Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir a construção e a organização das redes nacionais de comércio de escravos na segunda metade do século XIX. Buscouse a compreensão desse comércio na prática, por meio da análise da atuação dos negociantes e das estruturas que usavam para realizar cotidianamente seu comércio. Dessa forma, podem-se perceber as variadas estratégias dos indivíduos que construíram essas transferências e a participação de pequenos e grandes
Palavras-chave:comércio de escravoscomércio de escravos, comerciantes comerciantes, comércio doméstico de escravos comércio doméstico de escravos.
Abstract: This article discusses the making of national networks of slave trade in the second half of the nineteenth century. The paper’s goal is to understand the functioning of the daily practice of the commerce of slaves, by analyzing the activity of dealers and perceiving how the structures work in a daily basis. Therefore, the purpose is to look at a variety of strategies small and large dealers applied in order to build their business in different regions of the country.
Keywords: slave trade, dealers, domestic slave trade.
Artigos
REDES DE COMÉRCIO INTERNO DE CATIVOS: ORGANIZAÇÃO DOS NEGOCIANTES NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX
Recepção: 18 Setembro 2015
Aprovação: 19 Julho 2016
A experiência escravista brasileira na segunda metade do século XIX a transferência de cativos para áreas mais dinâmicas da economia nacional teria provocado grandes deslocamentos desses trabalhadores. Robert Slenes calcula que, aproximadamente, 222.500 escravos foram[1] laços familiares, a readaptação a novas normas de trabalho, disciplina e convivência.[2] Centenas ou milhares de quilômetros passaram a separar o antigo local de moradia daquele para o qual eram levados, impondo, por um lado, vários obstáculos à conquista ou retomada de melhores o exercício desse comércio.
Apesar do reconhecimento de sua importância e de trabalhos recentes voltarem a problematizar essa prática, poucos estudos se dedicaram a entender a dinâmica desse mercado, observando, sistematicamente, o seu funcionamento e a atividade dos negociantes. As pesquisas focadas no comércio interno se iniciaram na década de 1970, com a análise pioBrazil”,[3] artigo em que discute a entrada de cativos na Corte, em 1852, de origem dos escravos e algumas estratégias para a sua transferência. Em 1976, foi defendida a tese de doutorado de Robert Slenes, “The Demography and Economics of Brazilian Slavery: 1850-1888”,[4] que aprofunda, e muito, essa discussão. Slenes aborda a constituição do mercado interno de cativos e suas principais características, lançando luz sobre a organização desse mercado, sua relação com as mercadorias o modo como atuavam na cidade de Campinas, realizando, assim, uma abrangente e rica análise do tema. o comércio interno de escravos voltou a ser alvo do interesse de outros pesquisadores no Brasil. Camila Flausino e Erivaldo Fagundes Neves, - Gerais e o sertão da Bahia, respectivamente —, as quais apresentavam características econômicas variadas como a lavoura de subsistência e a produção de alimentos para o mercado interno.[5] A discussão lançada por Neves foi enriquecida com a análise de Maria de Fátima Pires, que relaciona essa dinâmica com as mudanças no contexto escravista da região.[6] Também contribuindo para esse debate, tem-se a análise de José Hilário Ferreira Sobrinho a respeito desse mercado no Ceará, no qual ele aponta não apenas a importância desse comércio, mas também seus impactos na comunidade cativa.[7] Em outra ponta do território brasileiro, Gabriel Berute realizou uma detalhada pesquisa sobre os circuitos comerciais Sul, discutindo o posicionamento dos negociantes locais e seu papel na redistribuição interna dos cativos negociados.[8] Para a região de maior dinamismo econômico do Império, Joice Oliveira apresentou, recentemente, uma pesquisa inovadora em sua dissertação, focando os impactos que o comércio interno exerceu sobre a vida dos cativos negociados.[9] que José Flávio Motta realizou sobre o comércio interno de cativos na província de São Paulo, estudo em que demonstra como localidades em diferentes momentos da expansão cafeeira para o Oeste da província se relacionavam com o mercado nacional de cativos.[10]
Não obstante todos os avanços dos estudos aqui rapidamente relacionados, considero relevante investir maior atenção sobre uma importante variável que carece ser melhor compreendida: a estruturação das redes de comércio que ligavam distantes localidades do território nacional, relacionadas como localidades de origem e de destino dos escravos negociados. Pretendo aqui aprofundar uma discussão já lançada por Robert Slenes, explorando indícios por ele levantados sobre o funcionamento desse comércio, a partir dos quais passarei a expor novas mercado. Busco, portanto, desenvolver uma compreensão ainda inédita do papel e das variadas práticas desenvolvidas pelos comerciantes de cativos no Brasil, entre as quais enfatizo o modo como as transferências eram realizadas, como os negociantes de cativos se posicionavam e agiam nesse mercado, que estruturas usavam para realizar cotidianamente seu comércio e como se relacionavam para construir um mercado nacional de cativos.[11] Dessa forma, o debate será centrado nas transferências interprovinciais e nos negociantes que atuavam nessa esfera, deixando de lado as transferências locais, apesar de reconhecida a sua importância.[12] - gado em diferentes cidades brasileiras do Sul e Sudeste. Com o objetivo de estudar locais que perderam escravos no comércio interno, analisei seis localidades do Sul do Brasil: Alegrete, Cruz Alta, Pelotas, Porto Alegre e Rio Grande, no Rio Grande do Sul, e Desterro (atual Florianópolis), em Santa Catarina. Na outra ponta desse mercado, selecionei Campinas, situada na área de expansão da cafeicultura paulista, localidade que ganhou cativos por meio do mercado interno. Em cada uma dessas localidades, consultei registros cartoriais, como notas de compra e em nome dos senhores, focando, especialmente, o período entre 1860 e 1880. Cabe aqui lembrar que o registro público das compras e vendas de escravos tornou-se obrigatório somente no início da década de 1860,[13] Além disso, analisei jornais nos quais foram pessoas envolvidas nesse comércio, foram também investigados alguns processos judiciais que continham maiores detalhes sobre o negócio e sua organização.
Para melhor oganizá-la, essa dsicussão foi dividida em três partes: - que permitiam a participação de diferentes indivíduos e a construção necessária para esse comércio.
Em 20 de maio de 1868, João Mourthé realizou a venda de oito escravos para Antônio Francisco Guimarães, sendo ambos residentes na cidade de Campinas/SP.[14] O grupo negociado por Mourthé reunia jovens cativos de origens diversas: quatro trabalhadores eram do Rio de Janeiro, dois catarinenses e dois maranhenses. A partir desse caso, podem-se levantar para o interior paulista escravos de diferentes províncias? Como ele conseguiu convencer senhores para a venda e os deslocou de localidades tão distantes? Os documentos anexados à escritura de compra apresentam alguns indícios que ajudam a respondê-las.
Primeiramente, é importante destacar que Mourthé não era o proprietário dos cativos, mas, sim, um procurador com poderes concedidos pelos senhores para realizar as vendas. E ele não havia sido o único envolvido em tal transferência. José Moreira da Silva, um comerciante residente no Maranhão, era senhor dos escravos Gregório e Mathias, naturais dessa mesma província, com 14 e 12 anos de idade, respectivamente. Desejando vendê-los, José Moreira passou procuração, em 16 de março de 1868, para que Mendes Júnior & Fernandes negociassem seus cativos no Rio de Janeiro, ou transmitissem a outros essa incumbência. Na Corte, 21 dias após a concessão da primeira procuração — o que indica a realização de um translado dos escravos por mar até a capital imperial —, Mendes Júnior & Fernandes repassaram esses poderes para João Mourthé, que efetuou a venda no interior paulista, no dia 20 de maio, conforme já mencionado. Entre a primeira procuração passada no Maranhão e a venda em Campinas, 65 dias haviam se passado.
Fato semelhante aconteceu com os cativos naturais de Santa Catarina. Apesar de terem essa origem apontada, ambos se encontravam na posse de senhores no Rio de Janeiro, ou seja, já haviam sido deslocados, anteriormente, do Sul para o Sudeste. Nesse caso, assim como no dos procuradores para cuidar da venda na Corte, onde todos foram repassados para João Mourthé. As transferências entre procuradores muitas vezes representavam a venda efetiva dos escravos, mas o documento referente ao trato não era lavrado, evitando-se o pagamento de impostos de transferência de propriedade, como se verá mais adiante.[15]
Os catarinenses Felipe e Eusébio tinham apenas 7 e 12 anos e pertenciam a Luis d’Avila, residente em Niterói. Frederico, também de 12 anos, era cativo de outro senhor de Niterói, e um senhor de Vassouras era o proprietário do cativo mais experiente do grupo, Elizário, de 34 anos. Os outros eram escravos de senhores residentes na Corte. Desse grupo, todos foram negociados em Campinas, entre 22 e 37 dias após a concessão da procuração que autorizava sua venda e, nesse intervalo, cabe ressaltar que passaram pelas mãos de um procurador na cidade do Rio de Janeiro antes de serem repassados a Mourthé. Os catarinenses e um sua venda, José Moreira Veludo,[16] que acabou por transferir os direitos a João Mourthé. Este último, por sua vez, ia com frequência à Corte para adquirir cativos de negociantes lá estabelecidos, voltando, em seguida, para Campinas e região, onde residia e tratava de os renegociar. - ciantes estabelecidos em províncias distantes que viajavam para vender seus cativos naquela localidade. Esse foi o caso de Angelino Soveral, comerciante de Pelotas/RS, cujos registros das atividades encontram-se no interior paulista. Em 20 de fevereiro de 1877, Soveral vendeu seis escravos para Joaquim de Paula Souza Camargo, residente na sobredita paragem.[17] A maior parte desses cativos era proveniente de Canguçu, uma vila próxima a Pelotas, e todos eram naturais da própria província do Rio Grande do Sul. Eram homens jovens, entre 16 e 21 anos, sadios e solteiros, matriculados como escravos de senhores de pequenas posses.[18]
Assim como Mourthé, Soveral não era o proprietário de direito dos cativos, mas o procurador dos seus senhores. Tendo-os convencido de que era vantajoso dispor dessa propriedade, Soveral conseguiu os poderes para negociar os trabalhadores e, depois de reuni-los, embarcou com eles para o Sudeste. Nessa transação, ele concentrou as tarefas de adquirir, manter, abrigar e transportar os cativos diretamente aos seus - portantes do mercado interno de escravos no Brasil que se repetiram aponta Robert Slenes, foi uma constante no comércio interno de escravos,[19] mediante as quais os senhores e diferentes negociantes podiam transmitir entre si a autoridade para comercializar trabalhadores, sem a necessidade de registrar e pagar impostos pela transferência. Além construção de redes de transferência de cativos. Assim, os documentos de transferência foram parte fundamental no arranjo que permitiu a construção do mercado nacional de escravos, sendo melhor analisados na segunda parte deste artigo. participação de comerciantes de diferentes pontos do país. Além disso, no cômputo das compras e vendas de cativos analisadas em Campinas, - do dos comerciantes de escravos.[20] João Mourthé, por exemplo, adquiriu escravos de várias e longínquas paragens em um único centro — o Rio de Janeiro — e os negociou no interior paulista, onde morava. Diferentemente, Angelino Soveral iniciou sua participação com a sondagem e o convencimento dos senhores para a venda dos cativos na província de sua residência, o Rio Grande do Sul, e, em seguida, o próprio negociante cuidou da manutenção, viagem e venda desses trabalhadores no Sudeste. Mas, de fato, esses não foram os únicos modos de transação de cativos entre as províncias do Império.
Visando a entender de forma mais profunda essas diferenças, apresento alguns casos selecionados, para demonstrar ao leitor a construção das redes nacionais de transferências. Partindo do local de um determinado comerciante nessa rede, discuto os mecanismos que o ligavam aos demais negociantes e permitiam a realização dessas transferências. O local de um indivíduo nessa rede está relacionado com a sua região de atuação e a sua posição no mercado interprovincial. Dessa forma, pode-se caracterizar um comerciante, morador em uma região em que eram vendidos os cativos, na extremidade contrária dessa rede, em áreas de captação ou compra de os indivíduos moradores em entrepostos comerciais.
Ao que parece, o mercado interno de escravos foi construído a partir da conexão entre comerciantes espalhados por todo o Brasil. Para comdiferentes pontos do país, iniciando por indivíduos que residiam nas áreas estudo, Campinas, no interior paulista. Por meio da pesquisa, percebi a atuação de “comerciantes procuradores”[21] residentes nessa região, que forneciam trabalhadores aos senhores interessados, estabelecendo laços comerciais que podem ter sido bastante duradouros.[22] Para isso, retomo o caso de João Mourthé, comerciante cuja atuação foi citada no início
Mourthé foi o responsável pela negociação de centenas de cativos em Campinas, atuando entre as décadas de 1860 e 1880. Sua permanência no mercado e o grande número de indivíduos por ele negociados Analisando os cativos que vendeu, percebe-se que foram, em sua grande maioria, adquiridos no Rio de Janeiro. Eles originavam-se de diversas províncias brasileiras, e, geralmente, os grupos negociados incorporavam, assim, trabalhadores de origens variadas.[23] O negociante não tinha uma ligação estabelecida com uma fonte de escravos em determinada província, tendo acesso a eles nos grandes entrepostos de comércio do Sudeste. Tanto que a referência da passagem pelo Rio de Janeiro é encontrada em do escravo João, rapaz vendido por Mourthé em Campinas, no dia 18 de janeiro de 1870. Seu proprietário era um senhor de Cabo Frio/RJ que havia concedido os poderes para negociá-lo ao conhecido comerciante da Corte, José Moreira Veludo, já citado anteriomente em outra negociação envolvendo Mourthé, que depois repassou ao negociante de Campinas essa concessão.[24] Escravos provenientes do Maranhão, da Bahia, de Pernambuco e do Rio Grande do Sul, entre outros, seguiram esse mesmo caminho. Mourthé, como outros “comerciantes procuradores” do Sudeste, os obtinham nos entrepostos comerciais do litoral, com destaque para o Rio de Janeiro, para depois revendê-los no interior.
A ligação de Mourthé com a obtenção de cativos na Corte foi também explicitada em outra fonte: um processo no qual o comerciante foi acionado por um senhor que desejava devolver um cativo. Em 1877, o lavrador Francisco Aguiar de Barros, de São Paulo, entrou na Justiça na tentativa de “enjeitar” o escravo Cândido, que ele havia comprado poucos meses antes.[25] Segundo o comprador, Cândido tinha uma enfermidade, não comunicada no momento da venda, que o impedia de executar o serviço para o qual fora adquirido. Assim, desejava reverter a compra e ter seu dinheiro de volta. É interessante notar que o cativo foi comprado diretamente por Aguiar de Barros durante uma viagem a Rio Claro, no interior da província. Dessa forma, pode-se entender que João Mourthé ampliava sua área de atuação para além de Campinas, visitando municípios próximos. Após a acusação, o comerciante se defendeu e acabou absolvido. Em sua defesa, narrou que adquiriu Cândido juntamente com outros escravos em uma viagem ao Rio de Janeiro, em uma das visitas teriam sido constantes essas viagens de Mourthé à Corte,[26] que, relacionadas com o fato de ele ter realizado a venda do cativo em Rio Claro, nas proximidades de Campinas, mostram sua movimentação dentro de
De forma semelhante ao que fazia João Mourthé, outros negociantes residentes em Campinas também adquiriam cativos no Rio de Janeiro — ou outras localidades no Sudeste — para serem revendidos no interior paulista, entre os quais Thomaz Gonçalves Gomide Sobrinho, que anunciava, no início de 1876, a venda de excelentes escravos, entre eles carpinteiros, alfaiates e roceiros.27 Como no caso de João Mourthé, concentradas no Nordeste, há também um importante número de cativos do Sudeste e do Sul. A Bahia foi o local de origem da maior parte dos[27] escravos negociados por ele, mas o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul também foram importantes fontes de trabalhadores. Recorrendo a anúncios nos jornais locais, Gomide se tornava conhecido na região pelos senhores à procura de trabalhadores. Vendeu, geralmente, de um a três escravos por negociação, mas, em casos isolados, também comercializou grupos mais numerosos de cativos em uma única transação.
Antônio de Araújo Almeida e Manoel Francisco Mendes também origem dos cativos vendidos pelo primeiro concentrava-se no Nordeste, especialmente em Pernambuco, província da qual eram naturais grande parte dos 55 escravos cuja venda ele representou.[28] eram, geralmente, de indivíduos isolados, sendo realizadas ao longo das semanas, com vários dias de intervalo entre uma e outra. Sobre Mendes, apesar de terem sido documentados, nas notas, poucos registros diretos de sua atividade, podem ser encontrados anúncios de que comprava e vendia escravos, realizando a intermediação por “módica porcentagem”, podendo ser procurado na Rua do Pórtico, esquina da Rua Lusitana, n. 69.[29]
Outra forma de comerciantes de Campinas participarem desse mercado foi atuando como representantes de compradores, ou seja, “comerciantes procuradores” de senhores interessados em adquirir tranegociantes viajavam para entrepostos comerciais como o Rio de Janeiro,[30] realizavam as compras encomendadas e já assinavam as escrituras em nome dos compradores do interior paulista.
Talvez a própria atuação de comerciantes como Mourthé estivesse ligada, em parte, a essas encomendas — apesar de, no seu caso, não se restringir visivelmente a elas —, mas a maioria dos procuradores enviados para adquirir cativos para um senhor atuariam mais como seus intermediários ocasionais do que como negociantes. Talvez estivessem envolvidos em outros tipos de comércio ou fossem funcionários de taiscionado com a simples concretização de negócios já combinados, como o que Pedro de Araújo Rozo autorizou. Em 6 de fevereiro de 1875, ele como seus procuradores na Corte, para que assinassem a escritura de compra da escrava Raimunda a José Idelfonso Pereira de Gois.[31] Ao que parece, o negócio já estava quase pronto, faltando apenas a assinatura dos documentos, para o que o senhor concedeu poderes à mencionada dupla. Apesar de a negociação não ter sido alcançada a partir das fontes,
A atuação de muitos desses comerciantes mostra a importância, para a sua atividade, dos entrepostos comerciais situados no Sudeste. Próximos aos senhores que necessitavam de cativos para a cafeicultura em expansão, negociantes residentes nessa área passaram a percorrer os principais centros comerciais da região em busca da desejada mão de obra, ofertando-a aos áreas de atração desses trabalhadores os ajudava a constituir contatos e, posnização e a prática dessas transferências mais adiante. A discussão prossegue, agora, analisando como ocorria a captação desses trabalhadores pela atuação dos comerciantes nas áreas que forneceram escravos para o mercado interno. cativos — especialmente no Sudeste — incentivou a venda de trabalhadinâmicas, onde seu valor era mais elevado.[32] Contudo, a introdução dos escravos no mercado nacional não era automática, pois dependia da ação de comerciantes estabelecidos nas localidades propensas a vendê-los e da maneira como esses se integravam ao mercado interno.
Escravos
quiser vender por muito bom preço e, sendo sadios e vistosos, dirija-se ao Largo da Praça nº 24, sobrado, aonde se compram esses escravos para seguirem para o Rio de Janeiro.
Victorino de Menezes.[33]
Anunciando abertamente a compra de escravos por “muito bom Desterro, nesse tipo de transação. Porém, ao contrário de muitos outros negociantes, sua contribuição não foi pontual, tendo ele dedicado grandes de 1860 e ao longo de toda a década de 1870, sempre oferecendo bons preços para comprar cativos destinados ao Sudeste. Mas ele não esteve sozinho nesse tipo de negócio. Já em 1851, outros comerciantes locais anunciavam a compra de escravos para enviá-los para outras províncias:
Compra-se seis Escravos de ambos os sexos, com tanto que sejam crioulos, sadios, com ofício ou sem ele, e tenham de 14 a 26 anos de idade, e são para fora da Província: as pessoas que os quiserem vender podem dirigir-se para tratar à loja de Ferraz Pinto.[34]
Adquirir escravos na região para revendê-los no mercado interno surgiu, dessa forma, como uma oportunidade de lucros para diversos comerciantes e se estendeu ao longo das décadas seguintes. A partir dessa compra, os trabalhadores eram enviados para contatos comerciais - postos comerciais de maior vulto. Comerciantes de localidades menores enviavam os escravos, ou viajavam com eles, para cidades maiores, onde negociavam os cativos. A partir daí, como se discutirá mais adiante, esses cativos eram embarcados em linhas regulares de navegação para o Sudeste. Os negociantes podiam acompanhá-los na viagem, mandar cuidados da tripulação e sendo entregues a determinada pessoa no porto de destino.[35]
Outra possibilidade era a de que os comerciantes residentes na área de captação de cativos viajassem até o Sudeste para revendê-los. Esse foi o principal diferencial dos já citados Victorino de Menezes e de tratar da aquisição dos escravos, eles se encarregavam do transporte e da negociação no mercado de destino, como é possível perceber-se em registros do porto de Desterro[36] e em notas de compra e venda em Campinas.
No dia 29 de outubro de 1879, por exemplo, o registro do porto acusou a partida de Menezes rumo ao Rio de Janeiro, levando consigo[37] Sua presença também foi registrada no interior paulista em diversos momentos. Em 15 de junho de 1880, Menezes realizou a venda de três escravos para o tenente José Rodrigues Ferreira, de Campinas: Camilo, Benedicto e Manoel eram naturais de Santa Catarina, tinham entre 24 e 27 anos e eram matriculados nas coletorias de São José, Lages e Santo Antônio de Lisboa, respectivamente. O primeiro e o último eram de localidades litorâneas bastante próximas de Desterro, tendo sido escravos de senhores de pequenas posses. Excepcionalmente, Benedicto vinha da serra catarinense e foi matriculado como o escravo nº 22 na relação de seu senhor.[38] Três dias depois dessa primeira transação, o mesmo negociante intermediou a venda de outros três escravos para um senhor de Amparo/ SP. Helena, Amélio e Athero eram também catarinenses, com 28, 11 e 26 anos respectivamente, todos matriculados em Desterro entre os poucos cativos de seus proprietários.[39] na província de origem e de viagens de venda para o Sudeste. A sequência de vendas em Campinas, com os negócios se concentrando em poucos dias e o intervalo de semanas ou meses até que o nome do comerciante surgisse novamente indicam sua presença esporádica na realização das vendas, visto que sua residência era no Sul do Brasil. Geralmente, Menezes negociava grupos de um a nove escravos, que eram repassados em um espaço de três a quatro dias. Ao longo de um ano, diversas viagens de venda poderiam ser realizadas, a partir do ponto em que o negociante reunia um grupo de escravos para comercialização. Em Pelotas, o citado Angelino Soveral desenvolveu sua atividade por vários anos. Seu padrão de atuação nos registros de Campinas é próximo do de Menezes, com sequências de vendas em poucos dias e grandes intervalos entre elas. Soveral negociava cativos naturais do Rio Grande do Sul, viajando com pequenos grupos de até nove escravos.[40]
Além de adquirir e levar ao Sudeste cativos captados em suas - tes, também os enviavam para seus contatos naquela região. Ainda que de 1870, é provável que ambos teriam começado a abastecer uma rede já estabelecida de comerciantes depois de manterem contatos nos locais de destino dos cativos, quando deixavam de lidar diretamente com toda a transferência,[41] duas formas de atuação combinadas conforme seus interesses.
Fosse por meio dos comerciantes que viajavam para áreas impore comerciantes estabelecidos em grandes centros, o fato é que o mercado nacional de escravos se construiu a partir da captação de trabalhadores realizada por esses indivíduos que abasteciam o comércio interno. Convém destacar que a atuação destes últimos ressalta, mais uma vez, a importância dos entrepostos comerciais e a dos negociantes aí residentes para o desenvolvimento do mercado inter-regional de escravos. em Campinas, o Rio de Janeiro se destacou como o principal entreposto para o comércio interprovincial de escravos. Pela capital imperial passaram cerca de 27,5% dos trabalhadores negociados nessa área do interior[42] Receber os trabalhadores de outras partes do país e enviá-los para uma região na qual os senhores os deseem entrepostos comerciais. Além disso, abasteciam os comerciantes ou senhores do Sudeste que iam, eles mesmos, a essas localidades buscar os desejados cativos. O caso de João Mourthé e de outros negociantes residentes em Campinas, como visto anteriormente, deixa evidente a importância do Rio de Janeiro para a execução de seus negócios.
A partir da chegada dos escravos à Corte, negociantes independentes ou associados a outros que atuavam como seus agentes poderiam transferir cativos para o interior. Em Campinas, foram localizados registros da atividade de negociantes de outros entrepostos ou de agentes a incumbência de revendê-los no interior paulista, esses negociantes viajavam com os grupos de trabalhadores para a região marcada pela grande demanda de mão de obra.
O negociante João Carlos Hungria, residente por muitos anos em Sorocaba/SP, destaca-se como um comerciante de outro entreposto relevante para o interior paulista. Hungria foi responsável pela transferência de 62 cativos no período analisado, sendo quase todos matriculados na província do Rio Grande do Sul. Os indícios registrados nos documentos deixam a impressão de que ele adquiria os cativos enviados do Sul do Brasil pela rota das tropas de muares, que tinha a Feira de Sorocaba como um entreposto fundamental,[43] e, em seguida, os levava, juntamente com os que ele tinha adquirido de senhores locais, para venda em Campinas.
Assim, os entrepostos comerciais tiveram a dupla função de trazer senhores de localidades que a buscavam. A importância desses entrepostos me parece inquestionável para o desenvolvimento de transferências inter-regionais. Seu papel na integração das diferentes “pontas” desse mercado permitiu a construção do mercado nacional de escravos, facilitando, ainda, a participação de pequenos negociantes nas transferências e ampliando o alcance e o volume do comércio.
Abre-se, assim, uma série de novos questionamentos sobre esse transferências? Em suma, como foi construído esse mercado nacional que unia diferentes partes do país?
Ao que parece, o aspecto central na montagem da rede de transferência Segundo Robert Slenes, a emissão desse instrumento foi constante no comércio interno de escravos e é, portanto, um importante indício da por eles — incluindo Mourthé, Menezes e Soveral — para burlar os imo poder de negociar os cativos, protelavam o pagamento das taxas de transferência de propriedade e o seu registro em cartório, para que fosse[44] Dessa venda na qual o senhor vendia o cativo ao “comerciante procurador”, que, legalmente, recebia apenas o poder de negociar o trabalhador, não detendo a sua propriedade, o que lhe desobrigava do imposto de transferência sobre essa primeira negociação.[45]
E, entre os “comerciantes procuradores”, repassar a faculdade de negociar um cativo permitia encadear as vendas e revendas por meio desse instrumento, construindo redes de transferência de trabalhadores. Indiscutivelmente, a capacidade de substabelecer ou transferir o poder interesse dos comerciantes por esse mecanismo. Os dados recolhidos 93,9% dos escravos trazidos para o interior paulista a partir do mercado interprovincial. Da mesma forma, não se pode negar a relevância dos “comerciantes procuradores” para a execução dessas transferências.[46] venda realizada por Mourthé, apresentada no início do texto, e também no caso a seguir. Em 7 de fevereiro de 1870, Joaquim de Paula Vilarinho, de Campinas, vendeu ao senhor Francisco de Paula Ferraz Sampaio, residente em Itu/SP, quatro escravos.[47] Manoel, Sebastião, Benedicto e Francisco, naturais da Bahia e do serviço de lavoura, tinham entre 20 e 23 anos e eram cativos de quatro senhores diferentes: dois baianos, um carioca e outro de residência não informada. Em comum, todos eles pasapontado anteriormente, o registro de uma procuração que autorizava um indivíduo a vender o escravo já escondia, na realidade, uma relação de venda. Em troca desse poder, um “adiantamento” era pago ao senhor do cativo. E essa procuração poderia ser substabelecida a outros negociantes, feito o registro de sua compra e paga a meia sisa pela sua transferência.
Foi assim que o capitão Justino Gomes de Oliveira, senhor de Sebastião, passou uma procuração, permitindo que Antônio Chrisóstomo Corrêa vendesse seu escravo em Caetité/BA, no dia 14 de junho de 1868. Um mês e meio depois, já em Salvador, esse primeiro procurador repassou os poderes para Antônio José da Costa Júnior, que, em seguida, os repassou para Antônio Joaquim Vieira de Carvalho & Cia, do Rio de Janeiro. Dois meses depois, a faculdade de negociar Sebastião foi repassada, na Corte, para o referido Vilarinho, que vendeu o escravo em Campinas quase um ano e meio após a concessão da primeira procuração. que Sebastião esteve durante esse intervalo de tempo, sob o poder de Vilarinho.[48] - no seguinte. Escravo natural do Rio Grande do Sul, solteiro e com 24 anos de idade, Paulo teve sua venda autorizada pelo senhor, o capitão Agostinho Pereira de Almeida, morador em Santa Maria/RS, em 13 de novembro de 1878. Na procuração transcrita junto à escritura de compra e venda, João Pereira de Almeida, João Carlos Hungria e João Egydio de Sousa Aranha receberam a autorização de negociar o cativo “em qualquer parte deste Império”.[49] Assinado em Santa Maria, interior da província, esse documento permitiu a venda de Paulo em Campinas três meses após a concessão dos poderes. Por ter vindo de uma localidade no interior gaúcho, ligada a Sorocaba (residência de Hungria) pela rota de transporte de gado, e levando-se em consideração o tempo decorrido acompanhando uma das tropas a caminho do Sudeste.
Ao registrar-se o caminho de um cativo mediante os locais de estabelecimento e substabelecimento desses documentos, essa fonte deixa patente a diferença existente entre os casos vistos anteriormente. Podem-se ainda obter várias pistas sobre como os trajetos foram percor- etapas. E um ponto que chama a atenção na comercialização de escravos grande participação de pequenos comerciantes nesse negócio. Apesar de a atuação de alguns poucos grandes negociantes ser, em geral, mais que muitos indivíduos participaram desse comércio. Responsáveis por estabelecimentos de diversas naturezas, em alguns momentos eles acaabaixo:
Vende-se um crioulo de nome Theodoro com 18 anos de idade, cozinha, lava, engoma, e faz outros serviços, para ver-se na cadeia, e para tratar-se: na praia comprida com João Mannenback e na cidade com Ferraz Pinto.[50] vícios, acostumado ao serviço da roça e de remar em canoas: quem o pretender dirija-se para tratar à rua do Príncipe nº 9 na loja. Na mesma loja vende-se chá superior de São Paulo e 1.280 rs. a libra, diferentes qualidades muito em conta, assim como uma pequena porção de barbatana de baleia para coletes de Senhoras.[51]
Para a maior parte desses pequenos negociantes, o comércio de escravos não foi a atividade principal. Com muito maior frequência, anunciavam, nos mesmos jornais, a chegada de produtos em suas lojas ou seus outros negócios. O próprio Ferraz Pinto noticiou, pouco tempo depois, a chegada de novos itens e as diversas mercadorias à venda em sua loja, que variavam de tesouras a charutos, de pentes a camas.[52] Diante de tal publicidade e do pequeno número de cativos negociados por esse grupo,[53] pode-se entender que eles não se dedicavam a esse negócio, mas
Em Desterro/SC e em várias localidades do Rio Grande do Sul, especialmente as mais próximas do litoral, foi recorrente a transferência ou antecipação dos poderes de comercializar escravos de um negociante - postos comerciais maiores. Assim aconteceu em Canguçu/RS, quando, em 20 de maio de 1875, Joaquim José Barbosa concedeu poderes para que outros negociassem seu escravo Vicente, um campeiro de 26 anos, natural do Rio Grande do Sul. Segundo a procuração, essa autorização Souza & Cia, no Rio de Janeiro.[54] senhor de Vicente e Wenceslau, mas é possível que houvesse um contato negociante de Pelotas teria adquirido e enviado o escravo para o Sudeste[55] selecionadas no Sul do Brasil, observa-se que uma série desses documentos de 77,7% dos trabalhadores faziam referência à sua negociação no Rio de Janeiro, mostrando uma forte ligação de negociantes estabelecidos na capital gaúcha com contatos na Corte.[56] que outros procuradores estariam autorizados a vender os cativos também comerciante de fora da cidade apontava para procuradores em Pelotas e para Porto Alegre como o segundo entreposto mais citado, com somente uma referência ao Rio de Janeiro.[57] Já em Pelotas, a maior parte das procom o Rio de Janeiro também sendo seguidamente citado.[58] de futuros ou possíveis negociantes foi uma prática relativamente comum. Minha leitura sobre essa prática indica, em muitos casos, a existência de acordos prévios — e não declarados abertamente nessa fonte — entre negociantes ou entre eles e casas comerciais, resultando na construção de redes de transferência futuras ou possíveis. Digo futuras ou possíveis pelo em mais de uma localidade e não necessariamente em um mesmo caminho ou direção. Seriam, sim, possibilidades abertas a serem exploradas conforme o contexto ou o interesse do grupo de negociantes envolvido. de transferências desenhado por Manoel Antônio Victorino de Menezes. transferências, Victorino de Menezes passou frequentemente a adiantar SC. Assim aconteceu em 7 de janeiro de 1879, quando João Pombinho da Silva, residente em Desterro, constituiu como seus procuradores para realizarem a venda de sua escrava Benvinda, os senhores Manoel Antônio Victorino de Menezes, em Desterro — que, na realidade, fez o negócio com o comprador —, Frederico de Freitas Noronha, no Rio de Janeiro, e Manoel Jorge Graça, em Campinas.[59] Com a emissão desse único documento, o negociante de Santa Catarina já poderia promover o deslocamento do cativo e sua negociação, acionando aqueles contatos ou parceiros comerciais já conhecidos e também registrados na procuração. Cá está um exemplo de como essa fonte documental revela a construção da rede de transferência dos trabalhadores, apresentando os possíveis envolvidos na negociação.
Como já visto, Victorino de Menezes foi um comerciante de cativos muito ativo durante a década de 1870 em Santa Catarina, tendo realizado diversas viagens de venda desses trabalhadores para o Sudeste. Depois de estabelecer contatos nessa região, ele poderia se eximir de fazer viagens regulares para Campinas, responsabilizando-se, apenas, em providenciar o transporte dos escravos enviados aos demais integrantes de sua rede de contatos. A citação recorrente a casas comerciais por parte de negociantes estabelecidos em outras cidades também aponta para um movimentação da população escravizada.
Nos entrepostos comerciais, pela transferência dos poderes contidos nesses documentos, outros comerciantes ou seus agentes levavam os Gonçalves Pereira, responsável pela venda de 34 escravos em Campinas, parece se enquadrar como um negociante de escravos no interior, que de Janeiro, Gonçalves Pereira recebia nessa cidade o poder de negociar os trabalhadores, viajando, em seguida, para o interior paulista, onde realizava as vendas poucas semanas após ter sido autorizado. No dia 23 de maio de 1866, por exemplo, esse negociante agiu como procurador na venda de dez escravos para o tenente Francisco de Paula Moraes.[60] quais os cativos passaram até chegarem ao comerciante. Na Corte ou em localidades próximas, os senhores de alguns desses cativos tornaram Gonçalves Pereira o seu procurador para realizar as vendas. Mas, para os cativos de localidades mais distantes, de senhores da Bahia, de Abreu, estabelecido no Rio de Janeiro, esteve sempre envolvido, sendo de negociar os cativos para aquele que os levaria aos compradores. a presença repetida de “comerciantes procuradores” ocupados somente do Império ao interior paulsita. Nos registros em Campinas, o nome de Gonçalves Pereira apareceu sempre ligado a esse último trecho, em várias - da perceptível proximidade entre ambos os comerciantes, não é possível saber se o contato entre eles foi estabelecido mediante uma sociedade, com os dois dividindo os lucros da transação, ou se Gonçalves Pereira apenas adquiria, por conta própria ou escolha, os escravos de Ribeiro de Abreu. A primeira opção me parece mais provável, levando-se em consideração a repetição dessa ligação ao longo do período em análise.
Outra forma de negócio de cativos nos entrepostos comerciais foram as viagens de senhores ou de seus encarregados para aí adquirir diretamente essa mão de obra. Esses intermediários agiam de forma muito mais direta em relação aos desejos senhoriais, seguindo instruo fazendeiro Joaquim Paulino Barbosa Aranha, do termo de Campinas, procuradores no Rio de Janeiro para a compra de 25 escravos.[61] Além de na comercialização de cativos, esse documento aponta uma maneira de um fazendeiro do interior adquiri-los, evitando alguns atravessadores. A busca por melhores preços, evitando-se mais intermediários, e por um fazendeiro e não apenas o lote oferecido, são incentivos presentes nesse tipo de intervenção do comprador. comerciais de escravos em Campinas, salta aos olhos o encadeamento de “comerciantes procuradores”, assim como a formação de uma rede entre eles, para a execução das transferências. Foram localizados documentos que autorizaram a venda de 950 cativos no interior paulista, e observa-se, em cada um, o número de intermediários que atuaram, os quais poderiam variar de 1 a 28 procuradores.[62] Não obstante essa diferença, convém destacar que a participação média de procuradores em cada transação foi relativamente baixa, sendo de 2,11 indivíduos envolvidos para cada negociação efetivada.
Essas médias variam um pouco quando se comparam o número - cio, fosse interprovincial, intraprovincial ou local. A maior variação foi encontrada no comércio interprovincial, com um número máximo de 28 procuradores sendo autorizados a vender um cativo, ou recebendo poderes para isso, mesmo sem participar de fato. Mesmo assim, a média de procuradores em cada transferência foi de 2,35 intermediários, o que se aproxima dos números estimados por Robert Slenes.[63] O número de participantes foi um pouco superior à média de 2,22 procuradores em um e seis encarregados para cada transferência. Já no comércio local, o número de participantes em cada venda foi menor, com uma média de 1,12 indivíduos e uma variação entre uma e três pessoas. porque as transferências inter-regionais ou entre províncias envolviam, muitas vezes, escravos que eram repassados entre vários comerciantes. Ao mesmo tempo, encontram-se diversos casos de negociantes de províncias que viajavam para o interior paulista para vender os cativos sob seu poder, o que eliminaria ou, no mínimo, diminuiria a necessidade de outros procuradores e ajuda a entender a média baixa de participação nesse tipo de transferência.
Assim, as transferências interprovinciais que não envolveram a viagem de comerciantes provinciais ocupavam, geralmente, três procurae o encarregado de vender esse cativo no interior paulista, que podia ser - mas do Rio de Janeiro. Esse foi o tipo de rede comercial que respondeu foi a principal responsável por suprir Campinas de trabalhadores escravizados, na segunda metade do século XIX. A presente pesquisa reforça essa organização básica da rede de comerciantes, que era construída valendo-se do desenvolvimento de meios de comunicação e transporte que permitiam uma melhor comunicação entre diferentes pontos e mercados do Brasil, por meio do telégrafo e do desenvolvimento de linhas regulares de navios a vapor.[64]
Para entender-se melhor o contexto dessas transferências, cabe ainda examinar-se o tempo decorrido para cada uma delas. Para tanto, é preciso observar-se o intervalo entre a concessão do poder para vender-se um escravo, a primeira procuração que concede esse poder, e o momento de evidente o período no qual o procurador ou procuradores detiveram o poder tempo: o escravo poderia acompanhar ou não o procurador encarregado de vendê-lo, viajando com ele ou esperando em alguma localidade pela conclusão dos negócios. Assim, depósitos, viagens de venda e períodos de avaliação,[65] por parte de compradores, poderiam marcar o tempo em que esses trabalhadores estiveram em companhia dos comerciantes.
Como pode ser previsto, as distâncias distintas envolvidas no tempo transcorridos para a concretização dos negócios. No comércio onze dias e um máximo de 1.128 (cerca de três anos e um mês).[66] Houve uma redução drástica nesse tempo em relação a outras distâncias envolvidas nesse comércio: o intervalo médio entre a cessão do poder da venda e a escritura caiu para 26,06 dias nas transferências dentro da província observa-se, para a realização da venda, em ambos os casos, um intervalo mínimo de um dia ou até o mesmo dia da outorga da procuração, e um máximo variando de 2.100 dias, para o comércio intraprovincial (mais de 5 anos e meio!), a 329 dias, para aquele realizado localmente. A amplitude os escravos foram transferidos, alguns tendo saído do controle de seus antigos senhores e, quase imediatamente, sendo envolvidos em um novo cativeiro, ao passo que outros viveram, provavelmente, um longo tempo de incertezas entre o poder de procuradores e de possíveis compradores.
Há alguns exemplos de vendas que foram realizadas no mesmo dia levantar a questão de que a concessão dos poderes poderia ter-se dado somente para o cumprimento da formalidade de assinatura da escritura, senhores que já indicavam quem seria o comprador ou o vendedor, além do escravo desejado — às vezes, até o preço a ser pago já era estipulado — demonstram que a negociação já havia sido realizada, restando apenas a parte burocrática de pagamento de impostos, taxas e assinatura de tipo de caso como exceção, pois, para a grande maioria das transferências, parece ter havido um intervalo de tempo de alguns dias para estudo ou para todas as partes envolvidas, especialmente para os cativos.
Em resumo, as diferentes formas de participação dos negociantes mostram o interesse e as diversas possibilidades abertas para sua inserção - com a combinação de seus negócios construindo a rede de transferência de cativos entre as províncias brasileiras. E, para compreenderem-se melhor o cotidiano dessas transferências e a estrutura necessária para esse comércio, busco, na sequência, reconstruir os passos e a dinâmica das
de jornais locais, consegue-se entender, de maneira mais completa, os caminhos e as formas de participação que criaram o mercado interno de escravos e dentro delas, com sua introdução em contextos sociais — de convívio com senhores e outros escravos — e em contextos produtivos — de organização de trabalho e tipo de cultivo realizado — que lhes eram estranhos.
Em jornais locais, comerciantes anunciavam a compra de cativos para a revenda no Sudeste. Buscavam atrair senhores interessados em receber, à vista, bons pagamentos por seus escravos, como no caso, já exminado, de Manoel Antônio Victorino de Menezes. Por meio dos anúncios - portantes para senhores interessados em se desfazer de seus cativos. Além disso, observam-se casos nos quais esses comerciantes constituíam agentes para, em seu nome, comprar escravos no interior das províncias.[67] Com isso, eles buscavam ampliar seu alcance e, logo, sua capacidade de atrair mais cativos, propondo, provavelmente, um menor preço de compra.
A partir dos grupos de escravos vendidos em Campinas, pude observar que o envio desses trabalhadores ou as viagens dos negociantes realizavam-se quando havia um determinado número de cativos em sua posse. Nos entrepostos de comercialização e nos pontos de saída das províncias, a formação de grupos de trabalhadores esperando seu envio ou aguardando navios faria com que fosse necessário conservá-los juntos por algum tempo, o que exigiria um espaço estabelecido para mantê-los até o início dessas viagens.
O caso dos escravos rebelados na casa de comissão de um comerciante do Rio de Janeiro, analisado por Sidney Chalhoub, mostra um espaço de concentração desses trabalhadores comercializados no mercado nacional.[68] Ao longo da minha pesquisa, consegui encontrar apenas uma estrutura semelhante, de propriedade de Manoel Antônio Victorino de Menezes, em Desterro, a que cheguei não a partir das fontes relacionadas com compra e venda de cativos, mas buscando nominalmente esse personagem em outras de 1885. Entre outras ocorrências, o relatório informa um arrombamento realizado em uma pequena casa próxima ao porto da cidade, no bairro da Figueira,[69] casa de propriedade de Victorino de Menezes, na época já falecido, cujo nome serviu para designar uma ruela vizinha que levava às proximidades do porto, a “travessa do Victorino de Menezes”.[70] Por ser proprietário de outra residência em Desterro, ao lado da praça central e relativamente próxima da casa na Figueira, acredito que essa possa ter sido uma casa mantida para abrigar os escravos “em trânsito”.[71] Victorino capital catarinense e poderiam ter auxiliado na tarefa de vigiar e manter uma constatação de Oswaldo Cabral sobre a organização das atividades do negociante:
Vitorino estabeleceu o seu escritório bem no coração da cidade, na Praça, negros que comprava eram levados para um depósito que se localizava[72]
A presença desses escravos do comerciante, que ajudariam a tomar conta dos cativos adquiridos para negociação, não é de todo estranha. - delidade do escravo Tomé ao comerciante resistiu até a um levante dos[73] Com ou sem essa vigilância no depósito, o fato é que, depois de reunir-se um determinado número de mais altos por essa mão de obra. e destacada pela pesquisa de Robert Slenes, de que parte considerável dos cativos negociados foi transportada em linhas regulares de navios a vapor que ligavam o litoral brasileiro.[74] Em alguns anos, os jornais de as mercadorias transportadas. Entre esses, encontram-se cativos e comerciantes em trânsito. Em companhia de tais agentes ou mandados por eles “a entregar”,[75] os escravos teriam sido uma presença corriqueira nas linhas de vapor que ligavam cidades do litoral brasileiro.
Como apontado anteriormente, os prazos entre a outorga de uma procuração e seu uso para a venda de um escravo no Sudeste também reforçam a possibilidade do uso contínuo de transporte marítimo. Para cerca de um terço dos escravos negociados por Victorino de Menezes, por exemplo, o prazo entre a concessão dos poderes para negociá-los — a compra dos senhores em Desterro e região — e a venda em Campinas —[76] Esse período relativamente curto incluía, provavelmente, a formação de um grupo mínimo de cativos em Desterro, que era depois enviado ou viajava em companhia do comerciante até Campinas, onde era negociado.
O transporte por terra de grupos de escravos, contudo, não deve ser descartado. Muitas localidades do interior somente podiam ser alcançadas por meio de trens ou mesmo a pé, formas essas de locomoção que, às vecativos em uma localidade do sertão baiano, Erivaldo Neves mostra que grande parte desse comércio foi realizada pelo interior, por rotas e caminhos que percorriam o sertão até as províncias de Minas Gerais e São Paulo:
Pelo interior, os comboios de cativos dos dois gêneros e diversas idades acorrentados com gargalheiras ao pescoço para evitar fugas e sob ameaça de chicotes para manter a disciplina.[77]
A imagem que se pode construir para essas transferências é muito - dos, com muitos cativos realizando uma parte da jornada a pé e outra em navios. Walter Johnson e Michael Tadman descrevem grupos de cativos percorrendo o interior dos estados americanos para serem vendidos como cenas relativamente comuns.[78] da transmissão dos poderes para a comercialização dos cativos, consegue-se compreender um pouco melhor a preparação envolvida em suas transferências inter-regionais. Apontou-se, aqui, a necessidade de abrigo, nas localidades vendedoras, para a reunião de cativos para o embarque e observou-se, rapidamente, as formas de transporte utilizadas. Citei o exemplo da casa de comissão do comerciante José Moreira Veludo, no Rio de Janeiro, onde escravos eram reunidos e esperavam compradores. No mínimo, dois abrigos provisórios para os trabalhadores já teriam sido necessários até aquele momento: um na região exportadora, outro no
Para os comerciantes residentes em Campinas, uma de suas propriedades poderia abrigar os escravos postos à venda, enquanto eram negociadas suas transferências. Já os comerciantes em trânsito podiam se abrigar em casas de conhecidos ou em hotéis, a partir dos quais realizavam seus negócios. Os anúncios publicados nos jornais de Campinas, em 1877 e 1878, sinalizam o uso de hotéis como locais de contato para os interessados em adquirir cativos:
ESCRAVOS
No Hotel Oriental há para vender cinco moleques, boas pessoas de 15 a 19 anos.[79]
ESCRAVOS À VENDA
Vendem-se 4 escravos e 2 escravas de idade de 13 a 18 anos. que achará com quem tratar.[80]
Chama a atenção a falta de assinatura nos anúncios que, de toda forma, explicitam o que estava sendo negociado e onde encontrar o rescomércio interprovincial de cativos, ainda que focado em trabalhadores mais jovens do que o geralmente encontrado. Para ilustrar ainda mais a hospedagem de comerciantes nesses hotéis e, portanto, sua utilização como local de negócios, tem-se o anúncio do já conhecido comerciante Angelino Soveral, residente em Pelotas/RS, que atuava em Campinas:
ESCRAVOS
pedreiro, 1 é cozinheiro e 1 boleeiro. Estes de ofício dão-se a contento. Para ver e tratar no hotel Oriental com Angelino Soveral.[81]
do próprio hotel, para eles apropriados, ou em casas de terceiros. Nestas últimas, imagino que poderiam ocupar cômodos alugados ou arranjados cativos podiam ser vistos no hotel reforça a ideia de que estariam alojados naquele local. No caso norte-americano, relatos de ex-escravos indicam de outros comerciantes ou de pessoas que alugavam cômodos para essa finalidade.[82]
Outro ponto que percebi na organização desse comércio foi o tamanho do grupo de escravos trazidos para negociação. No comércio interprovincial, os trabalhadores foram transportados, em geral, em grupos de cinco a dez indivíduos, formando, assim, um conjunto que poderia ser mais facilmente controlado do que um grupo maior e, ainda assim, o comerciante obtinha certo lucro com o volume negociado.[83] Imaginando-se que esses negociantes viajavam sozinhos com esses grupos de cativos, turmas maiores poderiam aumentar a indisciplina e os riscos, tanto de fuga quanto de uma reação mais violenta, como destacado pelos estudos realizados sobre os Estados Unidos.[84] Apesar disso, grandes grupos de escravos também foram negociados, mas sem sobre eles, podendo-se supor a necessidade de colaboração de mais funcionários ou agentes para seu controle. Unidos foi a preparação dos cativos para a sua revenda. Segundo Michael Tadman, os escravos chegados de outras partes do país recebiam uma atenção especial dos comerciantes: passavam por um melhor tratamento para melhorar sua aparência, recuperando-se do desgaste da viagem.[85] O mesmo foi observado por Walter Johnson, que também relatou a preocupação dos negociantes com a busca pela cooperação dos cativos com a sua venda, demandando-lhes um bom comportamento e atitudes que facilitassem essas transferências.[86] Infelizmente, não consegui comprovar a existência desse tipo de preparativo e de conversas entre comerciante e cativos aqui no Brasil, apesar de essa prática ser plausível. Um indício disso pode ser encontrado na literatura da época:
Os corretores de escravos examinavam, à plena luz do sol, os negros e mocom a biqueira do chapéu nos ombros e nas costas, experimentando-lhes o vigor da musculatura, como se tivessem a comprar cavalos.[87]
O trecho acima, relatando o exame e a avaliação dos escravos durante sua negociação para posterior embarque, foi retratado por Aluísio Azevedo em O mulato e faz parte de uma passagem na qual o autor descreve o porto de São Luís do Maranhão, revelando a importância e a recorrência desse comércio. Tal descrição não teria causado, possivelmente, estranheza aos leitores acostumados a tais cenas na sociedade cotidianas de então. Sua descrição é interessante por revelar que a avaliação do cativo não se restringia apenas ao exame físico, mas passava também por questionamentos que poderiam autenticar a veracidade de sua disciplina. Ela indica, ainda, a possibilidade de as práticas de negociantes norte-americanos terem sido também usadas pelos brasileiros, em uma tentativa de valorizar os trabalhadores negociados. Com a análise desenvolvida neste artigo, espero ter contribuído para a compreensão da organização e da prática cotidiana do mercado interno de cativos. Partindo de indícios levantados por Robert Slenes e de conceitos por ele desenvolvidos, o presente artigo avança na problematização das estratégias de atuação de comerciantes de escravos na segunda metade permitiram a construção de uma rede nacional de comércio de cativos. possíveis as transferências analisadas por outras pesquisas relativas ao comércio interno de cativos, como as de José Flávio Motta e Joyce Oliveira, abrindo um campo de debates mais aprofundado sobre essa temática. Procurei demonstrar novos dados que indicam, de forma clara, a organização desse negócio, a importância dos entrepostos para a montagem dessas redes e as diversas possibilidades de arranjos e formas de atuação dos comerciantes.
Pequenos e grandes negociantes, especializados ou não, todos utilipara centros provinciais ou mesmo entrepostos nacionais de comerciaBrasil impulsionava essas transferências por parte dos negociantes, que usavam seus contatos comerciais para inserir os trabalhadores de diversas desse negócio se deu a partir da conexão entre comerciantes espalhados por todo o Brasil. Apesar dos riscos, a transferência de cativos era um portanto, ser percebido como lucrativo, mesmo por seus participantes eventuais ou não especializados.