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O SANTO DE SUA TERRA NA TERRA DE TODOS OS SANTOS: RITUAIS DE CALUNDU NA BAHIA COLONIAL

Elisangela Oliveira Ferreira
niversidade do Estado da Bahia (UNEB), Brasil

O SANTO DE SUA TERRA NA TERRA DE TODOS OS SANTOS: RITUAIS DE CALUNDU NA BAHIA COLONIAL

Afro-Ásia, núm. 54, 2016

Universidade Federal da Bahia

Recepção: 03 Junho 2015

Aprovação: 07 Novembro 2016

Resumo: Este trabalho analisa aspectos da experiência religiosa de escravos e seus descendentes na Bahia colonial a partir de documentos da Inquisição de Lisboa, notadamente denúncias reunidas nos Cadernos do Promotor. O estudo analisa, inicialmente, crenças e práticas de escravos de origem centro-africana, focando nos rituais de adivinhação, proteção e cura mediados por entidades ou espíritos - de casos, a partir dos quais o artigo evidencia o papel de destaque desempenhado pelas mulheres nos rituais.

Palavras-chave: Inquisição, religiosidade, feitiçaria, calundus.

Abstract: This paper analyses aspects of slaves’ religious experiences and their descendants in colonial Bahia based on documents of the Inquisition of Lisbon, particularly considering charges gathered in the Prosecutor’s File. The study analyses, initially, beliefs and practices performed by Central African slaves, focusing on rituals of divination, protection and healing, mediated by entities or ancestral spirits, who were then known as calundus. The text goes on to assess how the - plex proportionally to the ethnic diversity of those slaves incorporated by the is based on case studies and, through them, the article highlights the major role played by women in the rituals.

Keywords: Inquisition, religiosity, witchcraft, calundus.

“Dançava e fazia maravilhas quando tocavam tabaques”

No ano de 1703, na velha Cidade da Bahia, algumas pessoas foram denunciadas pelo comissário do Santo Ofício, Francisco Rodrigues dos Santos, por prática de feitiçaria. A denúncia incluía mulheres africanas, entre elas uma escrava de Angola conhecida como Mãe Catharina, por ele chamada de “pública feiticeira”. No ano seguinte, em maio de 1704, frei Rodrigo dos Santos, outro comissário, engrossou o coro sobre a condição de feiticeira de Mãe Catharina, enviando outra denúncia à Inquisição de Lisboa. Em ambas, o crime da escrava angolana era o mesmo: ela era acusada de promover “umas danças que chamam na língua de Angola Calundus”, conforme frei Rodrigo. O comissário Francisco Rodrigues dos Santos ainda reforçou que Mãe Catharina era chamada “por insigne a ajuntamento e celebridade dos demônios”.[1]

Algumas léguas adiante, no Recôncavo, por volta da mesma época, outras pessoas foram denunciadas ao Santo Ofício. Em 1702, o padre Francisco de Lima acusou “uma preta por nome Magdalena, concubina de Cosmo de Moura”, de dançar publicamente os calundus na vila de São Francisco, cuja dança era diabólica, acusava o padre: “porque o diabo se apodera com fúria, visagens e falas fora do natural daqueles que as dançam, deixando-os por espaço quase de meia hora sem fala e quase mortos, acabada a tal dança”. Ele também denunciou que ali perto, no outeiro chamado Santa Inês, localizado entre a Freguesia de Passé e a de Matoim, “todas as noites se consultam o diabo publicamente com danças dos Calundus e outros pactos diabólicos”.[2]

Em São Salvador da Bahia, dividida em Cidade Alta e Cidade Baixa, tal qual Lisboa, acostumada ao som dos sinos das diversas igrejas, ouvia-se retumbar, em vários cantos, o som do batuque negro. As freguesias distantes do velho centro urbano, no entanto, pareciam oferecer um ambiente mais oportuno e seguro para a expressão de crenças e práticas de origem africana. Da península de Itapagipe a Itapuã, passando pelo Cabula e pelo Rio Vermelho, a documentação inquisitorial reúne diversos relatos. Consta, por exemplo, que, nos festejos do Natal de 1707, na Freguesia de Itapagipe, reuniram-se vários negros e negras na casa de Lucrécia Vieira, mulher forra, natural de Angola. Na denúncia feita por Antônio Fernandes da Cruz, estudante de gramática, ele disse que estava passando pelo local quando ouviu o barulho da festa e resolveu conferir do que se tratava. Lá encontrou “Lucrécia Vieira bailando ao som de vários instrumentos de que usam os negros” e perguntou “que festa casa lhe responderam “que aquela negra sabia e dançava Lundus que era uso de sua terra” e sabia livrar que qualquer pessoa lhe botasse feitiço. “Sem mais advertência do que o desejo de ser preservado de feitiços” o estudante “disse que queria se curar”. Para tanto, pagou a Lucrécia a quantia de quarenta reis. A cura consistiu em um corte feito por ela em seu braço “e depois lhe deu umas contas brancas e as atou no mesmo lugar, no braço onde havia picado com a navalha”. Algum tempo depois, e a lançar no mar as contas que ela lhe deu. Ele disse ao comissário que estava arrependido e só aceitou participar daquilo “por ignorar que semelhantes Lundus são tidos e avaliados por pactos que estes negros e negras têm com o demônio”.[3]

Os estudos históricos demonstram como a ideologia do pacto com o demônio foi objeto de verdadeira propaganda e não somente por parte dos agentes da Inquisição, mas também dos párocos e missionários de maneira geral, como demonstra Didier Lahon, em diálogo com José Pedro Paiva.[4] Nos territórios do império português, a Igreja procurou enquadrar as crenças heterodoxas dos africanos e seus descendentes na ideologia do pacto. Dos púlpitos das igrejas ou mesmo no segredo dos - cana, bem como de outras crenças e práticas, se divulgou.[5] No entanto, apesar da perseguição, os calundus ecoavam por toda parte, no entorno da Baía de Todos-os-Santos e mais além. Não faltava gente como a preta forra Bernarda, moradora na capital, na casa de outra preta forra chamada Luzia Paes, que “adorava o santo de sua terra e que dançava e fazia maravilhas quando tocavam tabaques”.[6]

Na mesma área onde Lucrécia atuava, foi delatada outra mulher preta e forra, natural de Angola, casada com um liberto da mesma terra. Tratava-se de Ângela Vieira, moradora no Espinheiro, no caminho para Itapagipe de Cima, acusada de “usar em sua casa de umas feitiçarias e diabruras a que chamam Calunduzes, usos gentílicos de sua terra”. Em junho de 1710, na noite da véspera de São João, conforme um familiar do Santo Ofício, ela introduziu “em sua casa um bezerro mamote, o qual mataram os da casa e o congresso e também Dionísio Soares, homem marchante dos currais da banda do Carmo”. Dionísio doou o bezerro junto com Josefa, mulher parda, sua concubina. Fez-se grande festejo Investigando o caso, o familiar concluiu que se tratava “daquela matéria de Calundus” e apontou algumas pessoas que “estiveram na mesma casa, alguns dias, para se curarem de uns achaques com baile de Calunduzes”.[7]

No mesmo lugar chamado Espinheiro, e novamente na época de São João, nos festejos de 1712, após folguedo de violas e outros instrumentos, a preta Lourença, referida como “do gentio da Guiné”,[8] em companhia da mulata Inês e de outra Lourença, mulata, sobrinha de Inês, - e disse que, em outra casa vizinha, onde vivia “uma negra casada com um alferes preto do terço de Henrique Dias, chamado Ventura”, se faziam “todos os sábados à noite os mesmos folguedos, aonde se ajuntam muitas gentes a dançar e ver dançar semelhantes danças que chamam Lundus”.[9] como calundu, é possível perceber-se a difusão do poder de pessoas portadoras de saberes mágico-religiosos, movendo-se no terreno do contato com entidades ou espíritos ancestrais. O calundu era utilizado, muitas vezes, para descobrir as causas das doenças e a maneira de curá-las. Mas ele também se relacionava com outras demandas do cotidiano, como encontrar coisas amor e da sobrevivência material. Mãe Catharina, por exemplo, era muito procurada para a cura de doenças, na busca por ventura e por “mulheres para lhes abrandar o marido”, segundo um comissário do Santo Ofício. A procura pelos recursos dessa angolana era tanta, que ela vivia “fora da casa dos senhores”, morando à parte deles, nos “arrabaldes da cidade”. “É muita a gente que concorre a ela”, reiterava o comissário. Lucrécia Vieira, dançando os “Lundus que era uso de sua terra”, sabia curar para livrar ou preservar qualquer pessoa de feitiço. Ângela Vieira adivinhava “o feito e por fazer” e dava “remédio para várias coisas secretas, usando “muita quantidade de gente de todo o sexo e qualidade, casadas e solteiras, boas e más”, dizia um familiar do Santo Ofício.[10]

Alguns elementos davam um fundo comum às cerimônias do início do século XVIII. Primeiro, os rituais envolviam uma dança ao som de instrumentos africanos, o canzá e o atabaque, que era seguida por uma espécie de transe e pela possessão dos espíritos ancestrais. O calundu aparecia então associado ao aspecto da dança ritual e envolvia ajuntamento de pessoas, não era uma prática individual. Já havia relação direta, portanto, da palavra calundu com a própria cerimônia. Em segundo lugar, chama atenção o fato de que as pessoas à frente dos calundus eram da Guiné do reino de Angola” e, sob o efeito do transe, elas falavam “em língua de Angola”.[11] mágico-religiosa centro-africana na Bahia colonial. Em terceiro lugar, está evidente a proeminência das mulheres nos rituais. Ainda que não se na Bahia, as mulheres negras ocupavam lugar de destaque.[12]

O processo de iniciação que envolvia adeptos de alguns calundus é um aspecto que merece atenção. Havia, também, em alguns casos, hierarquias bem delimitadas. Na denúncia que envolveu a africana Lourença, Inês e sua sobrinha (a outra Lourença), Inês assumia o lugar de líder da cerimônia, ou a rainha, como mencionou João da Costa Barroso. Segundo ele, ao som de instrumentos de Angola chamados canzás, começaram a dançar as duas Lourenças, acompanhadas por outras pessoas. No meio da dança, as duas “se transportaram à maneira de desmaiadas” e, depois, fato de que “não dançava a mulata Inês, tia da dita mulata Lourença que estava dançando”. Indagando sobre isso, lhe responderam “que a mulata Inês era Rainha” e que, para ter aqueles arrebatamentos, “não era necessário dançar porque estando sentada lhe sucedia o mesmo”. O transe, segundo a testemunha, acometeu as três mulheres: “depois de dar nas duas que dançavam, deu o mesmo arrebatamento na dita mulata Inês onde estava sentada”.[13]

Inês, que ainda estava sob o efeito do transe. Por último, segundo João, “havia de ir um homem para que com mais força tivesse e segurasse aquela mulher nos seus braços até se despedir aquele desmaio”, papel que a ele coube. Em outra ocasião, o responsável pelo último abraço que livrou Inês do transe foi Clemente, irmão de Dionísio Soares que havia ofertado o bezerro para sacrifício naquele calundu de Ângela Vieira. Isso indica que existia uma rede de participantes ativos nos calundus da Bahia, que transitavam por eles com desenvoltura, já no início do século XVIII.

Esse é mais um exemplo de que o termo calundu já designava o próprio ritual, ou a dança que lhe dava sentido e era um culto coletivo, nesse caso com o transe atingindo três adeptas ao mesmo tempo. Como demonstrou James Sweet, Lourença, uma mulata, iniciava-se no calundu por meio da tia Inês, também mulata e, portanto, ambas nascidas no Brasil. Junto com a outra Lourença, a africana, a Lourença mulata, quando estava sob a atuação dos espíritos ancestrais, falava em língua de Angola. Inês e sua sobrinha Lourença representavam, talvez, a segunda e terceira geração de descendência africana, mas elas praticavam um ritual de origem africana usando a língua de seus antepassados, a língua de Angola.[14]

A partir de relatos de missionários que atuaram em território africano, de fontes inquisitoriais, entre outros documentos, estudiosos da cosmologia africana têm contribuído para destrinchar os contextos concretos de crenças e práticas como o calundu. James Sweet, por exemplo, argumenta que o termo calundu é uma derivação da palavra quimbunda quilundo. - mana, o autor percebeu que o termo era utilizado na África Central para designar os espíritos dos antepassados que se apossavam dos corpos dos vivos, normalmente com o objetivo de castigar seus parentes pela falta de veneração e respeito adequados. Sweet resume que, “em Angola, o quilundo era o nome genérico para qualquer espírito que possuísse os vivos”.[15] John Thornton, por seu turno, argumenta que os africanos da região centro-oeste acreditavam em uma variedade de seres espirituais que residiam no outro mundo. Partindo de relatos do missionário seis-umbundo as divindades eram tipicamente chamadas kilundu”. O kilundu kixila, e as punia, geralmente com doenças, se elas não as obedecessem”.[16]

James Sweet também analisa um documento do início do século XVIII, escrito por um padre anônimo, em que são relatados “ritos qual se percebe a associação dos quilundos ao adoecimento do corpo. Na concepção do padre, que, segundo Sweet, talvez fosse o bispo D. demônio. Ele dizia que, quando alguém sofria de alguma enfermidade, acreditava-se que a pessoa tinha quilundos e que era preciso a interferência do nganga dos quilundos, o qual, invocando o diabo, descobria a doença. A pessoa teria sua saúde reestabelecida, segundo o padre, se Quilundo, que é o ídolo invocado, com muitas[17]

Em Luanda, Angola, em 1726, uma mulher chamada Mariana Fernandes foi presa juntamente com três escravas suas: as negras Engrácia, Ângela e Joana, sendo as duas últimas conhecidas também pelos seus nomes da terra, Camay e Calumbi, respectivamente. A prisão foi ordenada pelo bispo dos reinos de Angola e Congo, D. Frei Manuel de Santa Catarina, com base em diligência em que foram ouvidas mais de vinte testemunhas. A ordem de prisão também se estendia ao escravo chamado Simão, ou Simão Maxicongo, que andava foragido. Entre outras - cabeça” ou “nos corpos” das escravas Ângela e Joana. Consta ainda que Simão era o mestre das cerimônias e que outras pessoas estavam envolvidas, sobretudo escravas. Exatamente como na Bahia, os rituais eram realizados ao som de instrumentos africanos referidos como atabales, macanzas e buzinas.[18] zadas na sua horta da ilha da Cazanga, tocando-se “caixas e buzinas ambundas” embaixo de uma palmeira que ali existia. Testemunhas disseram que o demônio vinha se abrigar no tronco da palmeira e que ele também falava naquele tronco, mediado pela consulta do escravo Simão. Uma consultador do Demônio”. Outra disse que o escravo era o “mestre tanto para designar a entidade, que acreditavam ser o demônio, quanto para nomear os próprios rituais de invocação da entidade. Percebe-se, também, a associação dos quilundos a feitiços.[19] mais cativos de origem centro-africana, o uso do termo calundu foi se não somente servindo para designar o espírito que possuía a pessoa doente, como também, em alguns casos, a entidade que agenciava a adivinhação da doença e o remédio a administrar. O calundu se tornou a forma geralmente usada para caracterizar as próprias cerimônias e danças rituais que precediam a possessão e a adivinhação.[20] tro-africana de calundus, notadamente o famoso caso de Luzia Pinta, de Minas Gerais. Mott concluiu que seus ritos eram derivados de práticas mágico-religiosas existentes na região de Angola, tais como o ritual xinguila, registrado no século XVII por Giovanni Antônio Cavazzi, e alertou para o fato de que as cerimônias envolvendo os xinguilas foram, praticamente, o único caso descrito pelo capuchinho a fazer referência explícita à participação feminina na direção do ritual. Na relação de dezenas de feiticeiros feita pelo religioso em Angola, a exceção dos xinguilas, conforme Mott, “todos os títulos e cargos eram ocupados tão somente pelo sexo masculino”. Assim, o autor insistiu que era nos “feiticeiros pertencentes à classe xinguila”, do complexo cultural Congo-Angola, que se encontraria a matriz do calundu praticado por Luzia Pinta.[21] Nas últimas décadas do século XVII, o calundu já parecia se encontrar dos escravos africanos na Bahia. Gregório de Mattos, o famoso poeta satírico seiscentista, se referiu não somente à difusão dessas práticas e crenças da população negra e sua adoção pelos brancos, como acentuou na alegoria do poeta, a associação dos calundus ao demônio.[22]

Usados como recurso à prevenção de malefício, adivinhação e cura de doenças, mesmo sem assumir o nome calundu, outros rituais denunciados ao Santo Ofício já se aparentavam às cerimônias assim descritas. Em 1685, por exemplo, foi denunciada uma mulher africana, forra, moradora na Cidade da Bahia, conhecida como D. Maria, que era muito requisitada para curar doentes por meio de uma dança ritual. O autor da denúncia foi o frade Domingos das Chagas, religioso da Ordem do Carmo. Consta que D. Maria se punha a bailar “ao som de instrumentos a que chamam tabaques”, derramando vinhos e outros licores pela casa e, depois de algum tempo, caía amortecida. Ao levantar, entoando voz diversa da sua, dizia as enfermidades das pessoas que com ela se consultavam. D. Maria explicava aos doentes que aquela voz que falava através dela era de um espírito.[23]

A partir das pessoas que buscaram a cura para seus parentes por meio das cerimônias de D. Maria, percebe-se que essa mulher africana era procurada também por parcela da população branca, ou assim considerada, e de algum destaque na Bahia colonial. Entre elas estava Maria da França, sogra de Francisco Pinheiro, capitão e engenheiro da Praça da Bahia. Ela padecia de uma doença para a qual “os médicos e cirurMaria. Um dia, “ao tempo da meia noite pouco mais ou menos, estando a mais da gente da casa recolhida, ouviu que vinha pela estrada gente com violas e outros instrumentos que toca a gente preta”, disse o genro.

sua versão do caso e do ritual:

Em uma noite já fora de horas, depois de estar toda a gente da casa recolhida, se ouviram pelo caminho uns instrumentos de violas e outros do Gentio da Guiné, e era a dita D. Maria que vinha com aquela gente que a acompanhava. E logo entrando na casa começou a bailar com a gente que trazia, e a fazer visagens, e a mudar-se de cores, dizendo que tinha o demônio no corpo. E pondo-lhe uma das negras que trazia uma capa de preço encarnada sobre os ombros e outros vestidos que trazia, continuando o baile, e olhando para a enferma lhe disse que a enfermidade não era feitiço, que era o que se presumia, mas que ela se atrevia a curá-la.[24]

A cura se daria pelo uso de “certas ervas que ela sabia”, cozidas em uma panela nova da própria doente. No entanto, conforme o genro não quis curar-se com a dita D. Maria e assim morreu da enfermidade”.[25]

Na mesma época, foi denunciada pelo mesmo carmelita Domingos das Chagas, na Freguesia de Jaguaripe, vinte léguas distante da Cidade da Bahia, uma mulher negra chamada Lucrécia, juntamente com seu marido André, escravos de Pedro Coelho Pimentel, acusados de fazer curas por meio de feitiçarias. No documento, o frade disse desanimadamente: “dessas feitiçarias há muito nesta Bahia e o pior é que muitas pessoas brancas se curam com esses feiticeiros com tão pouco escrúpulo como se fora coisa muito lícita”.[26] Uma testemunha salientou que o casal curava muitas pessoas com o consentimento de seus senhores, que também lucravam com tais práticas. A cerimônia era bastante similar ao ritual realizado por D. Maria. Lucrécia formava um baile ao som morta”. Acordada do desmaio, passava a adivinhar a doença e dizia que os parentes, na forma de espírito, vinham lhe informar os remédios que deveria usar. Lucrécia também vestia trajes cerimoniais, além de usar

Vestiu-se e cingiu-se com uma cinta lavrada e começou ela e seu marido a bailar ao som de vários instrumentos que tocavam alguns negros, levando ela na cabeça um penacho de penas de anuns. E borrifando o rosto com uma pouca de farinha caiu no chão a dita negra como cansada e amortecida, e depois levantando-se disse que o achaque que tinha a negra dele testemunha era de comer terra.[27]

A escrava doente, no entanto, não obteve a cura almejada e morreu do mesmo mal de comer terra, segundo o senhor. A cerimônia conduzida por Lucrécia e André era um ritual coletivo. Outra testemunha referiu que várias pessoas “bailavam” juntamente com Lucrécia e a auxiliavam no momento do transe. Na época da diligência para apuração das denúncias, ela já era falecida, mas André ainda mantinha aquelas curas. Outra cativa, referida como discípula de Lucrécia, passou a ocupar seu lugar nos rituais, evidência de que havia na época uma espécie de iniciação na comunidade escrava. O depoimento de Miguel Branco reforça essa ideia da iniciação. Ele disse que, tendo um escravo muito doente, “sem achar remédio a sua enfermidade”, aceitou a oferta feita pelo escravo “por nome André e uma negra de Isabel de Souza por nome Maria, discípula nas curas da outra que teve Pedro Coelho, já defunta, que foi casada com o negro André”. André e Maria prometeram curar seu escravo e, para tanto, pediram-lhe “que mandasse chamar um negro morador na Jacurema, escravo de Domingos Gonçalves, para lhes tocar os instrumentos”. Maria usou indumentária igual à de Lucrécia, cingindo-se com uma cinta encarnada e pondo na cabeça uma coroa de penas. Assim vestida, dançava com outros que estavam presentes, incluindo outra mulher negra. Durante a dança, “caíram como amortecidas cada qual por sua vez as duas negras” e tornaram a si depois que André jogou nelas um pó branco. Mas já não eram elas que ali estavam. Eram os seus ancestrais que através delas se manifestavam: “falando com a voz mudada, disseram que todas aquelas cerimônias faziam para que seus parentes defuntos lhes viessem dizer as enfermidades e mesinhas que haviam de aplicar”. Sobre a doença do escravo, tratava-se de “parentes do dito negro doente que se lhe vieram meter no corpo e para que se fossem era necessário fazer-lhes uma festa e dar ao negro doente uma cinta vermelha”.[28]

O culto dos ancestrais tinha grande importância na religião africana, particularmente entre os povos banto. Apesar da crença em uma divindade superior, em uma entidade suprema, os cultos coletivos se voltavam principalmente para os espíritos ancestrais. Acreditava-se que o universo era dividido entre o mundo dos vivos e o dos mortos e que o destino dos vivos.[29] cosmologia de diversos povos centro-africanos, acreditava-se que os mortos requeriam homenagens, presentes e obediência, mas, ao mesmo tempo, poderiam conceder algum poder aos vivos.[30]

Lucrécia e a sua discípula Maria serviam de elemento de mediação entre os dois mundos, por meio da dança ritual e, sobretudo, da experiência de possessão pelos espíritos dos antepassados. Os parentes falecidos eram invocados para interceder na cura. Acreditava-se que as doenças poderiam ser causadas pela ação de feiticeiros, através, por sua vez, de outros espíritos mal intencionados. Mas elas também eram creditadas à ação dos próprios ancestrais, que, insatisfeitos com os parentes que espécie de castigo. Por isso, conforme John Thornton, cuidar dos ancestrais era algo tipicamente familiar, papel que cabia aos descendentes. “Em troca, receberiam boa sorte e saúde, mas, se fossem negligentes, doenças e má sorte”.[31]

Na cerimônia conduzida por Maria para curar o escravo de Mirespeito aos espíritos ancestrais com a obrigação da festa ritual em sua homenagem. A festa era uma forma de o escravo espiar as suas faltas, de promover o apaziguamento dos espíritos dos seus ancestrais. A menção recorrente aos espíritos dos parentes que morreram e que vinham possuir os vivos lembra-nos, ainda, que, para os povos banto, “o lugar próprio seus vivos, seus descendentes”, segundo Slenes. Acreditava-se que, “mais dia de origem”.[32]

O rito da cinta vermelha passada ao escravo doente é mais um indício de uma iniciação ritual presente em cerimônias de origem africana na Bahia colonial. Na indumentária de Lucrécia e de sua discípula Maria, também constava o uso da cinta encarnada. Vale insistir que se tratava de um ritual coletivo, realizado, inclusive, entre escravos de diferentes proprietários. André, escravo de Pedro Coelho Pimentel, contara com Maria, escrava de Isabel de Souza, naquela cerimônia. Mas havia outras pessoas presentes, inclusive outra mulher que sofreu o transe, cujo nome não foi declarado. Para levar a cabo o ritual, foi preciso ainda a participação de outro homem, cativo de outro senhor, que tocava os instrumentos. Mesmo sem assumir o nome calundu, o ritual de Lucrécia,

Um dos exemplos mais ricos em descrição de detalhes de um “do gentio da Guiné”, mas que tudo indica era das partes de Angola. Branca era moradora em Rio Real de Cima, junto à capela de Nossa Senhora dos Campos, no chamado sertão de baixo da capitania da Bahia de Todos os Santos, que, depois faria parte da comarca de Sergipe Del Rei. Em uma espécie de casa de culto mantida nos domínios do próprio senhor, Pedro de Serqueira Barbosa, Branca curava e realizava outras maravilhas extranaturais “usando ela de Ulundus de sua terra”, conforme uma testemunha.[33]

Felícia Pires, mulher parda acometida pela cegueira, foi uma das pessoas que buscou a cura por meio de Branca, persuadida por Pedro de Serqueira Barbosa sobre os poderes da escrava. Ela foi levada em uma noite por uma mulatinha que a guiou até uma casinha, no interior da casa do senhor de Branca. Lá sentiu que estavam “muitas outras pessoas das circunvizinhanças que iam assistir aquele folguedo e cura, e que logo se tocara um instrumento de que usam os pretos, chamado canzá”. Ao som do instrumento, Branca “dançava e cantava em linguagem que ela testemunha não entendia” e, acabada a dança, disse que eram “os seus entravam no corpo da escrava para dizer se o mal que a pessoa padecia tinha remédio e o que deveria ser aplicado. Felícia Pires disse que, durante as cerimônias, ouviu das outras pessoas presentes que Branca costumava untar o corpo “com uma coisa chamada pemba”.[34]

Essa não foi a única experiência de Felícia Pires no ritual de Branca. Segundo seu depoimento, “dali a alguns dias tornaram outra vez a metê-la na mesma casinha em que da primeira vez a meteram, onde ela sentia rumor de mais gente preta que não conhecia por ser cega”. Tocando-se o mesmo instrumento canzá, Branca cantava e dançava “da vozes, apenas rumores estranhos nas palhas que cobriam a casa. Acabafalado como da primeira vez por terem vergonha da muita gente que ali voz que Felícia entendeu “que era a de Ganga”.[35] Ganga, ou nganga, na mágico, adivinho” ou, de maneira mais ampla, “quem tem um grande saber”.[36] Na ocasião, foi feito um altar com oferendas na intenção do

[...] que por ser pessoa de mais respeito, se lhe tinha armado uma mesa com toalhas na mesma casa e posta ao pé da mesa uma ovelha amarrada e umas bocetas em cima da mesa com alguns comeres e beberes a que chamam aluá, do que lhe diziam que comiam e bebiam os ditos seus que ali se achavam lhe diziam.[37]

Como a festa feita em homenagem aos espíritos ancestrais, a oferenda de comidas e bebidas era também uma forma de lhes apaziguar e de pedir a sua cooperação. Chama atenção a oferta votiva de uma ovelha, talvez destinada à imolação. É perceptível também que Branca realizava as cerimônias em um local especialmente destinado ao seu ritual. Luis Nicolau Parés argumenta que, muitas vezes, o calunduzeiro deslocavase para onde seus serviços eram requeridos, “sem ter normalmente um de atuação relativamente independente era operacional ao facilitar a mobilidade do especialista religioso à sua clientela”, que não se restringia à população negra.[38] No entanto, poderiam acontecer as duas formas. A preta forra D. Maria, que atuava em Salvador na mesma época, se deslocara para atender uma doente. Mas, no caso de Branca, todos os relatos apontam que os clientes se deslocavam à sua procura. Segundo a denúncia, ela “curava de várias enfermidades, concorrendo de várias partes muitos doentes para alcançarem saúde”.[39]

Outra pessoa que tomou parte nas cerimônias conduzidas por Branca foi João da Cunha, homem pardo de 22 anos, morador em Itapicuru de Cima. João disse que foi persuadido por Felícia, escrava do coronel Belchior da Fonseca Saraiva, para ir a um folguedo que se fazia na moradia de Pedro de Serqueira Barbosa. Na casa iluminada por velas, ele encontrou “várias pessoas que ali se tinham congregado” e “tangendo-se um tabaque e um canzá, começara a dançar ao som de tais instrumentos” a escrava Branca, “cantando juntamente algumas cantigas em língua de Angola”. Na sequência do canto e da dança, Branca deu um grande salto, agarrando-se ao pescoço de um dos negros que ali estava e “caíra logo no chão como desacordada”. Depois, foi auxiliada por duas outras mulheres negras:

E que levantando-se duas negras das que ali estavam, e entrando em outra sala, saíram, uma com um balaio com que trazia os atavios seguintes: uma pele de gato pintado, que ela punha dependurada na cintura da parte amarrou mais uma banda de tafetá vermelho pela cintura, e por cima dos um arquinho e uma adaga nua, lhe metera nas mãos uma e outra coisa. Começara ela novamente a dançar assim armada e ataviada, sendo que quando começou a dançar, vinha somente composta da cintura para baixo com uma anágua branca e o mais corpo despido e com uns riscos de barro branco enfeitado.[40]

A impressão passada pelo relato é de um ritual especialmente organizado. Havia lugares na casa separados onde se encontravam previamente os artefatos simbólicos utilizados por Branca. Havia também a participação efetiva de uma assistência na cerimônia e de uma assistência de outras mulheres negras, que auxiliavam a escrava nas diversas etapas do ritual.

A preta forra Antônia de Oliveira, moradora no Geru, também procurou a cura por meio do calundu de Branca. Em uma noite, conforme Antônia, “se foram ajuntando várias pessoas pretas e entrando para uma câmara interior da casa do mesmo Pedro de Serqueira Barbosa, onde estava a luz acesa”. Nessa ocasião, o próprio senhor cuidava da vestimenta cerimonial da escrava. Sentado em uma rede, ele enfeitava “a dita Branca sua escrava que estava composta com uma anágua branca e o corpo da cintura para cima despido”, observou Antônia. O senhor amarrou-lhe então “uma banda de tafetá vermelho por cima dos peitos” e lhe pôs “no pescoço um vulto de madeira do tamanho de um palmo ser a sua Ginga”. Uma coroa de várias penas que foi posta na cabeça de Branca completava os elementos do vestuário: “e assim ataviada, posta no meio da sala, estando os circunstantes à roda, se começara a falar um tabaque e um canzá, ao som de cujos instrumentos começou a dançar”.[41]

Antônia contou que Branca dançava com tanta desenvoltura que escandalizou “os mesmos pretos que ali estavam”, e um deles se levantou “pelejando com ela pela sua língua”. Branca, por sua vez, se indignou com a atitude do companheiro de folguedo e avançou com “uma adaga que em um torno estava dependurada e com ela nua se arremessou ao dito preto, pondo-lhe nos peitos como que lhe queria dar com ela, o que lhe estorvaram alguns dos circunstantes”. Acalmada daquele ímpeto, “tornou a continuar a Depois de algum tempo bailando, caiu no chão, inquieta, sendo acudida por Domingas, sua companheira de cativeiro, e Felícia, escrava de Belchior da Fonseca Saraiva. As escravas lhe jogaram um pó branco, a pemba, com o qual sossegou.[42]

Diversos pontos chamam atenção na narrativa de Antônia, entre eles a relação estabelecida por Branca com outras pessoas que tomavam parte naqueles folguedos. Nota-se a participação de pelo menos duas escravas de senhores diferentes, que serviram como auxiliares na cerimônia. Assim como havia uma assistência feminina, havia também a participação de homens negros, particularmente responsáveis por conduzir o som dos canzás e atabaques. Também existia uma audiência sobre a forma como Branca estava conduzindo a dança, como sugere o episódio da indignação de um dos “pretos”, que a interpelou pelejando com ela em sua própria língua, vale ressaltar. Tudo isso sugere, mais uma vez, que as curas rituais daquela escrava não eram episódicas, elas seguiam alguma rotina e envolviam aliados e auxiliares da comunidade escrava circunvizinha, além de seu próprio senhor e dos clientes que a procuravam. Havia uma rede de pessoas envolvidas na manutenção e divulgação daquelas práticas. Tratava-se de ritual coletivo.

Vários estudos sobre a cultura religiosa africana demonstram que os barro branco ou pemba, ou mpemba, era um deles. Destinava-se a tornar a os grupos de etnia banto na região do antigo reino do Congo, o mpemba era o próprio além.[43] Sweet também reitera que, quando deixavam as suas sepulturas, “os espíritos dos mortos iam para o mpemba, o mundo subterrâ- neo do barro branco”.[44] Robert Slenes, por seu turno, argumenta que “para boa parte dos povos da região Congo-Angola, a cor branca simbolizava a morte: os homens eram pretos, os espíritos brancos”.[45]

Dialogando com estudiosos da cosmologia africana, Marina de Mello e Souza argumenta que, no universo cultural centro-africano, as penas tinham um lugar de destaque na confecção de objetos que ajudariam na comunicação do mundo dos vivos com o dos mortos. A autora fala sobre os minkisi (nkisi, no singular), “objetos mágico-religiosos utilizados em amplas áreas da África Central”, recebendo nomes diversos, conforme a região, que “também frequentemente traziam penas na consagradas pelo sacerdote (o nganga). O nkisi era visto como uma força proveniente da terra invisível dos mortos, que poderia ser submetida ao controle dos homens mediante procedimentos rituais do nganga. Era a força sobrenatural e, ao mesmo tempo, o objeto confeccionado ou utilizado para conter em si essa força. Materializar o nkisi em uma escultura, ou mesmo em um amuleto, era um meio de dar forma tangível às forças espirituais. Tinha função coletiva ou individual e, nesse último caso, poderia ser usado junto ao corpo, servindo como elemento de proteção.[46]

As forças espirituais eram, por vezes, associadas a pássaros, e o mesmo tipo de adereço de penas que enfeitava a cabeça do nkisi também era usado pelo próprio nganga. O uso de penas no alto da cabeça era indício de aproximação com o mundo dos espíritos.[47] A coroa de penas usada por Branca, artefato também usado por Lucrécia e por sua discípula Maria, em Jaguaripe, era, assim, um desses elementos carregados de simbolismo e poder. A escrava africana que atuava no sertão de baixo, como a outra africana que atuava no Recôncavo, provavelmente usava a coroa de penas para representar a sua ligação com entidades espirituais. O adereço poderia indicar que elas assumiam naquele momento a função do nganga. Vale lembrar que, no relato de Felícia Pires, consta que Branca assumiu certa vez a voz de ganga (ou nganga

Branca usava ainda outro objeto que parecia ser um elemento importante de sua atuação religiosa. A mulata Antônia relatou que ela tinha no pescoço um vulto de madeira do tamanho de um palmo, com a feição de sua Ginga”. Não foi encontrada referência sobre amuletos chamados ginga realizada em Angola, em meados do século passado, descobriu, entre o povo quioco, o uso de diversos amuletos de proteção. Amuletos de natalidade, por exemplo, eram bastante comuns, sendo o mais vulgar deles o amuleto ginga, usado pelas mulheres a partir dos primeiros sintomas da puberdade.[48] Não é possível saber se a ginga de Branca, no século XVII, tinha a mesma função. Mas é possível que o amuleto agisse como uma espécie de nkisi, tendo a função de proteção e de trazer sorte, mas, principalmente, de servir de elo[49]

As forças espirituais de Branca ainda estavam ligadas a outros elementos. As testemunhas relataram que, nos domínios de seu senhor, andava com toda a liberdade uma cobra. Felícia Pires disse que, nos dias em que esteve na casa, lhe vinha muitas vezes essa cobra “a passear”. Em uma ocasião, consta que a cobra subiu no colo de Bento de Serqueira, primo do dono da casa, que ali estava de visita. “O que vendo, ele amedrontado se levantara e botara para fugir pela porta a fora”, relatou Felícia. Narrando o fato depois ao primo Pedro, este lhe respondeu calmamente que “não temesse porque aquela cobra era sua caseira e coisa de sua escrava Branca”. Segundo o relato de Felícia, o primo Bento não dar “crédito aquelas velhacarias sendo um homem branco e grave”.[50]

Antônia de Oliveira também relatou que, quando esteve nas cerimônias de Branca, ouviu dizer que ela “tinha uma cobra metida em um cabaço que ali a sustentava para seus misteres”. O senhor não somente permitia a Branca criar a cobra em sua casa, como “a tinha por certo agouro” e, quando ela aparecia, “lhe vinha a noticiar de algum caso sinistro para que ele andasse acautelado”. Ele acreditava nisso a tal ponto que, em uma ocasião, quando estava em sua casa um homem chamado Antônio Guedes, que “andava homiziado” (foragido da Justiça), aparecendo a tal cobra, Pedro de Serqueira lhe disse que “vir aquela cobra à casa em ocasião que ele ali estava era sinal certo de que vinha a justiça prendê-lo”.[51]

Pedro de Serqueira Barbosa era acusado não somente de permitir a realização das cerimônias conduzidas por sua escrava, mas também de tomar parte nos rituais, untando-se de sumos de ervas verdes, enquanto Branca pintava-se com um composto feito de barro branco e ervas moídas. atividades divinatórias e curativas da escrava, mas foram reticentes em dentro dos próprios domínios do senhor, em uma casinha localizada no interior da casa onde morava o próprio, como enfatizou Felícia Pires. Da mesma maneira, a mulata Antônia presenciou o senhor ajudando Branca a se preparar para a cerimônia, vestindo-lhe a indumentária apropriada.

Esse não foi o único caso averiguado pela Inquisição de Lisboa envolvendo Pedro de Serqueira Barbosa. Ele foi implicado em outra denúncia feita ao Santo Ofício, em 1687, de cura ritual envolvendo outra escrava sua. A diligência para apuração desse e de outros casos foi realizada alguns anos depois, em 1694, e, entre outras pessoas, serviu de testemunha o alferes Custódio de Oliveira de Araújo. Ele disse que Pedro de Serqueira, morando no mesmo lugar, Rio Real de Cima, junto à capela de Nossa Senhora dos Campos, “tinha uma casa pública, na qual estava uma negra sua por nome Luzia curando publicamente, para cujo efeito mandava vir negros que lhe tocassem os canzás e lhe cantassem por língua de Angola”. Luzia também se untava com um pó branco, referido pela testemunha como tanhã, e, na sua indumentária ritual, constava, entre outras coisas, peles de animais agrestes.[52]

No entanto, por alguns indícios fornecidos pela testemunha, é possível supor que essa escrava chamada por ele de Luzia, em 1694, era a mesma escrava chamada Branca nas denúncias apuradas em Rio Real de Cima, sete anos depois, em 1701. Um dos indícios é que o alferes Custódio também se refere ao caso da mulher de Matheus Nunes, Felí- cia Pires, que, estando cega, foi buscar auxílio nos rituais de calundu. No depoimento de Felícia Pires, em 1701, ela fornece evidências de que a sua incursão nos rituais de Branca acontecera havia anos, tudo indica que há mais de uma década. Mas o indício mais categórico está no depoimento “vindo da Cidade da Bahia de idade de dez ou doze anos” para o distrito da Freguesia de Nossa Senhora da Piedade, vizinho à capela de Nossa Senhora dos Campos, lembra que ouvira várias pessoas dizerem “que junto a essa capela morava Pedro de Serqueira, o qual tinha uma escrava por nome Branca, que curava geralmente de Ulundus”.[53] Na época do depoimento, Joseph Coelho estava com 22 anos, o que atesta que as cerimônias de Branca eram antigas e que provavelmente ela era a mesma escrava referida que toda a cerimônia que ele descreveu no seu depoimento não foi por ele presenciada, mas ouvida da narrativa de outras testemunhas, incluindo a mulher de Matheus Nunes, ou seja, Felícia Pires.- pois de pouco tempo de sua chegada e seus pais à região de Rio Real, Pedro de Serqueira mudou-se “para outra paragem distante de onde ele testemunha morava”. É possível que a mudança tenha sido motivada pelo escândalo que as curas de Branca provocavam, levando às denúncias ao Santo Ofício. No entanto, o mesmo Joseph Coelho deu notícia de que havia cerca de um ano, ou seja, por volta de 1700, passando ele por um local chamado Piagui, encontrou ali a mesma escrava Branca “e lhe disseram que estava curando a um doente, que ele não procurou saber quem fosse”. Joseph Coelho considerava que as curas de Branca eram embustes e enganos para “tirar os pagamentos que os miseráveis doentes que a buscavam lhe prometiam”. Sua descrença provavelmente uma vaca para que Branca a curasse, sem obter resultado. E acrescentou que “não sabia que pessoa alguma, cristã ou gentia”, tivesse se curado “com as tais cerimônias de Ulundus”.[54]

Outros casos denunciados ao Santo Ofício demonstram que o cotidiano mágico-religioso do sertão de baixo da capitania da Bahia, nas últimas décadas do século XVII, esteve movimentado pela experimentação de rituais de possessão espírita envolvendo a população de origem africana, sobretudo mulheres. Na mesma diligência realizada em 1694, foi delatada a escrava Catharina, também afamada de “curar de Ulundus”. O alferes Custódio de Oliveira de Araújo explicou, em seu depoimento, que os ulundus ou lundus (o escrivão grafou das duas maneiras), conforme dizia Catharina, eram parentes que morreram em Angola, sua terra. Atravessando o Atlântico, eles vinham se meter nos corpos “de outras negras” que chamavam Catharina para livrá-las daquela opressão. O ritual se assemelhava a outros já descritos:

[...] a dita Catharina manda chamar os negros que lhe toquem uns cabaços a que chamam canzás, e ela sobredita negra Catharina vestida com peles de animais agrestes e tingida pela cara com tanhã, que é um barro que fala com ela seus parentes, e daí vai ao mato buscar raízes e ervas com que as cura.[55]

As narrativas sobre os rituais das escravas Catharina e Branca convergem para perceberem-se os múltiplos sentidos dados no período ao termo ulundus, entendido aqui como uma variação de calundus. Primeiro, a escrava Branca era acusada de ser curandeira “usando ela de Ulundus de sua terra”, ou, como na fala de outra testemunha, ela “curava geralmente com Ulundus”. Os ulundus seriam, portanto, as entidades sobrenaturais que intercediam através dela no processo de cura. Em segundo lugar, os próprios rituais eram chamados pelo mesmo nome, como sugere a fala de Joseph Coelho, quando disse que não sabia que pessoa alguma, “cristã ou gentia”, tivesse se curado “com as tais cerimônias de Ulundus”. Em terceiro lugar, os ulundus também poderiam aparecer como o próprio causador da doença, como no caso de Catharina, que era chamada para livrar outras mulheres negras da opressão que eles lhes causavam, quando se apossavam delas.

“Não tinha observado os preceitos de seus ventos”

nou-se mais complexa na medida da diversidade étnica dos escravos elementos se juntaram às narrativas sobre crenças e rituais de origem africana que ocorriam na Bahia desde o início da escravidão negra. Em fontes passaram a mencionar a atuação de “ventos” que se apoderavam das pessoas e que eram sinônimos de calundu. Em 1754, a viúva Josefa Maria da Conceição, da Cidade da Bahia, procurou um comissário do Santo Ofício para confessar que permitiu a sua escrava Ana da Silva buscar a cura “de ventos, ou lundus”. A senhora explicou temerosa que não procurou pessoa alguma que curasse Ana, “somente permitira a dita cura”, para a qual a própria escrava arcou com os custos.[56] ano anterior, envolvendo algumas mulheres escravas e forras, sendo pelo menos duas delas originárias da Costa da Mina. A viúva Francisca Rodrigues, mestra de meninas, foi acusada de ir a um lugar no Cabula na companhia da preta forra Cunegunda, e de uma irmã desta, para descobrir se as duas irmãs tinham calundus. No Cabula, durante o ritual, “se passara o vento da doente”, a irmã de Cunegunda, para o seu amásio que lá também estava, o soldado Joaquim Pinto. A mulher que comandava o ritual, chamada na denúncia de “a mestra dos malefícios”, perguntou “porque só cria em Deus e na Virgem Maria”. No entanto, Francisca teria dito “que cria haverem aqueles ventos, ou Calundus”, porque na casa viu “muita gente, assim seculares, como clérigos e religiosos”, que “lá usavam de relíquias e bentinhos e que isso não fazia mal a tais ventos”.[57]

Cunegunda e sua irmã teriam os ventos por lhes passar sua mãe. A mãe, por sua vez, os adquiriu de sua senhora, Maria Cabra, que havia - prios ventos: “para de si passar os ditos ventos que tinha para a dita sua escrava”. Na denúncia, houve relato ainda sobre a história de “uma preta por nome Clemência, da nação Mina”,[58] escrava de uma crioula forra chamada Antônia Soares, que “por algum tempo não falara a língua de brancos”, porque “ela não tinha observado os preceitos de seus ventos” mesmo acontecia com uma irmã sua, também escrava, chamada Ana.[59]

O relato não diz quais eram os tais preceitos que as escravas deveriam observar, mas é possível supor que isso representasse, entre outras e sua irmã. A famosa calunduzeira Luzia Pinta, de Minas Gerais, havia adquirido seus ventos através de uma tia chamada Maria, em Angola, quando ainda era criança, e sofreu com eles sem saber do que se tratava, até um preto chamado Miguel descobrir que tal queixa era de calundus “e que só a havia de curar e ter remédio mandando tocar instrumentos”. juízo, por lhe vir nessa ocasião a doença de sua terra, a que chamam calundus”. Ela então incorporava os “ventos de adivinhar”, que lhe entravam pelos ouvidos, e passava a dizer aos doentes que iam consultá-la os remédios que se deveria aplicar e o modo de fazer.[60]

Em 1757, também na Cidade da Bahia, outra mulher africana foi envolvida em uma acusação de que era calunduzeira e sabia curar de ventos. Trata-se de Vitória, escrava do padre Manoel Duarte, denunciada pelos proprietários de uma casa localizada no Areal de Cima, onde viviam cativas para ir morar na casa e, depois de lá estarem, impor a presença de outra escrava, Juliana, que buscava a cura para uma enfermidade. Por conta da fama de calunduzeira de Vitória, os donos resolveram aparecer na propriedade e inquirir Juliana sobre o que se passava. Ela algum malefício lhe facilitara a entrada”. Juliana contou detalhes sobre o que a levou a buscar Vitória: “disse que eram ventos da sua terra, que tal doença, procurava a escrava Vitória, por ser ela da sua terra e saber curá-la com coisas diabólicas e danças dos tais Calunduzes”.[61]

Com a licença do senhor de Vitória, os proprietários da casa interrogaram a escrava usando inclusive de castigos, dizendo ser da obrigação deles “criar a dita escrava em bons costumes”. Vitória então “confessou ser verdade que era dançadeira de calunduzes e que com várias raízes e caroços de dendê e umas farinhas fazia o seu feitiço”. Ela disse ainda, conforme a denúncia, que, para melhor fazer o seu papel, “dançava com o diabo”, que outra escrava do padre Manoel Duarte, chamada Marcela, também fazia o mesmo e “que um negro por nome Manoel era seu autor ou mestre da dita dança”.[62]

Os estudos históricos têm percorrido longo caminho na investigação sobre a vida dos escravos na sociedade brasileira. Destaca-se, mais etnias africanas submetidas ao cativeiro. Vários estudos se voltam para os sistemas sociais e religiosos criados pelas comunidades negras, que culturas de origem dos escravizados e as culturas desenvolvidas na diáspora.[63] Tem-se prestado atenção na problemática da identidade étnica dos escravos africanos no Brasil, buscando se analisá-la à luz da dinâmica social, como um processo histórico continuamente reelaborado. Parés[64] Slenes, por sua vez, diz que “não devemos subestimar as possibilidades dos africanos de manterem vivas suas identidades originais”. Mas atenta-se para o fato de que, no cotidiano da escravidão, os africanos “haveriam de formar laços com pessoas de outras origens, redesenhando as fronteiras entre as etnias”.[65]

No caso analisado envolvendo Vitória e Juliana, o documento silencia sobre qual era a sua procedência, mas sabe-se que elas vinham da mesma terra, e o fato de serem conterrâneas era importante, se não fundamental, no processo de cura de uma com a interferência da outra. Um dado da história, no entanto, lança um indício forte sobre a origem - mente: “ou pela sua língua, o Cariapemba”.[66] Vitória era, portanto, mais uma calunduzeira atuante na Bahia vinda das terras de Angola, pois, quando o padre Pedro Dias escreveu a gramática intitulada Arte da língua de Angola, publicada em 1697, ele também já se referia ao diabo como Cariapemba. Em uma passagem, o jesuíta nascido na Bahia escreveu: Otubiâ tuà cariàpemba tuà calelela língua de Angola: o fogo do diabo (o inferno) dura para sempre.[67]

“Se achavam agravados dela lhes derrubar a casa dos seus folguedos”

registrados no Brasil, sobretudo daqueles difundidos no decorrer do sé- da África Ocidental, como demonstra Parés. Ele levanta a hipótese de XVIII, “começaram a se organizar alguns calundus que iam além da mera funcionalidade de cura e adivinhação, sem, no entanto, prescindir delas”.[68] A sua análise se constrói sobre a história dos escravos trazidos para o Brasil da área em que se localizava o antigo reino do Daomé, atual jejes.[69] Partindo da África para o Brasil para formular suas hipóteses, Parés argumenta que a base da religiosidade desse grupo étnico envolvia de comidas rituais em altares, o que implicava a necessidade de espaços estáveis para a prática religiosa.[70]

No entanto, mesmo não tendo sido uma prática observada amplamente nas cerimônias anteriormente descritas, e talvez não se tratando comidas e bebidas nas cerimônias realizadas pela angolana Branca, ainda no século XVII. Na mesma ocasião, havia uma ovelha que parecia destinada ao sacrifício. Branca também realizava suas cerimônias localizada dentro dos domínios de seu senhor. Tratava-se, tudo indica, de um culto doméstico.[71]

Foram encontrados outros casos em que o sacrifício de animais foi um componente importante do ritual coletivo em calundus setecentistas, - cana. Isso pode ser analisado pela história da preta forra Cristina Lopes, “moradora para a parte de Itapoan”. Em 1722, o pardo forro José Soares, acompanhada de várias negras”. Entre essas mulheres, ele disse que somente conhecia Mariana Carneiro, moradora na Freguesia da Concei- ção da Praia, que vendia doces na quitanda do Corpo da Guarda, e uma mulata forra chamada Isabel Madureira, moradora no Alvo, Freguesia do Desterro. O calundu era realizado na própria casa de Cristina, para onde o sapateiro disse que foi atraído pelo som dos atabaques, juntamente com um camarada, o pardo Antônio da Silva, também sapateiro. José Soares encontrou várias mulheres negras dançando “e a dita Cristina Lopes vestida com uns panos e no chão posta uma grande pele de onça”. Mais adiante, se via “um carneiro à porta de uma casinha que se lhe formou de palha”. Durante a dança, conforme a testemunha, Cristina degolou o carneiro com um facão “e depois tomando duas ou quatro galinhas vivas e metendo-lhes as cabeças na boca de uma sua escrava chamada Ana Maria, esta com os dentes degolava as galinhas”. Com o sangue delas, Cristina untou o corpo da escrava, “que se punha a dançar”. A testemunha percebeu que havia, na casa, umas pinturas de papel em forma de “vestidos dos Congos” e que Cristina, durante a dança, mudava a voz “falando em língua de Angola”. Segundo o sapateiro, outra das negras que dançava “andava arrastando e levando-se caía, mudando de fala”. Vendo tudo aquilo, José Soares disse que saiu com seu camarada da casa “deixando-as ainda no mesmo folguedo que não lhe pareceu bem”, porque “lhe parecia diabruras naquelas cerimônias”. Ele encerrou seu depoimento dizendo: “é notório que a dita negra Cristina Lopes é tida, havida e reputada por grande calunduzeira”.[72]

Vale lembrar que, cerca de uma década antes desse caso, a angolana Ângela Vieira fez um grande festejo de calundu em sua casa e nele de Cristina Lopes, a calunduzeira de Itapuã. Mas o sapateiro referiu-se a ela como uma preta forra, sendo o qualitativo “preta” uma indicação de que era africana. Também consta que Cristina, quando estava sob o transe, falava em língua de Angola, o que sugere fortemente que ela era originária daquela região. Havia ainda os desenhos encontrados nas paredes da casa, referidos como “vestidos dos Congos”, também indicativos de que, pelo menos parte das práticas e crenças da africana e suas companheiras, vinham da tradição Congo-Angola. para uma maior complexidade das práticas rituais coletivas da população negra na Bahia, à medida que se dava o encontro de etnias ainda mais variadas. Por volta de meados dos Setecentos, surgem evidências nas fontes narrada por Leonor da Fonseca, mulher branca, casada com Domingos de Matos, demonstra a construção desses espaços. Em 1745, Leonor, que era moradora no Recôncavo, no lugar chamado Murucu, em Cruz das Almas, termo da vila de Santo Amaro, procurou um comissário do Santo Ofício para fazer uma denúncia. Segundo ela, “no Cabuçu, sítio da Freguesia de São Pedro do Rio Fundo, moravam duas pretas do Gentio da Mina, chamadas uma Mariana e outra Francisca, esta cativa de João Batista e aquela liberta”, que eram “tidas e reconhecidas de todos por feiticeiras e com presunção de terem pacto com o demônio”, sob cujo poder faziam “várias curas e malefícios”. A própria Leonor dizia ter sido vítima das duas africanas, mas não de maneira gratuita. Ela contou sobre a afronta que lhes fez, desfazendo “uma choça de palha onde com outras se juntavam a fazerem festas e folias aos demônios a quem tratam e invocam por seus poucos dias depois, sobreveio a Leonor “uma tão veemente dor no estô- mago que punha ela denunciante em termos de acabar a vida”, conforme ela contou ao comissário. Leonor buscou a cura na medicina da época, mas sem encontrar conforto. Assim, “esgotados todos os remédios humanos, aconselharam-na que buscasse às ditas pretas para ter saúde”. Vexada com sua doença, ela foi buscar a cura junto às próprias africanas às quais tinha ofendido com sua ação de derrubar-lhes a casa de culto. Conforme sua denúncia, Mariana e Francisca “confessaram haver-lhe feito o dito danoso lhes derrubar a casa dos seus folguedos”.[73]

Leonor da Fonseca disse que esteve perto da morte e que as africanas sentenciaram que ela havia de “morrer sem remédio”. A sentença punitiva somente foi revista a partir da interferência do marido de Leonor: “dizendo o marido da depoente que se esta morresse também elas o pagariam caro lhe tirar a vida e com essa ameaça disseram que iam curar a denunciante”. Para efetuar a cura, as mulheres pediram a duas patacas em dinheiro, um pataco mais para aguardente e meia para azeite de dendês”. Leonor foi ao encontro das africanas com os artigos juntamente um pedaço de pau, até um sítio em que não havia casa, perto da meia noite”. Consta que o frangão vivo foi pendurado pelas costas no pau que a própria Leonor tinha levado, mas não há nenhuma menção sobre o que foi feito com ele e os demais artigos. Uma das mulheres se pôs a dizer “para os ares várias arengas” que a doente não compreendia, pois tudo indica que ela usava sua língua de origem. Depois disso, fazendo Leonor pôr-se de joelhos, “lhe lançou a negra uma grande cuia de água sobre a cabeça que lhe ensopou o corpo todo e com esse lavatório diziam que estava espiada a culpa e de tudo sã”. Leonor da Fonseca, no entanto, confessou que não percebeu melhora, pelo contrário, “porque a dor cresceu e esteve ela denunciante sacramentada e por mercê de Deus se acha sã”.[74]

Se Leonor se curou pela “mercê de Deus”, como ela acreditava, ou por qualquer outro motivo, incluindo a interferência das mulheres saber. Mas o caso demonstra que as mesmas pessoas reputadas como guardiãs de poderes religiosos ocultos podiam fazer tanto o bem quanto o mal. Aquelas que podiam dar ventura ou promover a cura de uma doença ou feitiço podiam também manipular outras forças e promover o adoecimento. No caso de Leonor da Fonseca, acreditava-se que a sua doença foi um revés de seu próprio ato, da ofensa praticada contra as africanas. Esse poder já era exercido em um local delimitado, um espaço sagrado, “a casa de seus folguedos”.

“Em uma roça que tem dança nela calundus”

Tudo indica, portanto, que os calundus setecentistas foram se tornando cada vez mais grupos organizados em torno de práticas rituais coletivas, havendo, inclusive, um esforço em demarcar um local especial de congresso, para além dos cultos domésticos. Mas é, sobretudo, a história do - denunciado ao Santo Ofício em 1749, junto com sua amásia Inácia, uma “preta do gentio da Costa da Mina”. A acusação contra o casal versava[75]

A denúncia partiu de José Xavier Tovar, cirurgião-mor, que obteve meio de Antônia de Matos, mulher parda e casada com Caetano Ramos, Rua da Poeira, Freguesia do Desterro, extramuros da cidade, e conhecia por sua esposa, Paulo Gomes morou em sua companhia a partir dos 14 pedreiro. Na narrativa do mestre e de outras testemunhas, surgem diversas com diversas práticas vistas pela comunidade como feitiçaria. Caetano acusou o antigo aprendiz de ser feiticeiro “por muitas vezes dizer a ele testemunha que queria ser rico, ainda que o levasse o demônio” e costumava buscar “a vários pretos feiticeiros para lhe darem ventura”.[76]

O pedreiro era acusado, principalmente, de ser frequentador assíduo de calundus, sempre na busca por ventura, por riquezas. Parés argumenta que “na cosmologia africana a acumulação de poder e riquezas materiais era interpretada e valorizada como sinal de favor dos deuses e prova da ‘força’ do indivíduo”.[77] Paulo Gomes parecia entender essa lição, buscando recorrentemente nos calundus a maximização de sua boa sorte. E ele não era o único. Em 1743, Manoel Lopes foi acusado de ir juntamente com a esposa Bárbara da Silva “a um lugar chamado Cabula dançar Calundus ou buscar ventura”. Consta que o motivo que levou Manoel ao Cabula foi “por se achar desfalcado de bens e imaginar que isso lhe proviera por feitiços que lhe deitara uma sua escrava”. Em 1754, o pardo José de Paiva Pinto, morador “nos currais de Santo Antônio Além do Carmo”, também foi acusado de ir juntamente com sua mulher ao “sítio chamado Cabula, adonde vivem alguns feiticeiros a dançar Calundus”. Ele teria ido ao Cabula “tomar ventura com pacto com o demônio”.[78]

O Cabula parecia ter se tornado um reduto de calundus em meados do século XVIII. Foi para lá que se dirigiu, em 1753, a viúva Francisca Rodrigues junto com Cunegunda e sua irmã para descobrir se as duas sofriam de ventos. Na época, houve outra denúncia de que, na casa de Dionísio Gonçalves e sua mulher Micaela de Tal, “adiante da igreja da Soledade”, se faziam calundus reunindo neles diversas pessoas. A denúncia foi feita “de próprio punho” por um vizinho, Caetano José, dirigida principalmente contra uma crioula forra chamada Gertrudes Fernandes, moradora na Freguesia da Praia, e seu amásio Caetano Barbuda. O vizinho disse que os denunciados estavam ali “fazendo várias calunduzeirias” havia três dias, e que, no ano anterior, Gertrudes fora presa por tais práticas, juntamente com seus escravos, na mesma casa de Dionísio e Micaela. Caetano acrescentou que aquelas pessoas não tinham emenda e, mais uma vez, estavam “com tabaques, marimbas e buzinas, com grandes alaridos e gritos”. Ele rogava ao vigário-geral e comissário do Santo Ofício: “seja servido mandar hoje, acharem”. Sua narrativa indica que, naquela casa do Cabula, estava em formação um centro de culto que, inclusive, já havia sofrido uma devassa no ano anterior.[79]

No caso de Paulo Gomes, consta que ele se envolveu a tal ponto com os calundus, que até mesmo comprou uma propriedade somente para lá celebrá-los. Tratava-se de uma “roça”, localizada “defronte da roça do defunto Francisco Diniz da Costa, indo para o Rio Vermelho”, como informou Caetano Ramos, ou “adiante do sítio que chamam Engenho”, conforme sua esposa. Para aquela roça o pedreiro ia “todos os domingos, dias santos, e dias de festa como o Natal e a Páscoa” para “com mais gente de sua parcialidade dançar os Calundus”.[80] No entanto, no tempo em que adquiriu sua própria “roça”, Paulo Gomes já era um velho conhecedor dos calundus da cidade, frequentador assíduo de outras “roças”, conforme consta no depoimento de seu antigo mestre:

Disse mais que o denunciado, antes de ter roça própria, ia todos os domingos e dias santos, em companhia de uma parda que então era sua amásia, por nome Joanna, dançar Calundus em uma roça localizada em um lugar chamado Olaria, no caminho para Itapagipe. Disse mais que quando o denunciado não ia a roça alguma dançava os Calundus em sua casa, o que muitas vezes via ele testemunha.[81]

Essa foi a primeira referência encontrada nas fontes inquisitoriais - dos de “roça”. Como em diversos outros casos, também naquele espaço havia a presença de uma mulher, e uma mulher africana, vale ressaltar, que claramente assumia a liderança espiritual daquela comunidade. Trata-se da preta Inácia, “do gentio da Costa da Mina”, que diziam ser amásia de “Mãe”. Juntamente com Inácia e Paulo, consta que iam à roça “pessoas de toda a qualidade dançar Calundus” e Paulo “era o diretor de tudo”, nas palavras de Antônia de Matos. Caetano Ramos, no entanto, esclareceu que Inácia era “maior feiticeira que o denunciado”, e sua esposa, Antônia de Matos, disse que “as outras pretas” que frequentavam a roça chamavam “à dita Inácia, amásia do denunciado, a sua Rainha”. Pedro das Neves, aprendiz de pedreiro de quem o próprio Paulo Gomes foi mestre e o teve em sua casa por 10 anos, disse que a africana Inácia era “a Mestra dos Calundus”. Portanto, na visão dos contemporâneos, Inácia mestra, rainha) a partir de sua função religiosa naquela roça de Paulo Gomes, no caminho para o Rio Vermelho.[82]

Aquele calundu parecia obedecer a certa rotina, ou mesmo a um calendário de rituais e festas. Consta que Mãe Inácia, além de liderar as cerimônias, era moradora permanente na roça. O aprendiz Pedro das Neves informou que, quando ele ainda morava na casa do mestre Paulo Gomes, Inácia vinha da roça todos os sábados pela manhã, retornando para lá com o pedreiro no mesmo dia à noite: “onde ele testemunha ouve dizer e ser fama pública vão dançar Calundus e fazer feitiçarias”. A viúva D. Florência Maria Madalena, em casa de quem Paulo Gomes menos a mesma informação: “acabava o trabalho no dia de sábado ia para a roça onde estava e está a dita preta Inácia a dançar calundus, e dela vinha no domingo”. A viúva disse ainda que o pedreiro acreditava “de tal forma que muitas e muitas vezes tem ido à casa dela testemunha a dizer que se quiser ter saúde nas moléstias que padece vá para a roça dele”. E acrescentou: “ele denunciado é useiro e vezeiro em induzir[83]

Caetano Ramos também evidenciou em sua fala esse proselitismo, dizendo que o antigo aprendiz tentara “o mover e obrigar a ser da mesma parcialidade, para o que muitas vezes o rogara”. A busca por agenciar adeptos também era prática de Mãe Inácia. Segundo Antônia de Matos, a africana tinha uma sobrinha chamada Antônia, também “do gentio da Costa da Mina”,[84]

Algumas narrativas sugerem que naquela congregação havia um subentendido na fala do aprendiz Pedro das Neves. Consta que Paulo levou para a sua roça um homem branco, cego, que, na época da apuração do caso, já estava morando em Pernambuco. Esse homem tinha em sua companhia “um moleque por nome Gonçalo”. Um dia, em conversa com o escravinho, o aprendiz perguntou “a causa que tinha para desejar estar na roça”, e ele “lhe respondera que só lá estava de boa vontade por sempre lá dançar”. Mas o aprendiz insistiu em saber outros detalhes: “e perguntando-lhe outra vez ele testemunha o que se dançava lá, lhe não quis dizer o dito moleque”. Gonçalo somente lhe disse suscintamente: “lá se tocava tabaques”.[85]

Outros elementos das práticas e crenças de Paulo Gomes e de Mãe Inácia foram relatados. Antônia de Matos disse que uma escrava buscar água, topara com a dita amásia do denunciado com panelas de - ciado com a dita amásia com as mesmas panelas a deitar no sangrador”. O aprendiz Pedro das Neves acrescentou que, “em uma noite depois das dez horas”, o mestre o chamou e lhe deu “uma panela tapada para ir deitar numa encruzilhada”, e ele fez “por obediência do mestre”.[86]

No depoimento da viúva D. Florência, ela disse que sabia sobre as práticas de Paulo Gomes havia muito tempo. Era “fama pública e tão passou a fazer serviços em sua casa, ele próprio lhe falava sobre o calundu: ter ventura, serviço e tudo o mais que ele pretendesse”, relatou a viúva. Sua fala indica sinais da “obrigação espiritual” que cercava os adeptos daquelas crenças, além da evidência de poderes controlados por uma mulher. Ele disse à viúva “que como tinha feito uma proposta a uma das que dançava calundus, e a tinha deixado de fazer”, ou seja, deixado de cumprir, “perseguido se via de trabalhos, e que depois que a satisfez e vivia naquela bastante em D. Florência, ao mesmo tempo em que tentava convertê-la com os relatos sobre a boa vida alcançada por meio dos calundus. Ele contou à E esse não era o único gasto que o pedreiro havia feito em favor de suas práticas e crenças. A viúva ainda disse que Inácia havia sido denunciada e presa “pelo mesmo efeito de dançar calundus e ser curadeira” e se livrou da prisão por empenhos do amásio. Paulo Gomes confessou à viúva que “lhe custara o livramento da dita preta dez mil reis”.[87]

O caso dessa congregação, assentada em uma roça adquirida especialmente para a celebração de calundus, sugere que a africana Inácia já atuava em um ambiente de relativa independência e conseguiu “uma mínima infraestrutura coletiva para conduzir suas atividades religiosas”.[88] Ali já se desenvolviam atividades rituais periódicas, para as quais concordo dono da roça, a feição de Mãe Inácia surge enevoada, fragmentada. Mas, como outras mulheres negras, em sua maioria africanas, ela detinha naquela micropolítica do calundu um grande poder e assegurava por esse poder que parte de suas práticas e crenças religiosas e, certamente, a língua de sua terra, continuasse a se manifestar e a se recriar na diáspora.

“Useira e vezeira a fazer celebrar festas de calundus”

No decorrer do século XVIII foram surgindo, na Bahia, congregaeclesial, com rituais simbólicos e artefatos materiais próprios. Luís Nicolau Parés analisou essa constituição, investigando o desenvolvimento de prá- ticas religiosas baseadas no “complexo altar-oferenda” e sua extensão em cerimônias públicas organizadas em espaços particulares. O autor estabeuma cronologia que, partindo de práticas domésticas de calundu na segunda metade do século XVIII, daria origem à complexidade extradoméstica do Candomblé no século XIX. Mas o próprio Parés chama atenção para que surgido bem cedo, simultaneamente à proliferação de práticas individuais de adivinhação e cura e aos cultos domésticos.[89] A “roça de calundu” de Paulo Gomes e Mãe Inácia, caso denunciado ainda em 1749, é indicativo de como alguns cultos extradomésticos podem ter se organizado bem mais cedo do que a escassez da documentação faz supor.[90]

Um exemplo de uma congregação minimamente organizada em um espaço particular citado por Parés é a já conhecida história do calundu da Rua do Pasto, em Cachoeira, cuja devassa ocorrida em 1785 foi estudada por João José Reis. A partir do processo que partiu da Justiça civil, Reis descortinou o ambiente de repressão policial em que diversas pessoas foram acusadas de práticas de batuque, feitiçaria e superstição e tiveram seus objetos de culto apreendidos. Todos os presos em Cachoeira eram jeje Sebastião da Guerra.[91] apreendidos, Reis concluiu que a casa de Sebastião “tinha as características essenciais de um centro cerimonial, que não se tratava da morada de um isolado curandeiro, mas um espaço onde desenrolava-se um conjunto de práticas religiosas de tradição africana”, e Sebastião da Guerra era “o líder de uma comunidade religiosa em formação”.[92]

No entanto, trinta anos antes da devassa do calundu do Pasto, houve uma devassa seguida da prisão de jejes e outros escravos e libertos efetuada em um calundu na Cidade da Bahia, em 1754, que também já apresenta as características de um culto organizado. No calundu da Rua aparece como o líder daquela comunidade religiosa. No caso do calundu que foi invadido em São Salvador da Bahia, a principal acusada era uma mulher, referida como “Custódia Gege”, senhora da casa onde os festejos de calundu se realizavam. As diligências do Santo Ofício para apuração do caso do calundu de Custódia foram realizadas em 1755, mas consta que ela foi presa, na companhia de várias outras pessoas, no ano anterior.

Custódia era escrava do alfaiate Inácio Manoel, mas morava à parte do senhor, em uma casa no fundo da Rua das Laranjeiras, na esquina que ia para a Travessa da Ordem Terceira de São Francisco. Em sua casa, se juntavam diversas pessoas para, segundo a denúncia, “celebrar as festas de Calundus”. Essa festa, conforme o entendimento dos inquisidores de meirinho-geral e o escrivão do juízo eclesiástico, por ordem do reverendo promotor Antônio da Costa, nela apreenderam:

escravo do coronel Pedro Álvares da Silva.[93]

Foram presas, portanto, quatorze pessoas, dez mulheres e quatro homens, mas o escrivão informou que várias outras fugiram, e não se poderia processá-las, já que a devassa se deu à noite, e não foi possível reconhecê-las em sua fuga. As pessoas presas eram “todos pretos”, segundo o meirinho, várias delas parece que nascidas no Brasil, mas outras africanas referidas unicamente como jejes. Em depoimento prestado mais de um ano após a prisão, tanto o meirinho quanto o escrivão foram esquivos ao falar sobre calundu. O meirinho Antônio Francisco Manoel disse que “não sabia se os sobreditos escravos ou outros mais se acostumavam juntar em casa da dita Custódia Gege ou em outra parte a fazer celebrar a festa chamada porém que na ocasião da prisão acharam os ditos pretos e pretas com grande gritaria e clamor do costume das suas terras”. O escrivão Manoel Francisco e outras mais se costumavam juntar em casa da dita Custódia Gege, ou em outra parte, a celebrar a festa de Calundus”. Na ocasião da prisão, “estavam tangendo uns quase tambores a que vulgarmente chamam tabaques”, mas insistiu não saber em que “consista essa festa de calundus, nem de que fatos usam nela, e se se invoca o demônio, e em que forma, e qual seja o efeito que daí se siga”.[94] seram na diligência do Santo Ofício. Em suas falas também é perceptível a relutância em usar a linguagem da Inquisição, ou seja, em demonizar aquelas práticas. Pareceu ocorrer, até mesmo, certo pacto de silêncio sobre os calundus. O sapateiro João de Deus Barbosa revelou que “sabia por ouvir dizer” que naquela casa “se costumava celebrar a dita festa de Calundus”. Porém, “não sabe quem fossem as pessoas que lá se juntavam nem mesmo se a dita casa era de Custódia Gege e que não sabe em que consista essa festa de Calundus”. O alfaiate João Pinheiro de Lemos, que era vizinho de Custódia, disse não saber se aquelas ou outras pessoas tinham costume de se reunir na “casa da dita Custódia Gege ou em outra parte a fazer celebrar a festa de Calundus, mas que em alguns domingos e dias santos ouvia da casa de Custódia Gege tanger tabaques e cantar ao modo das terras da Costa da Mina”. Mais ou menos isso foi repetido por João Xavier de Souza, outro vizinho alfaiate, que também insistiu não saber “em que consistia essa festa de Calundus, nem que circunstâncias tinham, de que fatos usam nela, se se invoca o demônio, nem que efeito daí se siga”. Outro vizinho, o entalhador Alexandre Baracho, disse que “na casa de Custódia Gege se costumavam juntar aos domingos e dias santos e alguns dias mais além desses, várias pessoas cujo nome ignora ele testemunha, com clamores ao som de um tabaque a festejar a quem não sabe ele testemunha”. Acrescentou, porém, que haviam feito sobre isso uma queixa ao senhor de Custódia, que teria respondido “que aqueles festejos eram dedicados aos santos de sua terra e que deles não vinha prejuízo a pessoa alguma”.[95]

Dois religiosos também depuseram na diligência, e suas narrativas seguiram o mesmo padrão dos vizinhos de Custódia. Nenhum deles carta que acompanha o processo. Mas, apesar do cuidado ao falar sobre o caso, os depoimentos sugerem que a casa de Custódia era uma congregação bastante ativa, e o próprio tom reticente das testemunhas talvez indique que elas tentavam proteger a existência daquele espaço ou as pessoas que nele se reuniam. As mesmas testemunhas relataram detalhes importantes centro de cerimônias, como concluiu João Reis sobre a casa de Sebastião da Guerra, em Cachoeira. Conforme o auto de apreensão feito pelo escrivão em 26 de maio de 1754, foram encontrados na casa os seguintes artefatos:

Uma viola de freixos. Uma machadinha de congo. Um balaio com 8 cabacinhas dentro e várias folhas. Um tambaque encoirado em uma panela. Uma cabeça de carneiro fresca com umas miçangas vermelhas ao pescoço. Umas tripas do dito carneiro amarradas em cruz. Umas cabaças com umas contas ou miçangas por fora. Um pouco de angu coberto de búzios com um dente de gente. Uma panela com várias folhas e raízes dentro. Uma cuia da costa com sua tampa que tinha dentro um balainho muito pequenininho com várias miudezas dentro e também um gafanhoto uma massa negra dentro e com um ovo enterrado nela. Uma bolsinha de couro com uns caboquinhos dentro e uma machadinha. Uma bolsa de couro que tinha dentro cinco massas de barro e em cada uma delas metida uma pena. Uma bolsinha de couro toda cozida. Uma cuia da costa com água de pemba. Uma mesa preparada com uma gamela com pedaços de carneiro e angu, com duas facas de cabo de metal, e com duas toalhas, uma de Cre e outra de pano de Linho, com dois pratos de louça branca, um grande e outro pequeno com um molho desconhecido dentro. Um facão de duas pontas. Uma bacia vidrada com umas águas verdes.[96]

Mas a lista dos objetos de culto não terminava aí. O escrivão e o meirinho retornaram no dia seguinte, 27 de maio, acompanhados de testemunhas, para fazer nova busca no local, especialmente com a intenção de investigar duas caixas que não haviam sido averiguadas:

E nas ditas caixas achamos várias quantidades de papeis embrulhados com raízes e folhas. Uma cabeleira entrançadinha com búzios da costa. Uma tira - dizem ser malefício. Uma faquinha de ponta. Um papelinho com uma pena e várias miçangas e cinzas de raízes dentro. Um papelinho com umas contas e com três unhas dentro. Um papelinho com três contas azuis amarradas e com umas raízes. Três facas metidas em uma palha. Umas cascavéis com umas[97]

Recortados do contexto histórico e da referência simbólica ou conjunto de crenças que lhes davam sentido, é tarefa quase impossível, para desses objetos, sobretudo por terem sido simplesmente listados pelo escrivão sem muita referência à forma como estavam dispostos pela casa. No jeje Custódia, em Salvador, em 1754, assim como a do jeje Sebastião, em Cachoeira, trinta anos depois, não era simplesmente a morada de uma curandeira africana que sozinha exercia suas atividades. Era um espaço de vivências coletivas, uma congregação já organizada. Está evidente o viola de freixos, ao atabaque encourado em uma panela e à cabaça coberta por miçangas. Além das práticas comuns de cura e adivinhação por meio de danças rituais que ali talvez ocorressem, sugeridas pelos instrumentos, os diversos objetos parecem indicar um princípio de devoção e adoração de ídolos ou divindades, inclusive com altares erigidos e oferendas alimentí- cias.A lista de artefatos fornece sinais de que, naquela casa nos fundos da Rua das Laranjeiras, se desenvolvia um culto baseado em oferendas, que envolvia sacrifício de animais e comidas votivas.[98] Entre outras coisas, a mesa preparada e os pedaços de carneiro espalhados pela casa sugerem isso. A fala das testemunhas, mais detalhistas em relação ao conjunto ob-

[...] vira sobre uma mesa uma cabeça de carneiro entre duas velas apagapedaços de carneiro cru com mordidas espalhados pelo chão e debaixo de pão com alguns búzios da Costa da Mina gravados por cima.[99]

Essa descrição foi feita pelo sapateiro João de Deus Barbosa. Na narrativa do meirinho, o conjunto formado pela cabeça de carneiro manjares, como doces, e alguns guisados de carne”, encontrava-se em um quarto da casa. Outra testemunha, o padre Maximiano Dias Rocha, não presenciou a devassa, mas viu diversos artefatos do calundu na casa do promotor do juízo eclesiástico, Antônio da Costa, e ouviu dizer que na mesma vasilha onde se encontrava a cabeça de carneiro também se achavam alguns vinténs de cobre.[100]

A descrição do sapateiro e das outras testemunhas parece remeter ao complexo sistema de altar-oferenda, do qual fala Parés, consagrado às divindades. Não se sabe se naquela casa se desenrolava um culto individual, dedicado a uma só divindade, ou se ali já se cultuava “uma pluralidade de divindades, ‘assentadas’ em espaços sagrados individualizados”.[101] Mas a narrativa do sapateiro não é a única que faz pensar no assentamento de um altar para uma divindade. O entalhador Alexandre Baracho, além de citar, com alguma variação de detalhes, os mesmos artefatos em torno da cabeça do carneiro ornamentada, também descreveu um quarto da casa onde parecia haver outra oferenda. Ele “vira em um quarto da mesma casa uma cabeleira dentro de uma caixa, da qual pendiam alguns búzios atados nos cabelos da mesma cabeleira”, o que também foi visto pelo escrivão e pelo meirinho, quando retornaram à casa no dia seguinte. No chão do mesmo quarto, havia ainda “alguns guisados espalhados” como “possas de carne mal cozida”. Um “unguento de cor negra” estava em outra vasilha, e se viam, também, “algumas bolas de barro passadas de penas de galinha” e “outras coisas mais semelhantes às já ditas”, de que ele não se recordava.[102]

Alguns artefatos citados já apareciam em cerimônias de calundu desde o século XVII. É o caso, por exemplo, da pemba, aqui descrita como “uma cuia da costa com água de pemba” e não mais em forma de pó ou barro, como descrevem os relatos seiscentistas. Possivelmente, a água de pemba era usada em algum banho ritual dos participantes da cerimônia. Para a mesma função de banho ritual deveriam ser usadas folhas e raízes encontradas em uma panela, assim como a água verde que havia em outra cuia da costa. O padre Maximiano Dias de Araújo ouviu dizer que a água verde era “donde se banhavam as pessoas que se acharam na casa da dita Custódia Gege”.[103]

O comissário do Santo Ofício, Francisco Pinheiro Barreto, que - sição de Lisboa, disse que aquelas pessoas implicadas no caso haviam sido presas pelo juízo eclesiástico da Cidade da Bahia “por se acharem celebrando a festa de Calundus”. Na festa, costumava-se “invocar e ter presente alguns bichos, aos quais o bárbaro e inculto gentilismo da nação da Costa da Mina costuma dar adoração de Deuses, como verbi gratia, sapos, cobras, galinhas e outras semelhantes a estas”, dizia o comissário. Ainda eram usados “instrumentos como tambores, aos quais dão eles o nome de tabaques”, acompanhados de “vozes entoadas ao seu som”, além de “saltos e outros movimentos do corpo”. Durante a celebração, ocorria uma espécie de transe, quando os envolvidos caíam por terra como “semimortos”, de modo semelhante, portanto, ao que acontecia nos rituais dos escravos e libertos de origem centro-africana. O comissário ainda reiterava que soube da prisão na ocasião em que ela foi efetuada, havia mais de um ano, porém acrescentou soberbamente “que nunca soube quem fossem as pessoas que no dia se acharam por serem essas de vil condição e de quem não podia eu ter conhecimento algum”.[104] sobre a função dos envolvidos no calundu. Ele informou que, no sumário feito pela Justiça eclesiástica, o promotor concluiu que foram achados celebrantes daquela diabólica festa” os escravos Custódia, Benedito, Inácio, Antônio e Pedro. Os outros foram implicados como “assistentes da dita festa de Calundus”. No entanto, tempos depois, o vigário-geral reformulou a sentença e foram liberados os escravos Pedro, Josefa e Anna: o primeiro porque disseram que havia acabado de chegar à casa de Custódia quando ocorreu a prisão e não estava envolvido reclamava da liberação argumentando que teria havido “alguns empenhos para a soltura daqueles três” e reclamava “que todos deviam ser punidos asperamente”.[105]

Infelizmente, não temos acesso ao processo da Justiça eclesiástica para saber por que Custódia e os quatro escravos foram implicados na condição de celebrantes da festa. Não é possível saber se o adjetivo tentação de pensar que Custódia era a líder daquela congregação e que os outros escravos apontados como “celebrantes”, todos do sexo masculino, exemplo, tocar os instrumentos. Segundo o comissário, do sumário do promotor provava-se que “Custódia Gege era useira e vezeira a fazer celebrar as festas de Calundus, dando a sua casa para nela ofenderem a Deus todas as pessoas que a procurassem, assim de noite como de dia, com escândalo de toda sua vizinhança e sem temor de Deus”. Aquela não era a primeira vez que o poder eclesiástico da Cidade da Bahia fazia abominável celebração da festa de Calundus”.[106]

A persistência dos rituais de calundus na Bahia colonial indica “uma insistente resistência dos africanos a abandonar suas práticas culturais”, como argumenta João Reis.[107] Os diversos casos analisados no artigo centro-africana, com destaque para a possessão espiritual, o poder divinatório e de cura e a transmissão iniciatória de saberes mágico-religiosos. Na maior parte dos calundus, a cura de doenças assumiu papel preponderante. A determinação de suas causas assim como a forma de curá-las baseavamse fundamentalmente na possessão espiritual, na ação dos ancestrais, que intercediam através do corpo do especialista religioso. Essa intercessão dos espíritos ancestrais se dava a partir de uma dança ritual, ao som de canzás e atabaques. No decorrer do período setecentista, as denúncias inquisitoriais demonstram que outros componentes simbólicos foram incorporados aos etnias de escravos não somente mais de origem centro-africana. Foi o caso dos grupos provenientes da Costa da Mina, na África Ocidental, região participaram da importante tradição divinatória e curativa que se estabedos escravos da área centro-africana. De todo modo, a partir da segunda metade do século XVIII, pareceu emergir no cenário religioso da Bahia o estabelecimento de espaços sagrados de devoção caracterizados por maior complexidade ritual, como a roça de Paulo Gomes, sob a liderança da africana liberta Mãe Inácia, e o calundu da escrava jeje Custódia. Eram - vivência e a estabilidade, apesar da repressão que sofriam. No período, além da Justiça eclesiástica e da Inquisição, também a Justiça civil passou a investir contra os calundus, a exemplo da devassa da Rua do Pasto, em Cachoeira. Mas nem por isso eles perderam sua força e, na última década do século XVIII, ainda se faziam ecoar, no Santo Ofício português, vozes contra os calundus da Bahia.[108]

Agradecimentos

Agradeço ao parecerista anônimo da revista Afro-Ásia pela leitura atenciosa do texto. O artigo é uma -Brasileiro e 1° Congresso da Associação Internacional de Ciências Sociais e Humanas em Língua CAPES. A expressão “terra de todos os santos” faz referência à capitania da Bahia de Todos- os-Santos. “O santo de sua terra”, por sua vez, se refere ao fato de que africanos foram acusados de “adorar o santo de sua terra”. Ver Elisangela Oliveira Ferreira, “A rota dos calundus entre Angola e Bahia: testemunhos da Inquisição portuguesa”, in Isabel C. da Silva, Marina Pignatelli e Susana de M. Viegas (coords.), Livro de Atas do 1° Congresso da Associação Internacional das Ciências Sociais e Humanas em Língua Portuguesa, Lisboa: Leading Congressos, 2015, pp. 3683-95, http://

Notas

[1] Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa (doravante palavras abreviadas e introduzida pontuação, quando necessária. Todas as fontes inquisitoriais utiacessado em 03/06/2015.
[3] Calundu, calundus, calunduzes, calundo, lundu, lundus, ulundu, ulundus foram termos encontrados na documentação inquisitorial. Essa e, também, dos eclesiásticos que serviam de escrivães, com o uso do termo estranho à língua portuguesa, como chama a atenção Alexandre Marcussi ao investigar o caso de Luzia Pinta, de Minas Gerais. Neste trabalho, todos esses vocábulos são assumidos como sinônimos de calundu ou calundus. os calundus de Luzia Pinta”, Revista Brasileira de História das Religiões, Anais do II Encontro
[4] Didier Lahon, “Inquisição, pacto com o demônio e ‘magia’ africana em Lisboa no século XVIII”, Topoi, v. 5, n. 8 (2004), pp. 10-1.
[5] Sobre a religiosidade popular no Brasil colonial, não somente africana, mas também a de tradição europeia e indígena, e a perseguição desencadeada pela Igreja Católica, uma referência importante é o estudo pioneiro de Laura de Mello e Souza, O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial, São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
[8] para a região chamada Guiné pelos portugueses, a Senegâmbia. Os primeiros cativos eram então designar toda a costa da África de onde vinham os escravos, da Gâmbia ao Congo, tornando-se sinônimo de africano. A expressão ainda é referida nas fontes inquisitoriais até pelo menos a primeira década do século XVIII, mesmo quando se tratava de escravos provenientes de outras Afro-Ásia, n. 19-20 (1997), Revista IHGB, Os rosários dos angolas: irmandades de africanos e crioulos na Bahia setecentista Líbano Soares e Carlos Francisco da Silva Júnior, “Uma nova guiné: africanos em inventários e registros de batismo da cidade da Bahia”, História Unisinos, v. 14, n. 3 (2010), p. 246.
[11] na Bahia, ver, entre outros trabalhos: James H. Sweet, Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-1770), Os rosários dos angolas Soares e Silva Júnior, “Uma nova guiné”, pp. 245-6.
[12] Para ter-se uma ideia desse destaque, em um universo de 20 casos de ritos coletivos analisados, do ritual, sendo “possuídos” pela entidade ou espírito ancestral.
[14] “A iniciação de Lourença nas práticas dos calundús, às mãos da sua tia Inês, assegurou que a língua e as crenças religiosas africanas continuassem numa terceira geração — e isto numa comunidade de raça mista, nascida no Brasil”. Sweet, Recriar África
[15] Sweet, Recriar África, p. 172. Antes de Sweet, João José Reis chamou a atenção para a origem angolana da palavra calundu, mas sem detalhar essa origem. João José Reis, “Magia jeje na Bahia: a invasão do calundu do Pasto de Cachoeira, 1785”, Revista Brasileira de História, v. 8, n. 16 (1988), pp. 60-1.
[16] in Linda M. Heywood (org.), Diáspora negra no Brasil (São Paulo: Contexto, 2013), pp. 86-7. No Haiti, no século XVIII, ocorriam cultos de possessão organizados por africanos chamados Calenda, conforme Hein Vanhee. Esse autor faz uma importante investigação sobre a heterogeneidade da população do Haiti no período, demonstrando a contribuição dos escravos de origem colonial”. Hein Vanhee, “O cristianismo popular da África Central e a formação da religião do Vodou no Haiti”, Revista de Ciências Humanas, v. 14, n. 2 (2014), pp. 423-45.
[17] Sweet, Recriar África, p. 172.
[20] Sweet, Recriar África, p. 173.
[21] Luiz Mott, “O calundu-Angola de Luzia Pinta: Sabará, 1739”, Revista IAC, n. 1 (1994), p. 80-1. Sobre Luzia Pinta, ver também, entre outros estudos, Laura de Mello e Souza, “Revisitando o calundu”, in Lina Gorenstein e Maria L. Tucci Carneiro (Orgs.), Ensaios sobre a intolerância: Inquisição, marranismo e anti-semitismo O diabo, pp. 465-71.
[22] O poeta baiano, ironicamente, recitava: “Que de quilombos que tenho com mestres superlativos / nos quais se ensinam de noite os calundus, e feitiços / Como devoção os frequentam mil sujeitos feminino / e também muitos barbados que se prestam de narciso”. Desacreditando no poder atribuído aos calundus — “ventura dizem que buscam; não se viu maior delírio!” —, o poeta divulgava que Satanás andava metido naquelas danças, pois somente “tal padre-mestre” podia “ensinar tais delírios”. Cf. Luiz Mott, Bahia: Inquisição e sociedade, Salvador: EDUFBA, 2010, p. 33.
[29] Revista USP, n. 28 (1995- Recriar África, p. 128.
[30] Camila Agostini, “A vida social das coisas e o encantamento do mundo na África central e na diáspora”, MÉTIS: História & Cultura coroada ao movimento antoniano, séculos XV-XVIII”, Tempo, v. 2, n. 6 (1998), p. 115.
[31] Thornton, “Religião e vida cerimonial”, p. 90.
[32] Robert Slenes, “‘Malungu, Ngoma vem!’: a África coberta e descoberta do Brasil”, Revista USP, 12 (1991-1992), p. 54.
[33] Branca parece ter agido naquela região pelo menos desde os anos 1680, mas seu caso só foi investigado a mando do Santo Ofício a partir de 1701. Rio Real de Cima fazia parte da Freguesia de Nossa Senhora da Piedade de Lagarto. James Sweet analisou essa e outras denúncias daquela calundu, que foi grafado nos documentos como ulundu. ANTT, Caderno do Promotor n. 81 (1677-1710), Recriar África, pp.177-83.
[36] A. de Assis Júnior, Dicionário Kimbundu-Português. Linguístico, Botânico, Histórico e Coroe Cia. Ltda., s/d, p. 39. Jan Vansina informa que, no antigo Reino do Congo, os missionários - pêuticas, mas toleraram a medicina praticada pelos nganga. Jan Vansina, “O Reino do Congo e seus vizinhos”, in Bethwell Allan Ogot (ed.) História Geral da África V: África do século XVI ao XVIII (Brasília: UNESCO, 2010), p. 677.
[38] Luis Nicolau Parés, A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia, São Paulo: Editora da Unicamp, 2007, p. 115.
[42] vozes com que ela os chamava ela testemunha se lembra que percebeu era Curu Curu Zangô Zala, e que continuando com essas vozes caíra no chão como desacordada”. Infelizmente, até o mo
[43] Vansina, “O Reino do Congo”, p. 677.
[44] Sweet, Recriar África, p. 178.
[45] Slenes, “Malungu”, p. 54. Sobre o uso da pemba, ver, ainda, Lahon, “Inquisição”, p. 16.
[46] A autora esclarece que muitos minkisi - nham as substâncias que lhes davam os poderes especiais, como uma cabaça ou outra vasilha, por exemplo. Marina de Mello e Souza, “Catolicismo negro no Brasil: santos e minkisi, uma Afro-Ásia, n. 28 (2002), pp. 136-7.
[47] Souza, “Catolicismo negro”, pp. 136-7.
[48] Conhecidos também como hamba ua jinga, os amuletos de ginga geralmente eram usados no pescoço ou suspensos na cinta. Eram pequenas imagens quase sempre feitas de “madeira de virtude”. José Redinha, povos da Lunda
[49] John Thornton, com base em relatos do século XVII sobre a religião de Loango, diz que “alguns nkisi se pareciam mais com amuletos do que com altares de divindades territoriais, que também eram chamados de nkisi”. Thornton, “Religião e vida cerimonial”, p. 91.
[57] Essa foi a única referência a materiais do domínio sagrado do catolicismo entre os calundus da Bahia. Mas nada indica que aqueles artefatos estavam incorporados ao ritual. De toda forma, vale lembrar, conforme o argumento de Parés, que a dupla participação de muitas pessoas, rituais de calundu não era vivida como uma contradição. Parés, A formação do Candomblé, p.
[58] Assim como a expressão geral “gentio da Guiné”, utilizada na Bahia até o início do século XVIII, conforme Parés, “mina” foi outra expressão que ampliou o seu domínio semântico ao longo do - tanto, um porto de embarque. Os escravos que partiam dali podiam ser de diversas procedências. O autor diz que, no período setecentista, os africanos na Bahia se dividiam em uma variedade grande de grupos étnicos, mas que foram reunidos sob um repertório reduzido de termos guardachuva, tais como: angola, benguela (africanos centro-ocidentais), mina, nagô e jeje (originários da África Ocidental). Luís Nicolau Parés, “O processo de crioulização no Recôncavo baiano (1750-1800)”, Afro-Ásia A formação do Candomblé, pp. 23-9. Sobre a designação “mina” e seu intercâmbio com outros etnônimos, a exemplo de “jeje”, ver também Sweet, Recriar África
[60] calundu-Angola”, p. 75
[63] Souza, “Catolicismo negro”, p. 125.
[64] Parés, A formação do Candomblé, p. 16.
[65] Slenes, “Malungu”, p. 57.
[66] Cariapemba tenha uma ligação com a noção de nkadi ampemba. Conforme Jan Vansina, na antiga religião da África Central, “Nkadi designa um espírito ancestral perigoso e mpemba (o Além) reforça a noção de antepassado”. Vansina, “O Reino do Congo”, p. 677.
[67] Uma edição fac-similar da obra de Pedro Dias foi publicada em 2006 pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Pedro Dias, Arte da língua de Angola, edição fac-similar, Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2006, p. 29.
[68] Parés, A formação do Candomblé, p. 116.
[69] Soares e Silva Júnior demonstram que mina e jeje são dois termos que designavam, na Bahia, escravos da Costa da Mina. No entanto, seu conteúdo étnico era diferente. Mina era um termo amplo que englobava todos os grupos étnicos vindos da Costa da Mina (ou Costa dos Escravos). Mas não era incomum que escravos minas fossem chamados de jejes e vice-versa. Segundo grupo particular de escravos falantes da língua gbé. Soares e Silva Júnior, “Uma nova guiné”, pp. 249-50. Para uma análise aprofundada sobre a “formação de uma identidade étnica jeje” na Bahia, ver Parés, A formação do Candomblé, pp. 63-94.
[70] Nas palavras do autor: “Foi provavelmente a partir dessa tradição da África ocidental, em oposição que se organizaram os primeiros cultos domésticos, em ‘casas e roças’, com uma estrutura social e ritual mais complexa, que poderíamos chamar do tipo ‘eclesial’”. Parés, A formação do Candomblé, p. 116.
[71] Nicolau Parés. Parés, A formação do Candomblé, pp. 118-9.
[77] Parés, A formação do Candomblé, p. 110.
[88] Parés, A formação do Candomblé, p. 117.
[89] Parés, A formação do Candomblé, pp. 118-9.
[90] Dois anos antes da denúncia contra Paulo Gomes e Inácia, outro caso de congregação religiosa considerada extradoméstica foi denunciado em Minas Gerais, em 1747. Trata-se da dança de Tundá, ou Acotundá, estudada por Luiz Mott. Luiz Mott, “Acotundá: raízes setecentistas do A formação do Candomblé, p. 119.
[91] jejes, dois mahis, um dagomé, um tapa A formação do Candomblé, p. 80.
[92] Reis, “Magia jeje na Bahia”, pp. 73 e 75.
[98] Segundo Parés, os “sacrifícios de animais e as oferendas de comidas rituais nos altares dedicados ocidental”. Parés, A formação do Candomblé, p. 116.
[101] Parés, A formação do Candomblé, p. 118.
[107] Reis, “Magia jeje na Bahia”, p. 81.
[108] de Lisboa, foram relatadas “danças de calundus” que aconteciam em três fazendas da vila de São Francisco, no Recôncavo. Os implicados principais como promotores dos calundus foram todos qua
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