Resumo: O presente artigo discute a relação entre a memória da rainha angolana Nzinga Mbandi e a das rainhas Jingas do maçambique de Osório, litoral norte do Rio Grande do Sul. Essa congada, liderada por rainhas negras, celebra anualmente a devoção da população negra da região a Nossa Senhora do Rosário. Trabalha-se com a ideia de que, inobstante os vínculos léxicos entre as rainhas africanas e por parte dos participantes do ritual. Muito pelo contrário, esses vínculos foram permanentemente traçados e sugeridos por interlocutores, como a Igreja Católica, folcloristas e jornalistas. Por outro lado, os laços entre a África e o Brasil podem ser encontrados em algumas características estruturais e não propriamente nos conteúdos da memória.
Palavras-chave:maçambiquemaçambique, rainha Jinga rainha Jinga, circularidade cultural circularidade cultural, memória memória.
Abstract: This article discusses the relation between the memory of the Angolan queen Nzinga Mbandi and that one about the “Jinga” queens of the “maçambique” from Osório, in the northern littoral of the Brazilian state of Rio Grande do Sul. This “congada”, led by black queens, celebrates annually the devotion of the regional black population to Our Lady of the Rosary. The idea is that, despite the lexical links between African and Brazilian queens, at least in the studied “congada”, don’t exist remembrances of the African queens by the ritual’s participants. Contrariwise, those links were permanently traced and suggested by interlocutors as the Church, folklorists and reporters. On the other hand, the links between Africa and Brazil can be found in some structural characteristics, and not properly by the contents of the memory.
Keywords: maçambique, “Jinga” queen, cultural circularity, memory.
Artigos
“AFRICANA VENCEU A GUERRA COMO VENCESTE ESTA COROA.” RESSIGNIFICAÇÕES E CIRCULARIDADE CULTURAL ENTRE AS RAINHAS NZINGA (ANGOLA, SÉCULO XVII) E JINGA (RIO GRANDE DO SUL, SÉCULO XX)
Recepção: 25 Novembro 2014
Aprovação: 24 Junho 2016
Por ocasião da data que se acreditava ser seu 110º aniversário, em 1980, a rainha Jinga Maria Tereza narrou ao antropólogo Norton[1] Infelizmente, não houve por Corrêa a preocupação em descobrir a data de sua coroação. Ao tornar-se monarca pelas mãos do arcebispo de Porto Alegre, Dom Vicente Scherer (1903-1996), ele lhe teria dito:
O Dom Vicente Scherer me disse: Tu é que manda, tu é que guverna e Eles botaram a guerra com a Africana porque a festa da Africana era mais bunita de que a dos branco. Os brancos faziam a festa, negro não fazia. Mas a Africana tinha a Nossa Senhora do Rosário em casa e um ano ela disse: eu vô fazê uma festa pra Nossa Senhora do Rosário porque os branco é que faiz a festa e os moreno não faiz. Então foi fazê a festa e pegou a pensá o que ela havera de botá pra ser mais bunita que a festa dos branco. Foi aonde ela inventô de botá o Rei do Congo e a Rainha. E sê rei de Congo. Por isso se trata de Rei de Congo, porque ele veio da bunito e botaram uma guerra. Guerrearam pra tomá a festa da Africana, então a rainha guerreô e venceu a guerra como tu [Maria Tereza] venceste esta coroa hoje — e [D. Vicente Scherer] botô a coroa na minha cabeça. Diziam que eu ia desmaiá, não é? Não sinhori, não desmaio, não, tô bem feliz, bem satisfeita, bem alegre.[2]
O maçambique é um rito afrocatólico em louvor a Nossa Senhora do Rosário, que se repete ano a ano entre os moradores negros de Osório e familiares originários de suas áreas rurais. Embora, hoje, a maior parte dos maçambiqueiros resida no centro urbano, há algumas décadas eles vinham do Morro Alto, comunidade de intensa população negra descendente de escravos das famílias Marques, Osório e Nunes da Silveira. O núcleo da antiga fazenda situa-se onde hoje é o entroncamento entre as estradas BR-101 e RS-407. Outrora, os cativos ali escravizados trabalhavam na lavoura de cana-de-açúcar e na criação de gado. Após 13 de maio de 1888, boa parte continuou vivendo onde foram escravos (ou seus pais). Atualmente, a comunidade de origem, reconhecida pelo Estado brasileiro como remanescente de quilombos, busca a titularização de suas terras, parte das quais doadas por uma ex-senhora. Diante do visibilidade cultural e legitimação de sua demanda.
Considerada padroeira dos negros, a Virgem do Rosário é homenageada pelos “dançantes”, que bailam de pés descalços — com maçaquaias, espécie de chocalhos, e guizos amarrados às canelas — ao toque dos tambores, em comitiva diante de reis negros, uma rainha “Jinga” e um rei “Congo”. A autoridade plena cabe a ela: ela “manda”, entrada dos ambientes em que se dão as cerimônias. Passar por debaixo delas, ao que se acredita, traz bons agúrios, bem como o contato físico com a bandeira de Nossa Senhora que acompanha o cortejo: os devotos pagam promessas oferecendo churrasco aos reis, demais maçambiqueiros passado escravista, já que, conforme veremos, os mitos de origem da congada remetem ao cativeiro.
O maçambique, com a peculiaridade de ser a única congada remanescente no Rio Grande do Sul em inícios do século XXI, é exemplar desses festejos que atraíram fascínio e preocupação por parte de senhores escravistas e da Igreja Católica desde os tempos coloniais. A coroação de reis africanos constituía veículo de fé afrocatólica, sobretudo em louvor a São Benedito e a Nossa Senhora do Rosário, considerados padroeiros dos negros.
Amparada principalmente em relatos de viajantes do século XVIII, Sílvia Lara[3] assinalou que essa forma de religiosidade negra despertava admiração, pelo exotismo do espetáculo proporcionado, mas também preocupação, pelo temor de momentos de grande concentração de população forra e escrava e suspensão temporária, no ambiente festivo, das que os monarcas negros eram escolhidos no seio de irmandades — sabidamente um espaço de organização de sociabilidades da comunidade escrava ou liberta — e que eles tinham um enorme poder de liderança sobre seus súditos.[4] O estudo do maçambique pode trazer alguns aportes problematização dos elos entre a rainha africana e a rainha da congada gaúcha ao longo do século XX.
Uma família muito envolvida no maçambique é aquela dos “Tereza”, descendentes de uma ex-escrava da Fazenda do Morro Alto — cujo prenome passou a ser a forma como sua descendência tornou-se propriedade escravista. Com efeito, a ex-cativa recebeu, junto com 23 companheiros, 184 braças de terras e matos na fazenda do Morro Alto.[5] se conta, os maçambiqueiros iam a pé até Osório (no mínimo 25 km) escrava que veio a se tornar a mais célebre rainha deste auto e que foi coroada pelo arcebispo. Os atuais rei e rainha são sobrinhos de Maria e netos de Tereza. Eles já pertencem a uma geração na qual a maior parte dos maçambiqueiros passou a residir na zona urbana.
A “Africana”[6] mencionada na fala de Scherer lembrada por Maria Tereza Joaquina certamente refere-se à rainha Nzinga Mbandi, a quem a rainha Jinga, é óbvio, emprestou o nome. Priscila Weber,[7] em notável esforço de erudição, levantou a forma como diferentes obras grafam - A seguir, apresentarei alguns traços da trajetória da “Africana”, dado que é possível perceber entre os folcloristas gaúchos uma apropriação apresentado ampara-se em algumas poucas obras de referência ou fontes perspectiva do presente trabalho aqui explorá-la. Tampouco se pretende uma apreciação crítica sobre as formas pelas quais a rainha foi retratada função da posterior análise da percepção de Nzinga e de Jinga pelos diversos atores sociais.
De acordo com Marina de Mello e Souza, Nzinga Mbandi nasceu em 1582 e liderou os povos ambundo-jagas entre 1623 e 1663.[8] Alcançou o trono do reino de Ndongo após acirradas disputas sucessórias com seu irmão, o ngola de quem fora regente. Esse aspecto da trajetória da rainha despertou enorme interesse nas narrativas dos folcloristas gaúchos do século XX, talvez por fundamentar uma percepção de “barbárie” de povos pagãos. Há debate histórico sobre a legitimidade de sua ascensão ao trono, ou se, pelo contrário, tratar-se-ia de golpe de Estado.[9] Priscila Weber[10] assi
Mello e Souza destacou o pluralismo cultural da corte de Mbandi, porque, além da presença diversa de costumes jaga e ambundo, rapidamente foram incorporados elementos portugueses.[11] Muitos deles, possivelmente, foram adquiridos em embaixada enviada por seu irmão aos portugueses em Luanda em 1622 — um ano antes de ela ascender ao trono, portanto. Possivelmente atraída pela sociedade europeia, a futura rainha converteu-se ao cristianismo. Todavia, Alberto da Costa e Silva argumenta que as demandas de Nzinga — reconhecimento diplomáticomente na periferia do território de seu reino — nunca foram atendidas pelos lusitanos.[12]
Por esses motivos, cedo abandonou a fé cristã. Seu longo governo portugueses, e caracterizado pela busca de alianças — que acabaram seu reinado caracterizou-se pela guerra praticamente permanente entre rainha e os portugueses entre 1624 e 1655.[13] Na década de 1630, tornou-se[14] algumas províncias do reino do Congo haviam se separado deste, formando um novo reinado. Nzinga logrou ali conquistar legitimidade, pelo fato de seus ancestrais terem reinado no reino original.[15] Conforme Costa e Silva, Nzinga aproveitou uma crise política em Matamba para ascender ao seu trono e evadir-se de novas disputas sucessórias em Ndongo.[16] Os principais aliados contra os lusos, naquele momento, foram o reino estavam de ser desprezadas. Mello e Souza destaca que o Ndongo era, no século XVII, a principal fonte de cativos para as Américas portuguesa e espanhola.[17] Diante da importância do comércio de escravos para as atividades econômicas em seus domínios, Nzinga Mbandi tinha uma postura ambivalente: ora fechava, ora abria mercados.
Entre 1641 e 1648 — uma década após a ocupação do Nordeste brasileiro —, Luanda esteve sob dominação batava. Naquela década, uniram-se os holandeses aos congoleses e aos ambundos para a expulsão dos portugueses — feito que notabilizou Nzinga Mbandi. A despeito dos - tárias das forças lusas, estas foram bem-sucedidas na retomada de Luanda. 1657, por ocasião das tratativas para o resgate de uma irmã sequestrada pelos portugueses entre 1629 e 1633 e entre 1646 e 1657.[18] Conforme Thornton, todavia, a conversão da rainha deu-se mediante consulta aos espíritos ancestrais.[19] Conforme observa Alencastro, do ponto de vista luso, a adesão da rainha ao cristianismo representava a neutralização do povo jaga.[20]
Desde então, Nzinga empenhou-se pela incorporação, em seu reino, de alguns traços característicos da cristandade: emprego da escrita, novas técnicas agrícolas, cristianismo e modo de vida europeu.[21] No ano de sua conversão, a rainha de Matamba escreveu ao Papa relatando atividades realizadas no sentido da profusão do cristianismo, tais como o batismo dos integrantes de sua corte e a construção de igrejas. Solicitava ainda o envio de missionários para a difusão de sua fé. Nunca é demais lembrar que a presença de uma religião católica na África longe estava de representar subordinação e aculturação. Pelo contrário, desde o africano, que não deve ser lido sob a insígnia do domínio, mas, sim, da apropriação criativa pelos congoleses da religião europeia, conforme suas próprias necessidades.[22]
As fontes coetâneas apresentam Nzinga como uma rainha de grande poderio e força pessoal, e esse ethos marcaria tanto sua memória como, conforme veremos, a atuação das rainhas negras no Novo Mundo. Existem algumas histórias célebres registradas por fontes de época, como a ocasião em que, durante a primeira embaixada com os portugueses em Luanda, sentou-se sobre as costas de uma escrava e depois a abandonou aos lusos, “porque não era conveniente que a embaixatriz do seu reino se sentasse pela segunda vez no mesmo assento, e que, não lhe faltando outras semelhantes cadeiras, não se importava com ela nem a queria mais”.[23]
Conforme Antônio de Oliveira de Cadornega, tinha [...] esta rainha [Nzinga] uma grande casa que lhe servia de serralho, sem ser o do Grão Turco, porque este era de homens, e esse outro de mulheos nomes de envala ineni e samba enzila nenhum dos seus lhe chamava rainha, se não rei torpezas e desonestidades, dando sinal àquele que melhor lhe parecia.[24]
Essas histórias criaram uma perene forma de percepção do poderio feminino, que atravessou o oceano. De acordo com Marina de Mello e Souza,
[...] a fama de Njinga, assim como a de D. Afonso, atravessou os séculos e os mares, sendo evocada em festas populares realizadas no Brasil no - nomia dos angolanos, o rei do Congo passou a simbolizar a conversão dos congoleses ao cristianismo.[25] Da mesma forma, Alencastro observa que nestes “bailados dra
Congo”.[26] que exista um forte acento no poder pessoal de uma rainha autoritária, não está presente um embate ritual diante do poderio do rei, em que ele representaria o cristão e ela o pagão. Veremos adiante que, efetivamente, em inícios do século XX, pode ter existido uma contraposição entre duas frentes, mas o rei e a rainha estavam do mesmo lado. Nos dias de hoje, porém, até mesmo mais do que o rei, a rainha Jinga intermedeia a devoção da comunidade católica negra diante de Nossa Senhora do Rosário.
Ao estudar as congadas no Brasil escravista, a historiadora Marina de Mello e Souza destacou que “assim como o rei Congo, a rainha Njinga é um exemplo de como eventos históricos podem ser congelados,[27] Cabe avaliar, porém, com maior precisão, os mecanismos culturais de difusão dessas imagens africanas no Brasil. Para além da constatação da cristalização de sua memória, cabe analisar os meios pelos quais isso aconteceu. cultural que conectou a rainha angolana à brasileira, mas também os conteúdos culturais a que se refere, ou não, o título de “Jinga” e as possíveis memórias da “Africana” entre os súditos das rainhas gaúchas. Para tanto, utilizei como fonte principalmente relatos orais sobre a origem e o funcionamento do maçambique (entrevistas por mim produzidas ou eventuais registros de terceiros), bem como reportagens de jornal e registros de folcloristas. Sustento que a referência à “Africana”, no trecomo Nzinga ou Jinga —, se deu por empréstimo à fala de Scherer, não constituindo um elemento “nativo” na explicação da origem da dança. Pelo contrário, os elementos culturais trazidos da África foram, naquele do maçambique.
O objetivo deste artigo é demonstrar este ponto de vista. Esclareço que dei prioridade analítica ao ponto de vista dos sujeitos sociais envolvidos no maçambique — ao menos como me foi possível apreendê-lo. Essa opção se dá porque, durante o último século, sua visão foi frequentemente secundarizada e também porque os olhares externos, como o leitor avaliará, parecem-me muitas vezes descolados das resujeitos a falarem por si.
Após anos — praticamente quinze anos estudando a comunidade da qual desse ritual dentre idosos maçambiqueiros, foram verdadeiramente muito raras as referências à rainha africana. Elas tampouco aparecem, conforme veremos, nas narrativas coletadas por outros pesquisadores. O lugar da - ridade em relação ao Novo Mundo — foi apropriado criativamente por Maria Tereza a partir da fala do arcebispo no momento de sua coroação e processado no sentido de mesclá-lo com as narrativas tradicionais — algumas das quais reproduzidas a seguir —, as mesmas lembradas nos dias de hoje por seus sobrinhos.[28] Os mitos apresentam o maçambique como uma dádiva de Nossa Senhora do Rosário para que os negros não sofressem. A rainha africana só aparece por meio da palavra de Scherer,[29] Mas, como nas outras narrativas, o maçambique surge como solução diante do fato de os brancos terem divertimentos e os negros não. mais em uma posição de intermediária. Trata-se de um caso exemplar de circularidade cultural sua referência única no trecho ao início do texto, e o arcebispo foi seu vetor. A noção de circularidade cultural foi proposta por Carlo Ginzburg, inspirado por Mikhail Bakhtin — ou, último.[30] Em resposta àqueles que criticavam, na sua célebre obra — O queijo e os vermes, acerca da apropriação de características da cultura erudita por um popular, seu famoso Menocchio —, uma suposta supeo popular e o erudito.
Com efeito, em seu estudo sobre a cultura popular medieval e renascentista, Bakhtin pretendeu apreciar o contexto cultural no qual se grotescas e carnavalescas da Idade Média e do Renascimento alimentaram a obra de Rabelais, quebrando, assim, a separação estrita entre o clássico e o popular. Por outro lado, conseguiu perceber a circularidade cultural envolvida, uma vez que aborda de que maneiras este saber erudito retornava à cultura popular, por meio da difusão atingida por sua obra.
À exceção do estudo de Ginzburg, que teve acesso a uma rara fonte na qual havia registro das obras lidas pelo seu moleiro perseguido pela Inquisição, acredito que o polo oposto seja, em geral, mais facilmente apreensível, dado que as fontes disponíveis foram produzidas, via de regra, “pelos de cima”, onde é possível melhor avaliar a presença indireta de caracteres culturais “dos de baixo”. Na obra de Bakhtin, são mais fartas as referências de como o popular “alimentou” o erudito do que o sentido contrário. Isso não decorre de qualquer opção metodológica do autor, e, sim, do que é apreensível por meio dos documentos a ele disponíveis.
Dado que boa parte das fontes aqui trabalhadas — relatos de folcloristas, jornalistas, poetas, antropólogos — são de estudiosos eruditos “alimentando-se” do popular, tampouco conseguirei escapar a esse dilema. Inclusive, as principais fontes a que tive acesso — entrevistas produzidas pelo pesquisador, por mim, que não fujo ao campo erudito, portanto — não fogem ao paradoxo: ainda que dialógicas, têm como acessível a pesquisadores, e não a sujeitos de pesquisa (frequentemente do erudito sobre o popular apenas mediante pequenos indícios, sobretudo por meio da atuação da Igreja Católica e de folcloristas. A primeira, religiosidade popular divergentes do padrão do catolicismo romano. oral diante dele.[31] a representação da “Africana” foi expressa por meio de um repertório cultural próprio a Maria Tereza.
Maria Tereza, relatou, em mais de uma ocasião, sua versão a respeito da origem do maçambique. Entrevistada em 2010, destacou a união que o maçambique deveria representar para os negros, surgindo a bandeira e o tambor como dádivas da santidade:
Começou o maçambique é que os escravos não... choravam todo dia e toda vida só tristeza e serviço e apanhar. Então aí ele agarrou, a Nossa Senhora do Rosário veio na senzala e trouxe a bandeira e o tambor. Aí deu pra eles. Disse: ó, de hoje em diante vocês não vão mais se queixar. [emocionada] Vocês vão se unir e vão ter a festa de vocês. Vão bater o tambor e cantar. Cantar e sair. A Nossa Senhora do Rosário veio na senzala entregar a bandeira, de tanta tristeza que ela tinha da judiaria dos escravos. Aí começou o maçambique.[32]
foi ouvida em prédica do arcebispo —,[33] e sua origem seria o próprio que ela não teria sido mencionada na ocasião, ou que simplesmente não houve o registro dessa informação pela entrevistada.
arcebispo leu aqui em Tramandaí num congresso dos normalistas de todo Rio Grande do Sul. Mas a Bíblia é desse tamanho. [indica, com o indicador e o polegar, o volume de um livro muito grosso] [...] E ele leu como é que a Nossa Senhora do Rosário entregou a bandeira. Chamou num, num, como é que se dizia naquela época, num movimento de gente, assim que é gente de montão, todo mundo esperando a Nossa Senhora do Rosário pra entregar a bandeira. E ela chegou, entregou pros negros. [muito emocionada] “Alegria de vocês é essa aí. Essa é a corrente de vocês e vocês vão ter alegria daqui pra frente, que vocês negros nunca tinham alegria, nunca tinham nada. Vocês foram os escravos, vocês foram judiados. Agora vocês respeitam, vão se unir, e vão dançar. E vocês, quando na hora que vocês estiverem dançando, que o tambor rufar e a corrente tiver dançando, eu chego e abro os braço em cima de vocês. E naquela hora, quem faz promessa, pede e ganha.” O arcebispo leu que eu fui uma das festeiras daquele ano, então eu fui chamada, fui obrigada a me apresentar, com os jornalistas, e o arcebispo veio, trouxe a Bíblia.[34]
Em sua dissertação de mestrado, a antropóloga Mariana Balen Fernandes apresentou narrativas sobre a origem do maçambique coletadas junto a Antônio Francisco, antigo chefe da dança do grupo, Severina Maria Francisca Dias, atual rainha, e Sebastião Francisco Antônio, rei no presente, todos irmãos entre si — e sobrinhos da antiga monarca.[35] Abstenho-me de apresentar uma interpretação acerca dos mitos, coisa que a autora já fez, mas ressalto a ausência de referências a Nzinga Mbandi. A narrativa comum aos relatos é a seguinte: um escravo seria castigado e morto por seu senhor, mas a divindade intercedeu por ele e o escolheu para ser o primeiro festeiro de Nossa Senhora do Rosário, celebração que ocorre desde então. Na narrativa da rainha Severina, segundo a qual teria ouvido de sua tia, a legendária rainha Maria Tereza, o objetivo da santa em sua intercessão era proporcionar aos negros algum divertimento e, por meio do envio de uma carta, libertou o cativo.
Há, eventualmente, uma intermediação, por exemplo, no transporte da carta, mas é por parte de uma menina branca, que bem pode estar[36] ou até mesmo a princesa fala de Sebastião Francisco Antônio, que sustentou em entrevista para Marques — a menina que estava junto com Nossa Senhora do Rosário quando ocorreu a concessão da festa.[37] Tereza e prima do atual rei, na qual ela atribuiu a origem do maçambique à princesa Isabel: “a Princesa Isabel disse que toda festa tinha banda, só a dos negro não tinha, intão botou os moçambiqueiros pra se alegrá”.[38]
A aquisição da terra ou da liberdade, por meio da ex-senhora ou da princesa, vem acompanhada do direito de divertir-se, o que caracteriza o período escravista como um momento de sofrimento e ausência de sempre assinalam a escravidão como momento de desprazer e sobretrabalho. Fazer-se livre era fazer-se, dessa forma, portador, também, da possibilidade de momentos lúdicos.
Além disso, percebe-se, nesse paralelismo Nossa Senhora do feminina juvenil, uma generosidade explicativa da dádiva da festa — de origem sempre heterônoma. Nesse esquema mítico, é total a ausência de um lugar simbólico possível para Nzinga Mbandi, que possui, conforme da década de 1980, adiantava a contraposição que aqui faço, ao apontar a dissonância entre o registro escrito da revista O Planador de Osório, que discorre longamente sobre a rainha africana, e a fala espontânea de uma maçambiqueira, em que não há referências a Nzinga. Entendo que total ausência nos relatos dos maçambiqueiros. Tais ocorrências são rarís - ou mesmo subordinação, a uma fala externa ao saber mítico tradicional (a exemplo do primeiro excerto apresentado no texto).
Iosvaldyr Bittencourt Júnior[39] registra narrativa similar àquela em que Nossa Senhora do Rosário salvou um negro, coletada junto a Severina Dias, que a teria escutado de Maria Tereza Joaquina. É bastante provável, de fato, que esses velhos maçambiqueiros tenham ouvido tais palavras de sua tia, já que, em 1978, a velha rainha apresentou para o antropólogo Norton Corrêa uma narrativa mítica acerca da escolha do primeiro festeiro de Nossa Senhora do Rosário muito assemelhada às anteriores. É importante observar-se que a situação de locução dessa aquilo que o arcebispo lhe dissera, ela relatou para o antropólogo o que ela dissera ao padre:
Óia, saiu um nego de festeiro no ano que vem — faça de que prá ensiná a trabaiá porque ele envergo o gavião da enxada do sinhor! Aí o sinhori o carrasco pra sová o nego amarrado na cruiz com os braços aberto pra panhá até não se mexê, pra aprendê a trabaiá porque envergo o gavião da enxada. Mas era tempo de festa da Nossa Senhora do Rusário e botaro o nego festeiro (no sorteio). Neste tempo não se chamava pelo nome: era só ‘nêgo’. Ele tava sentado, esperando oiando que viesse escravo pra dá no oltro. Aí, é-i-vinha o nêgo e ele disse assim: ‘Ô nêgo, vem cá!, Aí ele chego de bracinho cruzado (e Tia Maria Tereza faz voz humilde): ‘Sinhori, nhonhô!’. ‘Te chamei pra tu i desatá aquele nêgo e me trazê aqui’. Aí ele foi. Chego e disse pru outro: ‘Oiá, o nhonhô mandô te buscá’. Chegô os dois de bracinho encruzado. O que foi chamá disse: ‘Oiá, nhonhô, tá aqui entregue’. ‘Eu vim sabê o que o nhonhô quê cumigo’. ‘Te mandei chamá, pedaço de sem-vergonha, vadio, pra rezá pra Nossa Sinhora do Rusário, que é a tua madrinha, que tu não panha hoje agradece tu saí de festeiro no ano que vem que pur isso é que tu não panha hoje. Tu vai rezá e vai trabaiá pra tu te aprontá pra i fazê a festa, i a festa vadio, sem-vergonha’. A liberdade do nego era só domingo e dia santo. Meio de semana era do sinhori e domingo era do nego. E o nego feiz a festa e não panhô laço porque era a festa da Nossa Sinhora do Rusário. Isto tudo contei pro padre, pra vê que a Nossa Sinhora do Rusário toda vida foi poderosa.[40]
Cumpre observar que os elementos lembrados como explicativos da origem do ritual fazem parte de um repertório de aspectos tomados à realidade histórica escravista e americana — o senhor, o escravo, o castigo, a carta [de alforria], a ‘liberdade’ em domingos e dias santos — e não ao mundo da África pré-colonial ou colonial. Esta última aparece apenas no relato que Maria Tereza fez, para Corrêa, da fala do arcebispo para ela, e não na narrativa dela para o padre. Assim, podemos dizer que, na circularidade entre o popular e o erudito, as narrativas adquirem conteúdos diversos de acordo com o vetor. Poderíamos nos perguntar, ainda, se, nos dias de hoje, quando nós pesquisadores problematizamos a relação entre a Jinga osoriense e a Nzinga Mbandi angolana, não estamos atualizando os termos deste diálogo cultural, assumindo papel similar ao do arcebispo Scherer.
Existe uma grande polêmica acerca de se é mais conveniente e adequado dar ênfase à reprodução de raízes africanas no Novo Mundo, buscando o vínculo genético de caracteres culturais[41] ou, pelo contrário, buscar[42] Ainda que o debate seja relevante, é um tanto estéril discuti-lo em abstrato. Os adeptos de cada posição poderão encontrar, , argumentos que - veis pouco têm a contribuir. Parece ser mais fecundo examinar empiricamente deixar de levar em conta que, demonstrado está, os negros do Morro Alto são oriundos de comunidades escravas muito antigas, com elevado grau de crioulização, mesmo antes de 1850 ou 1871.[43] Sendo assim, não é surpreendente perceber vínculos mais tênues com o Velho Mundo.
É evidente que Jinga é uma corruptela de Nzinga, assim como Conga. Todavia, na memória do vocábulo original não necessariamente persiste a lembrança de seu referente. Exceto a fala de Maria Tereza registrada por Norton Corrêa — ainda assim, atribuída ao arcebispo de Porto Alegre —, ninguém, dentre os idosos, lembra de Nzinga Mbandi. Isso que estou analisando, revestiu-se de caracteres originais, vinculando-se, sobretudo, à imagem de uma santa católica. A evidente origem africana não ocupa um lugar central nas referências míticas originárias do ma- çambique, e sequer ocupa um lugar na memória de seus descendentes.
É claro que eles sabem que a escravidão é originária de pessoas que vieram da África, mas, talvez por descenderem de escravarias já antigas durante o século XIX, o continente originário seja percebido em uma relação de distanciamento ou até estranhamento. Ou, ainda, pode ser tornado familiar por converter-se no ambiente, no lugar onde se passam os referenciais narrativos e míticos anteriormente mencionados, como no seguinte depoimento rainha (reinado entre 1980 e 1992). Destaque-se que a África é tomada em função da recordação de Nossa Senhora do Rosário e da lenda, e não o contrário. Em vez de um lugar com características simbólicas relevantes à interpretação do mito, o fato de ele se passar nessa “África” nada agrega à leitura que dele possamos ter. A “África” é um cenário abstrato, reconhecido, dizer, a estrutura do mito seria exatamente a mesma se ele se passasse na
Segundo a rainha Tomásia, antigamente na África existia um negro cativo, este estava no tronco para ser morto. Então chegou-lhe uma ordem para ser festeiro de uma festa, por esse motivo o negro não foi morto e saiu do cativeiro para trabalhar nas atividades desta festa. Este acontecimento foi considerado um milagre de Nossa Senhora do Rosário.[44]
Talvez pelo fato de a palavra guardar uma referência espacial, em vez do vínculo com um personagem histórico, o “Congo” do rei — e de uma antiga rainha “Maria Conga”, segundo alguns a primeira, antecessora da antecessora de Maria Tereza —, é associada com maior facilidade ao continente africano. Todavia, mesmo essa associação é feita de uma forma difusa. Esse vínculo traçado é genético e denota a “veio de Moçambique”, parece-me haver, sobretudo, um paralelismo do vocábulo, que efetivamente sugere uma origem compartilhada, mas por meio de uma remissão a uma espacialidade abstrata, e não propriamente à cultura do continente ancestral. Não esclarece os laços entre o continente africano e o maçambique em seus aspectos simbólicos. Nesse sentido, ao menos nesse caso, tendo a concordar com Mello e Souza, que insiste na[45][46] que destaca a persistência de raízes africanas. No caso do maçambique de Osório, de seus conteúdos, da memória das realezas africanas.
É bem verdade que a autoridade real feminina no Velho Mundo por vezes é tomada como explicativa do poderio da rainha da congada do artigo. Vale, contudo, assinalar que o relato seguinte é singular no sentido de que não apareceu nada similar entre os demais entrevistados:
Manoel: As rainhas? É a primeira rainha que eu acho, que eu acho que de tudo que... que houve para os outros foi essa tal de Maria Conga. Essa era de lá de certo devia ser de lá de onde eles vieram.
Rodrigo: E por que ela era chamada de Rainha Maria Conga? Por que o nome dela era Maria Conga?
Manoel: Pois era Conga, ela de certo ela devia ser de lá né. Não é de lá? A África não é, não é isso aí mesmo?
Rodrigo: Então é por causa da África?
Manoel: Por causa da África, é por causa da África.
Rodrigo: E então ela, e a dança do Maçambique veio de onde?
Manoel: Veio de Moçambique.
Rodrigo: De Moçambique.
Manoel: De Moçambique. Veio o Maçambique.
Manoel: Na África.
Rodrigo: Na África. que eles prendiam e traziam presos de lá e vendiam aqui.
dele da África essa tradição deles que veio para cá. [...] Por causa do Maçambique de lá, quando eles vieram de lá, lá era a rainha que mandava, lá no país deles quem mandava era a rainha.
Rodrigo: E o rei do Congo mandava?
Manoel: Ele é companheiro da [...] ele é companheiro da rainha.
Rodrigo: E por que se chama Rei do Congo e Maria Rainha Ginga?
Manoel: Ah, pois é. Nessa eu não...
Rodrigo: O senhor não... a gente não sabe, não adianta falar.[47]
Se, para os participantes do maçambique, as referências a Nzinga foram um termo praticamente ausente, elas constituíram, pelo contrário, um ponto exaustivamente repisado por diversos interlocutores dos participantes desse grupo. Agora examinaremos como os atores que estabeleceram diálogo com os maçambiqueiros traçaram alguns elos entre a rainha africana e a Jinga brasileira. Com efeito, é possível nos indagarmos qual é a fonte dessa memória sobre Nzinga, já que, conforme visto, ela não pode ser encontrada entre os praticantes daquele ritual.
Tampouco temos elementos comprovantes de uma “fama”, como quer Mello e Souza, no sentido do renome, no Rio Grande do Sul, da ancestral angolana.[48] Pelo contrário, tudo indica que essa associação foi feita por pesquisadores que buscaram no continente originário, pela similaridade léxica entre o nome das rainhas, vínculos essenciais. Nesse momento, passa-se a uma arqueologia dos percursos de tais estudiosos.
O primeiro a realizar essa associação, no Rio Grande do Sul, até onde se tenha notícia, foi Dante de Laytano em sua obra de 1945. Em à rainha Jinga, os estudos posteriores foram informados por este precursor. Laytano[49] bebe em Mário de Andrade, quando este último buscou fundamentar, remetendo a origens no continente africano, a existência de embaixadas nas congadas paraibanas. Inobstante o pesquisador gaúcho tenha admitido “a ausência das embaixadas ou do embaixador” na congada osoriense,[50] ele destacou que isso não “prejudicava” o maçambique. que “A rainha Ginga da congada de Osório, como todas as outras rainhas Gingas de outras congadas é uma personagem que vem da história”.[51] antes de 1945. O fato é que, na ocasião em que Laytano lá esteve, não estava presente. Antes disso, o memorialista Antônio Stenzel Filho,[52] em sua descrição de “usos e costumes até 1872”, escrita em 1924, relata a existência de embaixadas na década de 1920. O terno de maçambique - cia-se uma origem africana, enquanto os segundos seriam brasileiros.[53] no dizer de Stenzel Filho, naquele momento o rei dos maçambiques falava “em sua língua própria”. Contudo, há dois detalhes a se atentar. imperfeito, referindo-se a um passado que não testemunhou) a existencia de “uma luta simulada entre católicos e mouros”,[54] e mesmo que alguns cargos do maçambique correspondam a patentes militares — capitão da espada, alferes da bandeira —, as fontes coevas de maneira alguma Segundo Sônia Chemale, “Stenzel não relata nada semelhante sobre lutas e sim de um encontro cordial”. Conforme a estudiosa, “dizem que de 1920 para cá não houve lutas no auto”.[55] É possível que a memória de Nzinga tenha desaparecido com o declínio das embaixadas, no lapso entre 1920 e 1945.
Segundo essa folclorista, natural de Osório, “a origem da manifestação não é guerreira ‘mas sim festiva’”. Tendo acompanhado o maçambique desde os anos 1950 até a década de 1980, tendo tomado inúmeras medidas para ajudar política e praticamente o grupo, Chemale possuía profunda intimidade com os maçambiqueiros. Acredito que, ao contrário dos demais folcloristas, ela tenha percebido o quanto as narrativas sobre a rainha africana eram alheias aos integrantes do maçambique de meados do século XX em diante. Por outro lado, ao sublinhar a dimensão fesa autopercepção dos próprios participantes na época em que os estudou.
Concordo com a autora, acrescentando, contudo, que, nessa festividade, a relevância da dimensão religiosa é muitíssimo superior ao caráter lúdico. Uma elucidação mais precisa sobre o maçambique histórico é difícil, já que as narrativas mais distantes datam de 1924 — quando Stenzel o auto se originou durante o período escravista.[56] O mito se funde com o factual, e o pesquisador precisa aprender a lidar com essa situação. Por outro lado, isso não nos impede de avaliar criticamente as fontes disponíveis e trabalhar com depoimentos, quer aqueles que gravamos, quer os registrados por pesquisadores antecessores.
O mais importante para a questão das embaixadas, todavia, é que ao que Stenzel Filho dá a entender, rei e rainha faziam parte do mesmo auto, o rei e a rainha acompanhavam, juntos, o quicumbi.[57] Todavia, conforme o depoimento dado pela rainha Jinga Maria Tereza para Sônia Chemale na década de 1970, “referindo-se ao encontro dos dois ternos Congo também africano[58] que pertenciam aos Maçambiques, pois os quicumbis não tinham reis”.[59] Estivessem presentes nos quicumbis ou maçambiques, tudo indica que rei e rainha pertenciam ao mesmo auto e, dessa maneira, pouco sentido faz ver a oposição entre uma Jinga pagã e um rei de Congo católico enfrentando-se em autos distintos.
Em algum momento entre as décadas de 1920 e 1940, os maçamainda mais a ideia de troca de embaixadas. A mescla, da qual sobreviveu apenas o maçambique, ainda se processava quando Laytano lá esteve. Tampouco foi uma incorporação unilateral, um mero “englobamento” dos quicumbis pelos maçambiques: segundo o autor, muitos quicumbizeiros adquiriram lugares de destaque na congada originária do Morro Alto, valorizados em função de sua experiência. De toda forma, os ma- çambiques deram continuidade a uma tradição datada, ao que consta, do período escravista: “impossível fazer-se de momento separação dos dois inteiramente promovida pelos maçambiques, desta vez”.[60]
Se os indícios apontam para a inexistência de trocas de embaixadas e confrontos rituais entre o rei do Congo e a rainha Jinga no litoral gaúcho, a partir da década de 1920, é de supor-se haver, também, diferenças regionais ignoradas por Laytano. É sintomático que esse estudioso tenha buscado em congadas nordestinas estudadas por Mário de Andrade a referência à rainha - gada de Mogi na década de 1950, mostra como, ao contrário do Nordeste, as referências à rainha são alheias à memória dos praticantes do ritual:
Nessa altura da conversa, eu quis ver se também aqui se conservava alguma tradição da rainha Ginga Ambângi, que nos Congos nordestinos é quem manda a embaixada de guerra ao Rei do Congo. Perguntei: — Embaixador de quem? Embaixador de algum outro rei? Meu interlocutor não compreendia a minha pergunta. Tomei a liberdade de insinuar mais, se era o embaixador dum outro reino inimigo, de alguma os populares perguntados pelos seus-doutores, que respondem sempre, acabou respondendo que quem pedia era o Embaixador.[61]
A insistência em encontrar paralelos com outras congadas soa um - lado, não existe em Osório, pelo menos desde 1945. Não estou sozinho nessa opinião: Sônia Chemale, talvez a folclorista que tenha conhecido o maçambique mais de perto, destacou: “Foram os maçambiques algum dia congadas? Se foram, hoje não existem mais características das demais congadas do Brasil”.[62]
A leitura de Chemale é, com efeito, heterodoxa entre os folcloristas seus pares e, tudo indica, mais fértil. Ao contrário daqueles que buscaram os traços comuns entre as congadas brasileiras e os vínculos, reais ou imputados, com a rainha angolana, a autora procurou perceber o maçambique em sua singularidade. Para a maior parte dos estudiosos, único, autêntico, e para tal, nordestino, região tomada como exemplar Disso decorria o esforço tenaz por encontrar rainhas Nzingas africanas.
Tais abordagens foram reproduzidas por sucessores de Laytano. João Carlos Paixão Côrtes, por exemplo, em livro de 1987,[63] sistematizou pesquisas sobre o folclore gaúcho realizadas desde os anos 1950. Apresentou-se como epígono de Mário de Andrade, a partir do qual associa a importante rainha Maria Tereza à Nzinga africana, em busca de um fundamento histórico para a manifestação por ele entendida como folclórica. Como se não bastassem — talvez —, para conferir legitimidade ao auto, apenas as memórias e relatos de seus integrantes. Seria necessário, pois, um aval externo, africano, fundamentado em prestigiados folcloristas nacionais.
O caso de Côrtes ensejou a descoberta de outro exemplo de circularidade cultural. Nelson Souza da Silva, entrevistado durante a festa do Rosário de 2014,[64] maçambique. Interessei-me, rapidamente, por tratar-se de relato dissonante: seria a primeira vez em que algum entrevistado traçaria vínculos diretos entre o Velho Mundo e o ritual realizado no sul da América. Marquei, em seguida, uma entrevista com ele. Nelson participa todos os anos da festa, carregando e vendendo as bebidas e ajudando com o churrasco. Todavia, não pertence a uma família tradicional de maçambiqueiros. Nunca ouviu, desde a infância, as narrativas ancestrais sobre a origem do rito ou seus participantes antigos — “o tempo dos antigos”. Pelo contrário, os conhecimentos por ele adquiridos foram por interesse pessoal por meio da leitura — especialmente artigos que Paixão Côrtes publicara no jornal Zero Hora entre as décadas de 1960 e 1980. Não sei se com decepção — que minha hipótese de trabalho restava intacta — ou ainda com alegria de ver um exemplo da incidência do erudito sobre o popular —, indaguei-lhe sobre outros aspectos da pesquisa realizada, deixei que o senhor Nelson concluísse seu depoimento, agradeci por sua colaboração e despedi-me para os convivas da festa de Nossa Senhora do Rosário.
Recentemente, o estudo de Estelita Branco, Rose Marie Reis Garcia e Lilian Argentina Braga Marques, uma vez mais no afã de prestar reverência a Mário de Andrade, Dante de Laytano e, também, Câmara Cascudo,[65] Muito sintomaticamente, a narrativa sobre sua vida encontra-se no subitem integrantes do grupo. O lugar dos atores sociais partícipes do maçambique qualquer explicação sobre a natureza dos vínculos eventualmente existentes, do século XVII ao XX, de Angola ao Brasil meridional:
Sua história [de Nzinga] chegou ao Brasil repleta de variantes, dizendo de foram aproveitados para os folguedos populares, emergindo em grande quantidade principalmente em São Paulo e Minas Gerais. Em Osório, as, ora pelo seu carisma, ora por sua personalidade marcante.[66] sugerindo vínculos de continuidade, mas sem precisá-los.
Essa característica também pode ser encontrada em Câmara Cascudo, um dos principais folcloristas em que Branco, Garcia e Marques beberam. Em um texto intitulado “A rainha Jinga no Brasil”, temos uma página introdutória, cinco páginas narrando a vida da rainha africana e respeito dos rituais de congadas em Minas Gerais e no Nordeste brasileiro. Os elos de ligação entre o conteúdo das sete páginas anteriores é dado a Rainha Jinga”.[67] A frase é tão poética quanto pouco esclarecedora. reprodução no Novo Mundo?
Um eco da naturalização deste vínculo e da não problematização da natureza dos laços entre a rainha Nzinga e as rainhas das congadas pode ser encontrado em Alencastro, que, aliás, traz como fonte o texto de Câmara Cascudo aqui discutido: “No Brasil de ontem e de hoje Jinga[68] continua presente, irrompendo nas congadas encenadas nas diversas[69] As pessoas que entrevistei, claro está, celebram aspectos muito mais do Rosário, e não Nzinga.
Não se trata aqui, de forma alguma, de desmerecer o importante trabalho desempenhado pelos folcloristas ou por aqueles que neles beberam. Pelo contrário, devemos a eles o registro, o apoio logístico ou lembrado e valorizado pelos maçambiqueiros), a preservação de traços culturais considerados importantes pelos integrantes e, por que não, em alguns casos-limite até mesmo a sobrevivência de caracteres culturais.[70] maçambiqueiros, recuperar a prática de levantar e arriar o mastro ao[71] É difícil saber o verdadeiro alcance da intervenção do folclorista, e duvidosa a passividade dos maçambiqueiros diante da autoridade do estudioso, mas, nos dias de hoje, o maçambique seria irreconhecível sem esse momento ritual. É possível, inclusive, que o maçambique tenha se valorizado exatamente naqueles momentos — ontem e hoje — em que recebeu interesse e atenção dos “doutores de Porto Alegre”.
O objeto da minha crítica não é a legitimidade da perspectiva folclórica, mas, sim, os limites dela para os problemas de pesquisa que aqui proponho. As fronteiras entre o folclórico e o antropológico nem sempre são fáceis de estabelecer — particularmente antes da institucionalização dos cursos de pós-graduação. Apontaria, de forma muito grosseira, dois aspectos que me parecem cruciais: o folclore geralmente trabalha com uma ideia de autenticidade cultural e, portanto, de pureza e descaracterização, enquanto as vertentes antropológicas recentes admitem a dinâmica de transformação cultural e não a valoram de forma negativa. Além disso, enquanto o folclore costuma contentar-se com o inventário das práticas culturais, a antropologia trabalha com um viés compreensivo/interpretativo, valorizando a percepção dos próprios sujeitos sociais
Como disse, porém, tais limites eram tênues, e nisso pesava muito a sensibilidade particular de cada pesquisador. É possível lembrar do nome de Norton Corrêa, antropólogo que sempre dialogou com o folclore, tendo constituído, talvez, uma ponte entre ambas as perspectivas. A partir do folclore, adquiriu uma formação antropológica acadêmica. Se, no dia 25 de janeiro de 1976, escreveu esse pesquisador para o jornal Correio do Povo um texto intitulado “No maçambique de Osório história virou folclore”,[72] poderíamos parafraseá-lo dizendo que “Em Norton Corrêa, folclore virou antropologia”. Sob outro ângulo de observação, podemos ver no jornalismo outra área de interface, dado que a imprensa escrita sempre foi um veículo preferencial para a divulgação de seus textos.
Corrêa insistiu bastante, em diversas reportagens para o Correio do Povo, nos laços que vinculavam Jinga a Nzinga.[73] É duro perceber, porém, que, ao dedicar tanto espaço de suas reportagens a temáticas que facilmente podem ser compulsadas em Andrade, Cascudo ou Laytano, secundarizou algumas narrativas dos próprios maçambiqueiros, que são originais e desconectadas em relação àquelas. Penso que o espaço dessas reportagens seria melhor preenchido pelo registro de particularidades e - mento de maçambiqueiros antigos. Claro que não se deve esperar que um autor, há décadas, escrevesse respostas para problemáticas de hoje. Ainda assim, é difícil não lamentar tantas oportunidades perdidas de registros sobre os pontos de vista dos maçambiqueiros nos anos 1970 e 1980.
Em um texto publicado por Corrêa, ele refere uma folclorista local, Lia d’Avila, que encontrou uma possível explicação para o transplante do eles quiseram continuar nas outras terras sua tradição”.[74] Todavia, essa querer, da vontade, do consciente. Além disso, situa a existência das congadas no continente originário, o que talvez seja mais delicado do que uma transposição de Nzinga, dado não haver quaisquer evidências.
Pelo contrário, Norton Corrêa sublinhou o caráter inconsciente da origem africana do maçambique, com o que, conforme veremos mais tarde, estou, de certa forma, de acordo. Todavia, para o folclorista-antroautenticidade da manifestação folclórica. Eu, que não me preocupo com autenticidade, temo a possiApós narrar a trajetória de Nzinga, observa:
Claro que tudo isto são dados puramente históricos, que a tradição conserva mas não se mostra a nível da consciência dos maçambiqueiros. Aliás, é por isto mesmo que a coisa se torna mais importante e autêntica: eles repetem os fatos espontaneamente, sem saber o porquê.[75]
Todavia, parece-me incompreensível tamanha insistência do autor em um aspecto reconhecidamente alheio aos pesquisados e, por da consciência dos maçambiqueiros (mas acessíveis ao pesquisador). O pesquisador coloca-se em uma situação de conhecedor de “porquês” priritual, o que é, no mínimo, arriscado. É algo como “eles não lembram da rainha africana, mas em minha autoridade de pesquisador sei que eles deveriam lembrar, e em alguma dimensão inconsciente eles lembram”.
Jornalistas da Folha da Tarde deram um passo ainda mais temerário, ao fazer de “uma soberana absolutista adorada por seus súditos” objeto da veneração de africanos que, uma vez chegados ao Brasil, teriam efetuado uma operação de substituição da “rainha Gonga” [sic] por Nossa Senhora do Rosário.[76] Dessa forma, as crenças daquela comunidade são brutalmente substituídas pela pressuposição da origem que o jornalista ros erros — nome e título da rainha Jinga, nome da festa, relação entre os grupos participantes e nome dos instrumentos. Ao contrário do que sugere a reportagem acerca da dinâmica ritual, o papel de Nossa Senhora do Rosário e da rainha Jinga, para os maçambiqueiros, são complementares e não concorrentes: a segunda representa a primeira, mas jamais ocorre uma relação de substituição. A displicência com que a imprensa eventualmente tratava — e trata — a religiosidade popular evidencia que nem todos os jornalistas possuem o critério e o cuidado de Norton Corrêa, preocupado que estava com um conhecimento aprofundado do ritual.
Uma reportagem do jornal Zero Hora, em 1984, também narra “acontecimentos da África, há 400 anos” como tendo dado origem ao - sentes no restante do país, enumerando-as como congada, moçambique, ticumbi e quicumbi.[77] novamente traçando um salto para o Novo Mundo. Esse corte, a um só tempo, mostra um descolamento entre ambas as realidades, e um esforço
Não seria, porém, o caso de deslocar o olhar dos reis africanos (não dos gaúchos, Senhora Severina e Senhor Sebastião), já que eles não correspondem sequer à dinâmica atual do rito, sequer às narrativas míticas? Curiosamente, é o que fazem reportagens em jornais litorâneos das décadas de 1980 e 1990 — Correio do Litoral, Folha do Litoral, Jornal Revisão.[78] Há uma efetiva preocupação com a dinâmica do rito naqueles decênios, - outra leitura a uma maior familiaridade com o maçambique, havendo um reconhecimento implícito do lapso mencionado.
Nzinga é frequentemente tomada como símbolo de resistência antirracista, negra, anticolonial.[79] Todavia, é curioso observar que, ao contrário de folcloristas e, veremos, acadêmicos, não percebo nos primórdios do movimento negro contemporâneo a mesma obsessão por associá-la à rainha osoriense. Reconheço que o material de pesquisa - to no Rio Grande do Sul em inícios dos anos 1970. Por outro lado, é sintomático que esse paralelo não seja feito nos poemas — muito pelo contrário — de Oliveira Silveira, tido como o poeta da consciência negra, tampouco nos textos produzidos pelo Grupo Palmares após suas visitas ao maçambique de Osório.
Oliveira Silveira e o Grupo Palmares são importantíssimos para o movimento negro brasileiro, já que eles propuseram a data de 20 de novembro em contraponto ao 13 de maio, associando este último a uma ideia de concessão incompleta e o primeiro a uma noção de luta pela liberdade e resistência: “Treze de maio traição, / liberdade sem asas / e fome sem pão.”[80]
Em entrevista aos historiadores Verena Alberti e Amílcar Pereira, Oliveira Silveira narrou a organização do grupo, em 1971, bem como a proposição do 20 de novembro como data de luta.[81] A descoberta da data da morte de Zumbi e sua consequente construção como referência para o movimento social ter-se-ia dado a partir da leitura de fascículo da Abril Cultural[82] e de sua conferência na obra de Édison Carneiro. Ao que se depreende por duas reportagens publicadas no jornal Correio do Povo, nos anos seguintes, o Grupo Palmares esteve interessado em conhecer raízes culturais negras no interior do Rio Grande do Sul.
Em texto de 1973, por exemplo, Oliveira Silveira documentou a situação do maçambique de Osório[83] e os problemas por ele enfrentados, que caráter ela aparecia: sua suave, breve e sintética menção como alusão. Tal comentário aparece em apenas uma frase em um texto de página inteira: “As congadas são um auto popular de características africanas relativo à coroação de reis do Congo e apresentando geralmente duas partes — o cortejo real e a embaixada da Rainha Jinga: alusão à grande soberana de Angola”.[84] Alusão passa a ideia de sugestão, vínculos muito mais suaves e sutis do que reportagem do ano seguinte sequer menciona a personagem.[85]
Na poesia de Oliveira Silveira, o maçambique — assim como o quicumbi, congada do vizinho município de Palmares, extinto e englobado pelo maçambique, conforme visto — aparece como signo cultural de resistência não apenas dos negros gaúchos, mas brasileiros de uma forma geral. Em seu monumental “Poema sobre Palmares”, por exemplo, ele que representam o legado de Zumbi. Vale lembrar que o poema precede seu conhecimento direto da congada osoriense, o que talvez explique a
umbanda quibanda vodu
reisado pagode afoxé
lundu congada moçambique
cacumbi maracatu
maculelê capoeira
e este jongo-caxambu[86]
Muitos anos antes da reivindicação de Morro Alto — comunidade de origem do maçambique — como remanescente de quilombos, o poeta-militante a heroicizava, inclusive empregando o termo quilombo.[87] não os remete à distante África, mas os enraíza do lado de cá do oceano. engajamento político, situá-los em terras americanas, ou, ainda, tenha bebido na percepção comunitária.
EVOCAÇÃO DE OSÓRIO
Conceição do Arroio,[88] que fui eu aqui?
— Maçambique, quicumbi.
Que fui eu neste litoral?
— Estância, canavial.
Mas que fui eu lado de cá das ondas?
— Rainha Jinga, rei de Congo
(sem ter que passar a nado
para o outro lado).
Ô Morro Alto,
eu não sou negro de cabeça baixa!
Ô Capão da Negrada,
sou teu cerne mais duro pra machado!
Vejo
Lagoa Negra do escravo enforcado,
águas de Osório, Bocó, Caconde,
lugar Quilombo – sou quilombola.
Sigo livre estrada a fora [sic]
e ninguém me pendura pela gola![89]
O caso da professora Maria Marques representa um exemplo sui generis: nascida em Morro Alto, criada entre os netos da rainha Maria Tereza, de quem seus pais eram vizinhos em Osório, envolveu-se na militância negra em seus tempos da Faculdade de Letras. Assim, é intambém possui claros vínculos de militância no movimento negro urbano. Sua narrativa situa a origem do ritual na África, o que provavelmente expressa um desejo de elo com uma Nzinga Mbandi em tudo o que ela tem de personagem aguerrida e símbolo de resistência. Todavia, quando negros de sua geração como fontes de sua fala. Por outro lado, admite as - tica e dos séculos “não [se trata de] uma réplica, mas uma relembrança,[90] sublinha que essas se deram por meio da oralidade. Creio que o segundo termo desse binômio faz jus nenhum momento e que não se pode resumir à reprodução da realidade africana. Assim, na condição dupla de militante e integrante da comunidade maçambiqueira, Maria Marques sintetiza uma posição reprodutora e ressemantizadora dos vieses culturais.[91] Essa aguerrida mulher negra traz em si a circularidade entre a cultura popular e a erudita.
Ao contrário do esforço de Oliveira Silveira, alguns estudos antropológicos recentes têm atualizado a ambição de traçar vínculos mais[92] que foram bastante importantes em meus estudos sobre a temática, no sentido de entender o funcionamento do maçambique, creio que a abordagem histórica em seus trabalhos deixa a desejar. A história aparece como um distante pano de fundo que remete à África ou ao passado escravista, sem maiores elos com suas temáticas de estudo ou com a historicidade negra posterior a 1888. Embora façam uma reconstituição da história da rainha Nzinga Mbandi ou da escravidão no Rio Grande do Sul — ou mesmo da ocupação do território por portugueses —, tais aspectos são colocados de forma desconectada da argumentação, formando um pano de fundo estático.
Esse aspecto me parece particularmente surpreendente no trabalho de Bittencourt Júnior, já que ele assinala de forma louvável, em diversos momentos de seu trabalho, o fato e até mesmo os mecanismos[93] pelos quais o maçambique conecta vivos e mortos, os maçambiqueiros a seus ancestrais.[94] No entanto, essa ancestralidade não deve ser encontrada apenas nos escravos ou em Angola, mas principalmente nos maçambiqueiros é exemplar, e é exatamente por isso que um recorte da historicidade negra que se limite aos séculos XVII, XVIII e XIX não dá conta de seu projeto investigativo. Os maçambiqueiros lembram-se da antiga rainha com carinho. Acendem velas, ainda depois de 35 anos, em seu túmulo. Alertam os maçambiqueiros mais novos: “se fosse no tempo da Maria Tereza tu ia ver”. Ela representa “os antigos” de uma forma mais ampla. rainhas ou dos “antigos” — pelo contrário, assinala sua presença espiritual no momento da dança —, mas eles certamente não ocupam um de Maria Tereza é colocada em função da preservação da memória de[95] ela se torna um veículo por meio do qual Nzincultura erudita.[96] Os maçambiqueiros falam de si por meio da memória dos ancestrais, e nisso reside o fundamento de sua religiosidade. A lembrança de uma avó, de uma tia com quem conviveram e de um túmulo que podem visitar e no qual podem acender velas assinalam um vínculo mais palpável do que a distante “Africana”. É Jinga Maria Tereza, e não Nzinga, o ancestral a quem se rende homenagem.
Diversos interlocutores dos maçambiqueiros enxergaram Nzinga Mbandi porque queriam, por motivos diferentes, encontrar Nzinga Mbandesse encontro. No entanto, a avaliação dessa relevância deu-se a partir dizem é que a rainha Jinga, para eles, é Maria Tereza Joaquina (ou, entre os muito idosos, Maria Conga), e não Nzinga Mbandi.
Segundo Mintz e Price, discutindo Herskovits, nas “heranças africanas” - que seus “elementos mais formais”.[97] Os autores acreditam — e meu caso me leva a concordar com isso — que raízes africanas devem ser procuradas em aspectos mais profundos do que a coincidência de vocábulos. rainha e de seus feitos perdeu-se. Não é referenciada pelos moradores. À manutenção aproximada da forma não correspondeu uma conservação do conteúdo equivalente. Não é aqui que estão, portanto, os vínculos com a ancestralidade africana.
No entanto, em aspectos estruturais, Nzinga e Jinga se reencontram: no poderio feminino, forte, absoluto, inquestionável (comum à África Central, na festa do maçambique os reis são coroados, no primeiro dia da festa, pelo padre).[98] capuchinho Cavazzi de Montecuccolo nos apresenta a rainha Nzinga fumando cachimbo em reverência aos ancestrais.[99] Seu culto é, de fato, uma característica central da religiosidade na África Central, ao passo que, para os negros de Osório, maçambiqueiros ou não, a lembrança e a presença dos antigos de sua identidade.[100]
A partir de uma releitura cristã, os maçambiqueiros até hoje prezam a memória dos antigos. Nesses aspectos arrolados podemos encontrar vínculos com Angola, muito mais relevantes e essenciais para a dinâmica do social do que o vocábulo que liga as duas rainhas, a memória ou vínculos diretos e explícitos entre África e Brasil. Não há mais lembrança por outro lado, uma série de características da organização política e a exemplo da autoridade das mulheres e do culto aos ancestrais. Sob esse[101] que destaca a importância do poderio feminino entre os maçambiqueiros, hoje em coroa continuar, a mulher tem que ser forte”. Tio de Francisca, o senhor Manoel Francisco Antônio, em trecho já reproduzido de entrevista, destacou a semelhança do poder das mulheres na África e no Brasil do maçambique: “Por causa do maçambique de lá, quando eles vieram de lá, lá era a rainha que mandava, lá no país deles quem mandava era a rainha”.[102] Trata-se de um laço no que toca ao poder feminino, mas não de uma memória da trajetória da “Africana”.[103]
Rainha Nzinga, como monarca de Matamba, não chega aos ma- çambiqueiros por meio da memória: ao contrário de Weber, considero impossível acessar “resquícios” da “Africana” por meio do cotidiano das mulheres.[104] Há uma valorização do poder feminino comum a ambos os casos, mas não é possível extrapolar além disso. Há, de fato, de gênero, reencontram-se Jinga e Nzinga, como metáfora do continente presença em sua ausência.
O autor gostaria de transmitir seus agradecimentos à professora Martha Abreu, por ter instigado o estudo dos maçambiques e dos folcloristas.