- riam usufruir de recursos (terras e outros benefícios) que eram negados, naquele momento, aos nacionais. Nabuco ganhou as eleições de 1884, mas, apesar da vitória, a Câmara negou-lhe o mandato. Mas nem por isso a classe proprietária deixaria de ficar atenta, nos anos seguintes, para impedir o avanço de ameaças à sua posição de autoridade e a uma possível perda de status.
Posteriormente, na campanha de 1887, o processo eleitoral também foi marcado pela forte oposição do grupo senhorial aos candidatos Joaquim Nabuco e José Mariano. O jornal O Paiz, de 28 de março de 1887, noticia que, depois dos discursos proferidos pelos dois candidatos em Escada e Nazaré, muitos escravos fugiram, houve um avanço do abolicionismo e cresceu o apoio aos escravizados para ações mais insubordinadas.[57] Fato significativo na campanha de 1887 foi Joaquim Nabuco não apenas ter obtido êxito, como ter sido eleito. A vitória de Nabuco, um dos maiores abolicionistas do país, contra o gabinete de Cotegipe, que ainda estava aferrado à escravidão e adiava de todas as formas uma lei que abolisse o cativeiro, foi vista como uma pá de cal na resistência escravocrata.
No Diário de Pernambuco, de 25 de maio de 1887, dizia-se que, entre as inúmeras dificuldades enfrentadas pelos produtores de cana, a mais importante era o abolicionismo. Tal movimento, segundo o articulista, agia como uma onda que saía levando tudo o que encontrava pela frente, notadamente, em regiões agrícolas, e a sociedade naquele momento não estava preparada para o que viria acontecer depois do dilúvio, ou seja, a abolição. O articulista ressalta que, com tal estado de coisas, os agricultores encontravam-se impotentes e sem recursos e, cotidianamente, visualiza- vam as baixas nas fileiras dos trabalhadores escravos, em consequência das largas deserções que a propaganda abolicionista estava promovendo.[58]
Por meio dos ofícios policiais, sabe-se que, durante a década de 1880, na região da Mata Sul, crescia a contestação por parte dos escravos da legitimidade da escravidão por meio de fugas, ações judiciais e formação de quilombos. E, já em 1879, na cidade de Rio Formoso, as autoridades policiais reconheceram, em suas investigações, que os senhores de engenho da localidade “achavam-se em risco” por conta dos escravos fugidos e escondidos em quilombos nas matas dos Enge- nhos Brejo e Estiva.[59] No mesmo lugar, no ano de 1881, foi capturado um grupo de escravos — aquilombados nas matas dos Engenhos Duas Porcas, Laranjeiras, Mascatinho, Serrada, Mascate e Pererecas — que estavam assaltando as pessoas vindas da feira e roubando as ovelhas dos engenhos da vizinhança. Já no ano de 1882, o delegado oficiava a existência de dois grupos de escravos fugidos nas matas dos Engenhos Serrada, Laranjeiras, Saltinho, Mamucabas, Estiva, Mascate, Mascatinho e Ilhetas. Nos dias 4 de fevereiro de 1884 e 19 de abril de 1884, foram feitas diligências para acabar com um quilombo que estava se formando nas matas dos Engenhos Brejo, Ilhetas e Estivas.[60] Em se tratando de quilombos, pode-se encontrar com muita facilidade documentos com conteúdo semelhante aos acima transcritos.[61] Naquele momento, existiu uma pressão importante que veio dos cativos e da própria sociedade. Formou-se com maior vigor, ao longo da década de 1880, uma rede de indivíduos e organizações que tinha por objetivo destruir as bases de funcionamento do sistema escravista no Brasil.
No que diz respeito às fugas, para os que conseguiam êxito no seu intento, manter-se em fuga, por inúmeros motivos, não era fácil — nem para os escravos fugidos, nem para as pessoas que viviam no entorno. Um exemplo disso é que, no ano de 1887, segundo o relato de um delegado, um morador do povoado de Santo Amaro, Amaro Trajano, foi espancado em terras do Engenho Tinoco por um bando de escravos fugidos, que se encontravam escondidos nas matas dos Engenhos Tinoco e Fluminense.[62] Por praticarem furtos, os quilombolas eram considerados perturbadores da ordem, realizando-se diligências policiais para prendê-los; em consequência disso, os escravos fugitivos costumavam migrar de um local para outro, conforme a necessidade e a ameaça de recaptura.
Multiplicvam-se os quilombos e as fugas e, enfim, todo esse contexto em prol da liberdade só ratifica o quanto a escravidão definhava e demonstra que havia um clima de insatisfação e diminuição dos mecanismos de controle na Mata Sul de Pernambuco, decorrente do aumento dos deslocamentos dos escravos fugidos e dos libertos. Para o declínio da escravidão muito contribuiu o movimento abolicionista que, em 1887, vivia seus melhores dias e retomava as suas atividades com maior adesão e mais força em todo o Brasil.[63] A luta pelo fim da escravidão ganhou repercussão no debate político partidário e se tornou, para muitos, uma missão. E, muito embora a proposta não seja supervalorizar aqui o desempenho do movimento abolicionista em Pernambuco, não se pode perder de vista que tal movimento social empreendeu mudanças nas práticas políticas e nas reivindicações de direitos para a população oriunda do cativeiro, como, por exemplo, o uso maior do campo jurídico, das manifestações públicas em meetings, das agremiações abolicionistas, artísticas e religiosas, além dos jornais que funcionavam como espaço de atividade militante, circulação de ideias e para angariar simpatizantes.
Ao longo das décadas de 1870 e 1880, as táticas empreendidas pelos cativos para obter a liberdade foram se modificando, e o apelo à Justiça foi se tornando uma das formas mais comuns para a sua conquista. Um desses processos foi protagonizado pela escrava Paula e sua senhora, a Baronesa da Escada, em 1887, processo que acaba por revelar uma história de prováveis desacertos entre as envolvidas, pois, em um primeiro momento, a escrava Paula tentou negociar sua liberdade pacificamente, não tendo obtido êxito.[64] A baronesa poderia dispor de sua escrava como melhor lhe conviesse, pois, dentro da lógica escravista, era a senhora quem possuía o poder de decidir o futuro de sua cativa. Ao recorrer à Justiça, por meio de um representante legal, a escrava Paula, de 19 anos, tentava subverter essa lógica, contestando a vontade e o domínio de sua senhora. É provável que a escravizada, logo depois dessa solicitação, tenha convencido, pressionado ou tenha tornado difíceis os dias de sua senhora, a ponto de fazê-la mudar de ideia e conceder-lhe, mediante pagamento, a alforria. Ou, ainda, a Baronesa da Escada teria modificado o seu posicionamento, tendo em vista que, com o debate dos últimos anos acerca dos projetos parlamentares e das medidas de Estado referentes ao encaminhamento da abolição no Brasil, a escravidão estava com seus dias contados. Certamente, diante de tal quadro, junto à impertinência dos escravizados, as relações entre senhores e escravos encontravam-se tensionadas. Por fim, consta no processo que Paula e a Baronesa firmaram um acordo para acertar os termos da manumissão pleiteada, que acabou ajustada em 400 mil réis, valor esse estipulado pelo perito que avaliou a escrava e que foi pago pela Fazenda Nacional.
Esse tipo de episódio é da maior importância, por permitir que se adentre não só “nas lutas pela liberdade”, mas, sobretudo, nas emaranhadas redes de relações e nas concepções passíveis de serem apreendidas a partir da leitura da documentação disponível. A segunda metade do século XIX é particularmente interessante para observar-se esse tipo de evento, porque a escravidão, naquele momento, entrava em declínio, e muitos senhores de escravos foram, a exemplo do caso citado acima, questionados e interpelados na Justiça como réus em procesos cíveis — nas ações de liberdade e nas ações de manutenção de liberdade — por representantes de seus escravos e dos libertos.[65]
Os argumentos para pleitear a liberdade pela via judicial foram mudando ao longo das décadas de acordo com o contexto social e com as leis em vigor. As solicitações dos escravos poderiam ter resultados variados, porque dependiam das leis vigentes, da jurisprudência, do cos- tume ou da interpretação pessoal dos magistrados. Em muitas situações, o veredicto dado pelo tribunal foi favorável aos escravos, contudo não era sempre que os cativos obtinham êxito como visto acima.[66]
É provável que, durante sua vida, todo cativo viesse a conhecer um ou mais escravos que teriam conseguido obter a liberdade por via judicial, o que significava que a liberdade existia no horizonte como possibilidade. Certamente, os escravos esbarravam com libertos, enquanto desempe- nhavam suas tarefas cotidianas no engenho ou na cidade. Ou, ainda, no disse me disse das ruas, na casa do seu senhor, nos festejos, nas feiras ou nas senzalas, as redes de comunicação e de informação colaboravam para que as notícias sobre acordos efetivados e alforrias conquistadas, assim como tentativas fracassadas chegassem aos ouvidos dos cativos. Embora nem todas as sentenças fossem favoráveis aos escravizados, crescia, entre eles, gradativamente, a percepção do Judiciário como um foro de pressão sobre seus senhores.
Embora, muitas vezes, tenha sido resultado de ações individuais por parte de escravos representados por seus advogados, a via judicial gerou efeitos que atingiram um grande número de pessoas, dada a re- percussão do ocorrido entre gente que conhecia as partes envolvidas no processo e, por vezes, no público em geral, que tomava conhecimento dos casos por conta da publicação de sentenças em periódicos. Em 14 de março de 1888, por exemplo, publicava-se no Jornal do Recife, periódico partidário do abolicionismo, uma nota dizendo que a escrava Pastora ha- via sido declarada livre pelo juiz de direito do cível, após ter constatado que ela fora matriculada com filiação desconhecida.[67] Provavelmente, a cada sentença favorável à liberdade, outras tantas ações eram iniciadas, promovendo-se um ciclo de apelações à Justiça.
A bibliografia disponível sobre a escravidão, sobretudo acerca da luta dos escravos pela liberdade em qualquer localidade do Brasil que tivesse presença negra significativa, indica que os tribunais passaram a constituir um importante e eficaz elemento nas aspirações de liberdade. Para tanto, recorria-se à Justiça por meio de advogados ligados ou não à causa abolicionista. É importante salientar, também, que, mesmo contri- buindo para fragilizar a autoridade senhorial, essas ações corriam dentro da lógica da abolição gradual,[68] na tentativa de garantir uma transição segura e indenizatória recomendada pelo governo imperial, pois seus senhores foram restituídos, tendo recebido uns bons contos de réis.
De modo geral, os estudos produzidos no Brasil têm informado que os cativos exploravam com astúcia o espaço institucional disponível na busca de novas alternativas para firmar um acordo com seu proprietário e conseguir a alforria. Há também a concepção mais ou menos consensual do papel ativo que os próprios escravos e as populações negras desempenharam, em geral, não só no processo que culminou com a abolição, como também na construção de formas possíveis de resistência e sobre- vivência no interior da própria escravidão.
Por outro lado, o canal judicial abriu espaço para a conquista da liberdade e acabou sendo igualmente utilizado para desgastar o poder moral dos senhores e do próprio regime escravista. A luta pela liberdade, em Pernambuco oitocentista, não se encontrava estática e institucionalizada, mas, sim, espraiada na dinâmica do cotidiano e podia ser traduzida em formação de quilombos, fugas, suicídios e resistências comezinhas. Assim sendo, esse não foi um período sem maiores inconvenientes para os proprietários, pois as relações entre senhores e escravos estiveram marcadas por conflitos e tensões.
De fato, os senhores vinham sofrendo contestações nos tribunais por meio das ações cíveis e viam as suas autoridades abaladas, em gran- de parte, pelas articulações entre escravos e abolicionistas, que, àquela altura, já faziam grande uso de expedientes ilegais para promover a libertação de cativos.
Esse tipo de acontecimento alimentava o discurso das elites que desejavam criar uma atmosfera de medo para resolver a questão da maneira que lhes conviesse. No entanto, deve-se reconhecer que algumas das fugas colocadas em prática pelos escravos foram amparadas, em maior ou menor grau, por abolicionistas. Um bom exemplo é a notícia publicada no periódico Gazeta de Palmares, em 1884, que informou sobre um escravo fugido do Engenho Canoas, em Porto Calvo (Alagoas), que foi procurar os associados do Club Emancipador de Palmares para tratar de sua liberdade.[69]
De acordo com Robert Conrad, desde 1887, os cativos perceberam que a escravidão estava definhando, e muitos abandonaram seus senhores. A agitação escrava com fugas e violência contra senhores e seus prepostos, que se passava em São Paulo, ocorria em menor escala nas províncias do Norte, como Maranhão, Pernambuco e Bahia.[70] Diante desse ambiente, novas estratégias tiveram de ser implantadas pelos senhores para contornar esse período de crise de autoridade. Uma das medidas adotadas, de caráter preventivo e para remediar desordens, foi a concessão de alforrias.
As alforrias eram concedidas, na maioria das vezes, em dias festivos, quando se estava comemorando alguma data importante, principalmente aniversários, casamentos, batizados e atos religiosos, numa tentativa de potencializar o feito por conta da visibilidade que as cerimônias rendiam. Nesse sentido, pode-se supor que essa era uma estratégia dos libertadores para demonstrar aos alforriados que a liberdade que estavam recebendo era um favor que lhes estava sendo concedido. Além disso, esse ato estratégico, aos olhos dos escravos e/ou de quem assistisse à cerimônia de entrega das cartas de alforria, estaria eviden- ciando a bondade do seu patrono. Manoel de Brito de Queiroz Barros, senhor do Engenho Herval, em Palmares, por exemplo, libertou três escravos, sem lhes impor qualquer condição, em regozijo da formatura do seu sobrinho.[71]
Em tempo de movimento abolicionista intenso, o clima de incerte- zas crescia e abria caminhos que foram bem aproveitadas pelos cativos, à custa de seu suor e de uma suposta lealdade que era explorada para conquistar a liberdade. Um escravo bem estabelecido em um engenho poderia desfrutar de privilégios concedidos pelo senhor como morar em casa própria, ter uma roça e, por fim, conseguir sua alforria. Os cativos indisciplinados e pouco prestativos acabavam não sendo agraciados com privilégios cotidianos, nem com a liberdade, como disse um senhor de escravos respondendo a uma missiva do abolicionista João Ramos a res- peito da possibilidade de concessão de alforria a uma escrava: “não estou resolvido a libertar grátis a nenhum daqueles que se tornaram ingratos”.[72]
Notícias sobre manumissões multiplicaram-se nos periódicos na década da abolição. Sirva de exemplo a notícia de que o Senhor Manoel Ferreira Bartholo havia concedido liberdade aos quatro únicos escravos que possuía: Francisco, Margarida, Tito e Eduardo, que receberam suas alforrias sem ônus.[73] Mais um exemplo, dentre muitos, pode ser retirado do registro de alforria, ocorrido em 17 de outubro de 1887, na cidade de Palmares, onde 55 trabalhadores da lavoura foram manumitidos mediante estabelecimento da condição de que eles teriam de prestar serviços até 30 de junho de 1890.[74] Não foi possível apurar se essas manumissões se efetivaram formalmente e de fato no cotidiano dos libertandos noticiados nos jornais, mas esse tipo de ato constituiu uma importante estratégia para conter a insubordinação cativa, no período anterior à abolição, e para que os ex-senhores pudessem compor, como patronos, uma rede clientelar. Para os senhores, nos últimos anos da escravidão, urgia diminuir o impacto político da militância do movimento abolicionista. Desse modo, a alforria poderia cumprir o papel de acalmar os ânimos, manter a autoridade sobre os recém-libertos e produzir dependentes. Para Walter Fraga Filho, “a ‘emancipação concedida’ no apagar das luzes do cativeiro foi uma tentativa dos senhores arrancarem o respeito e a ‘perene gratidão’ dos antigos escravos”.[75]
Diante do acima exposto, pode-se concluir que a alforria funcio-nava como mais um dentre os diversos mecanismos senhoriais eficazes de controle e domínio sobre a mão de obra. Com tal ritual, os ex-pro- prietários intentavam manter os libertos gratos e solícitos pela alforria “recebida” e ainda prestando serviços e favores ao senhor por um bom tempo.[76] Assim, vê-se, como bem lembrou Kátia Mattoso, que “a carta de alforria é um ato comercial, raramente um gesto de generosidade”.[77]
Pode-se entender, também, que essas manumissões buscavam garantir a continuidade de relações dentro da lógica paternalista sobre os futuros libertos. E, muitas vezes, essa estratégia foi bem sucedida, como, por exemplo, no caso do escravo Belisário (Figura 4) do Engenho Cachoeirinha, em Vitória de Santo Antão, que foi alforriado anos antes da abolição e nunca se afastou da propriedade do seu antigo senhor, mantendo-se fiel e solícito.[78] E, certamente, não teria sido o único.
Depois das inúmeras estratégias e muita luta por parte dos senhores para fazer valer seus direitos de proprietários e deixar sua economia intacta, assim como dos escravos e abolicionistas para pôr fim à escravidão, em 13 de maio de 1888, a sociedade pernambucana e o todo o país recebeu a sanção da Lei Áurea, com muitas comemorações em diferentes localidades. A notícia da abolição do cativeiro foi festejada nas cidades e engenhos da Província de Penambuco com discursos, passeatas e foguetes que demonstram quão exultantes foram as reações à abolição.
Nos jornais pernambucanos, as festas da abolição foram interpretadas como obra de grande adesão popular, aspecto já bastante ressaltado por estudiosos que se dedicaram a analisar as comemorações do 13 de maio no Brasil.[79]

A assinatura, pela princesa Isabel, da Lei nº 3.353, sacramentando o fim do trabalho escravo no Brasil, provocou uma comoção nacional em um domingo, no dia 13 de maio de 1888. De acordo com a publicação do Diário de Pernambuco, a notícia foi tão celebrada que seus gráficos e jornalistas resolveram comemorar com o povo e não produziram as edições dos dias seguintes, com a justificativa: “em virtude das festas da liberdade das quaes não nos era licito privar os operarios de nossos officios e a pedido destes, deixamos de dar jornal ante-hontem e hontem”.[80] A narrativa do préstito publicada por esse mesmo jornal informou que, em Recife, a notícia fez com que seis mil pessoas que se aglomeravam na Rua do Imperador soltassem fogos e gritassem vivas à princesa Isabel e ao conselheiro João Alfredo. As festas pela abolição que se iniciaram no domingo prolongaram-se pela segunda e terça-feira, e o comércio fechou as portas nesses dois dias. Homenagens às personagens envolvidas com a abolição, poesias e notas foram publicadas nos jornais, tendo como tema a assinatura da Lei Áurea, e ajudaram na construção de uma memória do evento. Algumas passagens indicavam que os libertos, até a véspera, estavam longe de qualquer aspiração à cidadania, mas, a partir daquela data, deveriam ser orientados ao trabalho, diante das novas conquistas sociais, para se tornarem efetivamente novos cidadãos.[81]
Não houve, obviamente, unanimidade em torno da abolição. Contudo, os jornais do dia seguinte ao 13 de maio não mencionaram os insatisfeitos com a Lei Áurea. A lembrança do 13 de maio de 1888, no relato do proprietário José Maria Bello, que viveu esse período, consta como um dia em que os escravos do Engenho Tentúgal, localizado na cidade de Barreiros, na Mata Sul de Pernambuco, e os libertos de outros engenhos retiraram-se das terras dos senhores e seguiram para as cidades vizinhas, e alguns para Recife. De acordo com as memórias de Bello, para os ex-cativos, o 13 de maio trouxe “a libertação da enxada e do eito, o vadiar sem destino, famintos e [a seguir] bêbados de cachaça”.[82] Esse trecho não deixa dúvida sobre a opinião do memorialista que ob- servou os acontecimentos de dentro da casa-grande, e considerou, com certa decepção, que a abolição deixou os libertos mais ousados, pouco afeitos ao trabalho e a levar uma vida de desregramentos. Tais situações se chocavam com as pretensões senhorias que esperavam trabalhadores fiéis, ordeiros e subordinados.
Alguns ex-senhores de escravos tentavam não perder a autoridade e o prestígio advindos da posição senhorial. A possibilidade de ser proprietário de outrem se constituía como um relevante indicador de status social. Os ânimos dos proprietários de escravos foram acirrados, pois conceder liberdade sem compensações feriria ainda mais o brio e comprometeria as finanças de boa parte deles e, consequentemente, abalaria o status social mantido ao longo dos séculos com base na escravidão.
A questão da propriedade foi o grande ponto de discórdia com a aprovação da lei de 13 de maio de 1888. As discussões presentes nos jornais que veiculavam opiniões dos grupos senhoriais eram em tom de descontentamento e versaram sobre a prematura libertação dos escravos sem indenização aos senhores e da consequente quebra do já abalado direito de propriedade, mostrando, também, como os senhores de engenho eram zelosos de suas prerrogativas de classe dominante. J. H. Galloway afirma que a abolição representou um problema financeiro, político e emocional, mas não um problema para arregimentar mão de obra.[83] Segundo o autor, a produção de açúcar continuou a crescer enquanto a escravidão declinava e não afetou a indústria de açúcar nas províncias de Pernambuco e Alagoas; na segunda metade do século XIX, somente para uma pequena parcela da elite de proprietários da zona da mata a escravidão tinha alguma importância financeira. Diferentemente do que pregavam os apocalípticos, não houve a sublevação da ordem e a destruição da lavoura no país, o que não quer dizer que muitos senhores de engenho não tenham sofrido consequências com o fim do trabalho escravo.
Em julho de 1888, senhores de engenho e pessoas ligadas à la- voura da cana se reuniram em uma sessão extraordinária da Sociedade Auxiliadora da Agricultura de Pernambuco, presidida pelo Barão de Sirinhaém, para tratar de uma questão especial: o estado da lavoura após a lei de 13 de maio.[84] Seus integrantes se diziam em dificuldades porque já não possuíam escravos e não tinham como pagar por trabalhadores livres para tocar a lavoura da cana. Para resolver a situação, propunham a concessão emergencial de crédito e o pagamento de indenização aos proprietários pelos ex-escravos libertados em 13 de maio. No correr da sessão, ainda foi proposta, e aprovado por unanimidade, a criação de uma polícia rural remunerada.
Na esfera governamental, nos anos imediatamente subsequentes à abolição, quando os ex-senhores demandavam indenização por seus escravos libertados, Ruy Barbosa mandou queimar os documentos da tesouraria da Fazenda que contivessem registros relativos à proprieda- de de escravos. Um feito que pretendia marcar categoricamente o fim desse tipo de solicitação que, em Pernambuco, não se constituiu em um movimento tão forte.
Como pode ser observado, os jornais, assim como embalagens de produtos do período, constituíram-se em importantes veículos de informação sobre a adesão à causa abolicionista e eram usados por diversos grupos como forma de projeção e difusão de interesses políticos. No caso dos jornais, em particular, ele foi importante pelas informações veiculadas sobre quem participava das manifestações favoráveis e sobre as iniciativas empreendidas para o fim da escravidão. A exemplo da divulgação do 25 de março, no Ceará, como já referido, que teve forte influência no aumento da adesão à causa abolicionista da capital ao interior da província pernambu- cana. Mas não somente por isso, uma vez que, nos meses que se seguiram à abolição, os periódicos foram utilizados por ex-proprietários para tornar públicas suas reivindicações. Para marcar sua insatisfação com a decisão do governo imperial de promover uma abolição geral e sem o ressarcimento que pretendiam, os proprietários utilizaram diversas estratégias para marcar seu descontentamento. Quanto a essa posição de insatisfação, vale lembrar que eles, além de organizar reuniões, escrever relatos de memória e notas contestatórias à decisão nos periódicos, podiam, ainda, fumar o cigarro Indenização ou o República.[85]
Notas