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OS BATUQUEIROS E AS PRIMEIRAS ESCOLAS DE SAMBA DA CIDADE DO SALVADOR
OS BATUQUEIROS E AS PRIMEIRAS ESCOLAS DE SAMBA DA CIDADE DO SALVADOR
Afro-Ásia, núm. 54, 2016
Universidade Federal da Bahia
Recepção: 23 Março 2016
Aprovação: 08 Dezembro 2016
Resumo: O presente texto tem o objetivo de apresentar a origem de algumas das primeiras escolas de samba soteropolitanas do início de 1960, focando principalmente no durante a segunda metade do século XX. As fontes utilizadas foram entrevistas realizadas com participantes, além de crônicas, notícias e artigos publicados em diferentes jornais da capital baiana durante a época dos festejos carnavalescos dos anos estudados.
Palavras-chave: Carnaval, cultura, festa.
Abstract: early 1960, focusing mainly on the context in which they are born and their relationship with other carnival groups such as strings, drumming, blocks, amid the great carnival of the city. The sources used were interviews and chronic, news and articles published in different newspapers of Salvador during the time of the carnival festivities of the years studied.
Keywords: Carnival, culture, party.
Etinentes ao surgimento das primeiras escolas de samba soteropolitanas, em especial as do eixo Garcia-Tororó, ressaltando suas carnavalescos da época.
Inicialmente, pontuamos o contexto e alguns dos elementos básicos relevantes no surgimento das escolas no carnaval. Em “Batuques, batuqueiros e a Ritmistas do Samba”, apresentamos os carnavais dos bairros e das localidades da capital baiana como importantes para o desenvolvimento das escolas, uma vez que os homens negros das batucadas — que há muito já usavam o samba, a percussão e letras autorais como formas de diversão — experimentaram o formato de escolas de samba, sinalizamos a criação da primeira escola de samba da cidade e, a partir das fontes, diferenciamos o modelo das escolas de samba dos demais grupos. Em “As primeiras escolas de samba da Cidade do Salvador”, apontamos o aparecimento das célebres Filhos do Tororó e Juventude do Garcia e de algumas outras escolas nascidas de batucadas, charangas e fanfarras[1] que adotaram o modelo de escolas, aderindo às primeiras disputas e obedecendo a uma territorialidade. Em “Território e rivalidade”, destacamos a disputa entre as escolas do Garcia e do Tororó, uma rivalidade que remontava a épocas momescas anteriores e que ganhava combustível graças à disputa entre essas escolas.
Para a construção deste artigo, foram realizadas pesquisas nos setores de periódicos da Fundação Getúlio Vargas e da Biblioteca Pública do Estado da Bahia, uma vez que as escolas de samba da capital baiana foram amplamente noticiadas e frequentemente expostas nos principais jornais da época como A Tarde, Tribuna da Bahia e Correio da Bahia. A partir dos jornais, é possivel obter-se a relação completa de escolas ativas, -
Ainda que as notícias de jornal tenham sido de grande valia para a produção do artigo, e tenham sido largamente utilizadas na descrição - sentaram um importante veículo de conhecimento do objeto de pesquisa, bem como da situação então vivida pelo carnaval da Cidade do Salvador.
Concedidas por alguns participantes das antigas escolas de samba de Salvador, em especial aqueles de maior experiência, essas entrevistas dão conhecimento dos momentos em que surgiram e as principais caracsua época. Privilegiamos as falas daqueles que assumiam uma posição de destaque em meio à estrutura organizacional de sua escola — diretores, passistas, compositores, músicos, administratores etc. — e, por consequência, apareciam com frequência nos jornais, em imagens e em críticas da época. tempo está presente e vem sendo tratada como um profícuo espaço de campo da Antropologia, a oralidade, aplicada na pesquisa em Ciências Sociais, é mais do que uma decisão técnica ou um simples procedimento com o qual se pretende unicamente registrar e arquivar dados orais convertendo-os em escrita. Explica Jorge Eduardo Aceves Lozano:
qualitativas de processos histórico-sociais. Para isso, conta com métodos e técnicas precisas, em que a constituição de fontes e arquivos orais desempenha um papel importante. Dessa forma, a história oral, ao se interessar pela oralidade, procura destacar e centrar sua análise na visão e versão que dimanam do interior e do mais profundo da experiência dos atores sociais. A consideração do âmbito subjetivo da experiência humana é parte central do trabalho desse método de pesquisa histórica, cujo propósito incluiu a ampliação, no nível social, da categoria de produção dos conhecimentos princípios da tão discutida história popular.[2]
apontadas pela obra Usos e abusos da história oral, são fundamentais das Ciências Sociais se mostram em destaque no desenrolar do texto, e a facilidade com que o uso da oralidade alcança a experiência dos sujeitos da pesquisa são pontos frequentemente explorados.
No carnaval da Cidade do Salvador, durante as décadas de 1960- escola de samba soteropolitana apareceu no ano de 1957,[3] e a última a como na preparação, na organização e até na arrecadação de recursos para a apresentação dessas entidades.
Nas palavras do jornalista e pesquisador Nelson Varón Cadena, pode-se perceber uma incrível quantidade de blocos carnavalescos durante parte da segunda metade do século XX:
Os blocos Juventude do Garcia, Filhos do Tororó, Ritmistas do Samba, Ritmos da Liberdade, Bafo da Onça e Diplomatas de Amaralina são alguns exemplos das entidades carnavalescas que povoavam as páginas dos jornais durante o período de carnaval nas décadas de 1960-70 e inicio da década de 1980. Escravos do Oriente, Filhos do Morro, Filhos de Maragogipe, Unidos do Vale do Canela, Filhos do Sossego, O Abafa, Filhos do Ritmo, Acadêmicos do Ritmo, Juventude da Cidade Nova, Deixe que Diga, Vigilantes do Morro, Farrista do Morro, Unidos do Gantois, Juventude do Tanque, Recordação da Mangueira, Amantes da Orgia, Filhos de São João, Sai na Frente e Bafo de Tigre.[4]
Em 1966, a Prefeitura estabeleceu a disputa entre as escolas de samba de primeiro e segundo grupo. O formato estava em franca ascensão, e o surgimento de diversos grupos já chamava atenção de centenas de parJuventude do Garcia, que anteriormente se apresentava de forma amadora, a Filhos do Tororó e a recém-surgida Diplomatas de Amaralina dividiram de integrantes. Sobre essa polarização Cadena pontua:
Filhos do Tororó, Juventude do Garcia e Diplomatas de Amaralina da época, dos recursos arrecadados, da mobilização de seus dirigentes. Durante uma década, pelo menos (1966-1976) tornaram-se a principal atração do Carnaval Baiano e eram elas que apareciam nas fotos dos jornais da quarta-feira de cinzas com destaque.[5]
o número de participantes e apreciadores, bem como à relevância e opulência entre os demais grupos carnavalescos, as escolas de samba receberam destaque nos meios de comunicação e em notas da Prefeitura, rádios e contaram com a presença do poder público na regulamentação localidades, algumas delas formadas por grupos de trabalhadores esapresentando um grande número de homens e mulheres negros e pardos e utilizando o samba-enredo como elemento central. Nesse sentido, o bairro da Liberdade, o centro da cidade (Ladeira da Preguiça, Centro Histórico etc.), o eixo Garcia-Tororó e o bairro de Amaralina são algumas - localidades da cidade.
Anos antes do surgimento da primeira escola de samba (1957), havia, no carnaval da cidade, grupos carnavalescos de diferentes tipos. Cruz Vermelha e Inocentes em Progresso, com participantes da classe tecnológicas em sua construção e fantasias temáticas luxuosas. Apresencentro da cidade e proporcionavam um espetáculo admirado por cidadãos de diferentes classes sociais. apresentavam, também, luxuosos carros alegóricos e uma rica bateria percussiva, como era o caso do Mercadores de Bagdah, também com
Nos bairros, desde as primeiras décadas do século XX, o costume carnavalesco prezava pela construção de grupos de festividade mais simpercussivos feitos de barrica com couro de jiboia, cujos participantes visitavam bairros trajando fantasias simples, cantando e tocando. Além das batucadas, forma mais comum de diversão popular carnavalesca, havia as charangas, e os instrumentos da fanfarra, de percussão e de sopro também tinham certa popularidade.
Os préstitos não foram os únicos que, na primeira metade do sé- culo XX e mesmo durante a década de 1950, apresentavam um carnaval que se propunha a servir como espetáculo com carros, tema e fantasia.
Em 1953, começava a se formar uma elite de trabalhadores proveem expansão — que, décadas depois, culminaria na instalação de um grande polo petroquímico —, deu origem, no Recôncavo baiano, a uma classe média operária, de modo geral negra. Até então, eram comuns as de Gandhy (grupo de estivadores) e os Filhos do Fogo (bombeiros), Esse grupo de classe média negra trabalhadora organizou, então, dois grupos carnavalescos, os Mercadores de Bagdah e os Cavaleiros de Bagdá, mundo oriental apresentado pelo cinema hollywoodiano.
Sobre os Mercadores de Bagdah, Milton Moura, em sua tese do Carnaval de Salvador”, esclarece:
sopros, percussão e luzes, os Mercadores de Bagdá não se ocuparam em produzir peças como marchas ou batucadas. Usavam indistintamente os sambas tradicionais e as marchinhas do rádio que chegavam do Rio de Janeiro. À frente, costumavam vir os arautos tocando clarins, como se fazia também em outros blocos da época e era praticado já nos corsos. Tanto os Filhos de Gandhi como os Mercadores de Bagdá portavam aleo Oriente. A saída do bloco era muito solene, recriando cenas do cinema. O fundador e grande líder dos Mercadores, chamado Nelson Maleiro o cortejo, sobre um carro alegórico, um imenso marajá mestiço.[6]
Nelson Cruz, o Nelson Maleiro, era também músico percussionista e tinha diversas habilidades, sendo a confecção de instrumentos de percussão, criação de fantasias e construção de carros alegóricos algumas delas. Foi o pioneiro na construção de carros alegóricos, que eram montados no meio da rua, na localidade conhecida como Barroquinha. Maleiro, já em 1950, foi o fabricante dos instrumentos para as primeiras alegorias do grupo.
Os Cavaleiros de Bagdá foram uma dissidência dos Mercadores de Bagdah, surgido, em 1959, após a eleição de Armando Lessa como presidente dos Mercadores. Maleiro também criou e participou desse segundo grupo, que, com o tempo, estabeleceu uma rivalidade nas sucessivas disputas carnavalescas e no gosto do público.
Esse contexto carnavalesco que incluía os grandes préstitos em - colas de samba. Alguns dos participantes ou admiradores desses grupos perceberam a oportunidade de utilizar essa experiência no estabelecidos blocos Mercadores de Bagdah e Cavaleiros de Bagdá possibilitou a criação dos primeiros carros alegóricos e das primeiras fantasias das escolas de samba da cidade.
Em entrevista[7] com Jaime Baraúna, participante, na época, da bateria do bloco Mercadores de Bagdah e, posteriormente, fundador da primeira escola de samba de Salvador, esses elementos visuais foram cuidadosamente destacados:
Eu saía no grupo carnavalesco Mercadores de Bagdad, um dos grandes clubes da época, aqui da Bahia. Esse cordão carnavalesco cresceu tanto, que a Federação de Estudos Carnavalesco da Bahia teve que criar uma categoria especial para ele, chamada de Pequenos Clubes. Por que Pequenos Clubes? Porque, na época, os chamados grandes clubes eram era só o préstito, como chamavam, só que em grandes carros alegóricos, os maiores daqui da Bahia. Eram o Inocentes em Progresso, o Fantoches da Euterpe e o Cruz Vermelha. Esses eram os grandes clubes, que vinham com temas mitológicos, sobre a Grécia, Roma, as mil e uma noites...
Mercadores de Bagdad era um cordão que utilizava carros alegóricos, - nham como encarar as fantasias, os temas e os carros alegóricos que essa agremiação usava. Esses carros alegóricos, inclusive, foram uma espécie de precursores dos carros das escolas de samba, por isso estou fazendo a referência, estou citando. Então, os carros alegóricos dos Mercadores de Bagdá serviram de motivação para a criação dos carros das escolas de samba, quando as escolas tiveram possibilidade de usar. cipação de muita gente de classe média alta, de classe média para cima. Cada qual bancava sua própria fantasia. Não saía pobre, porque as roupas
Eduardo Lessa chegou com os Mercadores de Bagdá, ele popularizou, ele democratizou o uso dos carros alegóricos, porque, até então, só as grandes sociedades usavam. O carnaval acabava às seis, sete horas da clubes passarem. E aí, o Mercadores de Bagdá disse: “— Eu também vou usar”. Seu Eduardo Lessa tinha criatividade, pesquisava, era um pesquisador. Naquela época, as fontes de pesquisa eram as revistas O Cruzeiro, Fatos e Fotos, Manchete, que vinham com farto material sobre o carnaval carioca, muito pouco do paulista, era mais do carioca, com detalhes de todos os carros alegóricos... Então Eduardo se inspirou nisso, e a gente se inspirou nele, ele foi uma espécie de mediador, ele nos apresentou ao carro alegórico em nível mais popular, porque ou se tinha muito dinheiro para trazer os grandes carros dos grandes clubes ou nada, e a maioria era nada. Em termos de alegoria, o carnaval da Bahia era muito pobre, em termos de adereços também. Eu saía no Mercadores de Bagdá e tinha todo o know-how comigo, belíssimas fantasias, lindos temas...[8] O carnaval experienciado nos bairros, pelas batucadas, e no cen-
escolas soteropolitanas, que surgiram em bairros como Garcia, Tororó, Liberdade e localidades outras como a Ladeira da Preguiça, onde já se manifestavam grupos carnavalescos. Nesse sentido, indumentárias, dos primeiros carros alegóricos, instrumentos percussivos, entre outras - baiano, que foram adaptados ao modelo carioca.
Batuques, batuqueiros e a Ritmistas do Samba
Nos bairros próximos ou não do centro da cidade e seguindo as diversas XX eram formadas por grupos de pessoas devidamente trajadas — uniformizadas ou fantasiadas — que, com seus instrumentos percussivos baiano e soteropolitano, podiam ser apreciados, tanto na capital quanto no interior, tocando instrumentos de percussão, cantando e dançando em festas cívicas, religiosas ou carnavais. Advinda de séculos anteriores, a tradição do batuque foi representada na Salvador do século XX por agrupamentos que percorriam trajetos distintos e, muitas vezes, cruzavam bairros e visitavam casas, sendo compostos por vizinhos e pessoas de um mesmo bairro ou por colegas de trabalho.
Compostas majoritariamente de homens negros, as batucadas soteropolitanas do século passado levavam os sons de instrumentos musicais como agogô, tamborim, pandeiro, cuíca, e ganzá, e os batuqueiros vestiam roupas brilhantes e chamativas. Apesar de manterem forte relação com a tradição africana do batuque, aproximavam-se também de outras confetes e serpentinas nas festas em que tocavam. locais de apresentação ou sedes de conhecimento popular. O chamado Estrada da Rainha, foi um desses locais. Lá se realizavam batalhas de confetes e serpentinas, venda de bebidas e comidas, disputas entre as batucadas com direito a premiação. Nos dias que antecediam o período de carnaval — que durava, então, três dias —, também era comum ocorrerem os ensaios da Batucada Bomba de Sena,[9] por ali residir a maioria de seus componentes. batuque — como os afoxés do início do século — ou de vestimentas próprias e fantasias — como os grupos de amortalhados —, as batucadas tinham destaque dentre os populares e possuíam visibilidade até mesmo para outros grupos sociais. O Centro Histórico da cidade foi um dos redutos dos batuqueiros nas décadas de 1930 a 1950, e suas batucadas do carnaval popular das primeiras décadas do século XX.
Sobre as batucadas, pontua Milton Moura:
O Carnaval da Baixa dos Sapateiros e da Barroquinha é reportado como animadíssimo pelos remanescentes. Armava-se um palanque no Largo de São Miguel, entre o Pelourinho e a Baixa dos Sapateiros, onde se apresentavam inúmeros grupos. Ouvi muitas vezes os velhos do candomblé contarem de suas batucadas dos anos trinta e quarenta. Saíam pelos vales e pelas ruas cumeeira dos bairros populares, percorrendo às vezes mais de dez quilômetros para alcançar a Baixa dos Sapateiros. Sua presença era interditada pela polícia nas ruas principais da Cidade Alta, reservadas - cômica. Termos como fuzarca, bagunça, fuzuê, pândega e galhofa, ao lado da esculhambação, comparecem com frequência à sua fala. Às vezes, os brincantes pediam a proteção dos santos e dos orixás, deixando oferendas nas portas dos templos. Dona Menininha do Gantois presenteava com outros pais e mães de santo acompanhavam discretamente os cortejos.[10]
Com a ajuda de notícias de jornais da época, bem como dos textos de Anísio Felix e Hidelgardes Vianna,[11] além dos trabalhos de Milton Moura e Antônio Godi, entre outros,[12] é possível estabelecerem-se relariormente. Assim, mesmo não sendo alguns elementos necessariamente exclusividade das batucadas, nelas representavam características de destaque. A rivalidade, o trabalho em comunidade e os elementos rítmicos - valescos da segunda metade do século XX, como as escolas de samba.
A rivalidade entre as batucadas manifestava-se por atitudes que variavam da diplomacia à admiração, do respeito competitivo à violência, algumas vezes até violência física. No encontro entre batucadas, geralmente os grupos cumprimentavam-se com versos de improviso, gestos de respeito e até troca de estandartes, revelando um comportamento de mesmo entre os batuqueiros mais fanáticos. Houve aqueles que, com o desejo de ver a batucada do seu bairro ser valorizada em detrimento das de outras localidades da cidade, entravam em choque com outros folifísicos, em lutas e pancadarias.
A disputa também esteve presente à luz de um comportamento, na maioria das vezes, politicamente correto, com a busca, ano após ano, dos trajes mais bonitos e chamativos, de um cântico ou um ritmo mais anterior e, principalmente, melhor do que a das outras batucadas. A rivalidade entre alguns bairros também se tornou algo comum, uma vez que, geralmente, cada grupo estava localizado em um bairro diferente
O trabalho em comunidade se apresentava como uma possibilidade viável na condução dos divertimentos e na organização dos festejos. As encargo de um grupo unido. Essa manifestação não era apenas contemque o elemento participativo também se fazia presente no planejamento do orçamento, na composição das músicas, na produção das fantasias, nas próprias comunidades para a organização dos festejos. Mesmo durante - eram recolhidas. Os moradores do Beco do Cirilo, por exemplo, costumavam arrecadar, na comunidade, o dinheiro que seria usado para custear a organização da festa. É interessante destacar que o objetivo não era lucrar com a festa ou mesmo com o divertimento dos colegas. encontrados nos registros da imprensa desde o início do século passado”, destaca Milton Moura.[13] Graças a esse aspecto de forte união do grupo, tão famosas quanto seus bairros de origem. Muitas vezes, a rivalidade acirrada gerava, também, o bairrismo, e a disputa extrapolava o período do carnaval daquele ano, indo de uma festa para outra e de um morador se encontravam, o que não era raro, cumprimentavam-se com versos de improviso, gesto de mesura, troca de estandartes, ou então, com troca de ofensas ou murros, quando havia rivalidade de bairros”.[14]
Batucadas memoráveis foram a Fortaleza do Amor, da Liberdade, bairro da Fazenda Garcia, além de outras tantas que tornaram seus bairros famosos por animarem a festa dentro e fora de suas vizinhanças.
A respeito das batucadas soteropolitanas, é importante destacar, ainda, o elemento rítmico musical, cujos compositores, músicos amadores e demais responsáveis pelas melodias e cânticos eram da própria comunidade. A batucada tornou-se um dos redutos do samba na Bahia, mantendo a originalidade no riscado e na construção de seus versos e batuques. Como bem coloca Antônio Jorge Godi, as “batucadas, escolas e depois os blocos de índios, representavam os territórios do samba na Bahia, numa guerra de danças, músicas e alegria, na tentativa de provar quem era o melhor”.[15] Destaque-se, porém, que, em Salvador, naquele início de século, nem todos os grupos carnavalescos se utilizavam do samba percussivo na animação de sua festa.
Assim como as batucadas, as escolas de samba obedeciam a uma e comunidades da cidade. Espelhadas no modelo carioca e herdeiras da cidade, entre o Campo Grande e a Praça Municipal ou a Praça da Sé,[16] onde era instalado um palanque, diante do qual se apresentavam para os jurados. A vitória de uma escola era momento de consagração máxima pela construção da festa, assim como ocorria com as batucadas.
Não por acaso, a experimentação do modelo de escola de samba comunidades nas quais o carnaval das batucadas e charangas já era forte, como as localidades do Tororó, Federação e Liberdade. As escolas batucadas tradicionais que já dominavam a cena das primeiras décadas bateria, destaques, sambistas, passistas, pequenos carros alegóricos e fantasias temáticas não era completamente distante do universo carnavalesco soteropolitano. Fantasias variadas e roupas glamourosas, por exemplo, já se faziam presentes no carnaval de Salvador em alguns locais e grupos. O requinte dos ensaios para a festa do carnaval também já era de média e alta classe — os aqui citados Fantoches da Euterpe, Cruz Vermelha e Inocentes em Progresso — na primeira metade do século XX. Anteriormente, no século XIX, negros e mestiços da capital da Bahia clubes uniformizados.[17]
Por outro lado, no contexto da segunda metade do século XX, em Salvador, as escolas apresentavam um universo festivo diferenciado, um formato que já arrancava aplausos e elogios em terras cariocas. Essa experiência de brincar o carnaval de forma semelhante ao modelo carioca apresentou uma possibilidade palpável para a comunidade negro-mestiça da época que, adaptando muito do que já era apresentado aqui e participando de intensas trocas culturais, uniu-se em grupos, fazendo dos anos 1960 e 1970 um período áureo para o carnaval de rua da cidade, com centenas de pessoas participando das mais famosas escolas e obtendo
Uma diferença importante das escolas de samba era o rigor e a exigência que a competição contínua instaurou ano após ano. Isso não competissem entre si ou tivessem sido expostas a um júri ou a julgamendisputa, era no jogo das escolas de samba do carnaval soteropolitano que a competição se sobressaía como fator importante, determinante para o destaque e o sucesso de cada escola. Logicamente, a vitória dependia de empenho e recursos, empenho esse decorrente de uma estrutura rígida de - e braçal da comunidade. A competição acirrada mantinha a rivalidade e o desejo de superação. Contando com a vitória nos concursos organizados pelo Departamento Municipal de Turismo e, posteriormente, pela Superintendência de Turismo da Cidade do Salvador (SUTURSA), os entre as primeiras colocadas a cada carnaval. O relaxamento ou descaso de qualquer uma das áreas que compunham a escola poderia causar a perda da vitória, ou mesmo o rebaixamento e, consequentemente, a infelicidade e o desapontamento da comunidade que representava.
Esse empenho contínuo é uma das principais diferenças entre as —, exigia novas fontes de renda e maior habilidade administrativa para utilização dos recursos a serem aplicados de forma correta em cada área.
Nos concursos, o prêmio era anunciado, por vezes, como a moeda corrente e, em seus áureos tempos, divididas em dois grupos, as escolas brigavam para pertencer à elite ou para permanecer no chamado grupo - gar, não sendo permitido recorrer dos resultados da comissão julgadora. Segundo as normativas publicadas nos jornais da cidade no período carnavalesco, as escolas eram julgadas pelos critérios de: alegoria, morepresentavam um contexto vivido na Salvador das décadas de 1950, 1960 e até em décadas posteriores.[18] Cada vez mais, a Prefeitura e os órgãos administrativos citados se mostravam preocupados com a organização e a normatização da festa, que crescia ano após ano, começava
Em 15 de novembro de 1957, residentes da Ladeira da Preguiça criaram a Ritmistas do Samba, a primeira escola de samba da cidade. Além da vivência de seus participantes adquirida em meio às batucadas e da experiência de Jaime Baraúna como músico e participante do bloco terras cariocas, via jornal ou rádio, mas também, em parte, graças ao Como bem destaca um suplemento do jornal A Tarde, a revista Muito, de 31 de janeiro de 2011, os marinheiros e fuzileiros navais baianos que serviram no Rio de Janeiro trouxeram técnicas e truques das escolas de
Observando-se atentamente o mencionado texto de Anísio Felix, bem como as notas de jornais aqui já referidas, pode-se perceber que a novidade não foi inicialmente tão bem recebida como seria na década seguinte. Como destaca Felix, em 1958, a Ritmistas do Samba foi às o antigo modelo das batucadas e charangas.
Anísio Felix foi jornalista, cronista e compositor baiano. Morreu em 27 de fevereiro de 2007 e dedicou alguns textos do famoso Jornal da Bahia ao carnaval da Cidade do Salvador e, em especial, às escolas de samba. Compôs alguns sambas-enredo para as escolas soteropolitanas e, em artigos sobre o carnaval da capital baiana, recontou as experiências vividas e observadas.
Por vezes apontado por Anísio Félix como grande sambista, Jaime Baraúna foi mestre de bateria, mestre-sala, músico percussionista, diretor de escola de samba, pesquisador de enredo e participou ativamente Em entrevista,[19] o que foram as escolas de samba de Salvador em relação ao formato e suas discrepâncias dos demais grupos carnavalescos:
diferença é que as batucadas vinham com um ritmo mais cadenciado e os instrumentos eram feitos de barrica com coro de jiboia, mas o ritmista já veio com os instrumentos comuns de fanfarra, percussivos comuns. E de modo geral? A escola de samba não tinha sopro, nunca teve sopro, era percussão e voz. A grande diferença de Ritmistas do Samba para todos os de percussão e sopro, e a Ritmistas do Samba vinha somente com percussão e voz, como sempre foi no Rio de Janeiro.[20]
Como ressalta o entrevistado, as escolas de samba soteropolitanas - indiana das batucadas. Tinham preferência por instrumentos de percussão e um ritmo de samba menos cadenciado, que visava a comportar uma complexa letra, o samba-enredo. Esses foram os primeiros destaques do tempo e o crescimento de participantes, utilizaram-se cada vez mais sensuais), passistas (dança coreografada), alas de baianas, alas de canto e, por vezes, elementos não presentes, tradicionalmente, no formato de escola de samba como o trio de pandeiro.
Ritmistas do Samba, Baraúna explica:
No dia 15 de novembro, sete pessoas se reuniram na Preguiça e lideradas por um rapaz chamado Washington, apelido “Washingtinho”, outro chamado Magriça e mais alguns criaram a escola de samba Ritmista do Samba, que saíu pela primeira vez no carnaval de 1958. Ainda não existia nem a Federação dos Clubes Carnavalescos da Bahia. Os clubes existiam, mas cada qual saía à sua maneira.[21]
A não existência de uma federação não desanimou os primeiros - de Salvador. Nesse sentido, nos dois primeiros anos em que não tinha rivais ou disputava por títulos, a Ritmistas do Samba apresentou algo novo no carnaval soteropolitano. Em 1959, a Ritmistas cresceu e foi às ruas com 15 homens sob a direção de Jaime Baraúna.
Até meados de 1960, o concurso da Prefeitura ainda não tinha uma para a disputa não impediu, porém, o aparecimento, ainda no começo de formatos próximos, como as charangas dos bairros, que passaram a se utilizar do modelo carioca e a se espelhar na Ritmistas do Samba. Dentre elas, merecem comentário a Escola de Samba Filhos do Tororó e o Grêmio Recreativo Juventude do Garcia.
As primeiras escolas de samba da Cidade do Salvador
No contexto das mudanças na forma de manifestação, muito comum no carnaval da cidade na época, o cordão chamado Filhos do Garcia uma charanga.[22] Nesse formato, já coexistiam alguns dos elementos de batucada e de bloco, bateria de samba e roupas nas cores rosa e preto na manifestação do carnaval da Bahia. Camisas de mangas compridas, cartolas e bengalas também já faziam parte da rotina do grupo. Impulsionada pelo aparecimento da escola Ritmistas do Samba, a Juventude do Garcia já desfilaría em 1961 como escola, amargando, porém a primeira derrota devido ao inicial amadorismo, fato então comum entre os grupos que migravam para o novo modelo.
Em entrevista, João Gomes Barroso Neto, fundador, colaborador e ex-diretor da Juventude do Garcia, relembra os primeiros anos da escola. Cercado ainda pelo amadorismo e inexperiência dos anos iniciais, destaca influencia do modelo carioca, mas nao esquece a longa tradicao festiva vivida no bairro do Garcia:
E eu ainda muito jovem, criança praticamente, já tinha envolvimento com alguns eventos. Na época deveríamos ter de 8 a 10 anos e já saíamos na batucada chamada Netos do Garcia. E aí vieram outros blocos importantes, como Filhos do Garcia, A Grande Família... Se for enumerar eu me perco... Nos idos de 59, precisamente, foi fundada a Escola de Samba Juventude do Garcia. Naquela altura, era um grupo de moradores do Garcia, todos eles com pouca idade, jovens, estavam numa faixa de 16 aos 18 anos, o mais velho deveria ter uns 20 anos, mas pessoas entusiasmadas com o samba que acompanhavam através da televisão, através das revistas como O Cruzeiro que, naquela época, mostravam os grandes espetáculos que o Rio de Janeiro promovia. Isso criou em nós um certo entusiasmo e aí... “Por que não fazermos também escola de samba?” Tanto que a Juventude do Garcia foi a primeira escola, se não me falha a memória... Já existia a Ritmistas do Samba, mas não sei se naquele momento eles já atuavam como escola de samba. E aí, sem dispor de experiência e de recursos, a gente começou a se aproximar, mais ou menos, de como se organizava uma escola de samba. Nos primeiros anos, dividimos a escola em dois ou três grupos que eram, mais ou menos, os ritmistas, que saíam tocando, os que saíam sambando e os que saíam cantando, evoluindo, coisa e tal.... E naquele momento foi um grande sucesso. E a coisa foi evoluindo, a cada momento a gente buscava colocar dentro da escola uma coisa nova, algo que pudesse realmente aproximar as escolas daqui daquilo que acontecia no Rio de Janeiro. E aí, eu permaneci colaborando com a escola, pois fui um dos fundadores, chegou em 61 tive que viajar para o Rio de Janeiro e não pude continuar dando aquela colaboração, aquela ajuda que vinha dando antes.[23]
Há nesse depoimento inicial sobre os primeiros anos da Juventude do Garcia elementos interessantes para compreender o universo das escolas de samba do início da década de 1960. Primeiro, a vitalidade dos carnavais de bairro e a relação dessas primeiras escolas com outros grupos oriundos de uma mesma localidade, uma vez que o trecho já aponta a Juventude do Garcia como ligada às batucadas do bairro. A questão organizacional já está presente nessa experiência primária das escolas no início da década de 1960, ou seja, já existe uma divisão e subgrupos que têm responsabilidades distintas.
Barroso faz questão de destacar dois momentos vividos na história da escola de samba Juventude do Garcia. O primeiro, de 1959 a 1965, que seria um momento mais amador da escola, e um segundo, de 1966 momento de “modernização”, um momento de maior aprimoramento téc-
Nascido em 24 de janeiro de 1953, o grupo Cordão Carnavalesco Filhos do Tororó já iniciava suas atividades no carnaval. Em 1963, tornouOxalá, trouxe seiscentos componentes às ruas e, graças à sua bateria, obteve o primeiro lugar. Nesse ano, já tinha superado a Ritmistas do Sambae e aquela que seria a sua maior rival, a Juventude do Garcia. Nesse mesmo ano, o grupo Amigos do Politeama se transformou em Escola de Samba do
Anísio Felix também destca a escola no seu citado texto de 2002: A Escola de Samba Filhos do Tororó foi uma das mais conhecidas e festejadas da Bahia. Ela projetou vários compositores como Walmir todas as camadas sociais cantava e prestigiava os ensaios daquela escola, que fez escola no carnaval da Bahia.[24]
Carlos Argolo, conhecido, no meio do samba, como Argolo Melodia, participou dos primeiros anos da Filhos do Tororó, atuando como passista, organizador de ala e, com o passar dos anos, também como carnavalesco. Sobre esse período inicial da escola Argolo esclarece:
Naquele tempo, nós não tínhamos o que temos hoje. Nós não víamos o - ca, mas não dava para reproduzir tudo. Passava no trailler do cinema o carnaval carioca, mas passava o carnaval no Copacabana Palace... Antes de tudo isso, houve aqui uma escola de samba da Marinha Mercante, de samba, quando passava por alguma cidade no período de carnaval, não tem ligação com a Filhos do Tororó. Nessa época, Filhos do Tororó era um cordão. Eu morava nos Barris, minha mãe era canavalesca e meu pai também. Meus tios, idem. Eles não me levavam para o Centro. Minha mãe era carnavalesca de clube, com lança-perfume, e me levava para os bailes. Uma coisa muito bonita que vi na cidade e tinha vontade de repetir: um carro que tinha um balanço com umas meninas... hoje é alegoria das escolas de samba do Rio de Janeiro.[25]
Para Argolo, a questão da inspiração no modelo carioca por meio da mídia era inicialmente limitada. Os meios de comunicação não eram, então, completamente acessíveis. O contato com a escola de samba da Marinha Mercante permitia visualizar o conteúdo carioca em terras sodepoimento a menção a uma alegoria e a vontade de repetir um carnaval espetáculo, algo a ser admirado, uma apresentação de esplendor, um carnaval de contemplação.
Os últimos anos da década de 1950 e primeiros da década de 1960 entre grupos de formato diverso, como o surgimento de novas escolas, impulsionado pela presença da pioneira Ritmistas do Samba e pelo progressivo crescimento da Juventude do Garcia e da Filhos do Tororó.
Sobre as principais escolas dessa época, Argolo adverte:
A Juventude do Garcia era onde a gente fazia o Ba-Vi. O Ba-Vi verdadeiro era entre Tororó e Garcia. Ritmistas do Samba, a primeira escola de samba feita por baianos, sempre foi uma grande escola, mas era como se fosse o Botafogo do Rio... Eu estava no Vamos com Calma naquele ano e encontrei a Ritmistas do Samba, a gente estava de saída. A escola vinha com um samba diferente, bonito. Eu me segurei na corda do Vamos com Calma e não queria ir mais para a frente. Fiquei olhando a Ritmistas: Jaime Baraúna, como mestre-sala, Edinha como porta-bandeira e um negócio muito bonito de bolinha preto e branco (eu ouço ainda no meu ouvido aquela sonoridade). Depois do Filhos do Morro, fui para o Filhos do Tororó, e aí começa a história. Eu tinha dois primos que saíam no do Morro que tinha uma bateria pesada, tirada a malandro. De tanto os primos me chamarem, um dia resolvi participar da reunião dos Filhos do Tororó. Ficava com vergonha na Liga Contra o Trabalho (LCT), em que todos os 365 dias do ano os Filhos do Tororó se reuniam. Ficava em se passando no Tororó. Fui chamado de “peru”. O que aconteceu nesta[26]
É válido lembrar que, mesmo no início da década de 1960, já existiam algumas circunstâncias que possibilitavam a criação de uma Bahia já há muito experimentavam o samba como manifestação artística, e a festa nos bairros, em que se admiravam os diversos grupos, também era uma realidade. Nos bairros, diversos outros artistas tomaram a frente - ram de mais de uma delas na festa das escolas. Esse é o caso do cantor e compositor Walmir Lima que, em entrevista, salienta suas origens no samba, cita outros nomes importantes e fornece esclarecimentos sobre os blocos e das escolas da segunda metade do século XX.
Anísio Felix foi meu parceiro de música. Ele gostava tanto de escola de samba que acabou fazendo samba-enredo junto com Ederaldo Gentil. Foi meu parceiro mais constante na época do festival. Nós ganhamos o primeiro festival do Pelourinho. Ele escrevia aquelas crônicas (ele era do Jornal da Bahia Santana... Me esqueço o nome do cara, famoso pra caramba... o dono do jornal). Então, ele escrevia aquelas crônicas e eu pegava aquelas crônicas dele e dizia: vou levar pros versos, e aí fazia. Fiz carnaval especial com comigo e que os caras assassinaram na subida da Praça Castro Alves por causa de um cigarro de maconha que vinha lá da Rocinha. Eu ia pegando as coisas que ele escrevia, ia pegando as palavras de uma crônica e transformando em versos. Ele e Batatinha, todos eles diziam que achavam difícil as coisas que eu fazia. Na verdade, eu larguei o Tororó, como bloco, porque tinha Ederaldo, que era o compositor de samba-enredo, e dele, a minha primeira mulher que faleceu.[27]
desse momento inicial da Filhos do Tororó. Mais tarde, esses artistas se consagrariam como célebres compositores de samba e, obviamente, de samba-enredo. Walmir Lima participou da escola de samba Filhos do Morro até 1965, porém mantinha uma ligação com seus vizinhos e amigos da escola Filhos do Tororó. Ele sublinha:
Ficava por trás, incentivando os caras, fazendo pesquisas para dar pros caras... Tanto é que eu transformei um bloco dentro do Centro Histórico chamado Filhos do Morro em escola de samba. Esse bloco era preto e eu que montei. Naquela época, a gente fazia essas coisas por amor... mas, naquele ano, a Superintendência de Turismo, a SUTURSA, me pagou para eu fazer, porque eles achavam interessante isso e era preciso que fossem votadas várias escolas de samba para crescer o grupo.[28]
A escola de samba Filhos do Morro era um grupo carnavalesco do Centro Histórico de Salvador, cujas cores eram preto e branco. Seguindo seu formato ainda no início da década de 1960. Sua origem está diretamente relacionada com o começo da participação de Walmir Lima, que foi carnavalesco, compositor e músico atuante em mais de uma escola. Atualmente, ele ainda atua como cantor e compositor de samba, e sua história como artista está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento das escolas de samba da cidade.
O início da década de 1960 foi marcado não só pelas três mencionadas escolas — Ritmistas do Samba, Filhos do Tororó e Juventude do Garcia —, como também, pelos promórdios de uma cultura de competição, inerente ao universo das escolas nas décadas posteriores, uma vez que os grupos se tornam numerosos, progressivamente mais competitivos expansão, as escolas viveram um momento de intensa disputa nos primeiros anos daquela década, competindo, por vezes, em categorias que momento, segundo Jaime Baraúna, podem ser elencadas:
do Tororó, que era um cordão carnavalesco e se transformou em escola de samba por um decreto do presidente, foi campeã em 65.[29]
Vale lembrar que, em 1964, o Departamento Municipal de Turismo - tames e Turismo, tornando-se, pouco tempo depois, a Superintendência de Turismo da Cidade do Salvador (SUTURSA), que passou, então, a ser o órgão responsável por normatizar os concursos de afoxés, batucadas, de disputa da grande competição carnavalesca, e as primeiras escolas competiram em categorias outras, o que possibilitou sua apresentação entre os grandes e pequenos clubes, batucadas ou charangas. Esse tipo de competição permitiu a vitória dessas escolas, embora nomeadas como Escola de Samba do Politeama, ambas vencedoras em 1963.
Com a sua já grande e reconhecida bateria, premiada em 1963, e com a sua vitória em 1964, a Juventude do Garcia desencadeou uma acirrada disputa no carnaval de 1965, no qual as três principais escolas se envolveram diretamente na competição. Em 1965, o Jornal da Bahia[30] de samba”, porém não menciona a pontuação ou a existência de mais de um grupo. Protestos contra jurados e/ou toda a comissão julgadora se tornaram comuns e, naquele ano, os integrantes da Ritmistas do Samba consideraram injusto o terceiro lugar obtido na disputa.
Território e rivalidade
Filhos do Tororó, escolas que se localizavam no mesmo eixo da cidade, Garcia-Federação-Tororó, e partilhavam de uma rivalidade que remontava a épocas anteriores. É verdade que essa disputa era ora polida e dotada de camaradagem e mesura, ora marcada por protesto, quando questionavam, por vezes, a opinião da comissão julgadora.
Vários dos antigos fundadores e artistas que participaram dessas escolas destacam a questão da rivalidade, considerando, por vezes, a disputa entre a Juventude do Garcia e a Filhos do Tororó como um verdadeiro Ba-Vi[31] do carnaval. Já a Ritmistas do Samba é sempre lembrada como a mais velha e, por isso, a mais respeitada e admirada entre eles.
Carlos Ferreira, conhecido como Carlito Cafroxo, percussionista, músico e cantor, participante, na época, da Filhos do Tororó, entrevistado entre as primeiras escolas
Existia uma grande rivalidade, mas com lealdade. Não tinha aquela coisa de um agredir o outro. Era uma competitividade vaidosa, uma competição mais levada para o âmbito da vaidade. Por exemplo, eu era um sambista e queria saber como era a fantasia deles para poder superar. Existia aquela coisa do bairrismo, mas não aquela coisa de agredir. Em todo o tempo de vivência das escolas, não teve casos de agressividade, morte, nada disso, como tem lá no Rio de Janeiro, mas um queria sair mais bonito do que o outro. Por exemplo, quando a Filhos do Tororó ganhou, foram para a comemoração algumas pessoas do Garcia, que era a maior rival. Era o Ba-Vi do carnaval!. Foi justamente no carnaval de 1965, quando a Juventude vinha muito forte com o enredo e a gente da Filhos do Tororó terra conhecida no Brasil, Oh! Oh! Feliz como viver, e sonho hoje o que foi um momento marcante na escola de samba.[32]
também, dos blocos carnavalescos, uma rivalidade advinda do bairrismo que se estendia para o campo da escolas de samba nos quesitos que mais prezavam: beleza e requinte. A melhor roupa, a melhor fantasia, a bateria mais empolgante, o mestre-sala e a porta-bandeira mais graciosos, os mais bonitos carros e destaques, era assim que cada uma queria se mostrar melhor, em busca de apresentar uma festa que superasse a do essas duas localidades vizinhas, que sempre estiveram próximas quando se tratava de carnaval e festa.
Segundo Argolo, membro da Filhos do Tororó:
festa. Lá tinha batucada... Sabe por que existe o Apaches do Tororó? Porque no Garcia existia o Cacique do Garcia, que, dia de segunda-feira, ia cantar no Tororó o samba de sugesta. Aí resolveram, no Tororó, colocar no bloco o nome Apaches do Tororó. Um ía para o baile do outro para dar sugesta. O pessoal do Garcia, que era da Juventude, imitava o Cacique de Ramos, do Rio e Janeiro.[33]
anulavam, por vezes, os divertimentos promovidos em ambos os bairros. Tororó e Garcia tinham uma rivalidade considerada “democrática”, que não atrapalhou o desenvolvimento de seus blocos carnavalescos e, pelo contrário, ainda que pudesse haver, vez ou outra, alguns ânimos mais exaltados, abrilhantou, em certa medida, o carnaval de bairro da cidade.
Assim se refere João Barroso, membro fundador da Juventude do Garcia, à rivalidade entre as escolas:
Havia, sim, mas era uma rivalidade muito democrática, porque as pessoas davam o seu calor, torciam, mas sem agressão física. Não havia isso em nenhum momento. Antigamente existia um grito de carnaval muito importante na cidade, promovido pela Duas Américas, que era uma grande loja, e a gente juntava a bateria do Garcia e a do Filhos do Tororó e participava. Então, essa rivalidade sempre admitia uma boa vizinhança, um bom entendimento, sem gerar a necessidade de agressão. A Juventude não[34]
Diversos depoimentos colhidos junto aos antigos componentes Tororó e ajudam a explicar a estrutura dessas escolas na arrecadação de - formatos de apresentação para o de escola de samba, o apoio de políticos, de ouro” já são citados. Ao destacar o assunto, Walmir Lima lembra a formação das pioneiras Ritmistas do Samba e da escola do Politeama, destaca a importância de o Tororó ter recebido uma bateria completa, das escolas do Garcia e do Tororó:
Na época não tinha muitas escolas. A pioneira era a Ritmistas do Samba, juntamente com o Politeama, daí veio o Tororó que virou escola de samba, a Juventude do Garcia que foi um pedaço do Tororó, porque um político mandou fazer, no Rio de Janeiro, uma bateria e deu ao Tororó. a sair e a tocar e, daqui a pouco... criou-se a Juventude do Garcia! Acho que já tinham ideia disso aí... Depois, o Tororó tomou de volta a bateria, mas não sei o desenrolar disso aí não.[35]
Vale lembrar que a participação de Walmir Lima, na época, não estava ligada diretamente à escola de samba Filhos do Tororó, visto que grupos carnavalescos no Tororó e se mantinha próximo à escola como admirador, morador do bairro e folião.
Como toda moeda tem dois lados, a mesma história é contada por João Barroso com maior riqueza de detalhes:
Há uma história interessante... Hebert de Castro, o baluarte do Garcia, emprestou um dinheiro à Filhos do Tororó para comprar uma bateria nova. Ele emprestou esse dinheiro na condição de devolverem em um guardados no Garcia. O tempo passou, nós do Garcia passamos a ter necessidade de uma bateria mais nova e recorremos a ele. E ele passou a bateria do Tororó para nós. Houve um tumulto, o pessoal do Tororó etc, etc. Hebert disse a eles que passou a bateria para o Garcia porque eles não cumpriram o prazo. Foi dado um novo prazo e eles arranjaram o dinheiro. Esse dinheiro foi passado pra gente, e eu viajei pro Rio e trouxe surdo, cuíca, megafone... Tudo isso foi inovação que nós trouxemos.[36]
O trecho acima refere alguns fatos importantes na construção das primeiras escolas. Além da já citada importância de tomar-se o exemplo do samba do Rio de Janeiro para a festa baiana, uma vez que, nas baterias das escolas de Salvador estavam presentes muitos dos instrumentos usados no Rio, e da rivalidade bairrista entre Tororó e Garcia, construção dos pequenos carros alegóricos, das fantasias do mestre-sala, da porta-bandeira e dos destaques especiais.
Nos primeiros anos, os próprios integrantes se encarregavam de suas fantasias. Já separados em alas, cada ala tinha a responsabilidade de apresentar uma fantasia que deveria estar em consonância com a proposta apresentada pelo samba-enredo. Algumas vezes, quando muito, a escola entrava com o tecido, e os integrantes de cada ala, quer os da bateria, suas próprias fantasias. Sobre a questão, é relevante o comentário de Walmir Lima:
que dar o tecido pra eles confeccionarem. Por exemplo, no Tororó tinha Carlinhos que fazia parte da montagem dos carros alegóricos, no Garcia eles mesmos armavam as alas deles... Ensaiavam na quadra, nos lugares próprios pra eles, tá entendendo? Tinha os grandes destaques... Tinha as fantasias que tivesse alguma coisa a ver com o enredo das escolas de destaques em Feira de Santana! Era muito pouco dinheiro. Eles davam uma subvenção pequena, e a gente se virava para montar tudo! Era muita força de vontade! Sempre aparecia um negociante que bancava alguma eu largava tudo... Comprava uns negócios para a minha família, largava dentro de casa, deixava o pirão dos meninos e adeus saudade. Trabalho não me preocupava... Eu estava focado naquilo ali... Não tinha retorno - pois, alguma coisa por fora. Comentavam: “Foi ele quem fez” ou “Vou chamar pra tocar aqui”.[37]
Ainda que, por vezes, não estivesse explícito na lógica da disputa da época, a qualidade do tecido e do corte e o desenho da fantasia já eram elementos que alimentavam a vaidade de cada integrante. Tecidos mais caros, cores mais vibrantes e temas ligados à história brasileira eram os - do, tanto nos jornais como nas entrevistas. Para os de orçamento mais confeccionada com esse tecido era um desejo, um luxo que despertava admiração e inveja.
Diversos dos antigos participantes na qualidade de dirigentes ou pelo planejamento anual de uma escola, só saía às vésperas do carnaval, quando o planejamento, os gastos e os ensaios já tinham sido realizados.
Os destaques, alas de sambistas, alas de passistas, alas de baianas, bateria, mestre-sala e porta-bandeira e os pequenos carros alegóricos — o básico da estrutura das escolas na época — necessitavam apresentar o mínimo de requinte. E como, na primeira metade da década de 1960, havia pouca interferência de participantes de escola que fossem de um grupo exterior aos bairros onde as escolas foram gestadas, as rifas, as participantes de cada agremiação foram as fontes de renda iniciais. Proestratégias foram adotadas como a promoção de disputas e a participação em diferentes festas.
Os problemas financeiros foram uma constante, mesmo em das escolas eram operários, alfaiates, sapateiros, técnicos, ambulantes, - cia, Liberdade, Nordeste de Amaralina e outros, que ousaram levar um Praça da Sé. As escolas desciam a Avenida Sete, tomavam a direção da Praça Castro Alves e subiam até chegar à Praça da Sé. Porém, somente
nalmente. Depois, seguíamos para o Campo Grande, sendo que a gente a Comissão Julgadora. Tinha uma rampa, subia a bateria e se colocava ao lado para dar apoio e as alas iam se apresentando. Tinha carro alegórico também. Depois passou a ser em frente à Câmara Municipal. No primeiro a gente tinha que cumprir horário. Às vezes, íamos, também, a algum bairro. A gente saía dois dias de carnaval, no domingo e na terça-feira, e no Uruguai, em Macaúbas, nesses bairros todos... Era uma maratona![38]
No palanque, ala por ala da escola se apresentava para avaliação ao som de sua bateria, mas esse modo peculiar de apresentação não impedia que já se utilizavam do samba como divertimento no interior dos bairros da cidade. As primeiras escolas aproveitaram a experiência de grupos carnavalescos que já se apresentavam em terras soteropolitanas, e se temas e dos carros alegóricos que já eram comuns na cidade, somando a isso o modelo em voga em terras cariocas. Esse modelo disposto em alas, fantasias temáticas etc. herdou a percussão pesada das antigas batucadas.
O grupo formado por uma classe média negra conhecido como Mercadores de Bagdah foi uma das principais referências na musicalidade e na construção dos carros alegóricos das primeiras escolas. A escola de samba Ritmistas do Samba (1957) nasceu graças a músicos e participantes desse grupo. A Juventude do Garcia (1961) e a Filhos do
Em especial nas escolas dos bairros do Garcia e Tororó, destaca-se Lima e Batatinha, entre outros, e a busca constante pelo requinte para localidades, rivalidade essa que remontava às antigas batucadas desses bairros.
As notícias e crônicas em jornais e os depoimentos recolhidos ree mestiços que já utilizavam o samba como divertimento no interior dos bairros foram fundamentais na construção lúdica das primeiras escolas de samba da capital baiana.
Notas