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A UNIVERSIDADE EDUARDO MONDLANE NO PROJETO PÓS-COLONIAL DE EDUCAÇÃO EM MOÇAMBIQUE, 1976-1993
Afro-Ásia, núm. 54, 2016
Universidade Federal da Bahia

Artigos



Recepção: 01 Dezembro 2015

Aprovação: 06 Julho 2016

Resumo: Neste artigo, são analisadas políticas educacionais desenvolvidas em Moçambique após a independência frente a Portugal. O recorte estabelecido diz respeito à transformação da Universidade de Lourenço Marques em Universidade Eduardo do ensino superior da órbita do Estado mediante a autorização para criação de país. Objetiva-se compreender o projeto educacional pós-colonial como recurso aplicado pela FRELIMO para consolidar um Estado Nacional, cuja inspiração socialista e apoio internacional foram marcados por posturas nacionalistas orientadas às necessidades do Estado mais que dos cidadãos. Apontam-se críticas a esse sistema surgidas dentro da Universidade bem como sua derrocada a partir da instalação do Programa de Recuperação Econômica, com aval do FMI, em 1987.

Palavras-chave: Política educacional, nacionalismo, Moçambique, marxismo, Rebeldes do Aquário.

Abstract: In this paper, educational politics developed by Mozambique are considered after the national independency from Portugal. The chronological period under attention deals with the transformation of Lourenço Marques University into Eduardo Mondlane University (1976) as an important part of Mozambican revolution; and the output of Mozambican Educational System from the State control through national permission to create private universities (1993). The main point is to comprehend the Post-Colonial Education project as a resourceful instrument applied by FRELIMO to raise the National State. Besides its socialist inspiration and international support, this project was remarked by nationalist approach toward State necessities rather than people’s one. Critics to that system that emerged within the Eduardo Mondlane University are pointed out as well as the falling apart of that nationalist-socialist approach after the Economic Recovery Plan, supported by IMF, in 1987.

Keywords: Educational politics, nationalism, Mozambique, Marxism, Aquarius’s Rebels.

Neste artigo, são analisadas estratégias governamentais moçambicanas tangentes à educação, visando ao desenvolvimento nacional. Com o objetivo de compreender como o projeto de educação pós-colonial foi construído em Moçambique e quais as suas - quisa os anos entre 1976 e 1993. Tal período destaca a exclusividade do - mação da Universidade de Lourenço Marques em Universidade Eduardo de universidades privadas. Foram realizadas pesquisas no Arquivo Histórico de Moçambique (AHM), no Centro de Estudos Africanos (CEA/ UEM) e no acervo Cientistas sociais de países de língua portuguesa: histórias de vida, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV),[1] além de entrevistas com professores e pesquisadores que estão/estiveram vinculados à UEM ou

A pesquisa foi construída a partir da referência conceitual aos processos nacionalistas em África, compreendendo a adesão ao projeto socialista como estratégia para o desenvolvimento nacional. Embora Moçambique tenha desempenhado destacado papel como força socialista internacionalista no contexto da África Austral e da formação da Linha de Frente, o socialismo foi adotado com pragmatismo no cenário doméstico, visando ao suprimento das necessidades nacionais, mormente no tocante ao campo educacional. Assim, constatou-se que o projeto de educação pós-colonial moçambicano amparou-se na articulação entre teoria e prática educativa e social, sobretudo na educação básica. Não obstante, na Universidade, o consentimento da crítica ao modelo educacional ideologicamente orientado convivia com a repressão a práticas que buscassem subvertê-lo em favor da defesa de liberdades individuais. Tal contradição é explicada como característica do nacionalismo moçambicano e sua agenda desenvolvimentista e autoritária.

ção proposta por Norberto Bobbio, que o caracteriza pelo exercício de comando incontestável e obediência incondicional. Ademais, destaca que:

A autoridade, no caso, é entendida em sentido particular reduzido, na medida em que é condicionada por uma estrutura política profundamente hierárquica, por sua vez escorada numa visão de desigualdade entre os homens e exclui ou reduz ao mínimo a participação do povo no poder e comporta normalmente um notável emprego de meios coercitivos. [...] é uma imposição da obediência e prescinde em grande parte do consenso dos súditos, oprimindo sua liberdade.[2]

de ideias e práticas socialistas dadas ao interesse do Estado frelimista, busca-se compreender a formação do ensino superior em Moçambique, no qual as ambiguidades conciliadas no projeto político nacional deram entre a burocracia universitária, como braço do Estado moçambicano, sua inserção na sociedade a partir do trabalho, considerado estratégico pelo governo e por ele dirigido. O argumento central é o de que o modelo educacional moçambicano, sob viés marxista-leninista, foi altamente autoritário. Todavia, enfrentou resistências por parte da sociedade civil. práticas educacionais em Moçambique pós-independência vinculadas às internacional, mormente brasileiros, na formação do ensino superior - bilização estudantil contrária ao controle exercido pelo Estado sobre vividas na educação após a inserção moçambicana na economia de mercado. A partir desses pontos, pretende-se compreender a formação do sistema pós-colonial de educação em Moçambique, apontando a práxis nacionalista atrelada às perspectivas socialistas como instrumento para construção de um Estado Nacional autoritário.

Educação e socialismo em Moçambique

Em 1975, a Universidade de Lourenço Marques era a única instituição de ensino superior em Moçambique. Criada, em 1962, como Estudos Gerais Universitários de Moçambique, passou à condição de Universidade em 1968.[3] Em descompasso com outros regimes colonialistas europeus que se desenvolviam desde o século XIX, Portugal ainda exercia controle direto sobre os territórios africanos na segunda metade do século XX e buscava concentrar os estudantes do “Império Português” nas terras metropolitanas, - listas na elite colonial. Desejo frustrado, uma vez que a Casa dos Estudantes do Império, instituição criada em 1944 para abrigar estudantes coloniais, tornou-se foco de anticolonialismo, tendo sido encerrada em 1965.[4]

Lourenço Rosário acredita que o estabelecimento de centros de estudos superiores em Angola e Moçambique, no início dos anos 1960, deva ser visto como estratégia portuguesa para manutenção de poder sobre espaços coloniais diante das demais independências africanas, mediante a cooptação das elites. Conforme o autor, a formação em nível superior nas colônias pretendia instruir uma elite local para que continuasse a administrar o colonialismo.[5] Tal formação era cronicamente dependente do centro europeu, pois muitos cursos eram ministrados parcialmente: uma parte geral e introdutória na colônia, a continuidade em universidades lusas.[6] Em Moçambique, o processo tardio de modernização empregado por Portugal, sob pressão internacional e aumento da resistência local,

Após a emancipação, a Universidade de Lourenço Marques vivenciou intensa evasão docente e discente. Muitos professores eram de oriresidentes em Moçambique, majoritariamente brancos, com conteúdos da Europa, em detrimento de temas africanos. Após a independência, entre 1975 e 1978, o número de estudantes na única Universidade do país caiu de 2.433 para 740. Entre os professores, restaram menos de 10, contabilizados entre todos os cursos da instituição.[7] Vivia-se a fase da construção da nação e, naquele momento, conforme o Decreto n.º 19, de 18 de maio de 1976, tinha “particular importância a formação de quadros, capazes política e tecnicamente de assegurar um desenvolvimento são e harmonioso das nossas forças produtivas”.[8]

Nesse cenário marcado pela luta de libertação nacional e fortalecimento da ideologia socialista em Moçambique, o papel atribuído à Universidade dava-lhe outro ânimo. Desde 1976, a instituição havia se tornado Universidade Eduardo Mondlane, em homenagem ao primeiro presidente da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO),[9] assassinado em 1969. Além de renomeada, à UEM exigiu-se nova postura diante das necessidades nacionais. No Decreto n.º 19/1976, lê-se que:

ruptura deliberada e consciente com o passado colonial e burguês, a Universidade, parte integrante do sistema educacional no nosso País, - cias revolucionárias adquiridas durante a guerra popular de libertação econômica e social do nosso País, para a consolidação e fortalecimento do nosso Estado operário-camponês.[10]

As políticas educacionais eram compreendidas pela FRELIMO como recurso em busca de objetivos estratégicos cujo alcance superava a formação de indivíduos, impactando todo o conjunto da sociedade. A Universidade estava ligada às demandas do desenvolvimento, e dela se cobravam resultados, sobretudo em matéria de recursos humanos, para suprir as necessidades nacionalistas. Nesses termos, a educação era vista como investimento cujo objetivo era moldar a sociedade de acordo com as crenças estabelecidas pelo governo e as exigências — estratégicas ou condicionadas — do momento histórico, político, econômico e cultural vivido e desejado para o futuro. Nessa concepção, o Estado é o agente que opera os sistemas educacionais organizados, “controla, regula, coordena, propósito desse sistema educacional é, portanto, “criar um cidadão leal e competente”,[11] suprimindo as demandas nacionais de forma coordenada e planejada pelo centro do poder político.

No contexto da cultura política da FRELIMO, a formação educacional da população, no plano acadêmico-intelectual e ideológico, era considerada tarefa revolucionária. Ainda na luta pela independência, em Conferência do Departamento de Educação e Cultura da FRELIMO, que:

A tarefa principal da educação, no ensino, nos livros de texto e programa, coletiva, que nos permita progredir no processo revolucionário. A educação deve preparar-nos a assumir a nova sociedade e as suas exigências. A educação deve dar-nos uma personalidade moçambicana, que sem subserviência alguma, assumindo a nossa realidade, saiba em contato com o mundo exterior, assimilar criticamente as ideias e experiências de outros[12]

A educação era vista pelos dirigentes da Frente como um processo de emancipação da população moçambicana submetida ao jugo colonial e, para tanto, deveria erguer-se sobre os alicerces da luta, instância responsável por forjar as consciências. Assim, a educação pós-independência esteve marcadamente ligada à experiência da guerra e à libertação/criação educacional era enorme — 93% da população era iletrada,[13] havia poucas Além disso, com a conquista da independência, muitos portugueses deixaram o país, criando um vazio de mão de obra capacitada, sobretudo de professores, para atuar na construção da nação.

Uma das primeiras medidas adotadas após a independência, no ensino. O objetivo era organizar um único e vasto sistema educacional, - çambicanos ao ensino formal.[14] A centralização da educação no governo possibilitou “melhor controle dos conteúdos dos programas, da ideologia e das políticas de educação”.[15] Caberia ao ensino a tarefa de construir o tecido social, tendo a escola e a aldeia como locus privilegiados para a disseminação do “Princípio da Ligação entre Escola-Comunidade-Produção”, cujo objetivo era combater o caráter colonial e elitista da educação. Em 1984, a delegação moçambicana na 39ª Conferência Internacional Ciência e a Cultura (UNESCO), realizada em Genebra, apresentava sua contribuição aos princípios da educação socialista. Em sua concepção:

Era necessário valorizar o trabalho e a produção manuais e desenvolver uma nova atitude nos alunos, bem como professores. Assim, alunos e professores tiveram que participar gradualmente na produção agrícola (em pomares e fazendas pertencentes às escolas), bem como em ativida- às escolas. Durante feriados escolares, alunos e professores organizavam atividades produtivas em colaboração com os operários e camponeses. Por outro lado, operários e camponeses participavam na resolução de problemas escolares. Esta prática buscava fazer com que tanto os alunos quanto os professores entendessem que aprendizagem, conhecimento, técnica e ciência são inúteis por si mesmos. Somente colocados em prática em uma dada realidade é que eles se tornam um benefício para o povo.[16]

O excerto acima integra o relatório moçambicano apresentado à Conassuntos educacionais. O documento indica o papel central desempenhado pelas escolas e pelas machambas comunais e campos de aldeamento póscoloniais como espaços de transformação da mentalidade social por meio do trabalho.[17] Havia, portanto, a perspectiva de construção da educação nacional sobre os pilares da luta de classe, controle dos meios de produção e associação entre saberes e práticas, tendo em vista o disciplinamento dos corpos e da moral, com o objetivo de superar aquilo que era entendido como vícios do colonialismo burguês: prostituição, vadiagem, individualismo. A educação deveria elaborar o “homem novo moçambicano”.[18] O conhecimento serviria à sociedade para emancipação colonial, na superação dos problemas estruturais vigentes e na construção da unidade social por meio do trabalho, através do tempo, representado na associação entre as massas trabalhadoras (camponeses, operários e professores) e o futuro, os estudantes.

Calcada no nacionalismo, a ideia de uma revolução moçambicana permeou-se pelo contato ativo com centros socialistas, sobretudo no Leste europeu, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), e em Cuba, além da relação amistosa do regime frelimista com vários partidos comunistas ao redor do globo. Em 1978, a Frelimo enviou uma delegado Socialismo e Comunismo e o Desenvolvimento Mundial. O portavoz da delegação, Sérgio Vieira, expressava a experiência e a postura moçambicanas no tocante à educação, mormente ao currículo escolar e sua função na emancipação das consciências num regime pós-colonial:

Havia os que pensavam que os programas, os métodos, os livros de em si, superior àquilo que dispúnhamos, àquilo que poderíamos fazer. fortes da nossa experiência, fortes das experiências dos países socialistas preparar os programas, os livros de texto e manuais em tudo superior aos do inimigo. Recusamos que elementos ligados à antiga polícia política, ao partido fascista e forças fantoches, às forças de repressão acesso ao ensino como professores, ou alunos.[19]

A luta de libertação estava presente no imaginário moçambicano e, por isso, Vieira exprimia a censura a ser aplicada a qualquer pessoa que revolucionário que se dedicava ao ensino. A escola foi considerada como centro da produção da mentalidade marxista.[20] Assim, ao negar a ciência como força superior à luta de classes, Vieira demonstra a compreensão da educação como instrumento revolucionário, percebendo as disciplinas e o próprio currículo como estruturas adaptadas aos objetivos políticos que as instituem.

Em Moçambique, educação e justiça eram temas que despertavam exclusivista e reprodutor de estruturas excludentes que essas áreas possuíam no período colonial. Após a independência, conforme expressava Sérgio Vieira, havia amplo desejo de começar de novo, abandonando aquilo que havia sido produzido no período colonial e construindo o país sobre bases estritamente nacionais. No tocante ao currículo, a experiência da guerra de libertação era amplamente mobilizada. O currículo nos diferentes níveis de educação estava a ser formado considerando-se sua dupla dimensão: o sentido dos temas no interior das disciplinas e a escolha pedagógica com sentido formativo geral.[21] Em 1984, a delegação

Levando em consideração as ricas experiências adquiridas nas áreas libertadas durante a Guerra de Libertação Nacional, conteúdos e programas que eram as raízes da alienação e despersonalização dos moçambicanos, Religião e Moral, foram removidos e outros, como Educação Política, foram introduzidos.[22]

Não obstante o desejo de transformação e apropriação da luta de classes como conceito-vetor da nova sociedade moçambicana, o governo frelimista se deparava com intensa escassez de recursos, materiais e humanos, para empreender tal processo. Buscando suprir a carência cooperação internacional. Tal cooperação ocorria, destacadamente, com países socialistas e grupos da sociedade civil, como os partidos comunistas (chileno, italiano, brasileiro, etc.), as Brigadas Vermelhas italianas e outros.[23] Além desses, havia os indivíduos cooperantes — estrangeiros que, àquela altura, atuavam em Moçambique —, - de democracias ocidentais europeias, Estados Unidos, Canadá e outros.

Mediante regimes de cooperação, muitos professores foram enviados para atuar na UEM. Entre 1977 e 1983, o orçamento do Estado dedicado à educação mais que quadruplicou, passando de 6% a 25%.[24] Ainda assim, os problemas eram enormes, visto que a única Universidade do país não possuía, em 1982, nem metade do número de alunos de 1975. A implantação do Sistema Nacional de Educação, em 1983, era vista como possibilidade de acelerar o processo de desenvolvimento humano moçambicano.[25] Entretanto, 1982 foi o ano em que Moçambique Monetário Internacional (FMI) e com o Banco Mundial. Não tardou para o campo educacional.

Durante o período de vigência das políticas socialistas de educação, o entrelaçamento de teoria e prática esteve presente no discurso civil internacional. Desejava-se um currículo que suprisse as demandas construir a nacionalidade com base nos pilares da luta de classes como subsídio para a continuidade da libertação colonial, em busca de um Estado independente e autônomo. Contudo, após seu endividamento e política entraria em vigor em Moçambique. A partir de 1987, tal agenda dos resultados foram a desvalorização do trabalho docente[26] e, em 1993, a abertura do setor educacional ao capital privado.

Grupos de esquerda e cooperação internacional: o caso brasileiro

Após a independência, Moçambique viveu o período de construção da nacionalidade a partir do pilar da luta de classes, como síntese do homem novo moçambicano.[27] Paralelamente a esse processo, indivíduos e instimoçambicana contra o colonialismo. Nesta seção, serão abordadas formas de mobilidade e cooperação, destacando-se iniciativas de democracias país individualmente ou em pequenos grupos. Serão destacados casos de brasileiros cooperantes. momento em que os projetos revolucionários de uma geração poderiam ser colocadas em prática. Iraê Lundin foi uma dessas pessoas. Brasileira, deixou o Brasil durante a ditadura militar, refugiando-se na Suécia, onde se graduou em Ciências Sociais e doutorou-se em Geopolítica. Como dominava o idioma português, integrou uma equipe que, por iniciativa sueca, foi a Moçambique, em 1983, apoiar o jovem país africano nas áreas de saúde e educação. Desde então, passou a viver no país e hoje é Mobilizando suas memórias acerca daquele período, Iraê Lundin expressa o caráter revolucionário de uma geração, o intenso desejo de mudar o mundo num cenário marcado pela Guerra Fria. Naquele momento, a presença estrangeira em Moçambique era marcada pela possibilidade de colocar ideias em prática:

Nós estávamos cheios de utopias nas nossas cabeças! E era aquilo que a gente não tinha conseguido fazer nos nossos países, não é? Para o bem e para o mal. Muito mal também foi feito aqui, por causa dessas coisas. Foram trazidas ideias totalmente estapafúrdias, e, depois, se pagou muito caro por isso. Mas, realmente, tinha uma junção muito grande de intelectuais: nós, mais intelectuais europeus de esquerda, e mesmo americanos e canadianos. Intelectuais que tentavam construir aquilo que em sua cabeça estava, e Moçambique permitiu isso, duma certa maneira.[28]

Naquele momento, Moçambique abria-se como um laboratório de experimentação política e social, instrumentalizado a partir do arsenal teórico marxista-leninista. Foi intensa a cooperação internacional advinda de países do bloco comunista, mas não se restringia a ida de pessoas oriundas das da América Latina, que vivia fortes ditaduras no Cone Sul. Nesses casos, as construídas no nível dos Estados, que teciam acordos de cooperação nos quais se incluíam o envio de pessoas. Na Universidade Eduardo Mondlane, a cooperação internacional nessa categoria possibilitou a incorporação de muitos professores. Diante do reduzido pessoal apto ao trabalho na UEM,

Então tive que inventar: o contínuo mais antigo passou para chefe de assim o que podia [...]. Claro que corremos riscos e pagamos algumas país, que mandava vir logo 20, 30 ou 40 docentes, tivemos que nos ligar casos em que... apareceram casos de sucesso [...] e apareceram-nos casos de insucesso [...]. São riscos que se tinha que correr.[29]

mento na Faculdade de Letras no período posterior à independência, as memórias mobilizadas pelo seu então diretor remetem a outro espaço de entre Estados, houve a atuação de forças transnacionais em Moçambique por meio da sociedade civil, sobretudo de partidos comunistas de vários países, que também tiveram importante papel na construção do país. A em Moçambique, que redes de contatos foram mobilizadas, partindo, sobretudo, de quatro troncos: o Partido Comunista Brasileiro (PCB), - que pretendiam ingressar no país.[30]

A atuação de brasileiros naquele país estava ao abrigo dessas redes internacionais, construídas pelas esquerdas políticas mundiais, com destaque para o Partido Comunista Brasileiro. Para a cerimônia de independência, realizada em 25 de junho de 1975, não havia sido convidado nenhum representante do governo brasileiro, porém o Brasil estava representado por personalidades da esquerda, como Luís Carlos Prestes, líder do PCB, partido colocado na clandestinidade e perseguido pela ditadura militar, em vigor naquele momento, e Miguel Arraes.[31] A principal interlocução brasileira com Maputo se dava através do PCB, porque o governo brasileiro manteve-se aliado a Portugal durante a maior parte da luta contra o colonialismo português na África e, após a inde-[32]

Ainda que houvesse, em Moçambique, brasileiros não vinculados ao PCB, o aval desse partido era, muitas vezes, o vetor que orientava a natureza da relação do Estado moçambicano com esses homens e mulheres. Ilustrativo é o caso do pedido de autorização para viagem internacional feito pelo casal Sonia e Daniel Aarão Reis. Ambos estavam naquele país por iniciativa autônoma e atuavam como professores no curso de História da Universidade Eduardo Mondlane. Em carta de 02 de agosto de 1977, Sonia e Daniel Reis explicavam ao reitor da UEM, Fernando Ganhão, a condição de refugiados políticos em que se encontravam, com passaportes recolhidos pelo governo brasileiro, e necessitavam de títulos de viagem moçambicanos para poder se deslocar ao exterior. Para tanto, solicitavam intervenção do reitor junto aos órgãos responsáveis.[33] por Sonia e Daniel Reis, Fernando Ganhão recebia uma comunicação vossa solicitação aquando de nosso último encontro, informo-vos que não vemos nenhum inconveniente no fornecimento de documento de viagem a Daniel Aarão Reis e Sonia Reis”.[34] Maurício Seidl era representante do Partido Comunista Brasileiro em Maputo, vindo da Argélia. Piloto das Forças Aéreas Brasileiras, Seidl foi cassado em 1964 e refugiou-se em Paris, engajado no PCB. De lá, partiu para a Argélia e trabalhou na recém-criada Air Algerie, auxiliando na formação de novos pilotos. Seguiu para Moçambique, onde formou pilotos e atuou “como PCB chefe”,[35] espécie de representante do PCB em Maputo. Portanto, ainda que não estivesse formalmente vinculado ao PCB, o casal estava sujeito a ele, garantia do salvo-conduto político e ideológico referente aos brasileiros que cooperavam com Moçambique.

Conforme destaca Desirée Azevedo, muitos brasileiros que se destinavam a Moçambique, entre 1975 e 1979, não o faziam na condição de exilados, mas mediante contratos de trabalho com o Estado moçambicano. A entrada no país era possibilitada por uma rede internacional de refugiados brasileiros, a partir da Europa, e sua indicação para ocupar postos de trabalho em países socialistas. O primeiro brasileiro a chegar Azevedo é Sakamoto, assim relata:

Nessa época por causa das particularidades do... do... do... exílio brasileiro, muita gente já tinha reaproximado com o PCB, em 75, 76, 77 e tal. Principalmente na Europa, havia uma reaproximação de muita gente com o PCB. Mas o próprio PCB não tinha muita... no exterior, na Europa, por exemplo, não tinha... não levava uma linha muito mais dizer, quem procurava, tinha assim uma abertura no sentido de dizer “dá pra ir trabalhar. Pode ir trabalhar lá. A gente pode indicar você”.[36]

a Moçambique ou a qualquer outro lugar a partir de redes construídas ainda, que, em 1977, o dirigente do PCB, Luís Carlos Prestes, articulou em Moçambique, com o aval do Partido. Entretanto, partidos comunistas, o brasileiro e outros, não foram a única força transnacional a facilitar a circulação de pessoas e ideias. Em entrevista, Isabel Casimiro, professora

[...] aqui, havia vários tipos de esquerda, não é? Havia a esquerda do Partidão, havia a esquerda louca, não é, como a gente chama a ultraesquerda que agora já não sei se estão na ultradireita ou então... sei lá! Porque as ultras sempre se juntam, não é? E havia outros mais moderados. [...] Mas eu convivia mais com o pessoal do Partidão, do Partido Comunista Brasileiro. Também eram em maior quantidade, não é? Mas a gente tinha aí de tudo![37]

Além de atrair professores estrangeiros, a UEM buscou formar seu corpo docente a partir de alunos e ex-alunos. Imediatamente após a independência, a Universidade, devido à escassez, passou a improvisar mão de obra, utilizando alunos-monitores como recursos humanos na docência e na pesquisa, sob orientação de um professor. Somente assim seria possível dar continuidade às atividades acadêmicas.[38] Desse grupo de alunos saíram muitos docentes, incorporados na instituição tão logo terminaram os estudos.

A capacitação de recursos humanos moçambicanos no exterior

Em 07 de janeiro de 1978, o reitor da UEM enviava ofício à Comissão do ano anterior no quadro docente. Segundo o ofício, a indicação se dava a partir de critérios de formação política e pedagógica, selecionando estudantes entre aqueles que haviam atuado na condição de monitores. Entre eles, estavam Carlos Manuel Dias Coelho, Maria Helena Mota - ne, Berardo Emanuel Mercês Sousa e Jorge Amaro Ventura Leite do[39]

A política de formar o corpo docente da instituição a partir de cooptação dos melhores alunos da graduação foi estratégia muito comum para o fortalecimento da Universidade Eduardo Mondlane. O engajamento no nacionalismo frelimista em Moçambique era condição para incorporação desses estudantes nos braços do Estado, dentre os quais a Universidade. A trajetória acadêmica de Isabel Casimiro, antes de ingressar na UEM na condição de docente, pode esclarecer o que se entendia como “critérios de formação política”, como informado pelo reitor ao indicar estudantes ao professorado, em 1978:

Eu comecei a trabalhar em [19]80, não é, porque eu comecei a estudar em [19]73, interrompi. Eu fui de férias a Nampula, onde eu nasci, depois do 25 de abril, não é? E lá, comecei a trabalhar com a FRELIMO, com aulas, porque os professores portugueses estavam indo embora. Dar aulas de língua portuguesa [...] Então dei aulas durante dois anos e depois disse “agora chega, eu tenho que continuar a estudar”, não é? E em [19]77 eu [19]79 e fui logo convidada para vir trabalhar aqui em [19]80.[40]

ma Lourenço Rosário, “o corpo universitário, seus dirigentes, docentes, quadros técnico-administrativos e estudantes eram considerados quadros da revolução e, por isso, cabia também a cada um uma tarefa concreta nas grandes linhas do processo revolucionário”.[41] O engajamento dos indivíduos na construção do país era buscado, entre outros meios, pela expressão “a luta continua”, em documentos, jornais, pronunciamentos e discursos, como recurso para atrair e mobilizar partidários do novo assim a luta continua”.[42]

Além de buscar os melhores estudantes que compartilhavam os ideais defendidos pela Frelimo, o Estado, por meio da Universidade Eduardo Mondlane, investia na formação de seus colaboradores em nível de pós-graduação. Embora os principais e primeiros parceiros de Moçambique na formação de quadros para a Universidade tenham sido os países socialistas, não havia uma restrição impositiva. É certo que acordos de cooperação entre Moçambique e a União Soviética ou a República Democrática Alemã facilitavam o envio de estudantes a esses centros. Não obstante, houve quem fosse realizar continuidade de estudos em outros lugares. na UEM em 1978 na condição de professores, conseguimos mapear a continuidade de estudos de dois. Antes mesmo da solicitação formal de contratação de Berardo Emanuel das Mercês e Sousa na condição de docente, realizada em janeiro de 1978, a Reitoria enviava um ofício para passagem aérea de Maputo com destino a Nova Yorque em seu nome. O jovem professor contratado para o curso de Engenharia Eletrotécnica iria aos Estados Unidos “frequentar curso de computadores”.[43] Alguns meses depois, em 12 de setembro de 1978, novo ofício partia da Reitoria rumo compra de passagens a dois “docentes em continuidade de estudos”: Gulbano Ferreira Dias, contratado em janeiro daquele ano para lecionar[44]

A busca pelos melhores alunos, o investimento na continuidade fortalecimento da Universidade Eduardo Mondlane e a expansão do ensino superior em Moçambique. É preciso destacar que, com tais medidas, o próprio Estado. Conforme relata a professora Maria Paula Meneses — que terminou o mestrado em História, em 1987, em Leningrado, atual São Petersburgo, na então URSS —, ainda que não tivessem sido previamente contratados, os pesquisadores eram encaminhados para o Estado ao retornar da formação no exterior. “O tal processo determinista, muito coordenado, muito centralizado pelo Estado. Portanto, nós, quando voltamos, já sabíamos mais ou menos para onde é que nós íamos trabalhar, e eu fui para a Universidade”, declarou.[45] A causa do nacionalismo era expressão discussão acerca de formas de desenvolvimento amparadas na educação. rior na África Central foi fruto do nacionalismo, e governos nacionalistas construíram universidades desenvolvimentistas, para suprir as necessidades locais, econômicas e sociais.[46] As necessidades moçambicanas para o desenvolvimento eram de natureza primária: faltavam médicos, engenheiros, professores, veterinários. Era preciso formar mão de obra país. Diante desse cenário, a professora Teresa Cruz e Silva, vinculada, à época, ao Departamento de História, analisa o envio de docentes para formação no exterior em duas frentes: por um lado, havia a necessidade de continuidade dos estudos, em todas as áreas, e por outro, as Ciências Sociais não eram área prioritária, o que permitia a muitos professores a possibilidade de seguir na pós-graduação, nos anos iniciais do pós-in

E a ideia era que as prioridades do país não eram as Ciências Sociais. [...]. Então, era formar professores, formação de professores nas áreas de Humanidades e outras áreas, formar pessoas para serem pilotos da força aérea, formar muitos médicos e engenheiros, agrônomos e veterinários. Eu acho que a sabedoria do reitor da Universidade foi muito importante. Porque todas as pessoas que estavam a estudar enquanto ensinavam na Universidade, como as pessoas da minha geração, foram enviadas para o estrangeiro para estu-[47]

Paralelamente ao envio de professores para continuidade de estudos no exterior, havia a necessidade de capacitar pessoas para ingressar na Universidade. O nível superior representava a ponta de um iceberg propunha erradicar o analfabetismo, introduzir a matrícula obrigatória as necessidades econômicas e sociais do país. Contudo, o processo de cimento do número de alunos não foi acompanhado da extensão da rede escolar...[48]

Contestação: o “marxismo histérico e diabólico”

O ensino superior moçambicano foi construído com apoio da comunidade internacional alinhada com as ideias socialistas. Acordos de cooperação com países socialistas e partidos comunistas eram geridos pela Frelimo acordos, alguns previam o envio de professores para lecionar na Universidade, com destaque para as áreas de Ciências Exatas e Biológicas, estratégicas para o desenvolvimento nacional e a produção de mão de obra especializada. Em contrapartida, era exigido o ensino das teorias marxista e leninista. Inseridos no currículo universitário em consequência de acordos de cooperação internacional, tais estudos encontravam resistência junto aos estudantes e professores moçambicanos.

Teresa Cruz e Silva, professora aposentada da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da UEM, graduou-se na Universidade de Lourenço Marques e, logo após a independência, passou a atuar como professora na instituição. Em suas memórias, destaca a resistência dos estudantes diante do ensino do marxismo-leninismo, ou “marxismo histérico e diabólico”:

[...] nós temos um peso muito grande em questão de cooperação internacional dos países do Leste. [...] São acordos que tem que ver com as políticas que o próprio Partido tem que traz[em] uma série de problemas para nós, como, já deve ter ouvido dizer, era obrigatório o ensino das disciplinas de Marxismo e Leninismo. E quem era responsável por este ensino eram os nossos amigos do Leste, da República Democrática Alemã, principalmente, alguns da União Soviética e mais outros, mas em menor número. E o ensino era de tal maneira dogmático, que os estudantes o chamavam marxismo histérico e diabólico, porque era extraordinariamente dogmático. E havia uma reação muito grande de todos os estudantes a esse tipo de ensino que era realizado aqui.[49]

O ensino da teoria marxista-leninista estava de acordo com o interesse na formação ideologicamente orientada pela Frelimo, a partir do em 1977. Nos pacotes de cooperação com os países alinhados à URSS, estava incluído o ensino universitário. Diante dessas contingências políticas, foi criada a Faculdade de Marxismo e Leninismo, na UEM. Manuel Garrido Mendes Araújo, ex-chefe da Faculdade de Letras e professor foi uma imposição da República Democrática Alemã e, por isso, não foi Ganhão, nem o Baltazar, depois, defenderem essa Faculdade”.[50]

Ao contrário, havia apoio dos reitores à redução da formação ideoe Sociais, havia grande rejeição à ideologia socialista como vértice da Fernando Ganhão, em detrimento dos países socialistas, foi buscar apoio na Universidade de Dar Es Saalam, na Tanzânia, onde ele havia que eles tinham em Ciências Sociais. Assim, não queria reproduzir esses modelos aqui em Moçambique”.[51] Em várias entrevistas, a Universidade Patrice Lumumba (UPL) ou Universidade da Amizade dos Povos aparece como instituição a ser evitada, sobretudo em Ciências Humanas. Diante da aproximação entre Moçambique e a União Soviética, Tereza Cruz e Silva informa:

Nosso reitor, então, assumiu essa posição: trouxe essas pessoas [professores soviéticos para trabalharem na UEM] e não mandou ninguém, por exemplo, para a Universidade Patrice Lumumba, porque em termos [...] de Ciências Sociais, a Universidade Patrice Lumumba era um perfeito desastre. Embora formasse muito bem pessoas nas áreas das chamadas Ciências Exatas, onde alguns brasileiros também se formaram.[52]

A UPL foi fundada em Moscou, em 1960, com o objetivo de ser um centro de formação de estudantes estrangeiros no coração da União Soviética, sobretudo oriundos de países subdesenvolvidos da África, Ásia e América Latina. Na década de 1970, com o reaquecimento da Guerra Fria, ela estava em franco desenvolvimento, aumentando sua estrutura física e ampliando o número de discentes e professores. Um relatório e de Direito da UPL eram focados nos aspectos internacionais ou globais das disciplinas, presumivelmente a partir de viés marxista-leninista. O ela serve como uma instituição acadêmica séria”.[53] Nas Humanidades da

[...] eu nunca aceitei na minha faculdade [enviar] estudantes para a Universidade da Amizade dos Povos, em Moscovo. E um dia que discuti com a contraparte, eu disse “não, quero que vá para a Lomonossov [Universidade de Moscou]” e disse “para a Lomonossov não pode”. Eu, para a Universidade dos Povos, não quero. Patrice Lumumba que chamava. Por quê? Porque não era uma universidade para formar, era uma universidade para as cabeças, politicamente... mais nada. De ciência não tinha nada. E eu sabia disso... então, não mandava. Felizmente que os reitores aceitavam isso, portanto... aceitavam isso e não havia problemas.[54]

Havia consenso acerca do caráter doutrinário da Universidade Patrice Lumumba. Embora o Estado estivesse se construindo sobre vieses socialistas, havia a exigência de que sua intelectualidade, formadora de opinião na principal e durante algum tempo única instituição de ensino superior do país,[55] fosse autônoma e, para tanto, era necessário que se - que optou pelo não alinhamento, a intelectualidade moçambicana devia manter-se “não alinhada”: a busca pela autonomia nacional[56] deveria corresponder à postura crítica da intelectualidade moçambicana ante as ideologias opostas no cenário da Guerra Fria. A intelectualidade moçambicana deveria dedicar-se à solução dos problemas nacionais: era o que se esperava da UEM. Estava colocada a contradição: a instituição poderia vocalizar críticas ao socialismo como ideologia, mas não ao sistema

Se o questionamento ideológico era aceito e incentivado, como inscrítica à prática — seja ao funcionamento da UEM, seja aos objetivos da educação dirigida pelo Estado de forma autoritária e centralizada — não estrangeiros. Diante desse quadro, Manuel Araújo relata uma experiência vivenciada no curso de História, opondo formas de conceber a atuação educacional e política docente:

Nós tínhamos, por exemplo... tínhamos uma italiana, da área de História, [...] que veio para cá. E um dia... era das Brigadas Vermelhas italianas..., pede para falar comigo, na faculdade, entra pelo gabinete, e diz “temos que ir ensinar história pelas aldeias, isto de fazer curso de História aqui na faculdade, entre quatro paredes, não dá. Temos que mandar as pessoas irem para as aldeias e ensinarem, fazer história e não sei quê”. Eu virei para ela, não me lembro o nome dela... Paula. “Paula, tu fostes contratada para quê?” “Ah, para formar em História.” “E isto que estás a fazer, é ou não é?” “Não, mas essa formação... isso é fascismo, isso não sei quê.” “Bom, se não estás satisfeita, diz, rescinde-se teu contrato e vais embora. Pronto. Se queres fazer a revolução, vá fazer para tua terra e não a venha fazer aqui”.[57]

A tarefa da Universidade era vista como missão revolucionária, atrelada às necessidades do desenvolvimento do país, na economia e na sociedade. Não obstante, as palavras mobilizadas por Manuel Araújo para recusar as ideias da professora italiana marcam bem os limites da revolução moçambicana: “se queres fazer a revolução, vá fazer para tua terra e não a venha fazer aqui”. Dentro da transformação social, política e cultural vivida por Moçambique, supunha-se haver uma ordem a ser respeitada e, na Universidade, essa era o modelo acadêmico herdado do colonialismo português. Se Sérgio Vieira dizia, em 1978, que a ciência não estava isenta de ideologia, tal assertiva não foi tomada ao pé da letra modelo da Universidade portuguesa, mas também manteve as hierarquias, de outras formas de saber.

Compreende-se que o espaço à contestação no projeto educacional moçambicano era acessível a críticas ao viés ideológico, muito embora fosse sobre esse pilar que se erguesse a concepção educacional sustentada na complementaridade entre teoria e prática e no uso social do conhecimento. Contudo, tal crítica não seria tolerada se incidisse sobre para necessidades de desenvolvimento do Estado. O confronto entre as liberdades individuais e a centralidade do planejamento do Estado adquiorganização universitária que almejava, na prática, confrontar pressupostos socialistas que regiam a organização do ensino superior.

Os Rebeldes do Aquário

Mahmood Mamdani, ao analisar o desenvolvimento do ensino superior nacionalistas. Conforme o autor, na medida em que projetos nacionalistas se aprofundam, maiores exigências são impostas à Universidade, entendida como local de promoção de processos e tecnologias que contribuam com o desenvolvimento econômico e social, numa agenda determinada de suas políticas desenvolvimentistas, mais as críticas ao governo são entendidas como subversão.[58] Em Moçambique, as críticas produzidas pela Universidade à condução da educação nacional de forma centralia confrontação à política centralizadora e autoritária do Estado para a educação e o desenvolvimento.

O grupo Rebeldes do Aquário é melhor compreendido nessa segunda vertente. Tal movimento aconteceu em 1982 e foi a primeira tentativa de revolta institucional na Universidade Eduardo Mondlane. Seu nome decorre do local de encontro dos envolvidos, e era liderado por - za, Cassamo Sulemane Neves, Alberto Macuácua, Luís Arrone Fijamo, Saíde Abibo Saíde Momade e Jerónimo Calado Xavier Zandamela. Eles - por parte dos estudantes. O manifesto deve ser entendido no contexto da formação de uma Universidade desenvolvimentista em Moçambique, necessidades do desenvolvimento econômico de forma centralizada e estratégicas e determinara que os estudantes secundaristas fossem “encaminhados para os cursos prioritários, de acordo com a aptidão revelada” durante o curso propedêutico, um curso pré-universitário cujo objetivo era acelerar a entrada de alunos na UEM.[59]

O movimento contestava o caráter centralizador do sistema político implantado pela Frelimo e crescia em adesão entre estudantes e professores, chegando a mobilizar parte do corpo institucional da UEM. Uma das pautas do grupo era a defesa da liberdade de escolha dos cursos desempenhada após a conclusão, uma vez que o processo era fortemente controlado pelo Estado. Maria Paula Meneses, estudante, à época, do curso de História, explica que “o que acontece em Moçambique é que os nossos destinos passam a ser controlados pelo Estado. Portanto, nós deixamos de ter a opção de escolha. Há a necessidade de formar quadros [...] e vivia-se a perspectiva muito diretiva do Estado”.[60]

A necessidade de quadros era latente, e o público universitário extremamente reduzido: em 1976, havia cerca de 300 estudantes, no país inteiro, a concluir o ensino secundário, aptos a ingressar no nível superior.[61] A partir dessa escassez, o Estado frelimista dispunha-os na Universidade de acordo com suas necessidades. À Universidade cabia a função de apoiar o desenvolvimento, dirigido pelo governo. No jornal Notícias, de 18 de fevereiro de 1976, lia-se que “Moçambique precisa de formar rapidamente técnicos que respondam às necessidades de reconstrução nacional, e cuja formação compete à Universidade de Maputo”.[62]

Maria Paula Meneses admite que o movimento Rebeldes do Aquá- rio “era muito interessante, [...] é algo que a gente não gosta de falar, [...] não se fala muito”.[63] De fato, em várias memórias recolhidas junto a professores da UEM, apenas em duas houve menção ao movimento. A maior parte das memórias é construída sobre o pilar da luta de libertação e da tarefa revolucionária empreendida pela FRELIMO e, por vezes, traz eloquentes silêncios. A universidade construída pelas memórias é um espaço plural de debate e contestação, marcado pela liberdade de expressão, ainda que salvaguardada a natureza do regime. Além de Maria Paula Meneses, Manuel Araújo comenta o caso dos Rebeldes do Aquário, de forma tangencial, marcada pelo silêncio:

Um outro caso é que surgiu, a partir da Faculdade de Letras, um movitem a ver com o lugar onde se reuniam, porque eram estudantes da áreas de Ciências Sociais, depois da UFICS, que [silêncio]... Ah, mais tarde, voltaram para a Frelimo, e não sei o quê. Portanto, quer dizer, deu o quê? de análise das Ciências Sociais, Faculdade de Letras, depois UFICS... os Rebeldes do Aquário. Mas se você me perguntar “mas então, era uma faculdade que era contra o regime?” Não, não era contra. Não lhe posso dizer que era, não era. Agora, mas contestavam? Contestávamos.[64]

A partir da posição de ex-chefe da Faculdade de Letras, Manuel Araújo admite que a instituição convivia com a diversidade de ideias, - nava de forma contrária ao regime frelimista. Contudo, a pluralidade em condição de exclusividade, o que era revolucionário e o que era subversivo. O fato de a adesão à Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO) ter emergido na fala do professor é sintomático da memória oposição era deslegitimada, compreendida como desestabilização do país e favorecimento ao colonialismo, alimentado no imaginário popular. Retornaremos a esse ponto.

Os Rebeldes do Aquário estiveram na iminência da primeira greve Contudo, o grupo foi denunciado ao Serviço Nacional de Segurança Popular (SNASP), serviço de inteligência paramilitar do governo frelimista, e detido. Em 04 de abril de 1983, o jornal Notícias, de Maputo, assim Estevão Ambriza, Cassamo Sulemane Neves, Alberto Macuácua, Luís Arrone Fijamo, Saíde Abibo Saíde Momade e Jerónimo Calado Xavier Zandamela:

Todos os réus eram estudantes da Faculdade de Educação da Universidade Eduardo Mondlane. Em 1982, organizaram-se em grupo e decidiram elaborar um plano de ação subversiva e agitadora no seio da Universidade. Elaborado e aprovado o plano por todos os componentes do grupo, - na Faculdade de Educação e na Faculdade de Direito, em Maputo. Estes cartazes de um conteúdo altamente reacionário instigavam os estudantes a anônimas de conteúdo reacionário, insultuosas e em tom ameaçador a dirigentes da Faculdade de Educação da Universidade Eduardo Mondlane. Essa ação era coordenada por um tal Constantino Reis, que recebia ele é alertado e consegue fugir tendo sido recebido, já fora do território nacional, por agentes da “Boss”. Perante estes fatos, o Tribunal considerou todos os Réus como autores do crime de agitação previsto e punido pela Lei de Crimes contra Segurança do Povo e do Estado Popular. Nestes termos, o Tribunal Militar Revolucionário condenou os Réus [citados acima] na pena de 8 (oito) anos de prisão e 45 chicotadas cada um.[65]

O citado “um tal Constantino Reis” era, na verdade, um famoso atleta moçambicano que representou seu país nas Olimpíadas de 1980, em Moscou. O jornal Tempo, na edição de 09 de dezembro de 1984, informava que ele “fugiu de Moçambique em Setembro de 1982, quando ainda era estudante da ao fato de não poder tirar outro curso”.[66] Ao concluir o curso, o estudante seria encaminhado pelo Estado à docência, sem possibilidades de escolha e isso meteu-se-me de maneira na cabeça, que ter que ser professor criou contradição que me levou a fugir”, declarava Reis, dizendo-se arrependido[67] da África do Sul, o próprio Constantino Reis informava, em 1984, ao regressar a Moçambique, que fugiu para Suazilândia, onde buscou abrigo junto a familiares. Com o intuito de continuar os estudos, pretendia buscar asilo político em algum país que o acolhesse, mas lhe foi recomendado que não procurasse as autoridades locais nem a ONU, sob risco de ser repatriado. A alternativa seria entrar em contato com a embaixada portuguesa na Suazilândia. Foi a partir daí que se iniciaram seus envolvimentos com a África do Sul e com a RENAMO, alcunhada na documentação moçambicana/frelimista como “Bandidos Armados”.[68] Portanto, a memória mobilizada por Constantino Reis sugere que a ligação entre ele e a oposição ao regime frelimista foi construída depois do fracasso do movimento, ao contrário do narrado pelo jornal Notícias, como justificativa para a prisao dos estudantes.

Contudo, é preciso destacar o delicado momento político vivido em Moçambique. Ao assumir o marxismo-leninismo como orientação política em 1977, o país exerceu destacado protagonismo nos movimentos antirracistas e de libertação nacional no contexto histórico da Guerra Fria de desestabilização vinda da África do Sul, país em que a ascensão de conservadora que, tendo o Estado de Israel como seu paradigma, buscava estabelecer a África do Sul como polo avançado de alta tecnologia das economias ocidentais no sul do continente africano e, por meio da força, submeter politicamente seus vizinhos.[69] O apoio de Moçambique ao partido de oposição ao governo de Botha, o African National Congress (ANC), fê-lo tornar-se alvo de ataques diretos sul-africanos. Contudo, a face mais dramática dessa desestabilização foi o fortalecimento de dissidências internas em Moçambique, como a expansão da RENAMO.

A RENAMO surgiu com o apoio da Rodésia do Sul, sob o governo de Ian Smith, a grupos dissidentes da FRELIMO, ainda na época da independência, e caracterizou-se, primeiramente, como organização militar em detrimento de política. O suporte do governo de Smith, que sustentava um regime racista superado pela luta de libertação nacional apenas em 1980, dando origem ao Zimbábue, foi fundamental à organização que atuou como auxiliar das forças rodesianas e sabotadora do governo moçambicano. Após a queda de Smith, a RENAMO foi cooptada pelas Forças Armadas da África do Sul, a South African Defense Force para desenvolver um campo de treinamento militar.[70] bique, pelo apoio à RENAMO, visou à sabotagem da infraestrutura econômica, destacadamente a economia rural. Estradas, caminhos de ferro, escolas, hospitais, armazéns, edifícios governamentais e aldeias rurais eram seus alvos privilegiados. Diante desses confrontos, o governo mo- çambicano mantinha-se mobilizado e, nesse contexto de ataques externos e desestabilização interna, era premente a continuidade do slogan “a luta continua”, mobilizando o histórico da luta anticolonial e/ou nacionalista como capital político do partido/governo. Além da destruição da estrutura econômica, é emblemático o assassinato da pesquisadora, jornalista e ativista política sul-africana antiapartheid, Ruth First. Ela chegou a Moçambique em 1977 e tornou-se cooperante no Centro de Estudos Africanos da UEM. Por conta de suas posturas políticas, foi assassinada em seu gabinete, dentro da Universidade, por uma carta-bomba proveniente do Serviço Secreto Sul-Africano, evento acontecido em agosto de 1982,

É preciso ter em conta que a Frelimo também fez uso da instabilidaque, no interior do governo, houvesse divergências de pensamentos e - Muitos deles tiveram sua formação diretamente associada às políticas de - teve seu futuro cerceado pela Frelimo. Além da punição com chicotadas e oito anos de prisão, sua continuidade de estudos foi impedida. Segundo a professora Maria Paula Meneses,

E, portanto, há um colega meu que era... que sentava atrás de mim, o para a Tchecoslováquia — creio eu que ele iria para a Tchecoslováquia —, e depois, mais tarde, não vai porque tem uma ruptura com o sistema. Depois, mais tarde, apanha com o tribunal militar, era antirrevolucionário, não sei quantos anos de cadeia, chambocadas etc.[71]

A causa do nacionalismo era expressão marcante nas preocupaformas de desenvolvimento amparadas na educação, num viés autoritá- rio e centralizado. Assim, compreende-se que as políticas educacionais adotadas em Moçambique eram orientadas pelo Estado em oposição às liberdades individuais, sobre as quais aquele exercia poderes coercitivos, tendo em vista o cumprimento de sua agenda para o desenvolvimento melhor aproveitamento da formação intelectual, a ser incorporada no Estado por meio da própria Universidade, mediante a expansão do corpo docente com professores nacionais, na medida em que os estrangeiros após as aberturas democráticas latino-americanas.[72] Somente depois começariam a se transformar.

O mundo mudando de marcha: a abertura moçambicana ao capital

geiros. O mundo mudando de marcha também mudou o rumo desses outrora ligadas aos países socialistas. Segundo Manuel Araújo:

estudantes moçambicanos] iam para Cuba, União Soviética e RDA — República Democrática Alemã. Depois disso, deixaram de ir para aí, deixaram totalmente de ir para aí. Mas, agora, estão muito... os moçambicanos estão muito espalhados. Não estão muito concentrados em um único sítio.[73]

Junto com o destino dos estudantes, mudou o rumo do orçamento moçambicano. Há imensa disparidade nos recursos alocados na educação antes e depois da participação do FMI e do Banco Mundial, em 1985. O orçamento médio da educação entre 1980 e 1986 foi próximo de 18% da dotação do Estado. Em 1987, após implementação do Programa de Recuperação Econômica (PRE), defendido pelo FMI e pelo Banco Mundial, os recursos da educação caíram para 9%. O principal afetado foi o salário real dos professores, que registrou diminuição de 50%, seguido dos cortes nas despesas de bens e serviços, atingindo particularmente a qualidade da educação.[74]

O PRE previa medidas liberalizantes na economia, cujos resultados foram perceptíveis nos anos seguintes. Dentre vários efeitos, como a promoção do individualismo, o enriquecimento rápido de camadas sociais com acesso ao poder político e aos meios de produção, o favorecimento do comércio em detrimento do investimento produtivo, a elevação do custo de vida e o aumento da dívida externa, destaca-se que “programas centrais para o desenvolvimento futuro do país, como a educação e a saúde, foram afetados pela redução dos orçamentos imposta”.[75] Diante da precarização, da redução do orçamento para a educação e do aumento da dívida externa, a Universidade precisava se reinventar. Sintomático desse processo é o interesse dos gestores da UEM pela experiência brasileira, destacadamente da Universidade de Brasília (UnB) que, por outros motivos, também passava por processo de reinvenção institucional.

A UnB, assim como a UEM, estava em processo de transformação, em busca de seu lugar na sociedade: a primeira acabara de passar pela transição do regime de ditadura para a democracia, a segunda estava envolta numa sociedade em pleno processo de transição entre economia setembro de 1987, o reitor da Universidade Eduardo Mondlane deixava um memorando ao professor José Negrão, perguntando-lhe se conhecia o livro Uma ideia de universidade, de autoria do então reitor da Universidade de Brasília, Cristovam Buarque.[76] Por meio da circulação do livro, as ideias se comunicavam.

Nesse livro,[77] Buarque apresenta elementos da crise vivida pelas universidades brasileiras após a redemocratização, em 1985, tendo como objeto primordial de análise a própria UnB. Assim como a UEM, as universidades brasileiras foram criadas a partir de modelos estrangeiros, - denses. A elas, exigiu-se que fossem polos de modernização no país, preenchendo lacunas de mão de obra especializada e comprometendo-se com a urbanização, a modernização e a industrialização do Brasil. Convista a perplexidade do trauma político vivenciado pelo país nas duas décadas anteriores e o esvaziamento da autonomia universitária vivida naquele período. A Universidade, portanto, precisava reencontrar seu lugar na sociedade, e é a essa busca que Buarque se dedica em seu livro.

O bilhete deixado pelo reitor da UEM, junto à cópia do livro para ‘democratização’ do processo pareceu-me bastante interessante”.[78] O Brasil vivia período de redemocratização e esperava-se que a Universidade fosse o paladino dos valores democráticos. Não obstante, Buarque profetizava que, nos anos seguintes, a sociedade brasileira viveria uma época de transição, marcada pela dualidade: ela seria “moderna e atrasada”. A Universidade, nesse ínterim, também viveria a transição. Contudo, ela deveria adiantar-se e ser, ela própria, o vetor da transformação. Tal papel só poderia ser exercido se, internamente, a Universidade abrisse espaço ao debate aberto e plural entre todos os seus membros, tendo em vista a democratização do funcionamento institucional. Talvez fosse essa a “democratização do processo” referida por Negrão. atesta o documento, e novas pesquisas poderão apontar seu impacto nos debates pela superação da crise na UEM. Contudo, cabe destacar que as vivia a reabertura democrática e a necessidade de buscar a Universidade como apoio a esse processo, reencontrando seu lugar na sociedade de direito e contribuindo com sua transformação, Moçambique vivia a pressão dos reajustes econômicos implantados pela Frelimo, sob amparo do Banco Mundial, e a redução da capacidade funcional da Universidade. Para dimensionar o impacto da nova política econômica sobre a UEM, basta lembrar que o Banco Mundial, numa reunião com vice-reitores de universidades africanas em Harare, Zimbabwe, em 1986, recomendou o fechamento das universidades localizadas naquele continente, sugerindo que os governantes deveriam investir no envio de estudantes para se formarem em centros de ensino superior na Europa e nos Estados Unidos.[79]

A receita do Banco Mundial para o ensino superior ia em direção oposta àquela pretendida pelo governo frelimista nos anos iniciais do pós-independência. Naquele momento, creditava-se à educação superior a capacidade de suprir as necessidades de desenvolvimento do país, pela impactaram fortemente o Programa de Recuperação Econômica, invisibilizava os ganhos nacionais e sociais por meio da educação superior, investimento pessoal. A instituição recomendava a liberalização do ensino superior, abrindo-o à iniciativa privada, por acreditar que o retorno cabia ao Estado, portanto, arcar com seus custos.[80] O Estado deixava de controlar a produção de mão de obra e, junto ao mercado, abriam-se as possibilidades de escolhas.

O ano de 1993 marca a liberalização do ensino superior em Moseria, a partir daquele momento, marcada pela concorrência das universidades privadas, seja na captação de alunos, seja na busca por recursos cada vez mais distante dos ideais socialistas alimentados no imediato A Frelimo recebeu e recebe muitas críticas devido ao aparelhamento de um Estado tentacular, repressor e vigilante, cujas estruturas partidárias se confundem com aquelas do próprio Estado. Não obstante, sua trajetória na luta pela libertação nacional marca a memória da geração que viveu esse processo e favorece a construção da ideia de que a revolução exigia sacrifícios. O silêncio em torno dos Rebeldes do Aquário, por exemplo, aponta uma chaga ainda aberta na sociedade moçambicana, marcada pela limitação de formas de expressão e meios de críticas ao governo. Ao se opor ao poder, o movimento questionou a inviolabilidade da ordem por sua diferença, o que era subversão.

O projeto de educação pós-colonial em Moçambique amparouse na articulação entre teoria e prática educativa e social, sobretudo na educação básica. Tal perspectiva era planejada e dirigida por um Estado declarado socialista nos trâmites domésticos e optante pelo não alinhamento no cenário internacional. Ademais, a Universidade, parte integrante do sistema de ensino moçambicano, caminhava em direção oposta à base: enquanto a educação básica apontava a necessidade de engajamento político do conhecimento, o ensino superior buscava libertar-se dessas amarras, recusando dogmatismos marxistas e leninistas, ideias apoiadas por professores e estudantes. Ainda assim, era sobre essas bases que a Universidade estava organizada, ao formar mão de obra adequada às necessidades do Estado autoritário, de forma centralizada e dirigida por ele. - mo por um regime nacionalista de viés autoritário: o compromisso do instrumentalizado para alcançar objetivos nacionais, traçados de forma vertical da cúpula do governo para o restante da sociedade. Assim, compreende-se a condescendência à crítica universitária à formação marcada pela ideologia, como forma de emancipação intelectual, ao mesmo tempo dos formados na UEM, em favor do desenvolvimento nacional, como tarefa revolucionária. Entretanto, se o Estado buscava individualidade enquanto personalidade política no cenário internacional, mantendo-se não alinhado e perseguindo seus próprios interesses, tal liberalidade não era permitida no nível dos indivíduos, submetidos ao controle centralizador. A eles cabia o cumprimento das tarefas determinadas pelo Estado, e toda recusa seria compreendida como ato de insubordinação contrarrevolucionária e subversiva, como os Rebeldes do Aquário.

Dessa forma, compreende-se a formação do sistema pós-colonial de educação em Moçambique como um sistema cuja práxis nacionalista ditava o rumo das políticas estabelecidas unilateralmente pelo Estado que, amparado nas ideias socialistas e apoiado por grupos internacionais de esquerda, como partidos comunistas, instrumentalizava-as rumo aos objetivos estabelecidos pelo Estado. Tal política causou imenso prejuízo às liberdades individuais, uma vez que destituía as pessoas de suas vonautoritária, controlada pelo centro político e verticalmente imposta à população. Por outro lado, buscou suprir demandas nacionais, contribuindo com a construção de um tecido social marcado pela complementaridade nação. O desconforto das camadas sociais superiores moçambicanas fortaleceu a perspectiva liberal no país. Essa, após a bancarrota de 1982 e ingresso no FMI em 1984, conduziu à reestruturação econômica e posterior aplicação da economia liberal em Moçambique.

O ano de 1987, primeiro ano de execução do Programa de Recuperação Econômica, estabelecido sob indicação do FMI e do Banco Mundial, marca o ingresso de Moçambique na economia de mercado. Políticas liberais foram ganhando espaço no país e, em 1993, atingiram o setor da educação, através da Lei n.º 1/1993, de 24 de junho, a Lei do Ensino Superior, que regula as esferas pública e privada, dando início Superior em Moçambique. A educação enquanto elemento de desenvolvimento nacional dirigido pelo Estado enfraquecia-se, ao mesmo tempo em que as liberdades individuais se expandiam, com alto custo social e político e crescente desigualdade. O dilema da proporcionalidade entre planejamento estratégico centralizado e respeito às liberdades individuais para o desenvolvimento nacional e individual permanece irresoluto.

Notas

[1] http://cpdoc.fgv.br/cientistassociais/
[2] Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, Dicionário de Política, v. 1,Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p. 94.
[3] José Castiano e Dulce Maria Passades, “Aporias de Ensino Superior em Moçambique à luz das epistemologias glocais”, in 3ª Conferência do Fórum de Gestão do Ensino Superior nos Países http://aforges.org/conferencia3/
[4] Cláudia Castelo, “A Casa dos Estudantes do Império: lugar de memória anticolonial”, in 7º Congresso para a modernidade (Lisboa: CEA, 2010),
[5] Lourenço J. Costa Rosário, “Universidades moçambicanas e o futuro de Moçambique”, in Luís de Brito, Carlos Nuno Castel-Branco, Sérgio Chichava e António Francisco (orgs.), Moçambique 2012 (Maputo: IESE – Instituto de Estudos Sociais e Econômicos, 2012), p. 90.
[6] CODESRIA e CEA/UEM. Discurso de abertura do Seminário Sobre a Transição Democrática e as Ciências Sociais nos PALOP. Maputo, 01/06/1993. Centro de Estudos Africanos/UEM. Fundo: Workshops, Seminários e Conferências, Pasta G1, documento 967.5.
[7] Carlos Fernandes, “Intelectuais orgânicos e legitimação do Estado no Moçambique pós-independência: o caso do Centro de Estudos Africanos (1975-1985)”, Afro-Ásia, n. 48 (2013), p. 13.
[8] Decreto n.º 19/76 de 18 de maio. Arquivo Histórico de Moçambique, Unidade UEM. Fundo Universidade Eduardo Mondlane – Gabinete do Reitor, caixa 16.
[9] Grupo que atuou na conquista da independência, em 1975, e mantém-se no governo desde então. que mobilizou forças desde a luta de libertação nacional, iniciada em 1962, e que conquistou a independência em 1975, até sua transformação em partido político num regime de partido único, em 1977. Nesta nova conjuntura, utilizamos o termo Frelimo, visto que o sentido político da sigla se altera.
[10] Decreto n.º 19/76 de 18 de maio. Arquivo Histórico de Moçambique, Unidade UEM. Fundo Universidade Eduardo Mondlane – Gabinete do Reitor, caixa 16.
[11] Nicholas C. Burbules e Carlos Alberto Torres, “Globalização e educação, uma introdução”, in Nicholas C. Burbules e Carlos Alberto Torres, Globalização e educação: perspectivas críticas (Porto Alegre: Artmed, 2004), p. 12.
[12] Sérgio Vieira, “Da luta de libertação à democracia popular. Contribuição da delegação do Partido Frelimo à conferência sobre ‘A construção do socialismo e comunismo e o desenvolvimento Seminários e Conferências, Cota 16/B.
[13] Moçambique, Ministério da Educação, Report to the 39th Session of the International Conference on Education, Genebra, 1984. Maputo: Ministério da Educação, 1984, p. 1.
[14] Jamisse Taimo, “Ensino Superior em Moçambique: história, política e gestão” (Tese de Doutorado, Universidade Metodista de Piracicaba, 2010.
[15] Moçambique, Report to the 39th Session of the International Conference on Education, p. 3.
[16] Moçambique, Report to the 39th Session of the International Conference on Education, pp. 4-5, tradução do autor.
[17] Omar Thomaz, “‘Escravos sem dono’: a experiência social dos campos de trabalho em Moçambique no período socialista”, Revista de Antropologia, v. 51, n. 1 (2008), p. 182.
[18] Marçal Paredes, “A construção da identidade nacional moçambicana no pós-independência: sua complexidade e alguns problemas de pesquisa”, Anos 90, v. 21, n. 40 (2014), p. 152.
[19] Vieira, “Da luta de libertação”.
[20] Joaquim Maloa, “O lugar do marxismo em Moçambique: 1975-1994”, Revista Espaço Acadêmico, n. 122 (2011), p. 90.
[21] (orgs.), Ensino da História e memória coletiva (Porto Alegre: Artmed, 2007), p. 271.
[22] Moçambique, Report to the 39th Session of the International Conference on Education, pp. 3-4. Tradução do autor.
[23] Luca Bussoti e Antonella De Muti, “Italy and Mozambique: Science, Enonomy & Society within a History of an Anomalous Cooperation”, in Advances in Historical Studies, v. 2, n. 4 (2013), p. 189.
[24] Moçambique, Report to the 39th Session of the International Conference on Education, p. 14.
[25] Taimo, “Ensino Superior em Moçambique”.
[26] Yussuf Adam, Ajuda externa a Moçambique - necessidades e efeitos (um estudo preliminar). Maputo: Centro de Estudos Africanos, Universidade Eduardo Mondlane, 1990. Centro de Estudos Africanos. Pasta 59/B. Documento 67.4. p. 3
[27] Lorenzo Macagno, “Fragmentos de uma imaginação nacional”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n. 70 (2009), pp. 17-35.
[28] Iraê Baptista Lundin, Entrevista concedida ao autor, Maputo, Moçambique, 09/12/2014.
[29] Manuel Garrido Mendes Araújo, Entrevista concedida ao autor, Maputo, Moçambique, 10/12/2014.
[30] Desirée Azevedo, “Os melhores anos de nossas vidas: narrativas, trajetórias e trajetos de exilados brasileiros, que se tornaram cooperantes na República Popular de Moçambique” (Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas, 2011), Capítulo 3.
[31] Pio Penna Filho e Antônio Carlos Moraes Lessa, “O Itamaraty e a África: as origens da política africana do Brasil”, Estudos Históricos, n. 39 (2007), pp.17-18.
[32] Jerry Dávila, , São Paulo: Paz e Terra, 2011, p. 229.
[33] Carta. De: Sonia R. A. Reis e Daniel A. R. Filho. Para: Exmo. Sr. reitor [Fernando Ganhão], 2/08/1977. Arquivo Histórico de Moçambique, Unidade UEM – Fundo Gabinete do Reitor, caixa 16.
[34] Histórico de Moçambique, Unidade UEM – Fundo Gabinete do Reitor, caixa 16.
[35] Conforme entrevista de Desirée Azevedo com Jacques, pseudônimo de um brasileiro que esteve em Moçambique, após a independência. Ver Azevedo, “Os melhores anos”, p. 159.
[36] Azevedo, “Os melhores anos”, pp. 92-4.
[37] Isabel Maria Casimiro, Entrevista concedida ao autor, Maputo, Moçambique, 24/11/2014.
[38] Fernandes, “Intelectuais orgânicos”, p.13.
[39] Ofício: 8/RT/78, de 7 de janeiro de 1978. Remetente: Fernando Ganhão, reitor, destinatário: À Histórico de Moçambique, Unidade UEM. Fundo Universidade Eduardo Mondlane – Gabinete do Reitor, caixa 25.
[40] Casimiro, Entrevista.
[41] Rosário, “Universidades moçambicanas”, p. 90.
[42] Circular 97/CNP/75. Frente de Libertação de Moçambique, Comissariado Político Nacional. Universidade Eduardo Mondlane, Centro de Estudos Africanos, Pasta 13/A.
[43] Ofício 708/RT/77, de 21/12/77. Compra de passagem Maputo-Lisboa-Nova York. De: Secretária Arquivo Histórico de Moçambique, Unidade UEM. Fundo Universidade Eduardo Mondlane – Gabinete do Reitor, caixa 25.
[44] Ofício 341/RT/78, de 12.9.78. De: Secretária do reitor, Luísa Chadraca. Para: Chefe do Gabinete Fundo Universidade Eduardo Mondlane – Gabinete do Reitor, caixa 25.
[45] Maria Paula Meneses, Entrevista concedida a Celso Castro e Guilherme Mussane, Salvador, Bahia, Brasil, 07/08/2011. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, LAU/IFCS/UFRJ, ISCTE/IUL, IIAM, 2013.
[46] Mahmood Mamdani, “Higher Education, the State and the Marketplace”, Journal of Higher Education in Africa, v. 6, n. 1 (2008).
[47] Teresa Cruz e Silva, Entrevista concedida a Celso Castro e Guilherme Mussane, Salvador, Bahia, Brasil, 08/08/2011. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, LAU/IFCS/UFRJ, ISCTE/IUL, IIAM, 2013.
[48] Moçambique, Report to the 39th Session of the International Conference on Education, p. 25.
[49] Silva, Entrevista.
[50] Araújo, Entrevista.
[51] Fernandes, “Intelectuais orgânicos”, p. 14.
[52] Silva, Entrevista.
[53] Seymour M. Rosen, The Development of Peoples’ Friendship University in Moscow, Washington, D. C.: Institute of International Studies, 1976, p. 2.
[54] Araújo, Entrevista.
[55] Internacionais, de 1986.
[56] Sérgio Chichava chama atenção para a postura de Moçambique ao declarar-se socialista. A auChichava, “Moçambique na rota da China: uma oportunidade para o desenvolvimento?”, in Luís de Brito, Carlos Nuno Castel-Branco, Sérgio Chichava e António Francisco (orgs.), para Moçambique 2010 (Maputo: IESE. 2010), p. 340.
[57] Araújo, Entrevista.
[58] Mamdani, “Higher Education”.
[59] Estudar para produzir: curso de formação pré-universitária. Notícias, Maputo, 18/02/1976.
[60] Meneses, Entrevista.
[61] Meneses, Entrevista.
[62] Estudar para produzir: curso de formação pré-universitária. Notícias, Maputo, 18/02/1976.
[63] Meneses, Entrevista.
[64] Araújo, Entrevista.
[65] Notícias, Maputo, 04/04/1983.
[66] Tempo, 09/12/1984, p. 9. O estudante estava vinculado à Universidade Eduardo Mondlane, possivelmente na Faculdade de Educação.
[67] Constantino Reis, “O banditismo visto de dentro”, Domingo, [Maputo], 16/12/1984, pp. 8-10. Entrevista concedida à AIM.
[68] Reis, “O banditismo”, p. 8.
[69] Malyn Newitt, História de Moçambique, Mem Martins: Europa-América, 1995, pp. 480-1.
[70] Newitt, História de Moçambique, p. 483.
[71] Meneses, Entrevista.
[72] Muitos militantes de partidos comunistas deixaram seus países na América Latina rumo a Moçambique em decorrência da forte repressão empregada pelos regimes militares, nas décadas de 1970 e 1980. Ver Azevedo, “Os melhores anos”.
[73] Araújo, Entrevista.
[74] Ministério da Educação, Relatório apresentado na Conferência Internacional de Educação – UNESCO. 1996, p. 52.
[75] Adam, Ajuda externa a Moçambique, p. 7.
[76] Bilhete com resposta. Remetente: reitor. Destinatário: José Negrão. Arquivo Histórico de Moçambique, Unidade UEM. Fundo Universidade Eduardo Mondlane – Gabinete do Reitor, caixa 183.
[77] Cristovam Buarque. Uma ideia de universidade. Brasília: Editora da UnB, 1986.
[78] Bilhete com resposta. Remetente: reitor. Destinatário: José Negrão. Arquivo Histórico de Moçambique, Unidade UEM. Fundo Universidade Eduardo Mondlane – Gabinete do Reitor, caixa 183.
[79] Mamdani, “Higher Education”.
[80] Patrício Langa, “A mercantilização do ensino superior e a relação com o saber: a qualidade em questão”, Série: Ciência da Educação.


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