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MEMÓRIA E IMAGINAÇÃO HISTÓRICA NA NARRAÇÃO DA ORIGEM BRASILEIRA E ESCRAVA EM LUANDA CONTEMPORÂNEA
Afro-Ásia, núm. 54, 2016
Universidade Federal da Bahia

Artigos



Recepção: 09 Abril 2015

Aprovação: 21 Novembro 2016

Resumo: (Angola) em que um “negro” brasileiro, que teria vindo a Angola na qualidade de escravo ou depois de ter sido escravo no Brasil, é lembrado como fundador da família. Apresentando elementos tanto de plausibilidade como de imaginação social como religioso. Na imaginação cosmológica local, a volta da escravidão por mar de almas que se simpatizam com as pessoas é uma imagem que aparece em práticas rituais. Na economia local do prestígio, se dizer descendentes de um negro brasileiro é a única maneira de assumir uma origem escrava. A origem brasileira enobrece a condição escrava e, ao mesmo tempo, é uma estratégia para negar outras origens estrangeiras, nomeadamente a origem portuguesa.

Palavras-chave: escravidão, memoria, genealogía, imaginação histórica, ritual.

Abstract: In this essay we will analyze some genealogic accounts collected in Luanda (Angola). In these accounts an Afro-Brazilian, who would have come to Angola “as a slave” or after having been a slave in Brazil, is remembered as the founder of the family. Some elements of these accounts seem to be historically plausible, while others seem to be the product of an historical imagination. Anyway these accounts express cardinal native ideas not just about society, but also about cosmology. Claiming a Brazilian origin is the only way to admit a slave origin in a context where the slave origin is stigmatizes. At the same time, it is a strategy to deny other foreign origins. Under the cosmologic perspective, the idea that souls of slaves can come back from the sea and join living people appears in some ritual practices.

Keywords: slavery, memory, genealogy, historical imagination, ritual.

Na cidade de Luanda, onde desenvolvo, desde 2013, uma pesquise dizem descendentes de um avô brasileiro, negro, que teria regressado para Angola depois de ter sido escravo no Brasil ou, ainda, que teria chegado a Angola vindo do Brasil como “escravo”. Outros pesquisadores dedicados ao estudo da história e da memória da escravatura em Angola testemunharam anteriormente contos semelhantes.[1] Embora esses contos apresentem elementos de incongruência histórica, a sua repetição não pode deixar de despertar a atenção do pesquisador.

O interesse de tais contos para a pesquisa histórica faz-se sob dois pontos: aponta para uma falta de informação sobre contatos entre o Brasil e Angola e para as transferências populacionais do Brasil para um imaginário local em volta do Brasil como lugar de origem.

Assim, o objetivo desta contribuição é duplo. Primeiramente, preten- sobre a migração de “negros” do Brasil para Angola numa época posterior àquela que foi objeto de estudo até o presente, que se limita a 1870[2] e, em 1888. Sob esse ângulo, pretende-se — de maneira mais abrangente outro lado, explorar o imaginário local subjacente a esses contos, que é, ao mesmo tempo, por eles elaborado, alimentado e reproduzido. Em termos mais estritamente antropológicos, emerge desses relatos um complexo de ideias-imagens concernentes à relação histórica entre Angola e Brasil, mediada pelo mar e pela escravatura. Ao mesmo tempo em que é expresso nesses contos, o imaginário subjacente alimenta-se de sua das origens familiares não só nos termos de uma memória, no sentido da estocagem e elaboração cognitiva e narrativa de um fato passado, imaginação local.

Os que apresentarei são relatos de natureza genealógica. Eles têm por característica comum evocar uma história de travessias transoceânicas e de escravidão. O sujeito narrador se projeta nelas, declarando uma relação de descendência de um “negro brasileiro”. de famílias de origem brasileira é um fato conhecido, não só pelos historiadores, mas também por muitos habitantes da capital angolana. manteve-se durante três séculos como o principal porto negreiro da costa atlântica da África, embarcando escravos principalmente em direção ao Brasil e importando bens de primeira necessidade. Essa estrita interdependência econômica com o Brasil, que se prolongou até meados do século XIX, propicia a circulação de pessoas entre os dois lados do Atlântico.

Elementos da elite mercantil vivem entre as duas margens, estabelecendo temporariamente a própria residência no Brasil ou em Angola conforme os interesses contingentes.

A circulação não é, no entanto, uma prerrogativa exclusiva das elites. Os estudos mais recentes sobre a escravidão mostram que o comércio de escravos não foi um movimento populacional em uma só direção — da África às Américas — mas, antes, uma dinâmica de idas e voltas, na circulação permite entender o Atlântico como um espaço integrado, aspectos populacionais e culturais.[3]

À luz dessa conexão privilegiada entre Luanda e Brasil, a origem brasileira de um antepassado, defendida por muitos luandenses é algo plenamente plausível. Até uma época posterior à independência do Brasil, era difícil, de fato, discernir entre uma origem brasileira ou portuguesa das classes mercantis envolvidas com o comércio negreiro. O sobrenome, em ambos os casos de origem portuguesa, não chega a constituir um deve ser entendida precisamente à luz das estratégias de mobilidade por[4]

Os relatos coletados não falam, porém, de um remoto antepassado brasileiro — o que seria cronologicamente mais plausível — mas, sim, de um avô. Esta posição genealógica aponta para uma datação que torna menos inteligíveis tais relatos em termos históricos. da presença colonial portuguesa em Angola a partir de meados do século XIX determinam, de fato, um enfraquecimento dos laços com o Brasil em prol de Portugal.[5] A substituição da navegação à vela pela navegação a vapor torna mais conveniente a navegação entre Angola e Portugal e contribui[6] Os avôs dos meus interlocutores não são, porém, lembrados como comerciantes: teriam chegado como “escravos” ou “degredados”.

Apresentando elementos, ao mesmo tempo, de pertinência histórica e de incongruência cronológica, esses relatos merecem ser levados a sério sob várias perspectivas.

Embora não haja, segundo minhas pesquisas, informação sobre retornos de alforriados na época à qual podem se referir os contos genealógicos (1880-1890) e muito menos sobre o “degredo” de brasileiros para Angola, numa fase em que Portugal incrementa o seu controle sobre a colônia, não adotarei a posição de negar a sua veridicidade histórica em prol de um valor meramente simbólico.

Essa datação histórica (1880-1890) não é fornecida pelos meus interlocutores, mas se trata de uma temporalização plausível para a maioria dos casos estudados. Situar nessa década a vinda do Brasil desses indivíduos seria compatível com elementos como o seu posicionamento genealógico em relação ao falante (pelos quais esse brasileiro é geralpor exemplo, uma trajetória poligâmica), a idade do falante. Sobre ditos elementos voltaremos detalhadamente no exame dos casos. depoimentos dos meus interlocutores, da enunciação de uma temporalidade de tipo cronológico.[7] Os relatos se inscrevem numa temporalidade de tipo genealógico. Aqueles referidos (a vinda do Brasil) são fatos que acontecem na geração ego + 2. avôs/avós” são abundantemente utilizados no contexto estudado para se referir a eventos genericamente passados há mais ou menos tempo, a perspectiva epistemológica sugerida é, no entanto, de não descartar a possibilidade de que essa temporalidade local permite situar no tempo fatos passados.

A repetição dessas histórias, coletadas junto a pessoas, em sua grande maioria, não interligadas entre si é mais um elemento para lhes se tornam menos visíveis quando comparadas com épocas anteriores.

Desde a consagração, no seio dos estudos sobre escravidão, do paradigma diásporo, atlântico e transnacional, a dimensão micro e[8] e os casos aqui apresentados se candidatam a ser processados nessa perspectiva.[9] Como será mostrado nas páginas a seguir, o fato de ser descendente de um estruturação de nenhuma identidade coletiva além do parentesco. Por essa razão, nenhuma expressão identitária coletiva comum aos que se dizem

Secundariamente, esses depoimentos são importantes, na medida enunciação da origem brasileira (ou, ao contrário, da sua negação) são - escondem uma suposta origem brasileira escrava. Se a memória não pode preexistir a contextos interativos de atuação (remembering),[10] interessanos compreender o agenciamento do conhecimento, da ignorância parcial enunciação e/ou, eventualmente, de censura dessa informação genealóa reivindicação de origens brasileiras pode se enquadrar numa história de ascensão social, mas, frequentemente, é a única maneira de associar a própria genealogia a uma história de escravidão. No panorama local que documentei, ser descendentes de escravos brasileiros parece constituir a única possibilidade de expressão de origens escravas, enquanto a origem escrava local é, por regra, sonegada ou, no mínimo, não lembrada. Onde haja incongruência entre os depoimentos orais e as fontes escritas sobre as origens, não optarei, a priori, por uma veridicidade das fontes escritas em detrimento das fontes orais, e, sim, interpretarei a sua eventual discrepância como mais um elemento que aponta para o caráter problemático e eventualmente secretado da genealogia.[11]

No âmbito de uma concepção da nacionalidade, a origem brasileira e “negra” pode funcionar como uma reelaboração que confere familiaridade à origem estrangeira. Ser descendente de um “negro brasileiro” é admitir a origem estrangeira, mas preservando certa familiaridade. alteridade e, ao mesmo tempo, de identidade é outorgada a um “negro brasileiro”. Esse ar de família acordado a um avô brasileiro, que é, ao mesmo tempo, negado a antepassados de outras origens, particularmente portuguesa, torna os descendentes mais legitimamente angolanos.

Visando a ultrapassar dicotomias entre fontes escritas e orais, bem como a sua hierarquização em prol das primeiras, essa contribuição se alinha epistemologicamente a recentes estudos sobre a memória, que demonstram como a oposição principal não é aquela entre escrita e oralidade, e, sim, entre a escrita e os sistemas de memória que se apoiam na convergência de elementos orais e imagéticos. Esses estudos apontam para a convergência de oralidade e tratamento das imagens na produção da memória.[12] bastante lacunosa, e de imagens referidas ao passado é o denominador imagéticas funcionam no senso de aumentar a memorabilidade e, por isso, a credibilidade do conto. A credibilidade é, em certa medida, consequência da memória das imagens nele mobilizadas.[13]

Em alguns desses contos, ditos complementos imagéticos, concerinstrumento privilegiado para narrar o passado,[14] uma terra além-mar é uma imagem a que os meus interlocutores lançam mão para localizar a origem do próprio antepassado. De uma terra além-mar viria um “negro” que fundaria a família.

As particulares qualidades dos complementos imagéticos, familiares e memoráveis não são a única propriedade que intervém para aumentar a sua credibilidade: um papel essencial nesse sentido é atuado pelo contexto de revelação. O descobrimento da “origem brasileira” do antepassado acontece na intimidade de “conversas de casa”, em que a palavra dos mais velhos é recebida como verdade e, como tal, reproduzida e transmitida. O ato de crer não é relativo ao conteúdo proposicional enunciador da proposição. Tratando-se de parentes mais velhos, muitas vezes já falecidos, a legitimidade da sua posição de enunciadores de do enunciado é consequência da sua legitimidade de enunciadores.[15]

A revelação da origem brasileira de um antepassado pode acontecer em outros contextos caracterizados por uma particular ritualização do ato de contar e de reproduzir conhecimento genealógico. Esse é, por exemplo, o caso dos óbitos,[16] que, em um dos casos apresentados, é o contexto de descobrimento da origem brasileira.

Um terceiro tipo de contexto que pode veicular o conhecimento da origem brasileira do antepassado ou credenciá-lo, se essa já é conhecida, são práticas rituais terapêuticas que, pela indução da possessão, visam à criação de imagens pragmáticas dos ancestrais. Esses personagens, prag-

A inscrição no imaginário religioso local é a terceira perspectiva pela qual esses contos genealógicos adquirem interesse. A noção de “retorno” de uma terra além do mar e da escravidão parece inscrever-se no simbolismo ritual local.

verossimilhança das imagens associadas e da sua poderosa memorabilidade, como no caso das imagens rituais, que consolida a crença da origem brasileira. Esses processos de saturação da informação parcial é o funcionamento próprio da imaginação enquanto propriedade da memória.

Os meus interlocutores que se apresentaram como netos ou bisnetos de brasileiros são pessoas entre os 50 e os 80 anos de idade. O contexto em que eles me revelaram a informação foram longas conversas sobre o tema genealógico. O meu foco de pesquisa nas formas pragmáticas de memórias da escravatura não era explicitado, não por ser omisso, formato de entrevistas. Eram conversas espontâneas das quais participei

Esses avôs brasileiros são lembrados pelos netos e bisnetos como negros ou mulatos. Em alguns casos, a origem brasileira é justamente encarnado mais claro, um cabelo menos “rijo”) que se afastam de um fenótipo puramente africano.

Por meio de alguns simples cálculos, pode-se concluir que eles teriam chegado a Angola na última década do século XIX, com a exceção volta de 1870.

A abolição da escravidão, que, no Brasil, data de 1888, já tinha sido proclamada nas colônias portuguesas com decretos de 1854 e 1869.[17] No entanto, os mesmos decretos que proclamavam a abolição contemplavam cláusulas que instituíam a prolongação, de fato, da dependência aos doa escravidão propriamente dita foi substituída pelo contrato, ao qual a tornam todo africano considerado “gentio”, ou seja, não alfabetizado e cristianizado, susceptível de ser capturado para o “trabalho voluntário”, constituindo, de fato, uma generalização da escravidão.[18]

Nesse quadro, inscreve-se a deportação de muitos angolanos para São Tomé. Esse maciço deslocamento forçado de angolanos para São Tomé e a sua constrição ao trabalho nos engenhos de café constituiria, de fato, uma prolongação, em pleno século XX, da escravidão transatlântica que supostamente haveria sido abolida um século antes.[19] status jurídico dos avôs dos meus interlocutores — livres, libertos, contratados, escravos ou degredados — é uma questão estritamente ligada tanto à época da sua chegada em Angola quanto à sua real proveniência, que, em alguns casos, poderia ser portuguesa ou são-tomeense.

Se levarmos em conta que os últimos embarques de escravos de Angola para o Brasil datam da década de 1850,[20] regressados ao continente natal. Se esses indivíduos fossem africanos deportados, ainda crianças, para o Brasil, teriam regressado a Angola

A duração da sua vida reprodutiva, que conforme os nossos dados prolongam-se em alguns casos até os anos 40 de 1900, torna altamente improvável, para não dizer impossível, essa hipótese e apoia a ideia que tivessem, de fato, nascido no Brasil e que, em alguma circunstância, tivessem se mudado para Angola na última década de 1800, data que — coincidentemente — segue de pouco a abolição. Tratar-se-ia, então, de trajetórias não de regresso ao continente natal, mas de migração ou de deslocamento

Essas trajetórias não se enquadrariam nas dinâmicas de regresso visadas por historiadores como Monica Lima e Souza[21] e, mais recentemente, Roquinaldo Ferreira,[22] que se concentraram principalmente na análise de documentos de períodos anteriores.[23]

Na sua tese sobre o retorno de libertos à África, Lima e Souza tentou reconstruir trajetórias de regresso do Brasil para Angola, fenômeno a África Ocidental. Os retornos para a costa do Golfo da Guiné, particularmente intensos nas décadas centrais do século XIX, em concomitância com a expulsão coativa de muitos escravos e alforriados africanos identidades locais, que foram objeto de importantes trabalhos de caráter histórico e antropológico.[24] Em muitos casos, esses libertos regressados vez, a esse negócio.

No caso de Angola, a quase ausência de iniciativas coletivas de retorno de libertos provenientes do Brasil e de outros países americanos, como aquelas que se direcionaram à África Ocidental e vice-versa, o caráter preponderantemente individual desses empreendimentos de viagens de retorno estão na base da escassez de documentação histórica. Com a exceção da “volta” do Rio de Janeiro para Cabinda de uma comitiva de “libertos Congo e outros negros” patrocinada, em 1851, pela Embaixada Britânica, que Lima e Souza examina, e do emprego de pardos brasileiros na colonização de Moçamedes (atual cidade do Namibe) a partir de 1840, ainda não foi encontrada documentação que aponte para retornos coletivos do Brasil para a cidade de Luanda.[25] No entanto, durante uma estadia de pesquisa realizada na capital angolana em 1995, a própria autora deparou-se com contos de pessoas que se dizem descendentes de ex-escravos brasileiros. Esses relatos não chegam, porém, a ser integrados na sua tese de doutoramento.

No seu trabalho, fundamentado na análise de documentos que datam de 1830-1870, a autora esclarece repetidamente que nem todos os libertos que empreenderam essas viagens à África são nascidos lá, e poucos são os que se direcionaram para o mesmo porto do qual foram embarcados para as Américas. Os libertos africanos são parte majoritária, mas não absoluta, dos libertos que embarcaram para a África, e, por consequência, nem para todos essa viagem foi propriamente um regresso para o continente natal e, menos ainda, uma volta à terra de origem. O próprio fato de que esses deslocamentos populacionais das Américas do caráter por vezes estranho dessa população vinda das Américas, contribuiu como prova da origem.

Os avôs dos meus interlocutores, mesmo quando são lembrados como escravos, teriam nascido — todos os elementos cronológicos indicam — no Brasil. Não se tratou, assim, de um regresso, mas de uma migração para Angola. A data da sua chegada indica que resolveram deixar o Brasil, ou — como surge em alguns contos — foram trazidos à força para Angola numa época que coincidentemente segue a abolição.

Para muitos angolanos, a narração da própria genealogia passa por uma reconstrução das origens dos seus ascendentes masculinos. Falar da família é narrar de onde vieram os antepassados masculinos, abordagem essa particularmente pertinente no caso de Luanda. Fundada em 1575 pelos portugueses em função de porto negreiro, a cidade caracteriza-se por uma especialização econômica em que todas as suas vertentes (administração colonial, porto comercial, exportação de escravos e, depois da abolição

A descrição da cidade tal que se apresentava no século XVIII é particularmente sugestiva. Luanda

[...] era composta, na maioria, por escravos à espera do embarque e empregados em serviços domésticos e no cultivo das pobres hortas em social encontravam-se os escravos, vindos do interior e aguardando ser que, uma vez enriquecidos, voltavam para a metrópole ou seguiam para o Brasil, colónia com a qual Angola mantinha uma relação de substancial interdependência. Luanda, cidade-porto, era de facto uma interface entre um interior produtor de escravos e um Brasil consumidor.[26]

Se a narração genealógica local prioriza a explicitação da procedência dos antepassados masculinos, é porque, historicamente, a dinâmica de composição da sociedade local aponta para uma relevante sistemática de circulação dos homens, em oposição à permanência local das mulheres.[27]

Assim, na concepção local do parentesco, é o homem que aporta a identidade. É o homem que traz aquela peculiaridade, aquele quid local é “o homem que traz a geração”.

— Os homens vêm de fora e estão a fazer a nação. É o homem que traz a geração. O homem que trabalha tira daí e mandam aí. O que traz a família é o homem. A família vem de longe! Onde o homem passa deixa a geração, é igual pássaro (Tia Idalina).

Se as mulheres tendem a replicar, localmente, uma mesma identidade, cabe aos homens trazer — geralmente de outras paragens — aquele quid de diferença que será transmitido à sua prole. Acaba por ser lembrada, como “raiz da família”, aquela variação, aquela irrupção da diferença na identidade. Assim, um avô masculino é primeiramente lembrado[28] Nem que seja o único entre os ascendentes, o avô estrangeiro é o primeiro a essência que informa a identidade dos descendentes.

Em Luanda, onde o comércio de escravos foi a alavanca de promo- ção econômica e social de uma classe de intermediários locais, é comum ouvir pessoas que se declaram descendentes de donos. Não sem um pouco de orgulho, narram que um antepassado foi “dono de muitos escravos”. Numerosos estudos realizados na África apontam que, em lugares onde o comércio negreiro foi fonte de riqueza e prestígio, esse não é intrinsecamente reprovado.[29] Por essa razão, quando iniciativas exógenas de dos perpetradores, estas não chegam a interceptar a sensibilidade local.[30]

De maneira geral, nos contextos africanos marcados pela escravidão, o estigma desse passado pesa muito mais sobre os descendentes de escravos que sobre os descendentes dos donos.[31] O peso desse estigma[32]

Sob esse aspecto, Luanda não constitui uma excepção quando comparada com outros contextos africanos. Luanda” referem-se a famílias importantes, às vezes conotadas com o adjectivo, densamente problemático, de assimiladas.[33] Trata-se de famílias de sobrenome português ou de sobrenome holandês (descendentes dos holandeses que conquistaram a cidade em meados do século XVII),[34] cuja progressão social foi resultante do comércio esclavagista.

Essas famílias “tradicionais”, de origem africana ou afro-euro- que foram pontos avançados para a penetração portuguesa ao interior.[35] Outros fundadores de importantes famílias luandenses provêm do Brasil. Esses segundos constituem um embrião daquela que Isabel de Castro oportunidades comerciais contingentes, entre os dois lados.[36]

Ter um sobrenome de uma “família tradicional” é razão de orgulho, não é, no entanto, garantia de nobreza. O mecanismo do apadrinhamento católico, que propagava, eventualmente, entre os escravos, os criados e os interna aos portadores do mesmo sobrenome. Um segredo genealógico interno à família agencia o conhecimento do estatuto dos fundadores - origem é objeto de um pacto do silêncio. Essa origem subalterna só é levantada como um estigma no âmbito, por exemplo, de uma tentativa de descrédito político ou de uma negociação, como, por exemplo, num arranjo matrimonial.[37]

Essa projecção no passado da consciência de classe não se limita aos herdeiros da burguesia comercial urbana. Em Luanda, conviviam, lado a lado, a escravidão comercial, em função da demanda atlântica, e modalidades locais de dependência pessoal em função da produção. O fato de se mostrar mais de bom grado, dispostos a se declarar descendentes de donos que descendentes de escravos, não se limita aos herdeiros, legítimos ou dúbios da burguesia comercial.

Como um homem, tripulante, neto de um pescador me explicou:

— ... havia pescadores que tinham redes e outros que não tinham. Esses trabalhavam para outros, contratados, com salário. Ou, no tempo mais antigo, só lhe davam um quarto para dormir e comida, até que não casasse, aí o patrão ajudava. Havia os mais fortes e os mais fracos. Nós estávamos da parte dos mais fortes. Meu avô era rico, tinha um quintalão de gente trabalhando para ele.

A conceção local da escravatura refere-se, então, a uma série subalternidade econômica, de nascença ilegítima, etc.

Ser descendente de escravos não é algo que se diga. Mas, facilmente, é algo que se diz de outro com intento de descrédito dele.

Nesse contexto, a declaração de uma origem brasileira e escrava é algo admiravelmente diferente. Os que se dizem descendentes de brasileiros foram os únicos, entre os meus interlocutores, que declararam ser descendentes de escravos. Por que reivindicar um negro brasileiro na genealogia? A origem estrangeira, no nosso caso, brasileira, parece se associar a um enobrecimento da origem escrava, que a distingue sensivelmente da origem escrava local. A evocação da origem brasileira de um avô negro que permite ao sujeito narrador projetar-se numa história de escravatura no português correto, por meio da uma narração genealógica, adquire um tom quase épico.

Os relatos genealógicos que seguem foram levantados, em sua maioria, na Ilha de Luanda. Os últimos três foram coletados na cidade. Essa contextualização é relevante, na medida em que a Ilha, tanto no - terísticas sociológicas e culturais. Apesar da diferença dos dois contextos, os contos que alegam a origem brasileira foram atestados em ambos.

Diferentemente da cidade de Luanda, na Ilha, a fala do quimbundo[38] Os ilhéus se caracterizam pelo estilo de vida e pela especialização econômica baseada nas atividades ligadas ao mar. A componente feminina é tradicionalmente constituída por peixeiras e lavadeiras, e a população masculina, por pescadores e navegantes.

Outra peculiaridade da composição social da Ilha, de onde vêm os primeiros dos relatos genealógicos que seguem, reside no fato de que muitos ilhéus têm avôs masculinos procedentes de outro lugar. Os avôs ou, em alguns casos, os pais de muitos dos meus interlocutores são originários das N’zeto, Soyo, Cabinda. Alistados como tripulantes na Marinha portuguesa na primeira metade do século XX, se instalaram na Ilha de Luanda, onde se juntaram com mulheres autóctones e deixaram descendentes.

Essa história populacional produz uma identidade muito especíreconhecida uma forte componente genealógica do norte.

Depois da independência, em 1975, muitos deles foram incorporados na Marinha angolana ou na companhia civil de navegação. Graças ao serviço nos navios de longo curso, que traziam para Luanda mercadorias e experiências de mundos distantes, os moradores da Ilha acumularam uma familiaridade com o mundo afora.

Essa componente étnica estrangeira, somada à bagagem de cosde vida dos pescadores, de tipo mais local e caracterizado por costumes mais tradicionais.

Na sede de um grupo de dança da Ilha de Luanda, Nexi, a percussionista do grupo, me explica o vínculo de parentesco que a une com Dona Ana, que está sentada ao seu lado. Uma terceira mulher presente, talvez despertada pelo meu sotaque brasileiro, resolve, por sua vez, me contar algo sobre a sua família. Ela se chama Célia. O lado paterno da sua família é de origem portuguesa, e o materno é de origem brasileira. Mais particularmente, o avô materno era brasileiro. É por causa dessa mistura, esclarece, que ela “não tem cabelo ruim”.

A minha reação de atenção a motiva a ir adiante.

— O avô era um negro brasileiro [50] que veio aqui preso, trabalhando num navio. Sim, daqueles degredados. Veio mais um irmão dele, preso também [51]. Veio parar aqui e arranjou a minha avó. A minha avó foi a última de quatro mulheres que ele teve aqui. Morreu quando a minha mãe, Maria João, que era a caçula, que hoje teria 68 anos e, tinha 12 anos à época”.

— Como se chamava o avô?

— João.

— chegamos à conclusão —, teria mais do que cem anos.

Esse relato sobre um negro brasileiro que trabalhava preso num sugestivo para a minha imaginação. Pensei em Edmar Morel e a sua inigualável reconstrução histórica da Revolta da Chibata, quando, em 1910, os marinheiros negros da Marinha do Brasil, liderados por João Candido, ameaçaram bombardear o Rio de Janeiro, se não se pusesse militares brasileiros. Os marinheiros, recrutados à força entre as camadas pobres negras e mestiças, sobrecarregados de trabalho pesado, mal alimentados e ainda sujeitos à chibata, foram os protagonistas da última revolução antiescravagista no Brasil.[39]

O conto de Célia era fascinador, mas eu não conseguia enquadrá-lo historicamente. Por que e como um negro brasileiro teria sido degredado para Angola no começo do século XX? Teria ele encontrado, justamente em Angola, uma via de fuga? Um abrigo?

concretude histórica à sua aventurosa existência, segundo Célia, ele

— ... morreu no mar. Ficou preso na hélice, e os colegas não conseguiram salvá-lo, nem resgatar o corpo.

conversar com Célia, na esperança de aprofundar a história do avô, para enquadrar a vida dele num fenômeno histórico mais abrangente. Ela repete lacônica:

— Chegou como escravo no navio.

e se considera satisfeito por ter um trabalho bem remunerado que não lhe cobra demasiado esforço. O jovem conhece a história do bisavô e se orgulha dessa origem:

— Ele era chefe de máquinas, mas naqueles tempos os navios eram diferentes.[40]

Pergunto a Célia se tem conhecimento de outras famílias de descendentes de brasileiros na Ilha. Não que ela saiba. Só há os primos, descendentes do irmão do avô [51], que moram numa área um pouco distante.



Célia (48) conta a origem brasileira do avô (50).

amigo, Feliciano, com cerca de cinquenta anos, também eram brasileiros:

— A avó sempre dizia que os avôs são brasileiros. O avô era tripulante de navio, mas eu nunca aprofundei muito este lado do parentesco.



Feliciano (27) conta a origem brasileira do(s) bisavô(s) (225 e (?) 226).

A questão da escravidão transatlântica e, por consequência, da circulação de pessoas e elementos culturais não chega a ser um assunto de conversa particularmente motivador para os meus interlocutores. Certo dia, tive a sorte de estar em presença de alguns dos mais antigos membros de um histórico grupo de dança tradicional. Por causa do meu excesso de pontualidade ao ensaio, me encontro projetada num pequeno cenáculo masculino de mais velhos que se reuniram mais cedo no local do ensaio para conviver. Envergonhada pelo silêncio que se estabelece com a minha chegada, resolvo perguntar se eles teriam algo a me contar sobre escravidão. Essa pergunta parece logo bem desajeitada e seguem

— Bom, isso os mais velhos que podem dizer.

Se só os mais velhos teriam algo a dizer sobre isso e esses mais

Se só mais velhos teriam algo a dizer sobre isso e esses mais escravidão era algo sobre o qual ninguém estava autorizado a falar. Se, era legitimado para falar sobre o assunto.

Por meio dessa resposta, um embaraçoso silêncio foi substituído pela assunção de um (rumoroso) silêncio cultural sobre o assunto da escravidão.

Depois de mais alguns segundos de silêncio. Ti Betinho, sentado ao lado do Ti Sabu, acrescenta:

o sobrinho não tem e o tio tem, o sobrinho é obrigado a trabalhar pra

Tripulante da Marinha portuguesa, antes da independência, e da Marinha civil angolana, depois, Ti Betinho, de cerca de 75 anos, tem muito para contar. Conta-me que tinha um avô de Cabinda e que isso é muito comum na Ilha, tanto que o pai do Ti Sabu, ao seu lado, também vinha de lá. Graças ao trabalho nos navios de longo curso, Ti Betinho viajou bastante. Devido ao interesse que manifestei pela questão da escravatura, ele conta:

— É no Brasil que tem muitos desterrados,[41] descendentes de angolanos. - varam para conhecer um bairro cujos moradores se dizem descentes de angolanos.

A minha surpresa aumenta quando Tia Fefa (21) e Tia América (22), de 74 e 65 anos, respectivamente, com as quais eu costumo me entreter, durante uma das nossas frequentes e longas conversas genealógicas, me revelam que o avô de América era brasileiro. Fefa conhece essa história porque é “cunhada” de América, e casou com o primo dela, hoje falecido.[42]

Casando “na casa de América”, ou, mais exatamente, na casa dos avôs de América, Fefa tomou conhecimento da origem brasileira do avô do esposo. América me conta, não sem certo orgulho:

— O meu avô, pai do meu pai, era um negro brasileiro.

de América ser prima de Ti Betinho. Logo, o avô brasileiro de América (FF), seria também avô de Ti Betinho. Surpreendia-me o fato de que Ti Betinho, com quem poucos dias antes conversei longamente sobre o Brasil, não tenha mencionado a origem do avô.

Ao longo de uma segunda conversa, América acrescenta mais detalhe ao conto.

— Eu conheci! Vivi com ele! Ele era um negro bonito, ele morreu que eu tinha 14 anos. Eu não conheço bem a história porque a minha avó, esposa dele, faleceu quando eu tinha 11 anos. Quem poderia contar melhor seriam as minhas tias, mas já morreram. Só uma, a caçula, de mais de 90 anos, ainda está viva, mas já não está mais em condições de falar. Eu só sei que os trouxeram aqui com uma fumbeira.

— O que é uma fumbeira?

— É uma canoa. Somos todos escravos. Vieram na fumbeira.

—E como se chamava?

— D.

“D.” é o sobrenome, português, que ela também leva. Esse sobrenome, que teria sido trazido pelo avô brasileiro, diferencia o nome completo de América e dos seus primos do nome da maior parte dos ilhéus. Para a grande parte deles, o nome completo é formado pelo nome e por um sobrenome patronímico procedente do pai, ou pelo nome, um sobrenome patronímico procedente da mãe (último nome da mãe (MF)) e um sobrenome patronímico procedente do pai.[43]

Nesse quadro generalizado de complementos nominais que tendem a não ultrapassar a segunda geração, o caso do sobrenome de América representa uma exceção. O seu sobrenome marcaria uma origem paterna estrangeira. Além disso, apontaria para um hábito, próprio à sua família e nada generalizado, de transmitir o sobrenome como uma componente

Em sucessivas conversas, América acrescenta alguns pormenores da história do avô. Depois de chegar,

— ... juntou-se com a avó que era de Praia do Forte e foram morar na Ilha vivendo da pesca.

— Como era a casa deles?

— Em loando[44] o teto em ramas.

— Sabe algo mais como ele veio?

— Não. Uma tia que faleceu sabia como tinha chegado. Ele não contava para os netos.



Dinâmica da memória e da narração. América (22), e Fefa (21), a esposa do primo de América, contam a origem do avô de América.

A história da origem brasileira e “escrava” do avô que América Betinho, o primo dela, quando nos deparamos numa conversa que tinha mais velho do pai de América, desconhecer a origem do avô? era uma raridade. A caducidade do complemento nominal patronímico expressaria precisamente esse rápido esquecimento, quase programado, dos antepassados. Mas esse não podia ser o caso do Ti Betinho por várias geração dos avôs, tanto que ele próprio me contou que o outro avô vinha de Cabinda. Ademais, ele próprio tinha me dito que o seu sobrenome, “D.”, juntamente a “A.”[45] eram os sobrenomes mais difusos na Ilha, dado que apontaria para certa curiosidade genealógica da sua parte.

Se os pais de Ti Betinho e América não fugiam à dinâmica covelho do pai de América podia não saber que o pai do seu pai era brasileiro? Como interpretar essa discrepância no relato dos dois primos? Uma prima mais nova teria aprendido na casa dos avôs, junto das suas tratava-se mais simplesmente de uma indisponibilidade da parte do Ti fosse devida à presença de outras pessoas, homens seus contemporâneos ou à minha própria, o que aconteceu foi que, naquela circunstância, o Ti Betinho não achou oportuno revelar a origem brasileira do avô. A diferen- ça de idade, de gênero e a falta de intimidade constituíam, com certeza, pressupostos para que não houvesse partilha desse tipo de informação comigo, embora calhasse no âmbito de uma conversa sobre o Brasil e a circulação forçada de pessoas entre Angola e Brasil.

Numa segunda ocasião, tento novamente tocar no assunto. Dessa vez, Ti Betinho e eu estamos sozinhos.

— Foram muitos desterrados daqui pra lá, uns regressaram, outros já

— E sabe de desterrados brasileiros para cá?

— Eram mais portugueses. Muitos donos de loja portugueses vieram para cá desterrados. Todo país tinha o sítio próprio para mandar desterrado. Brasileiro é mais lá em cima.

— Os D. são de Praia do Forte.

Ele responde à última pergunta quase incomodado pela intrusão. Note-se que a expressão “mais lá em cima”, associada a um gesto da mão, é frequentemente usada pelos ilhéus para indicar a cidade de Luanda. “De Praia do Forte” vinha — segundo a sua prima América — a avó (132), esposa do avô. tão, interpelar sobre a origem do avô, um terceiro primo de América, Ti Fernando. Pescador que não se estica muito em conversas, responde-me Ti Fernando:

— Os mais velhos não explicavam muito... a pessoa mais indicada para falar seria o meu irmão mais velho, de 81 anos, que faleceu o ano passado.

Essa resposta parecia apontar para um conteúdo que necessitasse de uma explicação, que ele, porém, o caçula, não estava na posição genealógica mais apta para fornecer.

A versão prudente de Ti Fernando não resolvia o empate. Se Ti Betinho estivesse certo, e o avô paterno tivesse vindo realmente da Praia do Forte, haveria, da parte da sua prima América, um curioso apego a uma origem estrangeira, brasileira, ainda por cima escrava, imaginada e extrapolada na base de algumas conversas ouvidas em casa, pelas suas tias.

Nessa suposta origem brasileira, América talvez encontrasse uma explicação para o seu peculiar encarnado — seu e dos seus primos —, mais claro que a maioria dos seus vizinhos ilhéus. O avô teria sido um “negro bonito” — como também negro teria sido o avô de Célia —, mas, em ambos os casos, a tez mais clara dos seus descendentes relacionava-se com a origem estrangeira deles. mente de América e constituiria o fulcro imaginal do inteiro relato. Foi por mar, na fumbeira, que o avô teria vindo escravo. Da mesma forma Luanda o avô de Célia. Em ambos os casos, uma história de escravidão ancorava-se à imagem de um barco.

Se, vice-versa, América estivesse certa, necessitaria de uma explicação a versão divergente do seu primo Betinho. Ou América teria não teriam tido acesso, ou Ti Betinho recusava assumir, diante de mim pelo menos, uma real origem escrava e brasileira, porque esta constituiria uma informação sensível. - que, de maneira geral, opera um mecanismo de delega da estocagem da informação genealógica aos mais velhos.

Nesse segundo caso, em seio ao mesmo grupo de primos coexistiriam três atitudes diante da suposta origem ex-escrava e brasileira: o reconhecimento, a declaração (talvez estratégica) de ignorância e a negação. Haveria três modalidades da memória: a narração (22), a delega da narração (82) alguém que seria a pessoa mais legitimada para falar, mas já não pode falar, pois já falecida, e a censura (63).



Dinâmica da narração. Fefa (21) e América (22) revelam, Ti Betinho (63) omite e nega, Ti Fernando (82) declara não ter condições para falar.

O nome de D. de F. (80), avô de América, Ti Betinho e Ti Fernando, encontra-se nos registros paroquiais da Paróquia da Ilha do Cabo. Em minado Coqueiros, em 1902. A criança é “primeira de nome e segunda solteira, peixeira. No ato de batismo, ambos os pais eram residentes e naturais do referido local de Palmeiras (lugar não distante da Praia do Forte). Diferentemente dos padrinhos, ambos pescadores da Ilha, D. de pescador, enquanto a sua esposa — aos olhos da Igreja continuam solteiros, porque, evidentemente, não teriam contraído um casamento católico — deu-se ao negócio de quitandeira, o que revela uma progressão social. O apontando a procedência e a residência do casal: Praia das Palmeiras.

Como interpretar essa discordância das fontes com relação à naturalidade de D. de F.? Se, realmente, tivesse chegado do Brasil, D. de F. poderia ter alguma razão para não querer revelar a sua origem. Ou, simplesmente, o padre poderia ter perguntado a procedência de forma tal, que D. de F. não teve oportunidade, nem razão, para declarar uma procedência diferente daquela da sua mulher, de Praia do Forte.

Se, ao contrário, a documentação paroquial e Ti Betinho estivessem certos, e D. de F. fosse realmente de Praia do Forte, de onde surgiria a história da chegada na fumbeira?

D. de F. poderia ter chegado do Brasil — ou de Portugal, como o historiador luandense Filipe Mascarenhas sugeriu-me (“em Luanda a certo momento todo mundo queria ser brasileiro. Dizem que vieram do Brasil para não dizer que vieram de Portugal”) — em circunstâncias que não queria divulgar (degredo? “Repatriamento” ou migração forçada de ex-escravos do Brasil depois da abolição?). Embora letrado, dedica-se à pesca. Se junta com uma mulher de Praia do Forte. De Palmeiras, ou da Praia do Forte, se muda para a Ilha, onde constrói uma casa em loando, como aquelas de todos os outros pescadores naquela época. Começa a sua vida reprodutiva por volta mais de 90 anos. Podemos, então, supor que ele tenha chegado, já adulto, no de 1895. Poderia então ter nascido em 1875.

Na praia, Ti José, pescador de 54 anos, está cozendo sua rede. Explica-me que na Ilha há

— ... muito descendente de mussurongo, a malta da parte dos baconngos. Muitos aqui tinham avôs do Soyo, de Cabinda.

Não é o caso dele, que se considera

— ... mesmo da Ilha. E do Brasil.

Essa declaração, talvez estimulada pelo meu sotaque brasileiro, desperta logo minha atenção.

— O bisavô era brasileiro, era um escravo deportado aqui. Porque brasileiro vendia escravo! Havia troca de escravo do Brasil pra cá e de cá para o Brasil.

Pergunto se sabe algo mais do avô.

— Uma vez instalado aqui, fazia barcos. Quando barco já não dava rendimento, virou pescador

— Como se chamava?

— Feliciano [73]. apagou um incêndio com um balde, porque era o único que tinha o balde.

— ... Ção [20], uma tia mais velha, que é a caçula do avô Batista [76], [73].

— De que época é o avô Feliciano?

— Dos anos de 1940.



Notei certa incerteza em sua última resposta.

Pergunto a Ti José se é parente de Célia (48), a minha amiga, a primeira a me referir ser neta de um brasileiro, para testar se Feliciano não fosse o irmão de João (73=51?). Ti José não sabe dizer.

— Às vezes as pessoas gostam de dizer que são descendentes de brasileiros porque não gostam de dizer que são descendentes de mussurongos. Porque, quando os mussurongos vieram,[46] na Ilha já havia escravo brasileiro alforriado!

— Então tem muito descendente de alforriado brasileiro?

— Somos muitos descendentes de brasileiros! Alguns morreram sem por exemplo, também são brasileiros.

Na esperança de obter mais alguma informação sobre o Velho Feliciano, resolvo então ir falar com Tia Ção.

— Era brasileiro?

— Não.

— Era de onde, então?

— Lá do Marçal.[47]



Tia Ção (20) desconhece a origem brasileira e escrava do bisavô (73).

Mas Tia Ção refere que há uma prima que conhece uma história parecida. E é com ela que eu vou me encontrar.

Vó Dona Branca, de cerca de 75 anos, conta que o seu bisavô é do Brasil.

— S. V.[48] era mulato, por isso na família é difícil encontrar carapinha rija. Ele tinha quatro canoas de pesca e cinco rapazes que trabalhavam [228 (?)].[49] Era nturi kinganga, viúvo grande, homem de posse. Casou do unde[50] com uma V.[51] do Bengo, Anita. Mas depois se amigou com várias outras mulheres, entre as quais a minha bisavó, Tereza. A minha avó e a avó da Ção administração da cidade.

Espantada pelo insólito conhecimento genealógico, pergunto como tomou conhecimento dessa história.

— Nos óbitos.[52] O bisavô era escravo dos holandeses. Na realidade os pretos V. são escravos dos V., porque os holandeses davam o nome para os escravos deles, enquanto os portugueses não davam. Do fato de dizer

gistros de batismo da paróquia do Cabo. Em 1905, é batizada uma sua neta, nascida no ano anterior de Francisca Antonia Miguel V. (114?), um soldado da Marinha.

Um Manuel Francisco, agora com sobrenome dos S. V., encontrase no registro de batismo de 1910, dessa vez na qualidade de pai de duas batismo de 1915 como avô de duas crianças, respectivamente décima e - cisca L. M. Francisco dos S. V. e Francisco Manuel dos S. V. são a mesma pessoa. A prática, comum em seio às famílias angolanas até os dias de hoje, de dos avôs para os netos — xará é o termo corrente utilizado para designar os homônimos e se dirigir aos mesmos —, autoriza a pensar que Manuel Francisco e Francisco Manuel possam também não ser a mesma pessoa, e longevidade reprodutiva que a bisneta atribui ao bisavô poderiam igualmente suportar a hipótese de que Manuel Francisco V., Manuel Francisco dos S. V. e Francisco Manuel dos S. V. sejam realmente uma mesma pessoa, o “viúvo grande” lembrado pela bisneta. Uma última hipótese, a não descartar, é que Vó Dona Branca tenha alimentado o seu indubitável conhecimento genealógico junto ao sobrinho, socialmente bem posicionado, que, talvez desejoso de conhecer a própria origem, foi investigá-la junto às mesmas fontes que eu mesma consultei. A memória genealógica não se alimentaria, então, da memória oral dos mais velhos e, mencionada, o exame das datas corroboraria a plausibilidade de que as três pessoas atestadas nos registros sejam, na realidade, a mesma pessoa.



Vó Dona Branca (112) conta a origem brasileira e escrava do bisavô (115).



Vó Dona Branca (112) conta a origem brasileira comum a si e a Ção (20).



Vó Dona Branca (112) conta a origem brasileira comum a si e a Ção (20). Ção (20) delega a 112 o conhecimento dessa história. Ti José (72) conta a origem brasileira comum a si e a Ção (20).

Manuel Francisco V., o bisavô de Vó Dona Branca, em 1905, batiza que ele poderia ter nascido por volta de 1860.

Nada impede de pensar que seja o mesmo Manuel Francisco dos dele e de Francisca L. M. Francisco Manuel dos S. V. poderia ter, então, cerca de 55 anos de idade.

A plausibilidade dessas coincidências autoriza a pensar que se trata realmente de uma mesma pessoa, que poderia ter nascido por volta de 1860. Essa suposta data de nascimento torna plausível a parte do conto “natural e residente da Ilha”.

De onde teria origem, então, a noção da origem brasileira e forra, além da plausibilidade cronológica, teria fundamento?

O sobrenome do bisavô da Vó Dona Branca, S. V., resulta da composição de dois sobrenomes, que, embora de origem diferente — holandesa o primeiro e luso-brasileira o segundo —, são profundamente enraizados na cidade de Luanda, são atestados em Angola desde os primórdios da colonização. Segundo uma expressão tipicamente luandense, são sobrenomes marcadores de “famílias tradicionais” ou “famílias antigas”, isto é, próprios daquela burguesia comercial transatlântica que, desde os

S. é um sobrenome típico dessa burguesia comercial que fundamentou a sua riqueza na circulação e na movimentação de gente e capital Angola remonta ao século XVII.[53] Branca faz um achatamento histórico de quase quatro séculos. Os holandeses ocuparam Luanda durante sete anos, entre 1641 e 1648 — quando foram expulsos com a intervenção decisiva de tropas vindas do Brasil, capitaneadas por Salvador Correia de Sá e Benevides —, e remonta à época a introdução do apelido V. em Angola.

Ser um V. “de quintal”, ou seja, nascido de mãe escrava, não seria, talvez, uma razão de orgulho, nem, talvez, motivo de lembrança enobrecer a origem escrava e, ao mesmo tempo, para torná-la memorável e interessante para contar.

Na reconstrução de Vó Dona Branca, S. V. seria um escravo retorfontes paroquiais consultadas não lhe acordem a origem brasileira que a bisneta lhe atribui, haveria, contudo, uma plausibilidade histórica do conto de Vó Dona Branca. Nascido por volta de 1865 (no Brasil?), S. V. deportados para o Brasil.

Por vários meses não consigo falar com Célia, a minha amiga que fora a primeira a revelar a origem brasileira do avô. Ela anda muito ocupada, não pode me atender e recomenda, para saber bem dessa história, falar com uma tia dela. A maneira mais viável para isso seria Fefa e América me apresentarem a ela, embora essa não fosse a melhor boas. Tendo em vista que elas não poderiam intermediar o encontro, tratando-se de famílias vizinhas, poderiam elas próprias tentar responder aos meus questionamentos. A minha questão é ouvir mais uma versão sobre a vinda do avô de Célia, que teria sido degredado do Brasil para - xidade. Começa um incessante brainstorming genealógico em voz alta que não consigo acompanhar e que se prolonga demoradamente. Zita, uma amiga delas, que acaba de chegar, e que foi nora na casa da tia de Célia, é interpelada também por Fefa e América:

— Você sabia de negros brasileiros em casa?

— Naquela casa eu só mantive, não sabia dessas conversas.

— E ela [Célia] seria descendente de brasileiro?! A sua amiga lhe mentiu!

— Ela me contou que o avô teria vindo do Brasil escravo, com um irmão e juntou-se aqui com quatro mulheres.

— É Padre Matheus! Que não é brasileiro, é são tomense!

Tia Fefa exclama indignada:

— Essa criança pequena, tá vendo o que contam? Ou então lhe contaram em casa!

A origem brasileira do avô de Célia, assim como a sua morte no mar, seria, assim, uma história, talvez armada na família para secretar a verdadeira origem.

Essa revelação provocava-me uma dúvida angustiante que pode ria, desde o começo, ter-me colocado numa pista de investigação sem fundamento. No entanto, o engano genealógico de que a própria Célia poderia ter sido vítima, no seio da sua própria família, e que ela teria A própria América, que acabava de negar a origem brasileira do avô de Célia, se diz neta de um brasileiro, embora as fontes paroquiais não da Célia? Por que inventar logo uma origem brasileira para um avô cuja

Embora em todas as histórias documentadas estivessem presentes elementos indubitavelmente fantasiosos, ou historicamente incongruentes, a sua recorrência deixava-me crer que, por volta de 1900, realmente havia na Ilha descendentes de escravos alforriados que tinham regressado ou tinham sido deportados do Brasil. A imaginação das pessoas se agarde agenciamento do conhecimento da mesma entre os descendentes, quando fosse real.

A origem escrava era um segredo ou a origem brasileira era uma razão de orgulho? E, ao mesmo tempo, era a presença de alforriados brasileiros uma história de domínio público que seria apropriada, particularizada, para preencher espaços mal conhecidos ou incômodos da genealogia ascendente?

A reivindicação da origem brasileira não parecia, no entanto, aliinterroguei pessoas mais velhas a respeito da existência de descendentes de brasileiros na Ilha, elas declararam não ter conhecimento disso. Em sua descendentes de brasileiros pareciam desconhecer a existência de histórias noras participam mais do que os homens, ainda que descendentes, acumulando um conhecimento genealógico superior ao destes últimos. Os óbitos, momento preponderantemente feminino em que é proibido calar e é obrigatório falar, é outro âmbito de proliferação de conhecimento genealógico.

Incomodada pela contradição entre a repetição dos contos e a sisinterpelar o historiador luandense Filipe Mascarenhas, especialista em genealogia e autor de um livro sobre as mais antigas famílias de Ícolo e Bengo.[54] Ao ouvir os relatos por mim recolhidos a respeito da presença de degredados negros procedentes do Brasil supostamente às vésperas de 1900, Mascarenhas manifesta perplexidade. Existem famílias fundadas por indivíduos que vieram do Brasil no século XVIII. Trata-se, então, de uma história bem mais antiga, história essa já conhecida e documentada. O meu interlocutor não tem conhecimento de alforriados ou degredados negros procedentes do Brasil às vésperas de 1900. Ainda assim, procura saber mais pormenores desses relatos e, em particular, os sobrenomes. Com relação ao sobrenome de América, na Ilha há dois D., e ambos sobrenome do bisavô de Vó Dona Branca, pode até ser brasileiro. Já o segundo, V., é mesmo de Luanda. Para defender a verossimilhança do ou do neto de escravos angolanos deportados para o Brasil que teriam voltado. “Onde é que esta senhora teria ouvido esta história?”. “Nos óbitos!”. Mascarenhas acolhe a minha resposta com um sorriso: “Todos acreditam ser descendentes de brasileiros. A certo momento, em Luanda, tinha uma febre do Brasil. Na realidade, são portugueses”.

Três histórias “de lá de cima” (da cidade)

Contos de pessoas descendentes de brasileiros não são fenômenos ocorridos apenas na Ilha, mas atestam-se igualmente na cidade de Luanda. Diferentemente do caso da Ilha, cujos mencionados antepassados teriam voltado para a pesca, nos casos que documentei na cidade, a origem brasileira inscreve-se num meio comercial, que pode associar-se a trajetórias de progressão social.

Apesar da reação um tanto perplexa diante dos meus relatos concernentes à origem brasileira dos meus interlocutores da Ilha, foi o próprio Mascarenhas que teria revelado o Eng. Rogério — uma personalidade importante da cidade — detalhes importantes do seu avô, entre os quais, o fato de que ele teria vindo do Brasil, provavelmente logo na última década do século XIX.

Depois de cumprir papéis importantes na vida pública, hoje, com 80 anos, o Eng. Rogério dedica-se a empreendimentos de vocação social e de apoio de iniciativas culturais. Ele me conta:

— O avô era brasileiro. Eu não conheci. Conheci a avó que faleceu quando eu tinha 25 anos. Quando eu fui para Bahia, no aeroporto vi uma senhora já idosa, em cadeira de roda, e vi no encarnado dela o da minha avó. Porque os pais dela — o pai, a mãe não sei — também eram brasileiros. O meu pai, que foi entre os fundadores do MPLA, sempre dizia duas coisas: “não há liberdade sem sangue” e “o grito do Ipiranga”. Falava em independência com os amigos, que podiam muito bem ser também descendentes de brasileiros,[55] e quando dizia “não há liberdade sem sangue” eu me assustava. Só com setenta anos, em Cuba, descobri quem era o meu avô. Foi então que um amigo historiador me contou que o meu avô, que era dono de loja, foi preso em Catete por ter liderado uma revolta antiportuguesa em 1920. O avô na altura devia ter já 50 anos, porque o meu pai, que é de 1892, já trabalhava nos caminhos de ferro.

Completa ainda Rogério:

— O meu pai nunca me disse que o avô era brasileiro, mas os familiares diziam. Todo mundo sabia. Os nossos pais eram da maneira antiga, não.

um brasileiro letrado, impregnado de ideais liberais, que, talvez, após alcançada a liberdade depois da escravidão, decide, logo por volta de 1890, prosseguir a sua vida em Angola, talvez a terra de origem dos seus antepassados, e, uma vez enraizado nessa segunda pátria, engaja-se na sua defesa contra a agressão colonialista. Logo pergunto, se ouviu falar que tinha sido escravo.

— Não. Nunca ouvi dizer nada disso. Eu digo que sou descendente de escravo porque dizer isso vai nos libertar de certos complexos. Uma vez, no pedido de uma irmã de Agostinho Neto, a família do noivo dizia que a família da noiva tinha origens escravas. A minha família sempre foi muito politizada e eu sou contra isso.

O segundo relato de origens familiares brasileiras que documentei na cidade é contado por Tia Idalina, de 80 anos. O avô, pai da mãe, P. dos S. V. era brasileiro — conta-me. Ela chegou a conhecê-lo, porque faleceu quando ela tinha cerca de 12 anos, por volta de 1945. À minha pergunta: se tinha origem escrava, Tia Idalina desmente:

— Na parte da mãe, nem da parte do pai nunca disseram que foram

O óbito do avô brasileiro, de que Tia Idalina, ainda menina, participou, realizou-se na Igreja do Paço, o que deixa pensar que se tratasse de uma pessoa bastante importante. Nada de escravo, então, muito pelo contrário. Ela explica-me:

— Eles [os P. dos S. V.] que compravam escravos!

Em outra situação, é uma amiga de 48 anos, Margarida (232) que me revela a origem brasileira do bisavô. Diferentemente dos outros casos documentados na cidade, e ao instar dos casos documentados na Ilha, o bisavô teria vindo do Brasil na qualidade de “escravo”:

— O meu bisavô veio escravo do Brasil!

A avó de Margarida morreu quando ela tinha 13 anos e foi junto dos tios e das tias que ela soube que o bisavô era brasileiro. O bisavô brasileiro — explica-me — é também o bisavô de Jacó, uma personaliprimos como irmãos.

— Ele [o bisavô escravo brasileiro] que deu origem à família P. S.

O bisavô de Margarida, lembrado como fundador da família, teria, assim, inaugurado uma trajetória transgeracional de ascensão social. Ele teria vindo do Brasil “escravo”, e o bisneto ocuparia hoje um cargo institucional importante.



a origem brasileira do avô paterno (215) e do bisavô (FMF) (219).



Tia Idalina (198) refere-se ao avô brasileiro (206), falecido quando ela tinha 12 anos.



Margarida (232) narra a origem brasileira e escrava do bisavô (239).

O retorno da escravatura. Da narração genealógica à imaginação ritual

Os contos parecem resultar de uma apropriação genealógica de uma consciência histórica da escravidão e da relação com as Américas. Outros aspectos desses relatos apontam, porém, para uma dimensão mais propriamente cosmológica da noção de regresso. A ideia da volta de uma terra além-mar estaria inscrita, antes, na memória coletiva, na cosmologia. - cas locais — em que a ideia da volta do mar tem uma relevância crucial origem brasileira se integraria, assim, com um complexo de poderosas imagens cosmológicas e rituais que viriam consolidar a crença da sua veridicidade.

A temporalidade geracional em que se situa a vinda do Brasil espirituais, nomeadamente a transmissão dos espíritos ancestrais.

Os espíritos que se encarnam no xinguilamento — prática ritual e terapêutica baseada na possessão — representam, de uma maneira impressionante, a “raiz da família”. Esta raiz se expressa nas caractepelas preferências alimentares. e a imaginação do antepassado, no nosso caso, brasileiro. Esses produtos imagéticos e performativos do ritual são associados aos relatos genealó- gicos, funcionando como uma legitimação.

Sabendo do meu interesse pelo xinguilamento, Tia América (22) me conta que sua mãe tinha calundus. Os calundus, termo aportuguesado do quimbundo kalundu (pl. ilundu), representam almas de pessoas que viveram em época remota.

Conforme explicado pelo folclorista angolano Oscar Ribas, a quem devemos os maiores trabalhos sobre a ontologia e as práticas rituais dos povos de fala quimbundo da região de Luanda, os calundus se distinguem dos “santos.[56] Tanto os primeiros como os segundos representam subjetividades humanas. No entanto, diferenças pragmáticas — a modalidade de transmissão, de manifestação e de tratamento ritual — fazem de santos e calundus entes ontologicamente distintos.

Os calundus se manifestam numa possessão brava, enquanto os santos, quando se manifestam pela possessão, o fazem de maneira mais pousada. O tratamento ritual é mais trabalhoso para os calundus, do que para os santos, porque para o tratamento dos primeiros necessita-se do envolvimento de um maior número de pessoas, nomeadamente, de várias classes de parentesco.

O diferente grau de complexidade que distingue o tratamento dos santos do tratamento dos calundus deriva das respectivas modalidades de aproximação aos humanos. O antropólogo angolano Ruy Duarte de Carvalho parafraseia uma expressão popular que me foi referida várias vezes: “os calundus vêm ‘de muito longe’, da memória das famílias”. Os santos “vêm do pai”, que os transmite através da mundona — componente essas não possam, por sua vez, retransmiti-los à sua descendência, que os recebe do respectivo pai.[57] consultar um pai ou uma mãe de umbanda, a medicina tradicional. A adido espírito em questão. Entretanto, são os rituais de tratamento, isto é, de adoção dos espíritos, que permitem a sua plena caracterização. As idiossincrasias alimentares caracterizam as entidades, expressando e representando a sua origem. Se, por um lado, os calundus preferem comidas africanas, por outro, os santos, que frequentemente representam indivíduos que foram de como churrasco e doces. Uma vez capacitados a falar, última etapa do ritual de preparação, os espíritos anunciarão, ao especialista, o ritual que tornou possível a sua expressão e, aos parentes do médium, de onde eles vêm.

Diferentemente da sua mãe, que tinha calundus, o pai de Tia seus irmãos, foi “sentar no loando” — expressão que, literalmente, sigterapêutica de invocação dos espíritos, dito dissakela —, os calundus pegaram no irmão mais velho dele, André (130), o pai do Ti Betinho diferente. O pai de umbanda mandou chamar os pais, ou seja, os avôs de América, D. de F. (80) e B. (132), e disse:

— O espírito dele não é de preto, é brasileiro.

A origem brasileira de D. de F. (80), avô de América, expressarse-ia num sedimento espiritual, num legado que D. de F. teria deixado preto”, mas “brasileiro”. Mas, à luz do contraste entre as fontes acerca da origem brasileira de D. de F. (80), outra hipótese também se apresenta. Teria concorrido essa representação ritual para consolidar a convicção de América e, antes dela, das suas tias da origem brasileira respectivamente do avô e do pai?



Distribuição de heranças espirituais entre os irmãos.

A ideia do retorno de almas provenientes do Brasil encontra-se atestada entre os especialistas de rituais luandenses. Como as outras almas, as almas dos escravos rodeiam e procuram até “simpatizarem”

Em outros contextos africanos fortemente marcados pela escravidão e, particularmente, na sua vertente comercial atlântica, há práticas rituais que lidam com espíritos de escravos. A lógica subjacente pode ser adorcista ou exorcista. No primeiro caso, procura-se a aliança do espírito de escravo[58] ou a sua ancestralização por meio de rituais funerários.[59] No segundo caso, o ritual visa ao seu afastamento. Por exemplo, em Ouidah, cidade do Benin, que durante séculos foi profundamente engajada na exportação atlântica de escravos, Robin Law documenta rituais que de- perturbar os seus descendentes.[60]

Os rituais atestados por Ribas entre as gentes de fala quimbundo podem ser destinatários de um ritual de aliança ou de expulsão.[61] O caso de Luanda não difere, nesse aspecto, de outros contextos do interior de Angola, nomeadamente os tchokwe, entre os quais lógicas rituais semelhantes são documentadas em Areia.[62]

No xinguilamento da região de Luanda, evidenciam-se, entre outros, espíritos tanto de escravos quanto de vendedores de escravos, antepassados do paciente, há um escravo que quer ser ancestralizado por meio de adequados rituais, ou, entre os antepassados, há alguém jinguengi), e as cobranças espirituais desses negócios terrenos por ele praticados se manifestam nos descendentes que adquirirão a mediunidade para descontar a culpa.[63]

Porém, em geral, uma preocupação concernente do “retorno” de uma terra dos mortos, associada ao oceano, é o pressuposto cosmológico que orienta a lógica ritual de vários povos da África Central Ocidental. O oceano chama-se, tanto em quimbundo como em quicongo, kalúnga, termo que designa igualmente a morte. Voltar do oceano, isto é, da morte, rituais apropriadas.

Luanda se inscrevem nessa cosmovisão. Vejamos um que presenciei. Fina acaba de perder a sua amada cadela e resolve ir enterrá-la na contracosta, que é como os ilhéus chamam a praia do lado do oceano — a Ilha de Luanda não é propriamente uma ilha, mas um cordão litoral de areia em frente à cidade, banhado, a poente, pelo Oceano Atlântico e, à nascente, pela baía de Luanda. Os habitantes da Ilha chamam o lado oceânico de “contracosta” e reservam o nome de “praia” para o lado da baía. Fina conduz o enterro com o maior carinho: envolve o corpo da cadela em panos, asperge vinho pela noite, a cadela lhe aparece em sonho. A aparição de um morto em sonho não é considerada um bom sinal, porque revela uma insatisfação do falecido ou, propriamente, uma vontade persecutória diante dos afetos que deixou. Fina, que tem consciência de ter cumprido corretamente o ritual de sepultamento, afasta com raiva a imagem da cadela: “Vai pra onde lhe mandei, que lhe enterrei bem”. Mas acontece que, no dia seguinte, de madrugada, acorda com a sensação de um cachorro latindo à porta do seu e osso que ela resolve prontamente adotar. A cadela em sonho — me diz um cão. Tudo está bem quando termina bem. Honorato, um primo de Fina, presente na conversa, no entanto, chama a sua atenção:

— Os nossos mais velhos diziam: “o mar não guarda nada”, por isso diziam que os animais não se enterram na praia.

Honorato acabava de evocar uma noção cosmológica própria aos povos de fala quimbundo para os quais quem vai para kalunga volta.[64] Por isso, para os habitantes da Ilha, existe uma particular atenção ritual diante do mar. O mar é uma agência reativa, que devolve o que lhe é impropriamente entregue.

Essa perspectiva cosmológica é igualmente partilhada pelos vizinhos setentrionais dos ambundos, os bacongos.[65] Para os bacongos, esse por uma massa de água, a kalunga. Ou, mais propriamente, a terra dos mortos seria na kalunga.

Esses dois mundos são cromaticamente conotados pelas cores branca e preta, ao passo que o vermelho caracterizaria os pontos de interseção. Os pontos cardinais são igualmente conotados pelas mesmas polaridades simbólicas e, por isso, dotados de potencial ritual: à nascente associa-se a vida, e ao poente, a morte.

A chegada do branco e a integração forçada no mundo atlântico pelo comércio negreiro foram incorporadas na cosmologia bacongo. “O passado do comércio negreiro foi assimilado no corpus contemporâneo de crenças sobre feitiçaria (witchcraft), vista ao mesmo tempo como um e deslocados”.[66]

Nos anos ’60, o antropólogo Wyatt Mac Gaffey documenta a crença de que a América fosse a terra dos mortos, onde as almas dos africanos falecidos assumiam corpos brancos e daí voltariam para a África sob a aparência de europeus. A escravatura que, no passado, deportava para o Ocidente por mar

Segundo Mac Gaffey, no caso bacongo, a escravidão atlântica e a ampliação do mundo que trouxe consigo foram incorporadas na cosmologia local e reinterpretada por meio dela. Segundo o antropólogo angolano Virgilio Coelho,[67] no caso ambundo, a escravidão teria representado uma contradição e um reviramento da cosmologia anterior. Se, tradicionalmente, quem vai para kalunga (isto é, quem morre) volta, a escravidão atlântica viria contradizer empiricamente essa crença, favorecendo o seu ultrapasso. Uma prova desse revezamento cosmológico se encontraria, por exemplo, no provérbio quimbundo documentado no primeiro meado de 1900 por Ribas, “Dikanga, ku Alunga: ku is mutu, kezê” (“Longe, é no Além: quem para lá vai, não volta mais”). Esse provérbio expressaria a consciência do kalunga.[68]

No caso bacongo, a escravidão atlântica se introduz na cosmología haveria uma ultrapassagem do modelo cosmológico em prol do modelo a designação do Oceano Atlântico como “baía grande” (em oposição à baía pequena — entre a Ilha de Luanda e a cidade), para se referir ao kalunga. Tia Idalina (198) me explica que o tratamento dos seus próprios calundus, quando era ainda uma menina, deu bastante trabalho. Doenças se acumulavam, e ela exibia estranhos comportamentos. Como sua mãe consultar um curandeiro. Foram num primeiro, que constatou a origem espiritual do problema, mas disse que ele nada poderia fazer, porque aquele espírito devia ser tratado por alguém que “comprou escravos”. primeiro, mas ele também, não tendo comprado escravos, não poderia fazer o trabalho. Foram até Caxito, pequena cidade a cerca de 60 km de Luanda, para consultar um terceiro curandeiro, mas esse tinha os mesmos impedimentos dos dois anteriores: não tinha comprado escracontinuaria perturbada. Mas uma solução inesperadamente se apresenta. O pai de Idalina sonha com o Velho Antônio, marido de uma sobrinha, curandeiro. Só ele poderia tratar Idalina porque, para tratá-la, era preciso um curandeiro que “tivesse algum escravo na geração” e ele, originario

— Tínhamos que chegar naquele que a família teve escravo, jinguengi,[69] negócio de escravo, porque os meus calundus têm vindo de escravo. Meus calundus vêm do Brasil. Na parte do meu pai, os trisavôs são brasileiros. As almas deles andam para procurar quando encontra a coisa.

Excitada por essa explicação da Tia Idalina, procuro saber mais sobre esses trisavôs brasileiros, escravos, que teriam deixado esse legado espiritual em Tia Idalina.

— Os meus trisavôs eu não conheci. Nem os meus bisavôs. O resto dos avôs, só conheci, da parte do meu pai, a mãe dele e, da parte da minha mãe, o pai dela. Na parte da minha mãe tá limpo, não tem nada disso. Na parte do meu pai, da mãe, é de onde que tem isso.[70]

Procuro ainda saber se conhece a origem dos seus avôs.

— São de cá, de Luanda mesmo. Agora, os bisavôs que são de fora. Da parte do meu pai a mãe dele, os avôs são brasileiros. E agora, da parte da minha mãe, também são brasileiros, mas não têm essas coisas [espíritos]. Agora do meu pai, esses brasileiros são do norte — marrons.

— E sabe o nome deles?

— O nome dele é Pedro. Já o pai do pai do meu pai é do Congo Brazzaville, o pai da minha mãe é brasileiro, P. dos S. V. (206).



Tia C. reconstrói as origens dos seus avós.

Tanto o avô materno (MF [206]), quanto o(s) avô(s) da avó paterna (FMFF [248] ou FMMF [250]) seriam brasileiros. Mas o(s) avô(s)[71] brasileiros da avó paterna seriam “brasileiros do norte, marrons”. Pedro é o nome do espírito da Tia Idalina. Ele vem do norte de Angola e fala quicongo. Como viria do Brasil? Esta explicação tinha me deixado um tanto confusa. O que acontecia era que, na sua explicação, Tia Idalina parecia misturar genealogia e genealogia espiritual. Tia Idalina atribuía aos trisavôs propriedade dos espíritos (o nome, no caso, Pedro, e a origem) e falava dos espíritos como de trisavôs. No discurso de Tia Idalina, os espíritos eram parte da genealogia ascendente. Mas não se tratava de confusão: os espíritos eram ancestrais remotos, eram trisavôs. Pedro era o trisavô, virado espírito, que atuava na trineta. O trisavô Pedro, hoje espírito, era um escravo do norte de Angola, que foi marrom no Brasil que (depois da morte?), teria voltado para Angola. A sua alma teria procurado, até encontrar a Tia Idalina, sua trineta, para ser ritualmente transformado em espírito.

O caso do avô materno (lado em que “não havia essas coisas”) parecia levantar menos ambiguidades. O pai da mãe, P. dos S. V. (206) também era brasileiro. Tia Idalina chegou a conhecê-lo, porque faleceu por volta de 1945, quando ela tinha cerca de 12 anos. O óbito se realizou na Igreja do Paço. Essa informação deixa supor que se tratasse de uma pessoa importante. Nada de escravo, então.

— Muito pelo contrário, eles [os P. d. S. V.] que compravam escravos!

Encontrava-me em face de um discurso que incorporava num campo integrado, o do parentesco, pessoas e espíritos. No caso do avô materno, ela poderia ter adquirido a informação da sua origem brasileira diretamente junto ao avô. No caso do avô da avó paterna, o Pedro que atuava em espírito, Tia Idalina poderia ter adquirido a noção da sua origem brasileira junto à avó. Mas outra hipótese também se apresenta. A convicção da origem brasileira do avô poderia vir da caracterização ritual de Pedro — espírito. Teria a personagem ritual servido de base para uma reconstrução genealógica concernente aos trisavôs? O conhecimento das origens brasileiras do avô e da avó paterna resultava de uma memória oral ou da adesão a uma criação ritual? à transmissão da memória da origem brasileira mas, sobretudo, sobre a lógica ritual subjacente aos rituais de adoção dos espíritos. De um lado, não se podia descartar a hipótese de que a criação ritual alimentasse a imaginação genealógica. De outro, também não se podia excluir que o ritual de adoção dos espíritos que ligou Pedro à menina Idalina fosse uma cerimônia de ancestralização de Pedro, antepassado escravo. A encarnação na menina Idalina poderia constituir um suporte performativo podia trabalhar tanto em prol da imaginação como da memória.



O espiritismo de Tia Idalina vem do Brasil, do “lado dos trisavôs”, da parte da mãe do pai (202). Pedro espírito pertence à geração +4 (248? 250?).

(232). Nascida de pai português e mãe angolana, Margarida cresceu numa aldeia a cerca de 60 km de Luanda, junto à família da mãe, que era muito envolvida em práticas rituais tradicionais. Ao aprender que aquele que apanha Tia Idalina é um espírito de escravo que veio do Brasil, Margarida me revela que o espírito que possuía a sua avó, também tinha essa origem:

— O que a minha avó tinha era espírito de escravo que vinha do Brasil!

O bisavô de Margarida (239), pai da avó materna (235), tinha - da) apresentava um espírito de escravo que vinha do Brasil. A avó de apresentava um espírito com essas mesmas características, próprias ao seu pai biológico.

O bisavô, lembrado pela bisneta como “fundador da família P. S.”, inaugurou uma trajetória de ascensão social, comprovada a posteriori pela posição eminente hoje ocupada pelo bisneto (243). O retorno a Angola, quem sabe, depois de alcançada a alforria, expressava ou constituía as bases de um resgate social. O espírito que viria possuir a criação de uma personagem ritual (a de escravo brasileiro), que, daí em diante, seria uma referência para a família, expressaria e convalidaria a



Dinâmica de ancestralização do escravo brasileiro fundador da família P. S.

Conclusões: do lembrar ao imaginar?

No seu ensaio sobre a estruturação de dispositivos comemorativos do tráde embarque de escravos, Robin Law relata a tendência dos habitantes a se associar sistematicamente aos lugares urbanos do comércio negreiro:

Seja talvez insensível rejeitar esses casos como mera invenção. Provavelmente representam formas de reconstrução imaginativa. Pode se sugerir que as pessoas de Ouidah, cientes da importância do comércio dos escravos na história da sua cidade, possuem a tendência de associar objetos e lugares ao comércio de escravos por meio de um processo de especulação desinformada.[72]

Em Ouidah, essa dinâmica de associação, às vezes sem fundamento, se explica no contexto em que um “dever de memória” é “incitado Estados e, as diásporas”.[73]

O caso de Luanda se distingue sensivelmente daquele de Ouidah, por uma admirável ausência de verdadeiras iniciativas de patrimonialização da história da escravidão na sua vertente comercial e atlântica.[74] Assim, o surgimento dos relatos genealógicos adquire uma relevancia memória induzido por agências externas, mas, antes, enquadram-se numa consciência histórica, em nada culpabilizante, e muito menos culpada, da relação da própria cidade com a escravidão, metonimicamente associada ao Brasil.

Nos contos documentados, o narrador projeta-se nessa história por meio de uma relação de descendência de um “negro brasileiro”, às vezes mas nem sempre, lembrado como escravo. Ao considerar os relatos de pessoas que se dizem descendentes de negros brasileiros, estamos diante de uma dinâmica que contempla, para além da memória propriamente dita de imagens históricas, midiatizadas, inclusivamente, nalguns aspectos, pelo imaginário ritual.

Deixando em aberto a possibilidade de investigação histórica futura sobre a migração de “negros” brasileiros para Angola posteriormente desta contribuição foi atrair a atenção para o fato de que, memória e imaginação não são faculdades opostas e concorrentes mas, sim, dois aspectos solidários de um mesmo processo cognitivo de saturação ativa e não é a margem de manipulação resultante de uma debilidade do conhecimento histórico e genealógico mas, antes, a fecundidade do conhecimento parcial e as modalidades de aproveitamento dessa incompletude.

De um lado, esse processo de saturação seria guiado por motivase orienta autonomamente pela potência de algumas imagens inscritas em um simbolismo local mais profundo.

No que cabe à economia local do prestígio, declarar-se como descendentes de escravos brasileiros parece constituir a única possibilidade de expressão de origens escravas, enquanto a origem escrava local quais a nascença ilegítima, a adoção do nome por apadrinhamento — é geralmente sonegada.

Falar da própria origem é narrar de onde vieram os antepassados masculinos. Os ascendentes masculinos que, diferentemente dos ascendentes femininos, singularizam-se pela procedência d’alhures consconstitui uma possibilidade de enobrecimento da origem escrava, que se torna, dessa forma, dizível.

O fato de ser descendente de um negro brasileiro proporciona um senso de familiaridade e legitimidade que não é outorgado aos portugueses, mesmo que tenham chegado, não por sua própria vontade mas, sim, por meio de um degredo.

Sem optar pela veridicidade das fontes escritas, quando essas desmentem a memória oral, interessei-me pelos processos de associação e credenciamento da crença e de sua transmissão.

Eminentes antropólogos contemporâneos demonstraram a necessidade de ampliar a noção de memória para além da oralidade. Se há um sim, uma peculiar associação de oralidade e imagens.[75]

As imagens que se associam aos contos são dotadas de qualidades próprias. Essas imagens tiradas do ritual intervêm para fornecer memoriabilidade e legitimidade aos contos. É esse o caso dos espíritos performaticamente fabricados a partir da ideia das almas que voltam da escravatura no Brasil.

Entretanto, não se pode excluir que a experiência histórica de ver gente voltar, por mar, da escravatura não tenha se impregnado no imaginário ritual local. A imagem do retorno de uma terra além do mar inscreve-se na cosmologia de uma vasta área da África Central Ocidental que abrange a cidade de Luanda, onde foram coletados os contos apresentados. A imagem da vinda na qualidade de escravo em uma embarcação parece constituir uma variação das duas anteriores.

Os rituais de tratamentos dos espíritos, que se caracterizam pelo a imaginação do antepassado.

Esses produtos da imaginação ritual são susceptíveis de ser apropriados para legitimar enunciados genealógicos controversos (como a origem de um antepassado). Entretanto, não se pode excluir que rituais post mortem de transformação em espírito sejam realizados para consolidar a memória morta e não duvidosa do antepassado e consagrar uma trajetória terrena de ascensão social.

Notas

[1] Mônica Lima e Souza, “Entre margens: o retorno à África de libertos no Brasil 1830-1870” (Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense, 2008).
[2] Lima e Souza, “Entre margens”.
[3] Pierre Verger, os Santos Gilroy, The Black Atlantic. Modernity and Double Consciousness
[4] Roquinaldo Ferreira, Angola 1830-1860 , 2012.
[5] Isabel de Castro Henriques, Percursos da modernidade em Angola. Dinâmicas comerciais e transformações sociais no século XIX Velho Brasil, novas Áfricas: Portugal e o Império (1808-1975), Porto: Afrontamento, 2000.
[6] Ferreira, Dos sertões ao Atlântico.
[7] interlocutores apontaram para a década de 40 de 1900. Voltaremos mais adiante a esses exemplos.
[8] João José Reis, Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX dos Santos e Marcos Joaquim de Carvalho, Atlântico negro (c.1823-c.1853), São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
[9] A relação entre história (na dupla acepção de “história-realidade” e “história-estudo”) e memória constitui um tema teórico e epistemológico cuja amplitude foge à abrangência desta contribuição. Veja-se, por exemplo, Jaques Le Goff, Storia e memoria Annales, na década de 1930, determina uma mais estreita obra de Maurice Halbwachs, Les cadres sociaux de la mémoire, Paris: Presses Universitaires de France, 1952. A partir da consagração desse paradigma teórico, o uso de depoimentos orais como base para a construção do conhecimento histórico é legitimado, mas tende a ser consagrado às sociedades ditas sem escrita. A partição entre sociedades letradas e não letradas (à qual o antropólogo africanista britânico Jack Goody dedica uma importante parte do seu trabalho) foi, a seguir, amplamente debatida e questionada em antropologia, debate que será mencionado em alguns aspectos mais contemporâneos ao longo do texto. Para o caso de Angola, modalidades locais de apropriação da escrita são documentadas por Catarina Madeira Santos, “Écrire le pouvoir en Angola. Les archives ndembu (XVIIe-XXe siècles)”, Annales. Histoire, Sciences Sociales, v. 64 (2009). No caso ndembu, a partir do século XVII a escrita viria integrar outras modalidades de transmissão. A noção de memória, depois de ter sido amplamente usada, em certa medida, abusada, foi mais recentemente objeto de questionamentos e críticas. O que em particular foi objeto de críticas é a hiperextensão da memória. Emanuel Terray e Christian Bromberger alertaram contra os riscos de proliferação de memórias, nomeadamente vitimistas, em detrimento da pesquisa histórica, Emanuel Terray e Christian Bromberger, Face aux abus de memóire, Paris: Actes Sud, 2006. Contra esta hiperextensão da noção de memória e a sua sobreposição a outras Anthropological Quarterly, v. 78, n. 1 (2005).
[10] Tim Ingold, The Perception of the Environment. Essays on Livelihood, Dwelling and Skill, London and New York: Routledge, 2000.
[11] A esse propósito se deve acrescentar que só uma pequena parcela da população junto da qual razão, a documentação paroquial constitui um recurso muito parcial e muito incompleto.
[12] Carlo Severi, “Cosmologia, crise e paradoxo: da imagem de homens e mulheres brancos na tradição xamanica kuna”, Mana, Il percorso e la voce. Un’antropologia della memoria, Torino: Einaudi 2004.
[13] Severi, Il percorso e la voce.
[14] James Fernandez, Bwiti. An Ethnography of the Religious Imagination in Africa, Princeton: Princeton University Press, 1982.
[15] plares, veja-se Pascal Boyer, Traditions as Truth and Communication, Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
[16] Sobre as práticas de oralidade entre das gentes de fala quimbundo da região de Luanda, vejam-se os trabalhos de Oscar Ribas, Missosso, 3 v., Luanda: Ministério da Cultura, 1961, 1962, 1964.
[17] Analise Social, Percursos da modernidade.
[18] René Pelissier, La guerre grise: résistance et révoltes en Angola (1845-1945), Orgeval: Pelissier, 1977.
[19] Isabel de Castro Henriques e João Medina, A rota dos escravos: Angola e a rede do comércio negreiro, Lisboa: Cegia, 1996.
[20] Datam de 1856 os últimos embarques para o Brasil de que há conhecimento. Ferreira, Dos sertões ao Atlântico.
[21] Lima e Souza, “Entre margens”.
[22] Roquinaldo Ferreira, Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World. Angola and Brazil During the Era of the Slave Trade, New York: Cambridge University Press, 2014.
[23] Lima e Souza concentra-se na análise de documentos entre 1830 e 1870, ao passo que o trabalho de Ferreira abarca um período mais longo e apresenta exemplos de circulação entre os séculos XVII e XIX, veja-se Mariana Candido, “The Role of Brazilian-Born Agents in Benguela, 1650- 1850”, Luso-Brazilian Review, v. 50, n. 1 (2013), pp. 53-82.
[24] Verger, , 1968 Cunha, Negros estrangeiros. Os escravos libertos e a sua volta à África Agudás: Os “brasileiros” do Benin Gana no século XIX, veja-se Alcione Meira Amos e Ebenezer Ayesu, “Sou brasileiro. História dos Tabom, afro-brasileiros em Acra, Gana”, Afro-Ásia, n. 33 (2005).
[25] Lima e Souza, “Entre margens”.
[26] José Carlos Venâncio, A economia de Luanda e seu hinterland no séc. XVIII. Um estudo de sociologia histórica, Lisboa: Estampa,1996, p. 31.
[27] Uma sugestiva análise da dinâmica populacional de Luanda no século XIX é apresentada por José particularmente no que cabe à componente masculina, que o autor demonstra ser estritamente Luanda, 1844-1850”, The International Journal of African Historical Studies, v. 32, n. 2/3 (1999).
[28] Trata-se de exemplos apresentados da forma que são usados na linguagem comum local.
[29] Numerosos antropólogos contemporâneos observaram, no entanto, uma ausência ou uma peculiar latência da memória da escravidão atlântica. Para alguns, esse silêncio seria o resultado do enfoque pós-colonial, que tende a negligenciar os elementos herdados da história pré-colonial. Rosalind Shaw, Memories of the Slave Trade. Ritual and the Historical Imagination in Sierra Leone, Chicago and London: University of Chicago Press, 2002, p. 10. Outros autores vão mais longe. Este passado pré-colonial problemático seria silenciado na medida em que a sua capitalização da parte das elites africanas pós-coloniais seria particularmente difícil. Nicolas Argenti e Ute Röschentaler, “Introduction: Between Cameroon and Cuba: Youth, Slave Trades and Translocal Memoryscapes”, Social Anthropology, v. 14, n. 1 (2006). O recente contributo das historiadoras Marcia Schenck e Mariana Candido se interroga sobre uma latência da memória da escravidão em Angola. Para um esforço ativo e consciente para esquecer e em que medida é o produto de eventos traumáticos ligado a este passado violento”. Marcia Schenck e Mariana Candido, “Unconfortable Past. Talking about Slavery in Angola”, in Ana Lúcia Araujo (org.), Heritage and Memories of Slavery in Brazil and the South Athlantic Word (Amherst: Cambria Press, 2015). No ensaio “Retórica sobre a escravatura”, o historiador angolano Carlos Pacheco denuncia o caráter instrumental do discurso contemporâneo sobre a escravatura. Carlos Pacheco, Angola, um gigante com pés de barro, Lisboa: Vega, 2010. pp. 323 e seguintes.
[30] Para uma detalhada problematização do papel de todas as agências envolvidas na produção de Heritage of Slavery in Ghana”, in Ferdinand De Jong e Michael Rowlands (orgs.), Reclaiming heritage: alternative imaginaries of memory in West Africa (Walnut Creek: Left Coast Press, 2007). Para o caso do Benin, veja-se o número de Gradhiva, Mémoire de l’esclavage au Bénin, v. 8 (2008).
[31] Claude Meillassoux, Anthropologie de l’esclavage. Le ventre de fer et d’argent, Paris: PUF, 1986.
[32] Dominique Somda, “Et le réel serait passé. Le secret de l’esclavage et l’imagination de la société (Anôsi, sud de Madagascar)” (Tese de Doutorado, Universidade de Paris Ouest Nanterre la Défense, 2009).
[33] Na linguagem da administração colonial, o termo “assimilado” designa o africano que cumpre - lável. No contexto político recente, foi usado como fórmula de acusação aos titulares do poder para denunciar a sua distância de uma identidade e de interesses supostos mais puramente africanos.
[34] O romance do escritor angolano Pepetela, A gloriosa família, uma elaboração literária da história de uma dessas famílias notáveis, de origem holandesa.
[35] identidade própria fundada na assimilação da escrita e na especialização na intermediação comerPercursos da modernidade Dias, “Novas identidades africanas em Angola no contexto do comércio atlântico”, in Cristiana Bastos, Miguel Vale de Almeida e Bela Feldman-Bianco (coords.), Trânsitos coloniais: diálogos críticos luso-brasileiros (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2004), pp. 293-320.
[36] Henriques, Percursos da modernidade Dos sertões ao Atlântico. Para mais exemplos de para o século XVIII e de Roquinaldo Ferreira, para o século XIX. Selma Pantoja, “Personagens Revista de História Comparada, v. 7, Ferreira Gomes dans l’Atlantique sud du XIXème siècle”, Brésils, n. 6 (2014).
[37] O casamento tradicional africano — e o casamento urbano luandense não constitui uma exceção — consiste numa confrontação entre as duas famílias que, por meio dos noivos, se aproximam para constituir uma aliança. Na série de encontros que culminam no casamento católico, há uma oferta de dons, da parte da família do noivo, contrabalançados pela oferta de banquetes da parte da família da uma exibição e confrontação de peso social das duas partes. Embora isso não seja atualmente comum em Luanda, em contextos rurais, problemas genealógicos como a origem escrava são ainda levantados nessas circunstâncias.
[38] Na cidade de Luanda, o uso do português prevalece.
[39] Edmar Morel, A Revolta da Chibata, Rio de Janeiro: Graal, 1979.
[40] timos no Brasil é estudada por José Carlos Barreiro, “A formação da força de trabalho marítima no Brasil: cultura e cotidiano, tradição e resistência (1808-1850)”, Tempo, v. 14, n. 20 (2010).
[41] É interessante notar a riqueza do léxico que é mobilizado pelos interlocutores para falar de diferentes modalidades relacionais que, na literatura acadêmica, são resumidas na palavra “de escravidão”.
[42] “irmãos” ou, se a explicação da relação genealógica exata é solicitada, “primos como irmãos”. A continuidade de gênero entre os siblings da geração +1, se o gênero é feminino, ou a descontinuidade de gênero, feminino e masculino, dos siblings da geração +1 tendem a tornar dois primos mais irmãos do que a continuidade de gênero masculino entre os siblings da geração +1. siblings considerar primos como irmãos, em presença de uma relação afetiva forte que leva o falante a colocar fora de dúvida a paternidade. No uso local da terminologia de parentesco, Fefa e América,
[43] casos, ser composto pelo nome e um apelido de origem não familiar procedente por parentesco espiritual ou um apelido atribuído por associação semântica (ex. Ramos, se Ego nasceu no dia dos Ramos). O uso de atribuir arbitrariamente um apelido de procedência não familiar já se encontra atestado nos livros de batismo da Ilha dos primeiros anos de 1900, onde muitas das crianças batizadas (que — vale lembrar — representam apenas uma parte das crianças efetivamente nascidas) são de pais incógnitos e são, por consequência, batizadas pelo nome dos padrinhos ou por um apelido arbitrariamente atribuído pelo padre. Nesse contexto, um apelido não patronímico como aquele de América, herdado do avô (pai do pai) brasileiro constitui uma exceção.
[44] Fibra vegetal utilizada na construção das casas tradicionais de pescadores da Ilha. Às casas em loando substituíram-se casas em madeira e casas em chapa de zinco e, sucessivamente, em duro.
[45] Outro sobrenome português.
[46] setentrionais de Angola para a Ilha de Luanda, impulsionadas pelas políticas coloniais.
[47] Bairro de Luanda.
[48] Sobrenome composto por um sobrenome português e um sobrenome holandês.
[49] A seguir.
[50] No Dicionário kimbundu-português de António de Assis Júnior, os termos “undele” e “undu”
[51] O mesmo sobrenome de origem holandesa. Haveria um ramo da família V. do Bengo. Veja-se, também, Pepetela, A gloriosa família.
[52] O óbito tradicional angolano prevê a agregação e a prolongada permanência de muitos parentes junto à casa do falecido. Os óbitos representam uma ocasião de convívio, de levantamento de conhecimento genealógico e tendem a ser espaços femininos, não podendo os homens se ausentar durante tempos tão prolongados das atividades produtivas. A prática da palavra, na forma de conversa, de canto e de conto (sunguilar), é uma componente constitutiva do óbito, não se
[53] Para uma elaboração literária da história da família V., veja-se o romance do escritor angolano Pepetela, A gloriosa família.
[54] Filipe Martins Barbosa Mascarenhas, Memórias de Icolo e Bengo. Figuras e famílias, Luanda: Arte Viva, 2008.
[55] Estas conversas podiam acontecer nos anos 40.
[56] Oscar Ribas, Ilundo. Espíritos e ritos angolanos, Luanda: Ministério da Cultura, 2009 [1958].
[57] Ruy Duarte de Carvalho, social e produção da diferença cultural: um caso muxiluanda, Lisboa: Ministério da Educação,
[58] Alessandra Brivio, “‘Nos grand pères achetaient des esclaves…’. Le culte de Mami Tchamba au Togo et au Bénin”, Gradhiva, Mémoire de l’esclavage au Bénin, v. 8 (2008).
[59] Manuel Laranjeira Rodrigues d’Areia, Les symboles divinatories. Analyse socio-culturelle d’une technique de divination des cokwe de l’Angola (Ngombo ya cisuka), Coimbra: Instituto de Antropologia, 1985.
[60] Robin Law, “Commemoration of the Atlantic Slave Trade in Ouidah”, Gradhiva, Mémoire de l’esclavage au Bénin, v. 8 (2008).
[61] Ribas, Ilundu
[62] Areia, Les symboles divinatoires.
[63] Ribas, Ilundu.
[64] O termo kalunga designa ao mesmo tempo a água/o mar (elemento natural), o oceano (referente
[65] Wyatt Mac Gaffey, Religion and Society in Central Africa. The Bakongo of Lower Zaire, Chicago and London: University of Chicago Press, 1986.
[66] Gaffey, Religion and Society, p. 62.
[67] Comunicação oral. Sobre a cosmologia e as práticas rituais dos povos de fala quimbundo da região de Luanda, veja-se o seu trabalho Virgilio Coelho, Os Túmúndòngò, os “génios” da natureza e o kílàmbà. Estudos sobre a sociedade e a cultura kímbùndù
[68] Ribas, Missosso, v. 1, p. 202.
[69] Ribas explica que a “dissaquela”, o ritual a vocação terapêutica de invocação e adoção dos espíritos pode ser destinada, entre outros, a “alma de parente que se dedicara à compra e venda de escravos, ou, simplesmente, ao negócio com o gentio”. Nesse caso, leva o nome de dissaquela de Ngenji ou de Forasteiro. Ribas, Ilundu.
[70] Ou seja, a bagagem espiritual de Tia Idalina provém do lado paterno, em particular do lado da mãe do pai, que ela chegou a conhecer.
[71] esposa com que é gerada a descendência.
[72] Law, “Commemoration”, p. 21.
[73] Gaetano Ciarcia, “Rhétoriques et pratiques de l’inculturation. Une généalogie ‘morale’ des mémoires de l’esclavage au Bénin”, Gradhiva, Mémoire de l’esclavage au Bénin, v. 8 (2008), p. 5.
[74] Existe, em Angola, um Museu da Escravatura. Criado em 1977 na capela setecentista da residência de um administrador colonial dedicado ao comércio negreiro que funcionava como ponto de embarque de escravos, localiza-se fora da cidade, o que o torna bastante inacessível para o grande público. A pobre coleção do museu conta apenas com poucas peças procedentes do território angolano, sendo as restantes doadas por países estrangeiros (EUA, Brasil, México). O restante da exposição é constituído por fotocópias de imagens referentes à escravatura tiradas apenas poucos edifícios relacionados com o comércio de escravos foram recuperados, mas são memória da escravatura em Luanda, veja-se Isabel de Castro Henriques, Lugares de memória da e Príncipe, Comité Português de “A rota do escravo”, Lisboa: UNESCO, 2001. A essa escassez de atenção diante do patrimônio urbanístico ligado à história do comércio atlântico de escravos referido à escravidão, como o caso do sobrado de Ana Joaquina, é observada pelo historiador angolano Carlos Pacheco. Veja-se Carlos Pacheco, Repensar Angola, Lisboa: Vega, 2000, p. 36.
[75] Carlo Severi, “Capturing Imagination: a Cognitive Approach to Cultural Complexity”, Journal of Royal Anthropological Institute, v. 10, n. 4 (2004), pp. 815-38.


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