Resenhas
UMA HISTÓRIA DOS PORTOS OCIDENTAIS DA COSTA DA MINA. STRICKRODT, Silke. Afro-European Trade in the Atlantic World: The Western Slave Coast, c. 1550- c. 1885. Londres: James Currey, 2015. 266p.
O interesse historiográfico no reino do Daomé e sua participação no tráfico atlântico de escravos explica o foco da historiografia sobre do Benim, cujo litoral era conhecido na época como Costa da Mina, pelos portugueses e brasileiros, e Costa dos Escravos, pelos demais traficantes. Falo de Aladá, Uidá, Porto Novo, Badagri e Lagos, reinos cujas histórias estavam de uma ou outra maneira ligadas à do Daomé. Enquanto isso, exceto por trabalhos localizados, os portos mais ocidentais da região (a oeste de Uidá) continuavam de alguma forma marginalizados pelos historiadores. O livro de Silke Strickrodt corrige essa ausência. Ele adiciona muitas novas sobre o tráfico no Golfo do Benim, bem como sobre as sociedades africanas que se desenvolveram na era do comércio transatlântico de cativos. A historiadora aborda as duas principais entidades políticas da região: o reino hula de Popo Grande, na atual República do Benim, e o reino gen de Popo Pequeno, no atual Togo. O trabalho é uma oportunidade para se conhecer mais a fundo, numa perspectiva de longue durée (já que o livro cobre quase 350 anos de história), outros importantes reinos da região, como a confederação Anlo e os reinos Akwamu e Ashante, bem como para entender a partialém de Portugal, no desenvolvimento do tráfico negreiro em Popo Pequeno.
A costa ocidental da região compreendia, no século XIX, além de Popo Grande, Popo Pequeno, os portos de Agoué e Porto Seguro. A autora apresenta uma visão geral dessa região, lançando luz sobre sua participação no comércio transatlântico de escravos, seja como sociedades produtoras de cativos ou como abastecedora de alimentos para os negreiros. Nesse aspecto, ela cumpria um papel fundamental, tanto de transporte de escravos entre os diversos portos locais como de comunicação entre o oeste e o leste da Costa da Mina — e às vezes entre esta zona e a Costa do Ouro, no litoral da atual Gana.[1]
Não por acaso, portanto, a autora dedica o capítulo inicial a analisar o meio ambiente e como ele influenciou decisivamente o comércio regional. O uso de mapas (infelizmente concentrados no capítulo 1 do livro) permite entender melhor a relação entre meio ambiente e comércio.
Havia significativas diferenças entre as partes oriental e ocidental da Costa da Mina: 1) ao contrário da zona oriental, na ocidental a ligação entre o litoral e o interior era bastante limitada por uma topogra- 2) não havia um único estado controlando a região, como o Daomé o teve uma história de migração e estabelecimento de povos da Costa do Ouro, como os canoeiros de Elmina, de fala akan, ou povos ga-adangme.
O sistema lacustre cumpria papel crucial, sendo utilizado para superar as dificuldades oferecidas pelo mar aberto. As lagoas produziam peixes e sal, serviam de meio de transporte e defesa contra invasores. Ademais, o comércio afro-europeu dependia delas para o transporte de escravos e outros gêneros, e para a comunicação entre os diversos portos da Costa da Mina e fortalezas na Costa do Ouro. Nesse passo elas se integravam, e eram de fato, mutuamente dependentes:
O mar e as lagoas não devem ser vistos como entidades separadas mas como partes interativas de um único sistema, ao qual as pessoas não apenas se adaptavam mas que ativamente controlavam (p. 38).
Ao mesmo tempo, as terras férteis de sua hinterland (principalmente de Popo Grande) possibilitavam o cultivo de gêneros alimentícios, como o inhame, a mandioca e o milho, os dois últimos originários das Américas e provavelmente ali introduzido pelos imigrantes da Costa do Ouro ou pelos navios europeus. Essa produção destinava-se ao consumo local e, mais tarde, também ao suprimento dos tumbeiros. A despeito do efeito letal da tripanossomíase transmitida pela mosca tsé-tsé, doença endêmica na Costa da Mina, havia também a criação (principalmente na área de Popo Pequeno) de bovinos de uma espécie aparentemente resistente ao parasita.
Apesar de seu interesse no aspecto global da participação da região no mundo atlântico, a autora não se descuida da organização econômica e do meio ambiente locais, que influenciaram o desenvolvimento do comércio interno entre os vizinhos costeiros e do interior. Como Strickrodt observa,
o comércio local de longa distância de peixe seco e sal estabeleceu as rotas e as estruturas que foram subsequentemente utilizadas e expandidas pelo comércio afro-europeu (p. 62).
O capítulo seguinte lida com a migração dos povos da Costa do Ouro e o desenvolvimento do trá- fico na região. Os canoeiros akans participaram da fundação de várias comunidades na parte oriental, como Uidá e, na porção oriental, de Popo Pequeno. Mais tarde, a migra- ção dos povos Ga (do reino de Acra) e Adangme (do reino de Ladoku), refugiados por conta da expansão do reino Akuamu, no último quartel do século XVII, adicionou mais um grupo à comunidade plural que se constituiria em Popo Pequeno, formada por hulas (habitantes da região), ewes, “fantes”, gas e adangmes, que viviam separados em diversas vilas. Apesar dessa separação, a autora observa um tendência entre os grupos à “aculturação” (que prefiro chamar de integração), principalmente através do casamento com mulheres locais, algo de resto também observado em outras regi-
É nessa época que o tráfico transatlântico de cativos começa a ganhar relevância na região. Ali atuavam, principalmente, os dinamarqueses, brandemburgueses e portugueses, que não conseguiam competir com os comerciantes ingleses, holandeses e franceses em Ofra (porto sob o controle de Alada) e Uidá. Como sabemos, o jogo mudaria a partir do século XVIII em favor dos luso-brasileiros, com a introdução do tabaco baiano e a descoberta do ouro de Minas Gerais, itens de interesse dos mercadores africanos e de traficantes europeus em atividade naquelas partes.
No mais, a região ocidental sofria com a falta de oferta regular de cativos para venda aos europeus na costa, pois a maior parte dos escravos em Popo Pequeno, por exemplo, resultava de conflitos locais, e numa região pouco povoada os cativos de guerra não eram suficientes para saciar a sede do tráfico. Podia ser diferente, argumenta a autora, se ali existisse um estado predador e expansionista como o Daomé, por um lado, e, por outro, comunicação mais fácil entre o litoral e o interior. O reino de Popo Pequeno encontrava-se, então, privado do acesso a comunidades populosas que pudessem servir como “campos de caça aos escravos”, como ocorreu com o Daomé na sua relação com os mahis por todo o século XVIII e XIX.[2]
O capítulo 3 é denominado “A era dos reis guerreiros”, e não por Popo Pequeno e os reinos Akwamu, a oeste, e Daomé, a leste. Apesar deu-se um reavivamento do interesse europeu por ela desde os primeiros anos do século XVIII. Logo cedo os comerciantes dinamarqueses tentaram tirar vantagem do tráfico na região pois, acreditavam eles, havia namarquesas operando naquela área estava o navio Christianus Quintus, muito ativo naqueles dias, que, conforme mostrou Russell-Lohse em seu recente livro, após adquirir escravos em Pequeno Popo, desembarcou-os na Costa Rica em 1710.[3] Ao mesmo tempo, ingleses, franceses e holandeses voltaram sua atenção para aquele lado da Costa da Mina, principalmente a partir dos problemas enfrentados em Uidá nos anos de 1710.
A figura dos “reis guerreiros” era bem representada por Ashampo (c. 1737-1772), que teve participação crucial no ascensão de Popo Pequeno nesse período. Ashampo Glidji (capital de Popo Pequeno), sendo seu reinado o apogeu do poder militar do reino. Foi quando ocorreram as batalhas pela expansão territorial a oeste, em direção à confederação Anlo, e a leste, em direção aos territórios controlados pelo Daomé. Strickrodt narra diversos desses conflitos, sobretudo nos anos finais da década de 1730 e durante os anos 1740. No entanto, é surpreendente — e notável, devo dizer — a ausência de Fluxo e refluxo, de Pierre Verger, entre as referências bibliográficas utilizadas pela autora para reconstruir a história desse período na região. Na introdução da obra, a autora afirma que a maior - mércio português ali deriva de rela narrativa dos traficantes e funcioná- rios portugueses do período poderia acrescentar dados valiosos ou, pelo menos, apresentar a perspectiva portuguesa sobre os eventos que envolviam Popo Pequeno e o Daomé. Por exemplo, para justificar o ataque daomeano ao forte português, em 1743, Tegbesu, rei do Daomé, acusou o seu diretor de auxiliar as investidas de Popo Pequeno contra seu reino. Em outras palavras, além do poderio militar, Ashampo provavelmente contava com o auxílio de europeus, talvez ansiosos para escapar do jugo do rei do Daomé. É verdade que a autora pouco escreve sobre o território a leste de Uidá, pois escapava aos seus interesses de pesquisa. Entretanto, uma breve análise da economia política do tráfico na parte oriental da Costa da Mina, em meados do século XVIII — que contava com expressiva presença de comerciantes luso-brasileiros — poderia ajudar a explicar a crescente participação de tumbeiros na região ocidental. Especificamente, uma lei do marquês de Pombal de março de 1756 proibia dois navios no mesmo porto ao mesmo tempo, o que levou os traficantes lusos a buscarem portos alternativos a leste tanto quanto a oeste de Uidá.
O reinado de Ashampo explica a “complexa relação” entre guerra e tráfico de escravos. Por um lado, os conflitos daquele período levaram a um aumento da oferta de cativos Ashampo dependente dos comerciantes europeus para o fornecimento de armas de fogo e outros bens indispensáveis para arregimentar seguidores e construir alianças durante os tempos de guerra. Ao mesmo tempo, a difícil relação de Ashampo com os comerciantes europeus demonstra que a constituição de la- ços comerciais e de confiança entre africanos e europeus era bastante complexa, mas que no fim do seu reinado — e principalmente com o envio de um filho seu para a Inglaterra — já demonstrava a emergência de uma cultura cosmopolita que facilitaria o comércio transatlântico nas décadas seguintes.
Em “Na era dos comerciantes”, título do capítulo 4, Strickrodt analisa o comércio transatlântico na região. Imediatamente após a morte de Ashampo, o reino passará por período de decadência: acabou sendo incorporado à zona de influência Ashante, na última década do século XVIII, o que durou até pelo menos meados da década de 1810, ou talvez até o início dos anos 1820. As hostilidades com o Daomé reiniciaram na década de 1790, mas depois de derrotados de 1795 (ou talvez pela influência Ashante), Popo Pequeno desistiu de seus planos de expansão a leste. Por sua vez, Popo Grande — que como o leitor mais atento debe ter notado, pouco apareceu na resenha (bem como no livro, em comparação a Popo Pequeno) — parece ter se retirado do tráfico, embora talvez tivesse continuado a enviar os escravos obtidos em seu território para Popo Pequeno ou Uidá.
A partir da década de 1770 há um paulatino crescimento das atividades comerciais inglesas, holandesas e portuguesas na região. Estes últimos adquiriam não apenas escravos, mas também cauris/conchas, utilizadas como dinheiro em toda a África Ocidental. Os cauris eram introduzidos por comerciantes holandeses e ingleses, indicando a inacessibilidade portuguesa às reportanto, o tráfico de cativos em Popo Pequeno nas décadas de 1780 e 1790 (p. 149). Esse crescimento, interpreta a autora, resultava provavelmente dos problemas que os comerciantes europeus enfrentavam em Uidá, notadamente as taxas fixas 1789) quanto ao número de cativos exportados. Na parte ocidental da Costa da Mina, por outro lado, os comerciantes desfrutavam de maior liberdade comercial. Convém lembrar também os distúrbios na parte mais oriental daquele litoral, ocasionados pelos ataques daomeanos a Ekpe, Weme, Badagri e Porto Novo, que tornaram aquela zona insegura para os comerciantes europeus e seus navios. Como a autora mesmo demonstrou, havia um elemento de insegurança gerado pelas guerras entre os diferentes estados do Golfo do Benim, que tinham, entre seus mais relevantes motivos, o controle do mercado de escravos. Anote-se, porém, que, até como resultado desses conflitos, o crescimento do tráfico não se restringe à parte ocidental da Costa da Mina, mas fazia parte de uma tendência mais geral de crescimento do tráfico observado nas últimas décadas do século XVIII, como demonstram os dados do The Transatlantic Slave Trade Database.[4]
Silke Strickrodt interpreta o estilo europeu das casas construídas pelos comerciantes africanos locais como evidência da prosperidade econômica reinante em Popo Pequeno nas décadas de 1780 e 1790. De fato, esse estilo arquitetônico, visí- vel também mais a leste, sobretudo em Porto Novo, além de indicativo de prosperidade, sugere o grau de influência da cultura europeia na região naquele período, naturalmente - cadas para a realidade africana. Ter uma casa em estilo europeu poderia ser um elemento de diferenciação dos “cabeceiras” (dignitários, homens que organizavam o tráfico costeiro), demonstrando sua influ- ência e, portanto, direito a cobrar taxas e controlar o comércio.
A parte final do livro cobre o período de 1807 até 1900. O capí- tulo 5 lida com os aspectos políticos na região entre as décadas de 1820 e 1870. É desse período que data a fundação de Agoué (c. 1823), importante local de tráfico no golfo do Benim no século XIX, e de Porto Seguro (Agbodrafo), em meados da década de 1830. O famoso Francisco Félix de Souza, Chachá de Uidá, também esteve envolvido na política local. Ele se estabeleceu em Popo Pequeno em pelo menos duas ocasida Mina, em 1803, e mais tarde, em 1810, depois de um conflito com o rei do Daomé, Adandozan (1797- 1818).
Na década de 1840, Agoué era dividida em duas partes, a vila portuguesa e a inglesa. A vila inglesa resultava principalmente da migração de “africanos livres” (Liberated Africans, os africanos liberados pelos ingleses do tráfico ilegal) de Serra Leoa que, a partir do final da década de 1830, seguiram em nú- meros consideráveis para o Golfo do Benim. A maioria instalou-se em Lagos e Abeokutá, porém, outros se estabeleceram em Agoué, mais precisamente no bairro Saro (ou Salo). A vila “portuguesa”, por sua vez, formou-se a partir da migração de traficantes portugueses, brasileiros e espanhóis, bem como de africanos libertos que começaram a chegar em grande número após a revolta de 1835. O uso do termo Liberated Africans por Strickrodt não permite saber com exatidão se se tratava de africanos libertos ou africanos livres, recapturados pela esquadra britânica no Atlântico. Entretanto, a menção à revolta dos malês nos permite assumir que eram os ex-escravos da Bahia. Estes eram de diversas origens na África e organizaram-se em Agoué segundo linhas étnicas, embora, como a autora nota, os ex-escravos de origem fon, mahi e iorubá compartilhassem alguns bairros. Essa parte do texto é algo confusa pois, como sugere Strickrodt, havia uma certa “exclusividade” étnica que organizava os bairros na vila portuguesa.
O assentamento em vários bairros segundo a origem étnica é notável, especialmente em comparação com Uidá, onde os retornados estabeleceram-se sobretudo em um bairro, Maro (p. 179).
É importante destacar o papel dos retornados da Bahia nos assuntos políticos em Agoué e Popo Pequeno durante o século XIX. Como Strickrodt lembra, a guerra entre essas duas localidades na década de 1860 colocou em lados distintos ra) — escravo do traficante baiano André Pinto da Silveira —, estabelecido em Agoué, e outra dirigida por Joaquim d’Almeida (ou melhor, seus descendentes), instalados em Popo Pequeno. Por sinal, nota a autora, esses conflitos, visto mormente pelos europeus como rusgas entre traficantes de escravos e participantes do comércio “legítimo”, podem ser interpretados, ainda que de forma vaga, como um resultado da assim chamada “crise de adaptação” — diminuição dos lucros oriundos do comércio de escravos e de óleo de palma, nosso azeite de dendê —, que intensificaria a competição comercial e pela participação na cobrança de taxas (p. 194).
As leis antitráfico impostas pela Grã-Bretanha na década de 1810 provocaram sensíveis mudanças no comércio na Costa da Mina. O tráfico português ao norte da linha do equador passa a ser proibido por tratado em 1815, e confirmado pela convenção de 1817, que garantia o direito de visita a navios de ambas as nacionalidades suspeitos de tráfico ilegal, seu apresamento e luso-inglesas. Em 1817-18 outras - res, comprometendo-se a encerrar o tráfico ao norte do equador, ainda que esse comércio tivesse continuado, em alguns casos até a década de 1860. Vários portos do Golfo do Benim tiveram de adaptar-se aos novos tempos. O tema da passagem do comércio de escravos ao comércio “legítimo” ou “lícito” – e essas duas palavras devem ser usadas com aspas, pois do ponto de vista das autoridades africanas não existia ilegalidade no tráfico – é objeto do penúltimo capítulo do livro.[5] Agoué se adaptou rapidamente, tornando-se um escoadouro para produtos alternativos, como azeite de dendê, marnavios. Apesar dessa transição, traficantes de escravos e comerciantes envolvidos com outras atividades conviviam de forma razoavelmente harmoniosa e, por que não dizer, cooperativa e complementar. Afinal, muitos traficantes adquiriam aqueles produtos para negociar escravos com os comerciantes africanos vindos do interior. Escravos eram deslocados de Uidá através do sistema de lagoas para os portos mais ocidentais, de modo a escapar da intensa vigilância britânica sobre os grandes portos do leste.
A autora usa de forma recorrente o termo “português” para referir-se ao forte e seus diretores, aos navios negreiros e os comerciantes vindos do Brasil que ali traficavam. O termo não é historicamente incorreto, sabemos bem. Entretanto, também sabemos, assim como a autora, que o tráfico luso no Golfo do Benim era iniciativa dos traficantes sediados no Brasil e, mais especificamente, na Bahia. Nesse sentido, uma alternativa mais adequada seria trabalhar com a categoria “luso-brasileiros”, enfatizando o papel dos negreiros baianos. Ademais, as leis antitráfico celebradas entre Portugal e Inglaterra após a independência do Brasil impactavam mais profundamente sobre o comércio brasileiro. Como exemplo, o Equipment Act, de 1839, que permitia aos cruzadores britânicos investigar os navios portugueses, teve, de fato, um impacto considerável sobre os navios do Brasil, que usavam bandeira portuguesa em sua negociação, não sobre os comerciantes portugueses.
Ainda nesse capítulo, é detalhado o funcionamento do comércio ilegal e as artimanhas dos traficantes — do Brasil e Cuba, além dos comerciantes locais — para o contrabando de escravos na área de Popo Pequeno e Agoué. O mahi Joaquim d’Almeida foi, talvez, o mais importante comerciante em Agoué no período da ilegalidade. Joaquim engajou-se no tráfico quando ainda escravo, e após a alforria na Bahia continuou no negócio juntamente com outros afro-brasileiros. Mais para Uidá, acabando com o monopólio do Chachá de Souza. O tráfico ali era uma empresa multinacional, envolvendo africanos, brasileiros, afro-brasileiros e cubanos. Aliás, após a abolição do tráfico brasileiro, em 1850, traficantes cubanos, usando navios e bandeira norte-americanos protagonizaram o breve ressurgimento do comércio de escravos na região. Àquela altura, a maior parte dos grandes traficantes tinha morrido (como era o caso de Joaquim d’Almeida), ou se engajado no comércio “legítimo” de azeite de dendê. As iniciativas cubanas foram curtas, até 1863, quando foi registrado o último embarque de escravos da região, malgrado as malfadadas tentativas posteriores. para o sucesso do azeite de dendê na parte ocidental da Costa da Mina: 1) a agricultura se desenvolveu ali antes, com acesso a terras férteis e a um sistema de escoamento da protos mais a leste, principalmente Uidá e Lagos, ainda estavam comprometidos com o tráfico e resistentes a comerciante pioneiro de azeite, John Marman, e seus agentes, os Lawsons, que participavam da vida política na região desde, pelo menos, o final do século XVIII. Mas a partir da década de 1870, explica Strickrodt, tal negócio começou a rarear na parte ocidental em favor da parte oriental do Golfo do Benim. Popo Pequeno e Porto Seguro conseguiram se consolidar em face da competição, mas não Agoué, pois faltava-lhe transporte fluvial para o interior. Isso também permitiu o renascimento do comércio em Popo Grande, beneficiado principalmente por sua posição privilegiada no rio Mono.
No epílogo, a autora trata da partilha colonial e suas consequências. Dois eventos de extrema relevância contribuiriam para a partilha da região no último quartel do século XIX: primeiro, a incorporação da área Anlo (a oeste) ao território britânico da Costa do Ouro, e segundo, o estabelecimento de comerciantes estrangeiros na porção ocidental da Costa da Mina. Na verdade, a autoridade política de vários reinos encontrava-se fragmentada. Popo Pequeno, por exemplo, encontrava-se dividido em três distritos “semi-independentes” (Popo Pequeno, Porto Seguro e Agoué). O rei em Glidji, embora reconhecido nominalmente pelas autoridades dos três distritos acima, tinha pouca importância real. Na década de 1880, França, Alemanha e Inglaterra (mas principalmente os dois primeiros) disputavam o controle da região. Como sabemos, a “partilha da África” teve consequências desastrosas quanto às fronteiras originais dos reinos africanos. Para ilustrar, a capital de Popo Grande, Agbanaken, foi incorporada ao território alemão, no Togo, enquanto seu território costeiro continuou sob controle francês. Agoué, que tinha terras cultiváveis no seu interior, ficou privada dessa área e por consequência da base de sua vida econômica depois do fim do tráfico. Isso gerou a ruína de muitos comerciantes estrangeiros e moradores locais, que tinham de pagar taxas para cruzar as fronteiras. Por outro lado, essas fronteiras arbitrárias não impediram a movimentação de pessoas e o comércio legal e ilegal de bens através delas.[6]
Nesse sentido, vale questionar, qual o grau de participação das dinâmicas internas e das influências externas na partilha colonial? A famosa tese da “crise de adaptação” na transição do tráfico de escravos para o comércio “legítimo”, de Anthony Hopkins, embora possa explicar o enfraquecimento da autoridade local, abrindo uma janela para a intervenção europeia, não é suficiente.[7] Strickrodt demonstra que houve
potências europeias, cada vez mais intervencionistas e agressivas. Ela conclui,
a partilha colonial reflete principalmente a rivalidade europeia ao invés de problemas locais e pode ser vista como vindo “de fora” da região (p. 234).
Strickrodt conclui seu livro com uma previsão pessimista sobre o futuro da região. Como notou um geógrafo em colóquio realizado em setembro de 2000 sobre as possibilidades de desenvolvimento regional, o efeito do aquecimento global —fato ignorado por poderosos governantes hoje em dia — levará ao desaparecimento de Popo Pequeno num futuro próximo à medida que o mar avançar sobre a praia. Prognóstico sombrio para um dos portos mais cosmopolitas do Golfo do Benim.
Denso e informativo, o livro de Silke Strickrodt não é trabalho para leitor especializado. Mais ainda, tem público certo: os estudiosos do Golfo do Benim/Costa da Mina/ Costa dos Escravos. Em seu esforço de reconstruir a história dos reinos daquela zona, Strickrodt faz uma crítica minuciosa das fontes, confrontando-as, colocando à prova as do novas possibilidades interpretativas, deixando pouca margem de dúvida sobre o curso dos eventos ou sobre os personagens envolvidos. Ao mesmo tempo, é cuidadosa nas afirmativas, especialmente quando há carência de fontes escritas e/ou orais que sustentem suas assertivas. Tal esforço, no entanto, poderia ser dosado com alguma narrativa. Se a narrativa sem análise pode ser ma- çante, a descrição e a comparação entre as diferentes fontes, embora fundamental para o exercício de reconstrução histórica, é não menos cansativa. Há também diálogo limitado com a bibliografia, que se explica pela quase ausência de estudos sobre a região, à exceção dos trabalhos de Nicoué Gayibor.[8]
Justamente por se tratar de uma área pouco estudada, esperava-se uma conclusão que amarrasse todos os temas discutidos ao longo do livro. Talvez esse seja o principal problema da obra: exemplar do ponto de visto empírico e da crítica das fontes, falta-lhe engajamento historiográfico e um quadro mais amplo de interpretação. Strickrodt não explica como a historia da região que ela descreve ao longo de 236 páginas se conecta com a História Atlântica, embora possa parecer bastante evidente, nem com a História Global, perspectivas enunciadas na introdução, mas praticamente ignoradas ao longo do livro.
Talvez tenha decidido manter uma abordagem mais africanista, focando-se nos desenvolvimentos sociais, econômicos e políticos da região, fugindo da interpretação atlântica em voga na academia. Se foi esse o caso, porém, me parece ter sido uma decisão equivocada, sobretudo em vista do sucesso de pesquisas recentes que colocam os portos africanos no contexto atlântico mais amplo, iluminando suas múltiplas influências.[9] A escala atlântica quase não aparece, exceto no penúltimo capítulo, quando a autora menciona en passant o impacto da abolição do para o posterior desenvolvimento de Popo Pequeno e portos adjacentes. Os eventos do século XVIII, como a ascensão e ocaso das plantations em Atlântico escravista merecem pouca ou nenhuma consideração. Afro-European Trade in the Atlantic World é obra de fôlego, mas que deixou o resenhista com uma sensação de que falta-lhe um ponto final.